América Latina: crise democrática ou do modelo oligárquico? Frederico José Falcão* Resumo: As últimas duas décadas na América Latina foram marcadas por seguidas mobilizações populares contra governantes que levaram a efeito políticas neoliberais, o que levou a uma sucessiva derrubada de presidentes eleitos pelo voto popular na região e a uma caracterização desse processo, por alguns analistas, como uma “crise da democracia”. O objetivo deste trabalho é discutir as condições que permitiram a ocorrência dessas revoltas, responsabilizando pela “crise” a manutenção das práticas tradicionais da oligarquização do poder e as políticas sócio-econômicas que afetam negativamente as condições de vida das populações, sendo, então por elas repudiadas. Palavras-chave: América Latina; neoliberalismo; democracia; revoltas populares. Latin America: democratic or oligarchic project’s crisis Abstract: During the last two decades, Latin America was marked by continuing popular motions against authorities that realized neoliberal policies which led to successive defeat of presidents who were elected by popular vote on the region and to a characterization of the process, by some analysts, as a "democracy crisis". The aim of this work is to discuss the conditions that allowed these rebellions, giving the maintenance of the traditional practices of power and socio-economical oligarchization the responsibility for the "crisis" as they negatively affect the life conditions of the populations being, so, repelled by them. Key words: Latin America; neoliberalism; democracy; popular motions. Introdução A intenção do presente texto é discutir a situação da América Latina na última década e meia, buscando desvendando a relação entre diferentes agentes sociais frente ao aparelho de Estado e a “crise da democracia” na região. Para tanto, será desenvolvida uma análise geral das características básicas que moldaram historicamente esta parcela do continente americano, na tentativa de descobrir as origens dos problemas que se nos apresentam nos dias atuais. Formação histórica da América Latina O subcontinente latino americano tem as suas raízes históricas ligadas ao processo europeu de acumulação primitiva de capitais. Nesta fase, a base dos contatos intercontinentais se deu sob a forma da exploração colonial, na qual os países ibéricos tiveram papel exponencial. A decadência dessas potências coloniais coincidiu, no século XIX, com a ascensão de novos personagens já com uma perspectiva que ultrapassava os elementos constitutivos do antigo sistema colonial, a saber. Os processos de * Doutorando em Serviço Social da UFRJ. End. eletrônico: [email protected] independência que se sucederiam nesta região coincidiram com os interesses de uma burguesia inglesa ávida por mercados, e, portanto, estimuladora dos rompimentos dos laços coloniais tradicionais (CHAUNU, 1976). Contando com a crise surgida no continente europeu a partir da ação dos exércitos napoleônicos, a classe dominante na América Hispânica viu, então, uma excelente oportunidade de livrar-se da dependência colonial. A América Latina, com algumas exceções, viveu um processo no desenrolar das décadas que sobrevieram à sua independência política, no qual se manifestaram algumas características que acabaram por moldar sua história futura e, nela, alguns elementos que serão alvos de observação posterior neste trabalho: a) a manutenção de aspectos fundamentais da tradição colonial no campo sócio-econômico, mesmo que, na área da antiga colonização espanhola a escravidão formal tenha sido abolida mais ou menos rapidamente. Restou, porém, o latifúndio e a exploração do trabalho em campos e minas, além da crescente expropriação das terras indígenas e a utilização destas comunidades, cada vez mais aculturadas, em formas de trabalho aviltantes; b) a exploração econômica por parte das potências capitalistas, com destaque para Inglaterra, que assumiria um papel determinante na exploração das riquezas locais e na pressão pela abertura de mercados, criando espaços para a gestação de dependência e espoliação econômicas mantenedoras da incapacidade das novas nações americanas construírem-se através de economias sólidas e sociedades politicamente estabilizadas. Não vacilaram os ingleses, inclusive, em estimular cizânias entre os “libertadores da América” no sentido da fragmentação político-territorial a que acabou submetida à Hispano-América, facilitando a ação de dominação desta área; c) como resultado, existiria, neste período, uma enorme instabilidade política nos novos estados, também estimulada e explorada por lideranças locais. E a isso se somava, em níveis regionais, a ocorrência de conflitos entre países, de variada intensidade, agravadores dos grandes problemas da região (DONGHI, 1975). Esse quadro começou a sofrer a interferência direta de um novo elemento ao final daquele século: a ação dos Estados Unidos da América, que, tendo resolvido a crise intestina, determinada pelo processo expansionista para o Oeste, articulado à definição do modelo de trabalho e sociedade a ser encampado a partir de meados dos anos sessenta, tomaram a ofensiva voltada a impor, em diferentes áreas do globo, sua visão do mundo e seus interesses econômicos. A disputa interimperialista com a burguesia inglesa chegaria até as primeiras décadas do século XX. Porém, já ao findar da Primeira Grande Guerra Imperialista (1914/18), a predominância estadunidense na América Latina era cada vez mais flagrante. O intervencionismo direto, militar, tornouse praxe, submetendo países e povos a políticas repressivas, invasões e no estabelecimento de governos “amigos” e “responsáveis” frente aos objetivos estadunidenses. E, em todos os casos, não há registro de qualquer tipo de preocupação no campo da melhoria das condições sócio-econômicas ou o fortalecimento institucional em bases minimamente democráticas. Do Big Stick do primeiro Roosevelt à “diplomacia do dólar”, da Emenda Platt à intervenção militar durante a Revolução Mexicana, os governos estadunidenses se fartaram em estimular golpes e ditaduras, sustentáculos das empresas “bananeiras” como a United Fruit, dentre outras (GALEANO, 1978). A lógica da dominação externa articulada à instabilidade interna não foi quebrada na América Latina nem mesmo naquelas áreas nas quais se desenvolveram núcleos industriais demonstrativos da expansão capitalista. Focos de tentativas de mudanças sociais e políticas apareceriam nas primeiras décadas do século passado, acompanhando o surgimento de uma ainda pouco expressiva classe operária e de camadas médias advindas de uma crescente urbanização. Fruto desse processo é o aparecimento da União Cívica Radical na Argentina, de partidos comunistas e organizações de base anarquista em toda a região. Não haveria, porém, um processo de integração dessas novas camadas nos espaços de representação política, com raras e pontuais exceções. Exclusão sócio-econômica, acompanhada de regimes oligárquicos de representação puramente formal, entremeados por golpes e longos períodos de cerceamento de manifestação política foram uma constante a época. Alguma modificação no quadro das relações entre os Estados Unidos da América e a América Latina foi observado no período do segundo Roosevelt, quando vigorou a chamada “Política da Boa Vizinhança”. Premido pela grande crise capitalista dos anos 30 e pela boa aceitação que recebiam aqui, por governos e políticos de matiz autoritário, o nazi-fascismo que vicejava na Europa, o governo estadunidense suspendeu, parcialmente (vide o assassinato de Augusto César Sandino e a implantação da ditadura somozista na Nicarágua), a política de ações militares sobre seus vizinhos. Buscou manter sua dominação sob outras formas, impedindo sempre a expansão das idéias socialistas e comunistas, estas sim, sempre, o alvo principal. A grande crise do sistema capitalista, articulada a outros fatores com a afirmação crescente de setores sociais urbanos, da burguesia industrial à classe operária, abriu espaço para um fenômeno latino-americano denominado por muitos como “populismo”. Sem entrar na discussão sobre tão polêmico tema, pode-se apontar a existência de novas exigências no processo de dominação de classes de países da região com alguma industrialização, crescente urbanização e mudanças na economia e no papel do Estado (substituição de importações, Estado investidor na infra-estrutura) que o antigo sistema de poder oligárquico baseado na hegemonia de setores agrários da classe dominante não podia dar conta. A emergência das chamadas “camadas populares” no mundo da política institucional reformada de alguns dos vícios do passado (fraudes generalizadas, voto aberto) geraram novas formas de relação ou de contrato social no qual o voto (ou apoio) na liderança carismática tinha a correspondência no atendimento de algumas demandas historicamente reprimidas, dentro dos marcos do sistema capitalista, contando ainda com a vantagem do atrelamento do movimento popular ou sindical aos interesses diretos dos detentores do poder. Um verniz nacionalista seria ainda utilizado, mesmo que, em muitos casos, como instrumento de barganha com o capital imperialista, o qual, em poucos momentos sofreria reais ameaças de questionamento ao seu poder. Este “populismo” e a incorporação ao mundo da política de milhões de latinoamericanos vão abrir espaço para o crescimento de reivindicações antiimperialistas de base popular. O período pós-segunda guerra (1939/45) marcou essa participação que, em alguns casos, ia além de simples ato formal de votar, mesmo que tais manifestações se encontrassem, em geral, nos limites do sistema vigente. Ainda assim, quando alguns governos radicalizaram nos discursos e, até, em práticas que colocavam em risco os objetivos estadunidenses, as ações intervencionistas retornaram com toda a força. O caso, não isolado, da Guatemala de Arbens em 1954 foi um claro alerta quanto aos marcos extremos além dos quais não haveria tolerância. Eram tempos de “Guerra Fria” e os governos da superpotência capitalista não toleraria “rebuliços” em seu quintal. Aí se colocaram os apoios mais ou menos explícitos às quedas de governantes como Perón e Vargas. Chama a atenção, então, aquele movimento que tornar-se-ia o maior modelo de mudanças estruturais e antiimperialistas e, ainda, a grande dor de cabeça dos governos estadunidenses em relação à latino-américa: a revolução Cubana (1958/9). Estimuladora de movimentos de caráter nacionalista, antilatifundiários e, depois, socialistas, a vitória dos revolucionários cubanos influenciou fortemente uma geração de jovens que viam os tímidos projetos de alguma mudança levados a efeito por governos ou setores burgueses serem paralisados pela pressão de grupos e políticos conservadores e reacionários, apoiados pela ação governamental dos EUA. Estes ajudaram, estimularam e financiaram a derrubada desses governos e sua substituição por regimes de força subservientes aos seus ditames (ROSSI, 1987). Em situações diversas permaneceram regime de “democracia” absolutamente formal, fortemente excludente e nas quais as oligarquias revezavam-se no poder, enquanto podiam manter sob controle as manifestações mais radicais das populações de seus países. A crise das ditaduras A crise deste “modelo” de dominação na América Latina deveu-se a elementos de origem exógena e endógena. Externamente, dois fatores parecem ter sido os preponderantes: em primeiro lugar, a crise do capitalismo mundial agravada, após 1973, pelos problemas do abastecimento do petróleo, gerou uma desarticulação nas economias dos países periféricos que acabou por quebrar diversas delas, com um endividamento sufocante. Por outro lado, o retorno de um certo tipo de discurso “democrático”, de matiz anti-soviético, não se coadunava com a existência de ditaduras fortemente repressivas na área de influência estadunidense. Por um breve lustro, os “direitos humanos” tiveram destaque na agenda da grande potência, beneficiária da implantação daqueles regimes de força. Afora fatores absolutamente locais, como a Guerra das Malvinas, pode-se afirmar que os problemas econômicos articulados à falta de liberdades levaram a que crescentes parcelas de populações latino-americanas se mobilizassem para romper o quadro de predomínio do poder repressivo. Fosse por ação armada (as FARC na Colômbia, os sandinistas na Nicarágua) ou por movimentos de impacto social (Mães da Praça de Maio, Campanha pelas Diretas Já), não só os regimes de força como até os regimes oligárquicos sofressem fortes pressões por mudanças. Porém, se elas ocorreram gradativamente pelos anos de 1980, em diversos países do subcontinente, todas vieram acompanhadas de um quadro econômico sombrio, dentro do qual os ganhos em termos de direitos políticos não tiveram contrapartida social e econômica. Processos hiperinflacionários, dívidas crescentes e impagáveis, planos econômicos acompanhados de confiscos e agravamento das já seriíssimas desigualdades foram alguns dos elementos constitutivos de uma conjuntura de crescimento de demandas das populações mais pobres, mas, na falta de resultados mais palpáveis, também da abertura de um processo que se pode afirmar como desastroso. A penetração de políticas neoliberais na América Latina deu-se a partir da chegada ao poder da ditadura chilena em 1973. Ficou clara, então, a intenção de ataque a direitos e conquistas dos trabalhadores e da população mais carente (ROSENMANN, 2006). A própria idéia, reproduzida desde então, do “Estado Mínimo” (de direitos dos trabalhadores), só teria sentido dentro de tal perspectiva, já que jamais se colocou a redução dos aparatos repressivos e de controle econômico-financeiro estatais. A superação de muitos dos regimes ditatoriais na América Latina se deu em um momento de agravamento de crise econômica cujos efeitos recaíram fortemente sobre as populações mais carentes. Porém, a “saída” apresentada por governos que os substituíram, de tendências diversas em diferentes países (peronismo, na Argentina, social-democracia na Venezuela, dentre outros), foi a utilização da cartilha neoliberal receitada por governos de países cêntricos ou por organismos internacionais como o Fundo Monetário Nacional (FMI) ou o Banco Mundial (BM). A implantação de tais políticas resultou em um somatório de retiradas de direitos históricos dos trabalhadores, pilhagens de bens públicos, destruição da capacidade de controle do Estado sobre as ações das grandes empresas capitalistas, e, ao contrário do que previam os ideólogos do “pensamento único”, agravamento dos problemas econômicos e da desigualdade social. Tal quadro disseminou-se por toda a latino-américa. No campo da política, os antigos regimes oligárquicos-representativos e aqueles surgidos da superação das ditaduras mantiveram um quadro que combinava o controle estrito dos movimentos das massas, processos eleitorais formais das sucessões de governantes e parlamentos sem espaços para modificações sistêmicas de fundo. Agravando tal “mesmice” ocorreu um espectro de mudanças constitucionais de caráter continuísta, dentro de uma perspectiva de “estabilização” da política. Além disso, uma submissão canina às políticas da potência unipolar e uma desenfreada corrupção articulada ou não à pilhagem dos bens públicos. O agravamento desses problemas começaram a gerar desdobramentos que se revelariam inéditos em nossa História. Se, em um primeiro momento, a tentativa de questionamento deste poder se revelou por uma ação fracassada contra Carlos Andrés Perez na Venezuela, dirigida pelo coronel Hugo Chávez, o final do século XX e o nascimento do XXI veriam surgir uma miríade de movimentos de massas que manifestavam nas ruas o seu profundo descontentamento com as políticas de seus governos (MARINGONI, 2004). Como desdobramento disso, ocorreram derrubadas sucessivas de governantes em países como na própria Venezuela (Perez), no Brasil (Collor), no Peru (Fujimori), além da seqüência de casos como na Bolívia, Equador e Argentina. E, em todos eles, articulavam-se políticas antipopulares neoliberais e corrupção desenfreada. O que dizer desta “nova instabilidade”, agora não levada adiante por “pronunciamentos” militares, mas por milhares de deserdados do “pensamento único”? O abalo do poder de tradicionais grupos dominantes em diferentes países e a dificuldade de apaziguar os ânimos da população nos marcos sucessórios da representação tradicional colocaram, para diversos analistas, que estaria ocorrendo uma crise da democracia da América Latina. Pesquisas foram realizadas atestando que, para muitos, em muitos países, era preferível existir uma ditadura, com melhores condições de vida para o “povo”, do que uma democracia com a situação existente, então. Tal resultado chocou aqueles analistas, abrindo espaço para raciocínios reacionários do tipo “o povo não sabe votar” ou “não sabe o que quer”. Saída fácil e elitista, que não pretende descobrir a raiz do problema. Estariam tais “estudiosos” preocupados em descobrir a razão da “aversão popular à democracia”? Ou voltar-se-íam para compreender o que, para amplas parcelas da população latino-americana, quis dizer, até hoje, um regime democrático? Este não seria, para elas, um jogo das elites no qual a maioria participa como joguete comprável com um prato de comida e aguardente, em troca de um voto? Não estaria esta maioria começando a questionar tudo aquilo que nos contou Neruda nas “Eleições em Chimbarongo”? (NERUDA, s/d) Estamos discutindo realmente, uma “crise da democracia” ou das formas de dominação tradicional dirigidos por diferentes oligarquias que se revezavam em governos formalmente escolhidos pelo voto? Para aqueles que, no campo da esquerda, discutem seriamente a questão democrática, a “crise” não pode representar surpresa e sim um estímulo para levar adiante a discussão do que representa um verdadeiro regime democrático no qual as rédeas estejam sob o controle dos trabalhadores, situação inviável sob a égide do capital. As revoltas populares no nosso subcontinente têm a ver com a crescente desilusão com o círculo vicioso de uma democracia de fachada na qual troca-se pelo voto um poderoso desgastado por outro que, da oposição, bradava contra tudo aquilo que continuará a ser realizado quando ele subir ao governo. E, mesmo no caso de críticos severos desta tradição, vários casos já ocorreram, nos quais o portador de um projeto de mudanças abandona-o, ampliando, assim, a frustração e o sofrimento dessa população. A crise verdadeira, das formas tradicionais de dominação oligárquicarepresentantiva e a sucessiva derrubada de governantes latino-americanos abriu espaços para o surgimento de políticos com uma retórica nacionalista e, até, de esquerda, inclusive em países de importância estratégica como a Venezuela. Nestes é possível observar, ao menos, duas vertentes gerais. A daqueles que, apesar de uma tradição de esquerda de seus agrupamentos políticos, tendem a amoldar-se, ao governar, às limitações impostas pelas políticas neoliberais impostas pelos centros de poder mundial. Neste caso incluir-se-iam Lula da Silva, no Brasil e Tabaré Vasquez, no Uruguai. Pode parecer surpreendente, mas, no caso do argentino Nelson Kirchner as posições frente aos organismos financeiros internacionais foram mais críticas e contundentes, levandose em consideração o fato do governante portenho não liderar um grupo político de tradição de esquerda. Mas, possivelmente, muitas das ações mais radicais de Kirchner resultaram da profundidade alcançada pela crise que abalou a Argentina do que das convicções do(s) seu(s) governante(s). Em outra vertente estariam, de início, Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia). Retóricas e ações cada vez mais radicais e rompimento com os padrões tradicionais de subserviência aos poderosos internos ou externos ganham significação na medida da comparação com as políticas desenvolvidas por seus vizinhos. Essas lideranças usam os espaços institucionais para modificá-los (nova Constituição) e abrem, ao menos em parte, caminhos para a organização popular de base. Torna-se para uma crescente maioria, em especial, pobre, da população, a representação da democracia contra uma oposição golpista e articulada nos interesses estadunidenses, para os quais eles representam uma ameaça. Torna-se aqui importante fazer referência ao fato de o governo Bush Filho não ter levado adiante uma intervenção militar direta na região, fato tão comum em outras épocas. O que foi saudado por alguns como um novo marco nas relações dos governos estadunidenses com os países latino-americanos cai por terra ao se analisar a história recente da região. Foi marcante a participação estadunidense no golpe que derrubou Chávez por 48 horas, em 2002, ficando, posteriormente, com o “mico na mão” de ter de explicar o reconhecimento de um “governo” espúrio que não teve nenhuma adesão da comunidade internacional. A pressão sobre o regime cubano, ampliada nos últimos anos, também demonstra que o “desleixo” estadunidense é, em verdade, um processo de ação política de baixa intensidade, dada a sua prioridade frente aos resultados no Oriente Médio. Não custa, porém, atentar para o fato de que esta baixa intensidade não pressupõe abandono. A rearticulação anunciada da Quarta Frota e a manutenção dos atuais responsáveis pela política estadunidense para a América Latina, anticastristas radicais, são bons exemplos da atenção aos movimentos políticos que aqui se realizam. Retornando ao atual quadro latino-americano, poder-se-ia perguntar: as ações populares de quebra da “legalidade” institucional permitiram modificações profundas que superassem o quadro de exclusões (social, política, econômica) existentes até então? A dita “crise da democracia” na região, articulada à subida ao governo de políticos críticos da tradição oligárquica e da submissão ao imperialismo poderia levar a um recrudescimento de um golpismo de direita, militar ou não, com apoio de amplas camadas da população? Para onde vai a América Latina? A primeira questão parece ser a de mais fácil resposta, até porque está voltada à análise de fatos passados, mesmo que alguns sejam recentes. O crescimento do movimento popular tem importância capital para o aparecimento de “novidades” políticas na América Latina. Porém, se, em geral, até agora tais mobilizações foram eficazes na derrubada de governos comprometidos com o ideário neoliberal, o mesmo não se pode dizer quando se trata de seus substitutos. A dificuldade de formalização de um projeto alternativo popular e de viés socialista tem impedido avanços maiores no campo da transformação social profunda. Acaba subsistindo muita instabilidade, mas poucas modificações de maior monta. Os casos argentino, equatoriano e boliviano são típicos, nos últimos anos de sucessivas mudanças de governantes em meio a gravíssimas crises sócio-econômicas e institucionais, e que, salvo alguma possibilidade no último caso, não se encaminharam para saídas representativas de um poder popular contrahegemônico. Os quadros que parecem apresentar maiores modificações, na Venezuela e na Bolívia, demandarão um aprofundamento da mobilização e organização dos trabalhadores e do povo, de forma autônoma, pressionando seus governos na construção de um novo poder. A segunda questão remete ao que parece representar o esgotamento do modelo de dominação oligárquico-representativa. Neste sentido a instabilidade tende a ser freqüente, apesar de parecer pouco provável um tipo de intervenção militar típico de décadas passadas. E o apoio de amplas camadas da população a um golpe desse jaez, em uma conjuntura como a que se apresenta hoje, é algo absolutamente improvável. Teria mais sentido, isso sim, uma “aventura” civil ou militar de caráter “salvacionista”, para “conter o caos”, apoiada em setores empresariais e de uma mídia conservadora, em uma situação na qual o governo estadunidense estiver interessado e em condições políticas e militares de auxiliar/desfechar um movimento dessa ordem. Coisa parecida com o episódio venezuelano de 2002, ou com os movimentos que setores abastados da burguesia de Santa Cruz de la Sierra desenvolvem desde a posse de Morales. A vacina contra tais ações tem de ser o avanço de medidas derruidoras da lógica neoliberal e tem de estar acompanhado pela organização/conscientização populares e por ações de autodefesa dos trabalhadores. A democratização da política e da informação, no sentido do rompimento do poder de oligarquias e plutocracias, em especial em relação aos monopólios dos meios de comunicação, são caminhos necessários para o aprofundamento dos modelos anti-hegemônicos mais radicais em curso, hoje, na América Latina. Conclusão A terceira questão colocada aparece aqui a guisa de conclusão. Os destinos mais imediatos do subcontinente latino-americano estão dependentes do progresso e influência que os diferentes modelos societários podem gerar, principalmente a partir do exemplo criado por países de maior importância na região. Além disso, nunca é demais repetir que as ações desenvolvidas pelos governos estadunidenses têm, sempre, uma influência que não deve ser subestimada, mesmo quando a região não parece ser sua prioridade. Se o projeto ALCA sofreu atrasos em seu cronograma, o governo de Bush Filho não se furtou em levar adiante a assinatura de acordos de “livre-comércio” bilaterais, buscando vencer as resistências à proposição de caráter mais geral. E é aí que aparece um modelo que lhe satisfaz, independente da coloração partidária que o torne realidade. O caso chileno, de políticas neoliberais levadas adiante por governantes do Partido Socialista (o que, certamente, faria corar as faces de Salvador Allende) é, talvez, o melhor exemplo de como os interesses estadunidenses consolidam-se, com um espectro de crescimento econômico que não se consegue mascarar uma assombrosa e crescente desigualdade social. Em outros importantes países latino-americanos a implantação de políticas neoliberais segue seu rumo, com maior ou menor velocidade, dependendo das condições para sua implantação. Brasil e México, pelo peso de suas economias e, na caso do segundo, pela proximidade como os Estados Unidos da América, têm grande influência sobre a região. Porém, apesar dos avanços alcançados em já vários anos pelo processo de desmonte da luta dos trabalhadores e das políticas universalistas, para ficar em alguns dos alvos do neoliberalismo, as reações crescem no campo popular, dificultando a implantação de novas medidas anti-sociais. No caso mexicano, os questionamentos frente aos últimos resultados eleitorais (com denúncias de fraudes favorecedoras do candidato conservador), que mobilizaram por semanas amplas parcelas de críticos do continuísmo, a mobilização popular em Oaxaca e a persistência da ação zapatista são outros exemplos dessa reação. No Brasil, a utilização pelo governo Lula da Silva de políticas compensatórias, a cooptação de setores do movimento social e a cada vez mais recorrente mística sebastianista permite que sejam levados adiante elementos estruturais contidos nas propostas do “Consenso de Washington” dividindo o movimento popular e diminuindo, por ora, o impacto de questionamentos mais profundos. Na contracorrente destes modelos coloca-se a Venezuela de Chávez, com o poder de seu petróleo e de sua retórica radical antiimperialista e popular. Cresce sua influência na região (Bolívia, Equador, Nicarágua e, até, em boa parte, por razões econômicas, a própria Argentina). E a tendência é que, mantido o poder como hoje se mostra na Venezuela, a disputa com o modelo neoliberal e os interesses estadunidenses se afirme de forma ampliada. Mesmo países como o Brasil sofrem cada vez mais a influência do processo venezuelano, seja por razões econômicas (o peso da questão energética) ou políticas (a disputa da liderança na região, onde Chávez aparece como o comandante do combate contra a hegemonia dos EUA e suas políticas na América Latina). A resultante desse processo dependerá muito claramente da capacidade dos trabalhadores e do movimento popular dos países da região em assumirem o rompimento dos limites colocados pelos governantes, em suas ações e retóricas, impondo derrotas concretas ao neoliberalismo e liderando a construção de um novo modelo societário. Se algo do tipo parece já em movimento na Venezuela e Bolívia, não há dúvidas que o mesmo está longe de acontecer em outros países (tendo havido, inclusive retrocessos, como no caso argentino). È possível dizer, hoje, que o destino de parcelas consideráveis da população latino-americana esteja se definindo como ação ou exemplo, prioritariamente nas periferias de Caracas e La Paz, nas lutas camponesas e de indígenas na Amazônia e do altiplano andino, nos movimentos dos sem-terra brasileiros e dos estudantes e mineiros chilenos. Para uma região onde a decisão sobre o futuro de seus povos, em muitos momentos, se deu a partir dos gabinetes palacianos e da Casa Branca, não deixa de ser um quadro alvissareiro e estimulante. Referências: DONGHI, Halperin. História da América Latina. São Paulo: Círculo do Livro, 1975. GALEANO, Eduardo. As Veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro/São Paulo: UFRJ/UNESP, 2004. MARINGONI, Gilberto. A Venezuela que se inventa. São Paulo: Perseu Abramo, 2004. NERUDA, Pablo. Canto Geral. São Paulo: Círculo do Livro, s/d. ROSENMANN, Marcos R. “Neoliberalismo”. In: SADER, Emir (coord.). Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo: Boitempo, 2006. ROSSI, Clóvis. A Contra-Revolução na América Latina. São Paulo: Atual, 1987.