DESMITIFICANDO A APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA NO
ENSINO PÚBLICO BRASILEIRO: O PAPEL DO PROFESSOR DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA NUMA PERSPECTIVA SÓCIO-POLÍTICO-PEDAGÓGICA
LINS JR., José Raymundo Figueiredo
URCA – Universidade Regional do Cariri
Departamento de Línguas e Literaturas
Resumo
Este artigo tem por finalidade apontar e questionar os mitos citados por Moita Lopes (1986)
no tocante ao ensino-aprendizagem de língua inglesa no ensino público brasileiro.
Enfatizamos a papel do professor de inglês com elemento motivador de transformação social,
bem como sua formação e postura crítico-reflexiva.
Palavras-chaves: ensino de línguas, formação docente, pensamento crítico, planejamento
curricular, lingüística aplicada.
"DEMYTHICIZING" THE LEARNING OF FOREIGN LANGUAGE IN THE
BRAZILIAN PUBLIC EDUCATION: THE EFL TEACHERS' ROLE UNDER A
SOCIO-POLITICAL-PEDAGOGICAL PERSPECTIVE.
Abstract:
The article aims to question the myths mentioned by Moita Lopes (1986) concerning the
teaching-learning of English language in the Brazilian public education. We will focus on
English teachers' role as "trigger" to social changes, as well as their pedagogical background
and critical posture.
Key-words: language teaching, teachers’ formation, critical thinking, course design, applied
linguistics.
Eu investigo, eu não asseguro. Não afirmo coisa alguma
com certeza definitiva. Conjecturo, tento, comparo,
ensaio, pergunto...”
(Adumbratio Kabbalæ Christianæ)
Numa pesquisa realizada em escolas do município do Rio de Janeiro, em 1984, Moita
Lopes (1986) observou que vários professores atribuíam quase que unicamente aos seus
alunos a incapacidade de “aprenderem” a língua inglesa, presente no currículo escolar. O
mesmo autor, dez anos depois retoma este ponto analisando a questão da formação acadêmica
do professor de língua estrangeira em seus aspectos intra e extra curricular, bem como o
posicionamento adotado pelo mesmo na sua atividade profissional.
Nesta mesma perspectiva traçamos o caminho deste trabalho que pretende questionar
os porquês de encontrarmos professores de inglês que ainda insistem em repetir, e pior ainda,
acreditar em conceitos do tipo:
“... uma criança aprende mais facilmente uma LE1 em situação formal de
aprendizagem que adultos; para se ensinar uma LE tem-se que necessariamente
ensinar as quatro habilidades lingüísticas; [...] a tradução como solução
pedagógica é prejudicial à aprendizagem de LE; o apelo à língua nativa (LN)
como um artifício para ensinar a LE é nocivo por causa do fenômeno da
interferência da LN na LE; o aluno tem que aprender a pensar na LE; [...] quem
não ‘sabe’ a LN não pode aprender uma LE; etc.” (Moita Lopes, 1996, p. 65).
Acreditamos que tais mitos são difundidos e preservados, pela falta de uma postura
crítica dos professores de LE em relação a sua atividade profissional, levando em
consideração, ainda, outros aspectos que não os simplesmente lingüísticos.
Conhecemos bem a realidade do ensino público brasileiro, mas não podemos tomar as
várias dificuldades encontradas como justificativas para um posicionamento social alienado.
Isso só irá contribuir para mascarar a estrutura social de exploração à qual as classes
subalternas2 (Patto, 1984, p. 26) estão submetidas. Neste aspecto, percebemos que há uma
certa intencionalidade por parte dos grupos dominantes de que a educação seja um fator não
libertador e favorável às mudanças, mas algo que contribua para o continuísmo em que
vivemos, onde os futuros protagonistas desta nação aceite os programas educacionais préestabelecidos, sem discutir sua real significação ou relevância. Desta forma, entendemos que
os mitos supra citados são revestidos de uma ignorância social e total falta de questionamento
crítico.
Se por um lado reconhecemos a falta de comprometimento social no papel do
educador contemporâneo, por outro lado temos que analisar o porquê desta atitude. Voltamonos, então, para a questão da formação acadêmica destes profissionais. Percebemos que cada
vez mais, a dicotomia nas áreas de estudo vão se estabelecendo. O que antes era domínio das
licenciaturas em geral, hoje se vê limitado aos cursos de pedagogia, onde as disciplinas da
área pedagógica são centralizadas pelo curso de Pedagogia. Isso nos leva a duas
conseqüências diretas: o distanciamento do diálogo entre os cursos específicos e as disciplinas
de didática, psicologia e estágios supervisionados, e a multiplicidade de cursos dentro das
salas de aulas dessas disciplinas, o que, muitas vezes, prejudica o diálogo já mencionado
1
LE, abreviação de Língua Estrangeira.
A autora utiliza este termo ao invés de classes desfavorecidas ou desprivilegiadas na defesa que tais termos só
tendem a aumentar o não reconhecimento da injustiça social que sofre o nosso país.
2
anteriormente. Fique claro que não estamos propondo um isolamento disciplinar, ao contrário,
questionando este problema reivindicamos uma solução. Por outro lado, não podemos
esquecer que negligenciamos os estudos lingüísticos frente aos literários, por exemplo, pelo
fato de encontrarmos mais fontes de pesquisa para estes do que para os primeiros. E mais, os
questionamentos levantados pelos estudos lingüísticos, são quase sempre associados a outras
questões, de ordem social, psicológica, antropológica, política e tantas outras, tornando-os,
assim, mas difíceis de serem resolvidos.
“Em geral, os departamentos de línguas estrangeiras ou têm tratado a linguagem
como um produto de análise lingüística ou ficado á mercê da última moda lançada
no mercado editorial estrangeiro para o ensino-aprendizagem de LÊS [...]onde as
pesquisas têm sido orientadas para o fenômeno literário, fazendo com que os
estudos lingüísticos, quando existente, recebam uma atenção secundária e, muitas
vezes, equivocada.” (Moita Lopes, 1996, p. 64.)
Cabe, então, ao próprio professor tornar-se um pesquisador no intuito de prover-se de
informações que são omitidas na sua formação acadêmica seja pelos motivos já descritos, seja
por outro motivo qualquer. E neste sentido, ressaltamos o papel da universidade, que deve
atender às necessidades básicas da comunidade na qual está inserida, ministrando um ensino
de qualidade, realizando pesquisas e estimulando atividades criadoras nas suas diversas áreas
e estendendo o ensino e a pesquisa à comunidade, mediante cursos e atividades de extensão.
Se conseguirmos ver a instituição de ensino superior como um instrumento catalisador para a
transformação social, e não apenas uma fonte de conhecimento elitista, onde o seu produto é
quase sempre restrito à comunidade que a permeia, então entenderemos que “a educação, por
ser uma prática de intervenção na realidade social, é um fenômeno multifacetado composto
por um conjunto complexo de perspectivas e enfoques” (Rego, 2001, p. 124) e estaremos
formando profissionais mais preparados para agir na sua comunidade.
“A responsabilidade ética, política e profissional do ensinante lhe coloca o dever
de se preparar, de se capacitar, de se formar antes mesmo de iniciar sua atividade
docente. Esta atividade exige que sua preparação, sua capacitação, sua formação
se tornem processos permanentes. [...] Formação que se funda na análise crítica
de sua prática.” (Freire, 2001, p. 259/260).
Na formação específica do professor de LE, e aqui limitaremos nossa discussão para o
professor de inglês, é necessário refletir sobre outras questões que envolvem esta disciplina
que não apenas a lingüística. Precisamos perceber a ideologia sócio-cultural (bem como seus
efeitos) que permeia o ensino de uma segunda língua, especificamente tratando-se de alunos
da escola pública, que trazem um conhecimento de mundo limitado por pertencerem às
classes subalternas, submissas economicamente e, consequentemente, impossibilitadas de
participar das diversas atividades sociais e políticas praticadas pelas classes dominantes. A
Instituição-Escola, então, passa a ser representante dessas classes, exercendo a função de
reprodutora de verdades válidas, ou seja, de conhecimentos construídos a partir das
experiências e possibilidades daqueles que constituem essas classes dominantes.
Acreditamos, portanto, que mesmo conscientes dos engenhos ideológicos que
constituem as nossas instituições, não há como escapar do fato de que somos, também,
transmissores dessas ideologias:
“O importante [na discussão do assunto] é [não esquecer] que a verdade não
existe fora do poder ou sem poder (não é – [...] – a recompensa dos espíritos livres,
o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). [...]
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é,
os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos
falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos
que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o
encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.” (Foucault, 1984, p. 12).
Esse conhecimento de mundo limitado por parte do aluno da escola pública é que
dificulta o seu acesso à assimilação do conteúdo. Tocamos, então, no ponto essencial deste
artigo: não se trata de incapacidade pessoal ou cognitiva a questão da aprendizagem escolar,
mas de falta de interação entre aluno e conteúdo. Pois, por mais que este seja aplicado (ainda
que repetitivamente) ao aluno, não terá significação nenhuma, a menos que seja reconhecido,
ou seja, codificado através de experiências pessoais.
Paulo Freire (2001) defende a necessidade de uma codificação para que a leitura a
palavra possa suceder à leitura do mundo. Esta afirmação, então, obriga o indivíduo a ter esta
referência (leitura) do mundo a qual citamos anteriormente. Tomemos este exemplo para
situarmos o ensino-aprendizagem da língua inglesa. O grande índice do fracasso escolar nesta
disciplina é que os professores não fazem esta codificação acontecer. Ao contrário, eles
afastam mais ainda o conteúdo de seus alunos, através de regras sistemáticas e desprovidas de
significação, ou mesmo exemplos sem nenhum sentido concreto, como se isto resolvesse a
questão da insuficiência cultural, do reconhecimento de valor. O inglês não deve ser visto
como um elemento opressor, elitista, diferenciador, mas como um elemento de integração,
que faz o falante (ou leitor3) perceber-se como cidadão que tem uma contribuição a ofertar à
sua comunidade e que por isso tem direito a apropriar-se de todo o conhecimento que lhe seja
pertinente, e não apenas àquele(s) que lhe sejam destinados (ou à sua classe). Neste momento,
percebemos, então, que a não-aprendizagem de um determinado conteúdo se dá por uma falta
de codificação do mesmo, e não por problemas cognitivos ou lingüísticos, o que anula, a
priori, o primeiro e os dois últimos mitos apresentados, como explicitamos a seguir. O fator
idade não pode ser trazido à tona como fator determinante à aquisição, pois há estudos onde, a
depender da modalidade de ensino aplicada, o adolescente/adulto tem uma maior
potencialidade para assimilar as estruturas lingüísticas trabalhadas (cf. Snow & HoefnagelHöhle apud Ellis, 1994). Outro fator é o que diz respeito à questão de “pensar na LE”; este é
um mito que realmente mostra o total despreparo de um professor de língua estrangeira, pois
conhecemos o processo cognitivo do pensar, e sabemos que o ato de conhecer e reconhecer é
expresso pelas experiências adquiridas, assim, é inaceitável pedir a um aluno que ele pense
em uma determinada língua, cuja cultural não lhe é familiar ou mesmo conhecida. Por fim, o
fato mais crítico de todos os já mencionados, como afirmar que um falante nativo do
português não conheça a língua que fala?
Acredito estarmos, aqui, diante do que colocamos quando questionamos a pouca
importância dada aos estudos lingüísticos na formação do licenciado em letras. Dizer que o
aluno não detém as normas de uma variação lingüística é aceito, mas que ele não aprende, ou
até mesmo que ele não sabe o português, aí já é passar dos limites. Conta-se aqui com o total
3
E nesta diferenciação já anulamos três dos mitos apontados no início do artigo: o que trata do ensino
obrigatório das quatro habilidades lingüísticas, pois o ensino instrumental de LE possibilita o indivíduo a
compreender textos nesta língua, utilizando-se de recursos morfossintáticos. Da mesma forma, os que tratam do
uso da tradução ou do apelo à LN, que são estratégias utilizadas por essa modalidade de ensino.
desconhecimento dos conceitos lingüísticos, imprescindíveis a um professor de línguas, nativa
ou estrangeira!
E mais ainda, quando não se reconhece que esta limitação apresentada pelo aluno, não
é pessoal, mas social. Mas uma vez, trata-se da falta de oportunidades imposta pela classe
dominante e que profissionais mal formados e sem uma postura crítico-reflexiva, acreditam (e
retransmitem) se tratar de uma incapacidade do aluno.
Muitas são as atividades desenvolvidas por profissionais comprometidos político,
social e pedagogicamente para reverter esse quadro social tão assustador no nosso país. Este
trabalho não pretende apresentar um receituário metodológico sobre técnicas e abordagens, e
sim contribuir com a conscientização do papel sócio-político-pedagógico que o educador
possui de tornar seus alunos indivíduos pensantes e capazes de modificar também a sociedade
em que vivem no intuito de tornar o mundo um lugar cada vez mais justo e igual. O que vale
ressaltar é que ensinar uma língua estrangeira não pode estar desassociado à realidade dos
seus aprendizes, então, cabe ao professor encontrar o meio para fazer esta interação se
efetivar, trazendo elementos que possam ser codificados pelos alunos para que eles
compreendam o que está sendo trabalhado.
“[...] o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. Não se trata de
conceber o indivíduo como uma espécie de núcleo elementar, átomo primitivo,
matéria múltipla e inerte que o poder golpearia e sobre o qual se aplicaria,
submetendo os indivíduos ou estraçalhando-os. Efetivamente, aquilo que faz com
que um corpo, gestos, discursos e desejos sejam identificados e constituídos,
enquanto indivíduos, é um dos primeiros efeitos do poder. \ou seja, o indivíduo não
é o outro do poder: é um de seus primeiros efeitos. O indivíduo é um efeito do
poder e, simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de
transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu.” (Foucault,
1984, p. 183).
Nesse direcionamento, o ensino-aprendizagem do inglês se manifesta como um
instrumento a mais para a igualdade social, capacitando seus falantes a estabelecerem relações
cada vez mais igualitárias e, assim, afastando julgamentos de ordem econômica, religiosa,
sexual ou de qualquer outra ordem.
Concluindo, partimos de alguns mitos referentes ao ensino-aprendizagem de língua
estrangeira para questionar a má formação do profissional de letras e, consequentemente, a
sua falta de compromisso ético, social e profissional com a atividade docente. Ao longo do
artigo, apresentamos estudos que contradizem os mitos apresentados, mostrando que os
mesmos são criados, muitas vezes para mascarar uma realidade social injusta, onde uma
pequena classe dominante se apropria do saber construído tornando-o seletivo, elitista em vez
de cumprir a sua função social que deveria ser minimizar as injustiças sociais presentes onde
ele é construído. Terminamos com uma proposta de como pensar criticamente para exercer a
nossa práxis pedagógica de maneira eficaz, a fim de promover uma sociedade consciente,
digna e participativa.
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FREIRE, Paulo. Carta aos professores. Revista Estudos Avançados, v. 15. nº 4, pp. 259-68.
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MOITA LOPES, L. P. Discourse analysis and syllabus design: an approach to the
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REGO, Tereza Cristina. Vygostsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 11.
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TEIXEIRA, A. Ensino superior no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 1989.
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