SELEÇÃO PARA O MAGISTÉRIO PÚBLICO: UM OLHAR DISCURSIVO SOBRE OS GÊNEROS EDITAL E MANUAL DO CANDIDATO Maria Cristina Giorgi (CEFET-RJ) Del Carmen DAHER (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) ABSTRACT: This presentation aims at, from the dialogic point of view of the language and of the discussion based on discourse genre (Bakhtin, 1929-1979), identify the profile of the teacher of foreign languages constructed discoursively in both Edict and Manual of Candidates – documents that integrate contests which select a great number of applicants. We seek, too, identify kinds of knowledge considered important for the teachers’ performance in Rio de Janeiro State, contributing, thus, for studies related to teacher training. Our corpus is constituted by Edict and Manual of Candidates from the selection done by SEE/RJ in 2004. We’ve followed proposals of Discourse Analysis of enunciative basis (Maingueneau, 2001) and notions of discourse genres and polyphony (Bakhtin, 1929). As for teachers’ work, we avail of concepts originated from Work Sciences (Nouroudine, 2002). We stand out that, to better understand the selective process as an institutionalized practice and the kinds of knowledge that are privileged in it, we have made use of Foucault (1987-1996). KEYWORDS: gênero de discurso, concurso público, seleção docente, análise de discurso. 1. Introdução Em nossa reflexão, buscamos pensar a relevância do conceito de gênero de discurso em pesquisa de mestrado realizada na UERJ entre abril de 2004 e dezembro de 2005. Nesta, visamos – tomando como base uma visão dialógica de linguagem (BAKHTIN, 1929/1979) - a identificar o perfil de professor de língua estrangeira (doravante LE) construído discursivamente nos processos de seleção para o ingresso na rede pública estadual de ensino do Rio de Janeiro. Ademais, é nosso interesse distinguir quais saberes são considerados importantes para a atuação docente em concursos que vão decidir que profissional está qualificado para atuar nas salas de aula de nosso estado. Para tal, com relação à linguagem, seguimos as propostas da Análise de discurso de base enunciativa (MAINGUENEAU, 2001) e as noções de gênero de discurso e polifonia (BAKHTIN, 1979). No que se refere a uma melhor compreensão do trabalho do professor, valemo-nos de conceitos advindos das Ciências do Trabalho (LACOSTE, 1995, NOUROUDINE, 2002). Cabe acrescentar que para melhor compreender o processo seletivo como uma prática institucionalizada e os saberes que são privilegiados em nossa sociedade, baseamos nossas análises em propostas de Foucault (1987, 1996). Oferecem-se como resultados o conjunto de competências/saberes privilegiados pelas provas e uma avaliação de até que ponto é permitido ao professor-candidato demonstrar algum conhecimento específico sobre seu próprio trabalho. Acreditamos que esta discussão permite-nos, com efeito, não apenas aprofundar os debates sobre o instrumento “seleção de docentes” a partir da noção de gênero de discurso, mas também identificar que perfil de professor de língua é construído discursivamente nesse dispositivo privilegiado de interação verbal entre candidatos e banca examinadora representado aqui pela seleção para o magistério. Além disso, abordando esse tema a partir da perspectiva do gênero de discurso, estaremos contribuindo para discussões sobre o processo de seleção de docentes, aqui compreendido como uma prática discursiva circunscrita a um determinado contexto sóciohistórico. Inicialmente, nosso corpus seria constituído por provas de língua estrangeira realizadas pelo Estado ou Município do Rio de Janeiro. Devido à dificuldade em obter tais 1357 provas (visto que as secretarias municipal e estadual não as disponibilizam e, na maioria dos casos, as incineram, VIVONI, 2003), optei por candidatar-me ao concurso de seleção para docente I, realizado pela SEE/RJ em dezembro de 2004, como forma segura de obter os documentos que o constituiriam. A partir dessa experiência como candidata, comecei a compreender o processo de seleção como um todo, e, dessa forma, percebi que a análise isolada da prova, ainda que relevante, seria apenas um dos elos da cadeia de um processo particular que, diferentemente daqueles que selecionam professores para a rede particular, está vinculado a características específicas e restritas à seleção de um servidor público. Assim, não querendo isolar a prova de um conjunto maior ao qual ela necessariamente está vinculada, optei por enfocar as provas de língua estrangeira, o Edital e o Manual do Candidato de forma ampla, privilegiando diálogo existente entre eles. Até mesmo porque, como afirma Bakhtin, Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo lingüístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida. A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realiza, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua. (BAKHTIN, 1979, p.282) A opção por trabalhar com os três documentos constituintes do processo, estendeu a importância do conceito de gênero de discurso, uma vez que, conforme Bakhtin, é o gênero quem garante a comunicação aos falantes de uma língua, pois permite uma economia cognitiva entre os interlocutores. Conhecer bem uma língua e ser capaz de dominá-la em determinados contextos não garante ao falante comunicar-se em todas as esferas. Por outro lado, através do reconhecimento de características particulares que distinguem um gênero de outro, o leitor estabelece as bases do seu entendimento, pois quando acomodamos nossa fala em determinado gênero, fornecemos pistas por meio das quais nosso interlocutor pode se situar dentro do contexto da comunicação, prevendo suas características e finalidades. Os aportes teóricos de Bakhtin são fundamentais. O conceito de gênero (BAKHTIN, 1979) é essencial na forma do estabelecimento do diálogo enunciador / coenunciador presente nos três documentos ora analisados. Distinguir e identificar as características que costumam apresentar-se em cada gênero discursivo faz com que, em nosso caso, o candidato esteja apto a reconhecer mais rapidamente possíveis marcas que facilitem a compreensão dos enunciados. Queremos com isso dizer que edital, manual e prova apresentam-se como diferentes estruturas composicionais, estilos e temas, sendo reconhecidos como enunciados que pertencem a gêneros diferentes. Em resumo, consideramos que divisar as características genéricas permite uma economia cognitiva entre os interlocutores, já que estas favorecem o reconhecimento de importantes pistas discursivas – temáticas, composicionais ou de estilo – que funcionam como apoio à remissão a outros textos. Segundo o autor cada esfera da atividade humana elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1979/1992). No capítulo “Os gêneros do discurso”, em Estética da criação verbal, Bakhtin (1979) reúne noções que foram apresentadas no decurso de sua obra. Propõe a divisão dos gêneros em primário e secundário, sendo os primeiros enunciados criados em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea, como os diálogos do dia-a-dia, e os segundos, oriundos de circunstâncias de comunicação cultural mais complexa e relativamente mais evoluída, absorvem e transmutam os gêneros primários, como ocorre nas obras literárias, teatros etc. Acredita o autor que é o gênero quem garante a comunicação aos falantes de uma língua, pois permite uma economia cognitiva entre os interlocutores. Conhecer bem uma língua e ser capaz de dominá-la em determinados contextos não garante ao falante comunicarse em todas as esferas. Por outro lado, através do reconhecimento de características 1358 particulares que distinguem um gênero de outro, o leitor estabelece as bases do seu entendimento, pois quando acomodamos nossa fala em determinado gênero, fornecemos pistas por meio das quais nosso interlocutor pode se situar dentro do contexto da comunicação, prevendo suas características e finalidades. Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua (...). O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais -, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos de Gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1979, p. 278) Conforme Bakhtin, todo e cada gênero caracteriza-se por esses três elementos. O conteúdo temático abarca o sentido ideológico global do enunciado. A estrutura composicional relaciona-se à organização, considerando tipos de construção do conjunto, modos de acabamento e de relação entre os parceiros da comunicação. Já o estilo está diretamente vinculado à interlocução EU-VOCÊ, às opções feitas pelo enunciador no diálogo com o seu co-enunciador dentro da gama de recursos lingüísticos existentes dentro de cada gênero. Tal conceito é em nossa opinião essencial, visto que saber distinguir e identificar as características que costumam apresentar-se em cada gênero discursivo faz com que, em nosso caso, o candidato esteja apto a identificar mais rapidamente possíveis marcas que facilitem a compreensão tanto do edital, quanto do manual e das provas, pois as características genéricas são fundamentais, já que favorecem o reconhecimento de importantes pistas discursivas – temáticas, composicionais ou de estilo – que funcionam como apoio à remissão a outros textos. Dessa forma, em nossa visão, o diálogo entre os três documentos – prova, Manual do Candidato, edital – permite-nos melhor compreender a “lógica” da organização do concurso, pois todos eles contribuem para a materialização do perfil de professor de línguas almejado pela rede pública de ensino do Estado do Rio de Janeiro. Buscamos entender, aqui, como estes três documentos constitutivos dos concursos 1 públicos relacionam-se entre si, quais suas funções, por que existem, quais relações se estabelecem entre eles, para melhor compreender como se instituem as relações de saber / poder que os atravessam e retratam o que se valoriza no ensino de língua estrangeira em nosso estado, e perfilam o professor que se espera nas salas de aula. Nos próximos itens, expomos separadamente nossas considerações acerca das análises do edital e do Manual do Candidato. 2. Do Edital Segundo Houaiss (2001), como edital entende-se o “ato escrito oficial em que há determinação, aviso, postura, citação etc., e que se afixa em lugares públicos ou se anuncia na imprensa, para conhecimento geral, ou de alguns interessados, ou, ainda, de pessoa determinada cujo destino se ignora”. 1 Apenas o Manual não se faz obrigatório em todo concurso público, mas parece-nos ser possível afirmar que este integra aqueles que abarcam um grande número de candidatos. 1359 Origina-se do termo latino editu, publicado, particípio do verbo edere que significa pôr para fora, publicar, que derivou o substantivo édito, ordem judicial publicada por anúncios ou edital ou texto publicado sob a responsabilidade do autor. (HOUAISS, 2001). Peça fundamental do concurso público, além de garantir a limpidez do processo, vincula administrados e Administração àquilo que prescreve, podendo ser considerado uma “verdadeira lei porque subordina administradores e administrados às regras que estabelece”. (Carvalho Filho, 2004, p. 233) Assim, no que tange às características genéricas do edital, pode-se afirmar que, de forma análoga ao que ocorre em uma lei, (AROUCA, 2003) este documento constitutivo do concurso público, que prescreve regras gerais e específicas para sua realização, pressupõe a homogeneidade do lugar do qual se enuncia, o lugar da lei. Mesmo que não nos proponhamos a fazer uma análise comparativa entre editais diversos, nosso conhecimento de mundo permite-nos asseverar que estes constituem um gênero estável, onde “alguns espaços” são reformulados e outros se mantêm os mesmos, como nos casos de requerimentos que já vêm “prontos” e temos apenas que preencher os espaços em branco, sem modificar o que está previamente determinado. Embora não tenhamos obtido informações oficiais sobre a elaboração do edital foco deste trabalho, fazemos a hipótese de que o mesmo é anterior ao contato entre a SEE e a FESP, uma vez que, por ser um gênero que não permite muitas mudanças - pois segue formas rigorosamente oficiais, com alto grau de estabilidade - não seria “criado” a cada concurso, mas apenas “reelaborado” a partir de um modelo padronizado visando a atender a exigências jurídicas, no qual somente se “preenchem lacunas”. Como já visto ao longo deste trabalho, o edital é instrumento necessário para a realização de qualquer concurso; é uma voz oficial, um elemento de tornar um ato público. Mas quem ocupa esse lugar da lei? Quem é o enunciador? O edital de convocação da SEE/RJ 2 – Governo do Estado do Rio de Janeiro é composto por 8 páginas além de quatro anexos, e assinado pelo secretário de Estado e Educação do Rio de Janeiro, Cláudio Mendonça. O texto inicia com pequena introdução que coloca o documento em uma condição de texto legal, validado por uma voz de autoridade que, desde seu lugar institucional, tem a atribuição de poder para fazê-lo, podendo, portanto, estabelecer as instruções que regulam o concurso: O Secretário de Estado de Educação do Rio de Janeiro, no uso de suas atribuições legais3 e considerando a autorização governamental constante do Processo nº. E03/7839/2004, torna público o presente Edital, contendo as Instruções Específicas Reguladoras do Concurso Público em epígrafe. (Edital) Desde a introdução – na qual o enunciador dirige-se a todos os segmentos que podem, de alguma forma, estar relacionados ao concurso – é possível, a partir do léxico utilizado, identificar a força da voz do Direito, que além de que instruir, legisla, prescreve. A opção por expressões de cunho eminentemente jurídico – como processos, atribuições legais, por exemplo – é reforçada ao longo do texto pelo uso de advérbios e verbos no infinitivo, presente, futuro do presente, além da utilização do verbo dever. Identificamos o uso de modalidade característica do campo das normas e condutas: a modalidade deôntica, que, segundo Arouca (2003, p. 116), credita às leis ou a textos de caráter normativo um estilo único, apesar de atravessado por outros discursos. Afirma a autora que, do ponto de vista da modalidade, o discurso da lei pode ser rastreado a) pelo uso 2 Interessante acrescentar que, diferentemente do que ocorre em outros editais, este não possui uma numeração específica nem registra a data no corpo do texto. 3 Grifos nossos. 1360 recorrente de itens lexicais verbais que implicam a noção de obrigatoriedade; b) pelo uso, também recorrente, do verbo poder com sentido de permissão; c) pela alta freqüência de predicações de futuridade como deverá, será; e d) pelo afastamento da situação de enunciação através do uso do presente generalizado em enunciados freqüentes de “caráter assertivo e definitório”. Assim, o edital se desenha como um instrumento que serve ao mundo jurídico, para estabelecer as regras ao longo de um processo, delimitando o que poderá ou não ser contestado pelo candidato; espécie de norte do que pode e não pode ser feito, que delimita os papéis espaço / tempo da interlocução. Mesmo quando identificamos outros enunciadores, continuamos no campo do dever / direito, sendo garantidas as vozes da FESP e da SEE, e também a da banca responsável pela elaboração da prova, uma vez que, provavelmente, são as pessoas que estarão responsáveis por conferir os títulos, e acatar ou não os recursos. Notamos que o edital busca legislar o futuro, prevendo-o, antecipando-o. Dessa forma, determina e impede ações. Com relação aos co-enunciadores, julgamos que o edital como lei pública está dirigido à sociedade como um todo, e o fato de ser publicado no Diário Oficial já faz desta seu primeiro interlocutor. Orienta-se a todos que se sintam interessados, que possam se candidatar ao concurso, ou seja, toda população deve tomar conhecimento, para que uma parcela dela possa se interessar, sem que ninguém seja excluído. Por isso, reiteramos que, num 1º momento, o edital é oferecido a todos. Contudo, identificamos também diversos coenunciadores e tempos e espaços determinados, como mostramos a seguir. O Anexo II do editalapresenta o QUADRO DE PROVAS. Percebemos que nele se reproduzem dados mencionados pelo edital, conforme vemos a seguir: Quadro de provas Nível Cargo Disciplinas Superior - Professor Docente I - Biologia Ciências Físicas e Biológicas Educação Artística Educação Física Espanhol Filosofia Física Geografia História Inglês Língua Portuguesa Matemática Química Sociologia Tipo de Prova Área de Conhecimentos (*) Conhecimentos Específicos Objetiva Conhecimentos Pedagógicos: - Fundamentos da Educação - Didática Geral - Estrutura e Funcionamento do Ensino Fundamental (2º segmento) e Ensino Médio Língua Portuguesa N.º de Questões 35 Valor em Pontos 35 05 05 05 60 Mínimo p/ Habilitação 30 25 10 A nosso ver a tabela expõe um “resumo” que sintetiza as informações “imprescindíveis” ao candidato, aquelas que ele “precisa de fato ler para fazer a prova”. Podemos aqui divisar dois co-enunciadores diversos. O primeiro que tem acesso a termos específicos do Direito, decretos e leis, e o segundo a quem importam os dados mais “práticos” para quem vai se submeter ao concurso ou participará do mesmo efetuando a inscrição. Abaixo da tabela o Anexo II apresenta uma observação que praticamente reproduz o subitem 2.2 do item III do edital: 1361 Observação: (*) Estará reprovado o candidato que não obtiver o mínimo de 17 (dezessete) pontos na Área de Conhecimentos Específicos e tiver pontuação 0 (zero) em qualquer uma das disciplinas integrantes da Área de Conhecimentos Pedagógicos e em Língua Portuguesa. (III – Provas, 2 – Prova Objetiva, subitem 2.2 do Edital). (Anexo II) 2.2 Será aprovado o candidato que obtiver 30 (trinta) pontos, desde que obtenha o mínimo de 17 (dezessete) pontos na Área de Conhecimentos Específicos e pontuação diferente de 0 (zero) em cada uma das disciplinas integrantes da Área de Conhecimentos Pedagógicos e em Língua Portuguesa. (Edital) Nesses fragmentos, identificamos uma voz que demonstra o “poder” das disciplinas remetendo-nos a uma banca de pesos e medidas que fixa valores nas provas. Ainda que os dois fragmentos tragam praticamente as mesmas informações, enquanto o primeiro ressalta o que reprovará o candidato, o segundo, por sua vez, aponta a pontuação para a aprovação. Julgamos que tal diferença implica dois co-enunciadores distintos. O primeiro, o candidato que, se não cumprir o previamente estabelecido pelo mundo jurídico, não poderá ingressar na rede pública. O segundo seria o candidato que poderá fazer parte do grupo de professores, desde que execute o previsto. Pensamos que a diferença reflete que os anexos são uma reformulação do edital, mais diretamente ligada ao candidato, menos atrelada aos requisitos “legais”. No fragmento abaixo, vemos que, se em 1.2 o enunciador se refere a um momento anterior à prova, em 2.6 o momento em questão é o da prova em si. Por sua vez, ao falar de recursos, o enunciador não só está se referindo ao “pós-prova”, mas também a àqueles que não foram aprovados ou que discordam da pontuação obtida, classificando os inscritos no concurso em diferentes patamares e posições. III – PROVAS 1.2 Somente será admitido à sala de provas o candidato que estiver munido do original do documento oficial de identidade, sendo aceita carteira expedida por Conselhos ou Órgãos de Classe que tenham força de documento de identificação ou Certificado de Reservista ou Passaporte, além da Carta de Confirmação de Inscrição e caneta esferográfica de tinta preta 2.6 Será eliminado do Concurso o candidato que: a) ausentar-se do recinto da prova sem permissão ou praticar ato de incorreção ou descortesia para com qualquer examinador, executor e seus auxiliares incumbidos da realização das provas; b) utilizar-se de quaisquer fontes de consulta não autorizadas; c) for surpreendido em comunicação verbal, escrita ou por gestos com outro candidato; IV – RECURSOS 1. O candidato que se julgar prejudicado após a publicação do gabarito da Prova Objetiva poderá recorrer, através de requerimento dirigido à Diretoria de Recrutamento e Seleção da FESP RJ e entregue, na Av. Carlos Peixoto, n.º 54 – térreo – Botafogo – RJ, até às 16 horas do sétimo dia útil posterior ao da publicação do gabarito. Mais uma vez identificamos que o edital prevê situações “esperadas”, antecipando soluções que vão desde questões de aspecto legal a detalhes como a cor da caneta que deve ser utilizada. Outrossim, estabelece condutas que devem ser seguidas, assim como situações que desrespeitem o que está mencionado no próprio edital. Cabe salientar, que nos subitens 1.2 e 2.6 do item Provas, além do diálogo com o candidato, estabelece-se outro entre enunciador e o co-enunciador responsável pela organização do concurso, uma vez que os últimos devem tomar ciência de como o processo seletivo deve acontecer. Dentro de tal grupo, incluem-se os responsáveis pelo funcionamento 1362 do concurso no dia da prova, os responsáveis pela conferência do cartão etc. Tanto candidato como organizadores precisam saber o que se permite ou não durante a realização da prova.4 Com base no exposto, tais referências permitem-nos perceber que o edital existe em consonância com um contexto maior, orientado pela Constituição Federal e alguns decretos. Importante aqui é notar a não presença de vozes do âmbito da Educação, mas somente do Direito, que remetem a direitos do deficiente, ou obrigações do candidato. 3. Do Manual do Candidato Definido nos dicionários como “obra de formato pequeno que contém noções ou diretrizes relativas a uma disciplina, técnica, programa escolar etc.” ou “livro que orienta a execução ou o aperfeiçoamento de determinada tarefa; guia prático” (HOUAISS, 2001), o manual, dentre o conjunto dos três documentos que compõem a seleção da rede estadual, é o único que não é condição necessária para a realização do concurso. Todavia, apesar de não ser um documento oficial como o edital – previsto constitucionalmente – integra uma grande parte dos concursos, principalmente os que pressupõem grande número de candidatos, como concursos de vestibular, de seleção docente para Estado e Município, dentre outros.5 No contexto de nosso concurso, o Manual do Candidato está previsto no edital, fazendo-se constitutivo do mesmo. Este, portanto, é, – ou deveria ser – distribuído aos candidatos no ato da inscrição.6 2.7.12 Após efetuar a inscrição, o candidato receberá o Comprovante de Inscrição e o Manual do Candidato, com os Conteúdos Programáticos e Sugestões Bibliográficas. (Edital) Num primeiro momento, chamou-nos a atenção o fato de o manual repetir uma grande parte das informações constantes do edital como se o primeiro fosse uma “tradução” do segundo, inclusive reproduzindo integralmente o Anexo II. Entretanto, ainda que estas se repitam, parece-nos possível identificar como co-enunciador o candidato que já se inscreveu no concurso, pois não há mais referências ao momento anterior à inscrição. O manual organiza-se nos itens: I. Confirmação de inscrição II. Provas III. Recursos IV. Resultado final e classificação V. Informações complementares VI. Datas Previstas VII. Conteúdos programáticos (que inclui sugestões bibliográficas) Anexo II 4 Ressaltamos que algumas falhas com relação a estes procedimentos organizacionais foram responsáveis pela anulação da primeira prova ocorrida em 23 de novembro de 2004 e pela realização da prova subseqüente, em 14 de dezembro do mesmo ano. 5 Lembramos que os concursos de seleção docente promovidos por universidades públicas, por exemplo, não costumam fornecer um manual. 6 No local onde fiz as inscrições, ao solicitar o exemplar do manual que me cabia, fui informada de que este “não existia” e que seria preciso “entrar na Internet” para receber as instruções. Alguns dias depois consegui uma cópia com um colega que recebeu seu exemplar ao se inscrever em outro local, o que demonstra uma não garantia de informações comuns a todos os candidatos. 1363 Verificamos que estes itens têm a função de organizar as informações, servindo como um roteiro de instruções, “um passo-a-passo” daquilo que o futuro professor precisa para participar do concurso e embora o manual, muitas vezes, reproduza o edital, há nele um menor número de informações que enfocam a parte mais prática do concurso, o que marca a relação com o candidato, aqui mais próxima que a do edital. A partir dessa observação, cabem algumas reflexões. Em primeiro lugar, acreditamos que essa reescritura do edital, por meio do manual, outorga ao primeiro um poder maior, confirmando-o num patamar de único poder normatizador. Traduz-se o “mundo jurídico” para o “mundo pragmático”. Em segundo lugar, se o manual reformula algumas informações constantes do edital, isto nos leva a supor que é porque o último não está direcionado ao professor, por possuir informações de cunho jurídico que não dizem respeito ao professor. Em sendo assim, identificamos o candidato como co-enunciador do manual e não do edital, co-enunciador este que precisa de uma outra linguagem que não a jurídica. Parece-nos interessante ressaltar como é dado ao mundo jurídico mais destaque do que ao “mundo docente”, entendendo aqui o manual como representante do segundo. Na verdade, o manual, a nosso ver, representa uma “releitura” do edital, feita para coenunciadores-professores que não estão aptos a lidar com o mundo jurídico. 4. Considerações finais Concluímos nossa reflexão, lançando mão de Bakhtin (1979). O autor afirmar que os enunciados e o tipo a que pertencem - isto é, os gêneros de discurso - são “as correias de transmissão que levam da história da sociedade à história da língua.”. Portanto, o conceito de gênero está vinculado a tipos de interação relacionados a costumes de um determinado grupo que, ao serem acionados, funcionam como referências de sentido. São criados a partir de determinada(s) comunidade(s) que os mantêm ou não, de acordo com suas necessidades. Além disso, o gênero pode transgredir, subverter regras de estruturação, possibilitando outras formas de interpretação e de organização, que lhe permitem renovar-se. Em sendo assim, se, como afirma Bakhtin, os gêneros podem ser mantidos ou não de acordo com as necessidades de comunidades específicas, além de possuírem a capacidade transgredir regras, reconstruindo-se e renovando-se, por que avaliações e processos de seleção ainda que tão polêmicos e discutidos, se mantêm como práticas institucionalizadas com um lugar aparentemente intocável? Compreendemos, então, que se os discursos são um encontro de uma produção textual e, ao mesmo tempo, produção de uma comunidade que sustenta esses discursos, como propõem Rocha, Daher e Sant’Anna (2002), esses documentos resultam de um diálogo anterior com a sociedade, que permite que eles se constituam da forma que são. Julgamos que nos documentos que constituem o processo seletivo reflete-se o resultado de um embate travado entre diferentes saberes, Resgatando nossas análises, entretanto, percebemos que na seleção nem sempre existe um diálogo direto com a atual realidade da escola. Considerando, por exemplo, os Conhecimentos Específicos de língua espanhola previstos no Manual do Candidato e as provas de língua espanhola, constatamos que são privilegiadas habilidades, que, a nosso ver, pouco dizem respeito ao cotidiano escolar. Dentro de tal contexto, recorrer a Foucault é tentar entender por que práticas como os processos de seleção se institucionalizam, tornando-se obrigatórios em nosso dia-a-dia, “à prova de questionamentos”, e dentro de tais processos de seleção, de que forma se estabelece a relação saber-poder. Em nossa pesquisa, verificamos, por exemplo, uma preocupação maior de se atender e garantir o espaço do jurídico – que certamente tem sua função na sociedade – 1364 fato que, por sua vez, implica na depreciação, na desvalorização de outros espaços, a nosso ver tão ou mais importantes, como o da própria sala de aula. Identificamos também que ao longo do processo de seleção, privilegia-se, além do “poder jurídico”, saberes acadêmicos como a gramática, e ao mesmo tempo se ignora o espaço de saberes sobre as necessidades do trabalho na escola. Ou seja, nenhum espaço é dado a discussões em torno de o que o professor precisa saber de fato para lidar com a realidade de sala de aula. E essa relação entre poder e saber restrita ao universo da academia ou circula também na escola, na mídia, na sociedade como um todo? Referências AROUCA, M. Do discurso à Educação no Brasil: uma interlocução com a Lei de Diretrizes e Bases 9.394/96. São Paulo, 2003. Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. BAKHTIN, M. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ––––––. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004. ––––––. Problemas de la poética de Dostoievski. Madrid: Fondo de cultura económica de España, 2004. DAHER, M. & SANT’ANNA, V. Reflexiones acerca de la noción de competencia lectora: aportes enunciativos e interculturales”. In: GUBERMAN, M. (org.) 20 años de APEERJ - El español: un idioma universal – 1981-2001. Rio de Janeiro: APEERJ. 2002, p. 54-67. FOUCAULT, M. (1996) A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2003. _____. (1987) Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2004. MAINGUENEAU, D. 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