Condicionais contrafactuais em português Maria Leonor Maia dos Santos Depto. de Letras Clássicas e Vernáculas – Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Pós-graduação em Lingüística – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) [email protected] Resumo. Os condicionais geralmente denominados contrafactuais têm características semânticas diferentes dos condicionais não-contrafactuais, e podem não permitir certos tipos de inferência que são normais para estes últimos. Este trabalho examina exemplos de condicionais contrafactuais do português do Brasil e tenta apontar, com o auxílio de uma formalização existente na literatura, possíveis pontos críticos para a caracterização semântica dessas estruturas. Palavras-chave. possíveis. Condicionais contrafactuais; semânticas de mundos Abstract. Counterfactual conditionals behave differently from simple conditionals and do not usually allow certain kinds of semantic inference that are possible for the simple ones. This paper examines examples of counterfactual conditionals in Brazilian Portuguese and aims at pointing some critical semantic features of this type of structure. Keywords. Counterfactual conditionals; possible world semantics. Introdução Vamos considerar que se queira analisar a semântica de enunciados numa língua como o português por meio de uma formalização. Pretendemos apresentar aqui algumas das complexidades específicas da formalização dos condicionais contrafactuais. Enunciados condicionais podem ter a forma de duas sentenças concatenadas, uma delas apresentando o que é considerado como condição de realização do que diz a outra. Por exemplo (os exemplos de 1 a 4 foram retirados do jornal Folha de São Paulo): (1) Se não tiver nenhum problema, a menina pode ficar só tomando pílula. folha/teenfft/ft94fe14.txt (2) (3) O Brasil poderia ter comprado os papéis, a um preço menor, do próprio Tesouro norte-americano se tivesse obtido o "stand-by" do FMI. brasi-br/br94mr19.txt Reforçava-se a convicção de que, se tivesse negociado, o governo teria evitado a crise. brasi-br/br94mr25.txt Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 533-538, 2005. [ 533 / 538 ] (4) O esporte promove saúde e lazer se forem respeitadas as limitações de cada um. folha/teenf-ft/ft94fe14.txt Existem diversos tipos de condicionais. Adotamos aqui, simplificadamente, a seguinte convenção, já padronizada: a) aqueles que estabelecem como condição a realização de algo que é apresentado como possível são chamados condicionais simples; b) aqueles que estabelecem como condição a realização de algo que é apresentado como sabidamente irrealizável são chamados condicionais contrafactuais. Esta classificação é controversa, mas vamos tomá-la como ponto de partida. Assim, 1 e 4 são exemplos de condicionais simples, e 2 e 3, de contrafactuais. São ditos contrafactuais porque supostamente apresentam algo que vai contra “os fatos”, isto é, afirmam conseqüências a partir da suposição de que algo que ocorreu não teria ocorrido ou, ao contrário, que algo que não ocorreu teria ocorrido. Ou, ainda, afirmam conseqüências a partir da suposta realização de algo impossível, ou que é tido como irrealizável. Vejamos algumas das diferenças entre condicionais contrafactuais e condicionais simples, e uma proposta de descrição existente na literatura. Propriedades de condicionais contrafactuais Os condicionais contrafactuais não permitem que se façam as mesmas inferências que os condicionais simples permitem. Em primeiro lugar, temos as inferências por transitividade: (5) a. Se Ivete mora na periferia, gasta 2 horas para chegar ao trabalho. (5) b. Se Ivete gasta 2 horas para chegar ao trabalho, fica muito cansada. (5) c. Então, se Ivete mora na periferia, fica muito cansada. Podemos considerar que há transitividade no exemplo 5. Ou seja, uma situação em 5a e 5b fossem verdadeiras seria também uma situação em que 5c seria verdadeira. O mesmo não acontece com um condicional contrafactual, como em 6 (adaptado de McCawley, 1993: 528): (6) a. Se Bush tivesse nascido na Palestina, lutaria pelo Estado Palestino. (6) b. Se Bush lutasse pelo Estado Palestino, estaria usando o poder americano para pressionar Israel. (6) c. Se Bush tivesse nascido na Palestina, estaria usando o poder americano para pressionar Israel. O motivo pelo qual 6 não é transitivo é que as situações em que 6a aconteceria não podem ser as mesmas em que 6b aconteceria. Em 6a, supomos uma situação em que tudo seria o mais próximo possível da situação real (isto é, uma situação em que Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 533-538, 2005. [ 534 / 538 ] existe alguém que se chama Bush e ele é, tanto quanto possível, o Bush que conhecemos, e existe todo o resto do mundo tal como o conhecemos, com a exceção de um único “detalhe”, diferente da realidade, que é ter Bush, então, nascido na Palestina, e, conseqüentemente, lutar pelo Estado Palestino). Em 6b, supomos uma situação que é também o mais próximo possível da situação real (isto é, uma situação em que existe alguém que se chama Bush e ele é, tanto quanto possível, o Bush que conhecemos, e existe todo o resto do mundo tal como o conhecemos, com a exceção de um único detalhe, diferente da realidade, que é o fato de Bush lutar pelo Estado Palestino, e portanto estar usando o poder americano para pressionar Israel). Ora, apesar de 6a e 6b terem em comum a suposição de que há uma situação em que Bush luta pelo Estado Palestino, esse termo médio não permite a transitividade, pois a situação de Bush lutar pelo Estado Palestino não é acompanhada de fatos circundantes idênticos num caso e no outro. Ou seja, se Bush tivesse nascido na Palestina, ele não seria elegível para o cargo de presidente dos Estados Unidos, e portanto não poderia usar o poder americano para pressionar Israel. Em 6b, supõe-se um Bush que lutasse pelo Estado Palestino e conseguisse manter isso em perfeito sigilo, a ponto de poder tornar-se presidente dos Estados Unidos sem despertar suspeitas e então usar o poder a que teria acesso como presidente para pressionar Israel, mas essa situação é incompatível com 6a e a inferência é, então, impossível. Os autores que discutem os condicionais contrafactuais costumam, para formalizá-los, fazer uso da noção de mundos possíveis, que pode ser apreendida, pelo menos inicialmente, a partir de uma definição não técnica: nem tudo no mundo, tal como o conhecemos, tem de ser como é. Algumas coisas poderiam ser diferentes. Falar de um mundo possível é simplesmente ponderar sobre como o mundo poderia ser diferente. Dizemos então que as premissas 6a e 6b não se referem aos mesmos mundos possíveis, e isso explicaria por que a transitividade fica bloqueada. Sabemos também que os raciocínios com condicionais contrafactuais não são monotônicos, ou seja, não permitem que se acrescentem informações sem que se corra o risco de alterar a possibilidade da conclusão. Vejamos primeiramente um condicional simples: (7) a. Se Pedro nasceu em Chapecó, então ele é catarinense. (7) b. Se Pedro nasceu em Chapecó, e seus pais vieram do Paraná, então ele é catarinense. Supomos que nem todos os condicionais simples apresentem essa característica, mas não discutimos isso neste trabalho. Pelo menos alguns dos condicionais simples permitem que acrescentemos informações ao antecedente, mantendo a possibilidade da conclusão. Podemos interpretar 7a e 7b deste modo: numa situação que é tão próxima quanto possível da situação real, se Pedro nasceu em Chapecó, então ele é catarinense, não importando que outras coisas possam ter acontecido, pois aconteceram tão próximas quanto possível da situação real. Entretanto, isso não se dá em contrafactuais, mesmo os que são muito parecidos com um condicional simples que permita a operação, como em 8: (8) a. Se Pedro tivesse nascido em Chapecó, então ele seria catarinense. (8) b. Se Pedro tivesse nascido em Chapecó, e o Oeste fosse um novo Estado da União, então ele seria catarinense. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 533-538, 2005. [ 535 / 538 ] Não é possível passar de 8a para 8b, porque a situação em que Pedro tivesse nascido em Chapecó já seria suficientemente diferente da situação real para permitir que talvez outros “detalhes” importantes teriam sido diferentes também (O Oeste, onde está Chapecó, poderia, por exemplo, ter-se separado do restante de Santa Catarina), e a conclusão não poderia ser mantida. Semântica de mundos possíveis As análises da semântica dos condicionais contrafactuais costumam considerar a proposta de David Lewis (1973) para semânticas de mundos possíveis: o uso de uma relação de proximidade relativa entre os mundos, através da qual deve ser possível descrever quais inferências são permitidas, ou não, nos condicionais contrafactuais. Neste trabalho, não vamos apresentar formalmente a proposta de Lewis, limitando-nos a descrever informalmente algumas noções que nos parecem necessárias para acompanhar a discussão dos exemplos. Em vez de “mundos”, falaremos de “estados”, ou “situações” possíveis. Para interpretar os contrafactuais precisamos, então, supor que, numa coleção de estados possíveis que as coisas podem assumir, e respeitando certas condições, podemos avaliar, para cada três desses estados, qual de dois deles está mais “próximo” do terceiro, ou seja, qual, entre dois, é mais semelhante ao terceiro, no caso de um deles ser mais semelhante que o outro. Caso contrário, os dois estados são igualmente semelhantes ao terceiro. Assim, podemos considerar que, para que um condicional na forma se ISTO então AQUILO seja verdadeiro numa situação, é necessário e suficiente que, se existirem situações em que ISTO é verdadeiro, AQUILO seja verdadeiro nas situações mais próximas, ou semelhantes, a ela. Segundo James McCawley (1993), esta proposta é pelo menos parcialmente coerente com aquilo que vimos nos exemplos anteriores. As diferentes “distâncias”, ou dessemelhanças, entre as situações em que ISTO e AQUILO são verdadeiros abrem, por assim dizer, “espaço” para que os contrafactuais não se comportem como os condicionais simples, em termos de inferências possíveis. Outros problemas Entretanto, tal proposta se depara também com casos problemáticos, em que a formalização de um condicional contrafactual pode ser avaliada de um modo, enquanto o enunciado em língua natural, a partir do qual teria sido feita a formalização, não seria avaliado do mesmo modo. Vejamos alguns desses casos. O primeiro é aquele em que ISTO é verdadeiro na situação real. Pelas condições da proposta, a situação real é sempre a mais próxima possível dela mesma, e o condicional contrafactual é considerado automaticamente verdadeiro se ISTO é verdadeiro em alguma situação e AQUILO for verdadeiro nas situações próximas. Ora, condicionais contrafactuais com antecedente e conseqüente verdadeiros são estranhos: (9) a. Se 6 fosse um número par, 12 seria múltiplo de 4. (9) b. Se Brasília fosse no Brasil, o Presidente do Brasil moraria em Brasília. Um segundo caso em que a análise conflitaria com a intuição lingüística se verifica quando não existissem situações acessíveis a partir da situação atual em que ISTO fosse verdadeiro, o que tornaria o condicional automaticamente verdadeiro, e a formalização não permitiria distinguir entre 10a, 10b, 10c e 10d: (10) a. Se 3 fosse par, 4 seria ímpar. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 533-538, 2005. [ 536 / 538 ] (10) b. Se 3 fosse par, 4 seria múltiplo de 3. (10) c. Se 3 fosse par, este trabalho teria sido apresentado no GEL. (10) d. Se 3 fosse par, este trabalho não teria sido apresentado no GEL. Intuitivamente, 10a é supostamente verdadeiro (uma vez que o sucessor de um número par é um número ímpar), 10b falso, e 10c e 10d nem uma coisa nem outra, pois, embora este trabalho tenha sido apresentado no GEL, isso não tem relação com 3 ser ou não par, e a formalização não mostra as diferenças entre eles. A questão do nexo semântico entre ISTO e AQUILO ser ou não necessário, não tratada aqui, abrange os contrafactuais e os não-contrafactuais, e pode ser tratada por meio de implicaturas, ou não. O que está sendo destacado é que a análise nos moldes citados no parágrafo poderia não captar as diferenças entre os diversos exemplos. Um terceiro caso problemático é a já apresentada impossibilidade da contraposição (exemplo 10). Uma aplicação da proposta de Lewis, não permitiria a distinção entre 10 e outros exemplos verdadeiros, embora em português pareça pelo menos estranho dizer que a contraposição de contrafactuais é verdadeira ou falsa. Um caso também interessante para a formalização de contrafactuais envolve os exemplos em que o condicional em português incorpora relações de causalidade e/ou temporalidade. A manipulação dos exemplos, então, embora permaneça formalmente adequada, leva a resultados incompatíveis, ou pelo menos suspeitos, em relação aos enunciados em português: (11) a. Se Pedro não tivesse inalado o defensivo agrícola, não teria se envenenado. (11) b. Se Pedro não tivesse se envenenado, não teria inalado defensivo agrícola. 11a e 11b apresentam uma causa e uma conseqüência, elaboradas de modos distintos, apresentadas no enunciado em ordem invertida mas potencialmente mantendo a seqüência temporal. Uma formalização nos moldes da proposta mencionada acima perderia provavelmente essa noção, e em 11b a seqüência temporal pareceria estar invertida, e o fato de não se ter envenenado pareceria ter impedido Pedro de inalar o defensivo agrícola, o que é absurdo. Várias soluções podem ser consideradas para cada caso, que podem incluir, por exemplo, um refinamento das regras para a estrutura proposta. Em relação aos casos em que a formalização do contrafactual não revela informações como causalidade e temporalidade, como 11, é importante notar que esta é uma característica que os contrafactuais também compartilham com os condicionais indicativos. Seria possível considerar que a formalização está correta, e adicionar um nível a mais de análise pragmática, como uma implicatura convencional, mas as vantagens ou desvantagens dessa solução demandam uma crítica em separado. Questões que também surgem quando se estudam propostas de formalização para contrafactuais existentes na literatura – como a que foi citada – são, por exemplo, o problema de até que ponto as formalizações são úteis para a semântica, e a necessidade ou não de se manter uma distinção estrita entre nível de análise semântica e nível de análise pragmática. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 533-538, 2005. [ 537 / 538 ] Conclusão As considerações a respeito das características dos contrafactuais e da adequação das análises tendem a se tornar extremamente complexas muito rapidamente. Problemas que envolvem aspectos diferentes da semântica das línguas naturais, como temporalidade, causalidade, existência, identidade, só para citar alguns, assomam todos juntos nos argumentos contrafactuais. Análises eficientes para outros tipos de estrutura deixam de ser satisfatórias para inúmeros exemplos em que as formalizações construídas pela teoria divergem da intuição lingüística de um modo não facilmente remediável. Uma questão parece ficar clara a partir da observação dos vários exemplos: aquilo que influi na interpretação dos condicionais contrafactuais é contextualmente variável. Referências bibliográficas LEWIS, D. Counterfactuals. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1973. MCCAWLEY, J. D. Everything Linguists Have Always Wanted to Know about Logic but Were Afraid to Ask. 2 ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1993. MORTARI, C. A. Introdução à lógica. São Paulo: Ed. da UNESP, Imprensa Oficial do Estado, 2001. MOURA, H. M. de M. Significação e contexto. 2.ed. Florianópolis: Insular, 2000. OLIVEIRA, R. P. de. Semântica formal: Uma breve introdução. São Paulo: Mercado de Letras, 2001. SAINSBURY, R. M. Logical Forms. Oxford: Blackwell, 1991. STALNAKER, R. C. Inquiry. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1987. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 533-538, 2005. [ 538 / 538 ]