Quando novos educadores caem do céu. Bruno Pucci Quando a profa. Rinalva, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE-UNIMEP), me pediu para que apresentasse nossos novos colegas de trabalho, comecei a pensar em “como fazer” uma apresentação que levasse em consideração as inúmeras atividades que compõem o curriculum de um professor de pós-graduação e que fosse expressão, mesmo que aproximada, de suas vidas. E como sói acontecer comigo, ultimamente, em ocasiões em que sou desafiado a produzir alguma coisa, fui buscar em Theodor Adorno alguma inspiração benfazeja. Tomei em mãos as suas Minima Moralia e li o aforismo 21: ‘Não se aceitam trocas’. Talvez por aqui poderia começar a minha intervenção. Diz lá o autor, ainda em 1944: “As pessoas estão desaprendendo a dar presentes. Na violação do princípio de troca (que é o dar presentes - BP), há algo de absurdo e implausível; muitas vezes, até mesmo as crianças examinam com desconfiança quem dá algo, como se o presente fosse apenas um truque para vender-lhes uma escova ou um sabonete. ... O verdadeiro ato de presentear encontrava sua felicidade na imaginação da felicidade do recebedor. E isso quer dizer: escolher, dedicar tempo, desviar-se de suas ocupações, pensar no outro como sujeito: o contrário da negligência. Eis aí algo de que quase ninguém mais é capaz”. O que me chamou a atenção nesse texto foi sua última parte: presentear significa ‘escolher, dedicar tempo, desviar-se de suas ocupações, pensar no outro como sujeito’. E enquanto pensava em tudo isso, comecei a perceber com muita nitidez que nós, sim, do PPGE, é que tínhamos recebido dois lindos presentes, a Maria Cecília e o Cleiton. Examinar o curriculum vitae de um docente é sempre se defrontar com os dados, com os elementos empíricos de seu trabalho acadêmico, mas é também se defrontar com o mistério, com o desconhecido que constituem o mais profundo do ser de uma pessoa. Um curriculum, por mais completo que seja, é sempre informativo, preciso, objetivo. Nele são elencados os anos de trabalho, os números de publicações, a quantidade de orientandos que completam sua vida ativa. O conjunto das atividades ali expostas nos permitem ponderar a qualificação, a competência, a produtividade. Mas, muitas outras manifestações de vida se aninham ocultamente nas frestas daquelas páginas escritas e abrem para nós outros cantos e encantos. Maria Cecília Rafael de Góes, natural de Rio Claro, SP., fez a graduação em Psicologia, na PUC-Campinas, em 1969, o mestrado em “Psicologia Experimental” na USP, em 1975, o doutorado também em “Psicologia Experimental”, na USP, em 1979. Realizou concurso de livre-docência na área de Psicologia da Educação - Pensamento, Linguagem e Desenvolvimento Humano, na UNICAMP, em 1995. Em sua vida acadêmica, como docente e pesquisadora, iniciada em 1970, trabalhou quase 09 anos no Departamento de 2 Psicologia da UNESP-Assis, 10 anos na UFSCar, São Carlos, na área de Psicologia da Educação, junto aos Programas de Pós-graduação em Educação e em Educação Especial, 10 anos na UNICAMP, Campinas, junto aos cursos de Pedagogia, de Licenciaturas e ao Programa de Pós-graduação em Educação. Em 1996 e 1997 trabalhou também como docente na PUC-Campinas. São mais de trinta anos de sala de aula, de contato vivo com pessoas no processo de aprendizagem, em cidades e universidade diferentes. Realizou ainda 03 estágios de Pós-doutorado no exterior: em 1981, Inglaterra, em 1984, Estados Unidos, e, em 1987-88, na Escócia. Cleiton de Oliveira, natural de Santa Bárbara d’Oeste, fez Pedagogia na UNIMEP (quando ainda era Faculdade de Educação), em 1969, seu mestrado é em Educação-Administração Escolar, na UNIMEP, em 1983, e o doutorado em Educação, na UNICAMP, em 1992. Inicia sua vida docente em 1964, inicialmente lecionando em escolas de 1º grau, durante 13 anos; de 1973 a 1987 trabalha como docente no departamento de Educação da UNIMEP; de 1976 até sua aposentadoria, em 1995, no Departamento de Administração e Supervisão Escolar da UNICAMP, na graduação e pós-graduação. Ainda no ano 1997 leciona na UNISO, Sorocaba. Portanto foram mais de trinta e três anos de experiência docente. Quantas experiências maravilhosas e inéditas se escondem por detrás dessas décadas de trabalho da Maria Cecília e do Cleiton! O que queremos ressaltar nesse momento é que essas diferentes e complexas experiências não foram coisas passageiras, mas estão aí, implícita e explicitamente, atuantes na constituição pessoal desses dois professores. Mas estamos também diante de dois pesquisadores, de duas pessoas que fizeram de sua vida acadêmica momentos não apenas da missão de socializar conhecimentos, mas também de, na paciência e nas vicissitudes contrárias, buscar a construção de novos saberes. Assim Maria Cecília registra em seu curriculum mais de duas dezenas de artigos científicos, 07 livros ou capítulos de livros publicados, 19 projetos de pesquisas realizadas ou em andamento, participação, com apresentação de trabalhos, em quase 50 Encontros Científicos, além da apresentação de 45 palestras e/ou cursos. Cleiton, por sua vez, nos relata o desenvolvimento de 07 pesquisas científicas, 08 publicações em revistas especializadas, 24 participações em Congressos, Seminários e Palestras, nos últimos cinco anos, e a realização/organização de 16 cursos de extensão. Todos nós que trabalhamos na produção espiritual sabemos o quanto de leitura, de reflexão, de esforço de redação se gasta na elaboração de um artigo científico, na preparação de uma palestra ou de uma intervenção num Congresso Científico. Como diz Adorno, em um outro aforismo chamado “Lacunas”, os conhecimentos não caem do céu. “Ao contrário, o conhecimento se dá numa rede onde se entrelaçam prejuízos, intuições, inervações, autocorreções, antecipações e exageros, em poucas palavras, na experiência, que é densa, fundada, mas de modo algum transparente em todos os seus postos. Daí sua extrema dificuldade em ser produzido. 3 Nossos dois novos colegas também possuem uma experiência rica e diversificada em trabalhos de orientação científica em pós-graduação. Maria Cecília já orientou 12 dissertações de mestrado e 04 teses de doutorado. Orienta ainda atualmente 04 dissertações de mestrado e 05 teses de doutorado. Já orientou também 04 trabalhos de especialização, 02 de Iniciação Científica e 05 monografias de graduação. Além do mais já participou, como pesquisadora, de 57 bancas examinadoras de mestrado e 20 de doutorado, além da participação em 54 bancas de exame de Qualificação de mestrado e em 17 de doutorado. Cleiton já orientou 09 pesquisadores de mestrado, dos quais seis já defenderam suas dissertações, e 02 pesquisadores de doutorado, com exames de qualificação já realizados. Participou ainda de 17 bancas de dissertação de mestrado e em 18 de doutorado, de 27 bancas de qualificação de mestrado e 14 de doutorado. Sabemos que a experiência dos dois em trabalhos de orientação serão de fundamental importância para nosso Programa de Pós-graduação que recebe, por ano, aproximadamente 50 novos candidatos, entre mestrandos e doutorandos. Como todos podem sentir, uma primeira e rápida análise dos curricula da Maria Cecília e do Cleiton nos mostram esse extraordinário acúmulo de atividades e produções que constituem historicamente as suas personalidades acadêmicas. Uma observação ainda mais atenta nos permite levantar outros detalhes interessantes e originais. Vejamos alguns deles: A Maria Cecília, por exemplo, desde seus primeiros escritos e pesquisas tem se preocupado intensamente com a educação-alfabetização-linguagem-aprendizagem de crianças, em especial as deficientes (com surdez e/ou atraso escolar). O Cleiton, em suas pesquisas, cursos e palestras, tem tido nesses últimos vinte anos contato direto com a rede pública de ensino básico e de primeiro e segundo graus, abordando suas problemáticas específicas, primordialmente as relacionadas à administração escolar, à formação de professores através das licenciaturas, à municipalização do ensino. Não são essas temáticas de extrema utilidade para nosso Programa de Pós-graduação? Outra coisa que me chamou a atenção na produção científica da Maria Cecília foram os inúmeros trabalhos publicados em co-autoria com outros pesquisadores de renome. Julgo de fundamental importância para a formação de pesquisadores a capacidade de trabalhar e produzir em parceria, num clima de busca coletiva, onde o individual e o plural, o específico e o diferente, encontrem seus espaços na tensão do diálogo e da construção do conhecimento. O curriculum do Cleiton, por sua vez, nos apresenta um outro detalhe digno de menção. É sua experiência em cargos administrativos: Chefe do Departamento de Educação na UNIMEP, de 1975 a 1976 e depois, de 1979 a 1982. Coordenador do Curso de Pedagogia na UNIMEP, em 1981-1992. Diretor e Coordenador do Centro de Ciências Humanas, na UNIMEP, de 1977 a 1978. Coordenador do Departamento de Educação da Prefeitura Municipal de Santa Bárbara d’Oeste, de 1983 a 1988. Coordenador dos Cursos de Licenciatura da UNICAMP de 1992 a 1995. Sem dúvida, alguém com muita bagagem não só teórica, mas também prática na área de administração escolar, que certamente muito poderá ajudar na gestão 4 de nosso Programa de Pós-graduação em Educação. Outros detalhes interessantes certamente os presentes poderão detectar e explicitar nos curricula e na vida de nossos colegas recém chegados. Mas, ainda fica muita coisa para ser detectada e extraída, quando, além da visão e da análise, abrimos espaço para a imaginação e a fantasia. Pois, são menores os elementos de vida que os nossos sentidos externos e mesmo a nossa racionalidade conseguem vislumbrar. Assim imaginemos o que de vida, de esperanças, de tensões, significam trinta anos de docência, de pesquisa, de orientação de pessoas em universidades diferentes. Deixemos nossa fantasia correr e imaginemos o sabor espiritual que trazem dentro de si e que só o contato no dia-a-dia da UNIMEP deverá ir pacientemente desvendando: a experiência acadêmica e pessoal da Maria Cecília e do Cleiton. Sobre isso gostaria de ainda falar alguma coisa. Os tradutores do ensaio de Walter Benjamin, ”Sobre alguns temas em Baudelaire”, José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista, nas “Notas” desse texto, nos apresentam os seguintes esclarecimentos: “Este ensaio de Benjamin se baseia na oposição entre “Erfahrung” e “Erlebnis”, aqui traduzidas respectivamente como “experiência” (real ou acumulada, sem intervenção da consciência) e “vivência” (experiência vivida, evento assistido pela consciência). Diz ainda Leandro Konder: “Erfahrung” é o conhecimento obtido através de uma experiência que se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa viagem; o sujeito integrado numa comunidade dispõe de critérios que lhe permitem ir sedimentando as coisas com o tempo. “Erlebnis” é a vivência do indivíduo privado, isolado, é a impressão forte, que precisa ser assimilada às pressas, que produz efeitos imediatos”. Participamos de um mundo agitado e incessantemente revolucionado pelas novas tecnologias no conhecimento, na comunicação, em nossa vida do dia a dia e somos desafiados a todo instante pela “Erlebnis”, pelas impressões fortes das coisas novas, pela vivência apressada da vida corrida, pelo acúmulo de produções científicas que não damos conta de assimilar. Mas o que nós, docentes e discentes do PPGE esperamos dos colegas que chegam, não é tanto a “Erlebnis”, e sim a “Erfahrung”, esse conhecimento de vida e de sabedoria que a experiência de trinta anos foi sedimentando, sem pressa, em suas pessoas, parte da qual conseguiram contabilizar em seus curricula. Mas, sem dúvida, a maior parte só a presença e a atuação do dia-a-dia poderá se desdobrar, como numa viagem, em nossa comunidade. É antes de tudo essa sabedoria que esperamos deles. Razão pela qual, com alegria e num clima de colaboração livre e solidária sob comum responsabilidade, acolhemos de braços e corações abertos os dois “novos educadores que caem do céu”. Bruno Pucci, professor da UNIMEP 5