[gula] 18 | novembro/2008 | primeira impressão| Olho maior que a barriga Quando a comida deixa de ser a solução e passa a ser a razão dos problemas [texto: Thayná Candido de Almeida] Machado] [fotos: Daniela | novembro/2008 | primeira impressão| 19 [gula] O início de tudo está na boca. Começamos a conhecer o mundo através da fome que nos leva à comida e conseqüentemente à sensação de saciedade. Quando o bebê chora, a mãe associa o choro à fome e, mesmo que não seja esta a causa, oferece o peito como forma de carinho e aconchego. Então a criança sente-se bem. Quando se é adulto, a coisa muda um pouco de figura. Ao sentirmos fome, vamos à geladeira. Geladeira amada, idolatrada salve salve, que nos tira da depressão, da solidão, do tédio, da frustração e de qualquer outra coisa que nos incomode. A comida é sempre a solução. Ou, pelo menos, achamos que é. Essa sensação acontece com quase todo mundo, um chocolate pode salvar o dia ou uma boa janta fazer os problemas irem pelo ralo. Mas nem com todo mundo é assim. Muitas vezes a comida é uma válvula de escape constante para insatisfações e frustrações, e o problema é a bola de neve que se transforma isso tudo. Quanto mais se come, mais se perde o controle, gerando um sentimento maior ainda de depressão, ansiedade e culpa. A comida deixa de ser apenas um objeto de prazer e passa a tomar o lugar de uma droga indispensável na vida do viciado por comida. Assim como qualquer dependente que experimentou a droga pela primeira vez por algum motivo de frustração ou na esperança de mascarar problemas, quem sofre com a gula acaba virando refém do próprio prazer. Juliana* é uma atriz de 23 anos que viu a sua carreira definhar quando a vida lhe pregou uma peça inesperada. Com 20 | novembro/2008 | primeira impressão| o falecimento de sua mãe, há dois anos, ela descontou toda a perda e tristeza na comida e em medicamentos antidepressivos. Juliana, até então, pesava 59kg distribuídos em 1,70cm de altura e atuava em diversas peças de teatro em Porto Alegre e São Paulo. Após a perda da mãe, a atriz não saiu mais de casa e encontrou na comida a melhor solução. Tapou o sol com a peneira com antidepressivos e um vínculo perigoso com seu maior prazer: a gula. “É claro que a comida não fazia meus problemas desaparecem e nem faria a minha mãe voltar, mas não havia mais sentido em cuidar da minha aparência se toda a minha razão de viver tinha ido embora, então eu via na comida uma aliada. Se eu não tinha o que fazer, precisava comer, se eu tinha algo para fazer, eu também comia. Se eu estava feliz, eu comia e, se estava triste, também”, admite Juliana. Hoje ela consegue discernir entre o comportamento certo e errado e não vê mais a comida como sua aliada e nem sua inimiga, mas lamenta pelo quanto perdeu devido ao seu vício. “Cheguei a 118kg e me vi no fundo do poço quando, em menos de um ano, nenhuma das minhas roupas servia. Minhas amigas estavam saindo para baladas e eu morria de vergonha de reencontrar as pessoas no peso que eu estava. Ninguém me reconhecia e nem disfarçava. Quando me chamavam para testes de comerciais e peças, ninguém me ligava de volta. Não consegui mais nenhum papel no teatro. Não havia o que fazer. A dor da perda de minha mãe eu nunca superei, mas precisava levar a minha vida adiante.” Foi aí que Juliana, que mora sozinha, resolveu procurar ajuda do pai e começar um tratamento psicológico e nutricional. Há seis meses, ela está tomando medicamentos para ansiedade e segue firme em uma dieta rigorosa para perda de peso. Está com cirurgia de redução de estômago marcada para dezembro e pretende voltar a atuar quando a poeira baixar. “Hoje a comida não é mais minha pior inimiga e nem a minha melhor amiga, é indiferente. Claro que sou de carne e osso de vez em quando dá vontade de comer um doce ou um capricho qualquer, mas é normal. Não desconto mais as minhas dores na geladeira.” Felizmente algumas pessoas conseguem ter a real noção do problema e ver de fora a sua situação, Juliana conseguiu dar a volta por cima e a gula não é mais um vício irremediável. Mas muita gente ainda brinca e não leva a gula a sério. Para a maioria das pessoas, a gula é efêmera e um mero capricho. Há diversos grupos em sites de relacionamentos referentes à gula, mas nunca são retratados como viciados, com uma patologia psicológica que necessita de tratamento. A psicóloga Rosemeire Zago tem como base de seu trabalho o resgate da auto-estima e amor-próprio. Na série de artigos Sete Pecados Capitais, ela diz que, no sentido literal, gula é o excesso de comer e beber, na sua simbologia maior significa voracidade: que devora e destrói. “Entendendo essa simbologia, podemos relacionar que, ao devorar o alimento compulsivamente, tenta-se, ainda que inconsciente, destruir o que está dentro. Agindo assim, sente culpa e se pune por ter perdido o contro- le, formando assim um círculo vicioso: come em excesso para fugir do que sente, culpa-se por isso, se pune comendo mais”, escreve. “Ai minha barriga” Quem já não comeu e ficou com a sensação de ser uma jibóia após ter ingerido um jacaré? “Comi feito um boi”, “Por que eu fiz isso?”, “Não deveria ter comido tanto”, são frases que a gente escuta quase sempre num almoço de domingo ou numa saída de churrascaria. A gula faz parte da vida de todo mundo e é difícil de se desvencilhar dos prazeres seguidos da culpa de ter comido mais do que deveria. A comida é sempre pano de fundo para qualquer evento social, aniversário, casamento ou reunião de amigos. Os petiscos são indispensáveis em todas as ocasiões, como não sucumbir a esses prazeres? Para as mulheres, a cobrança é ainda maior. A sociedade exige corpos esculturais, sarados e impecáveis para uma beleza perfeita e aceitável. A culpa anda lado a lado com as calorias ingeridas, e uma gordurinha aqui, outra ali, geram desespero para as mais neuróticas. Aline* é uma gulosa em tempo integral, mas não considera seu capricho nocivo à saúde. Há dois anos ela namora Júlio* e os dois freqüentam bons restaurantes no mínimo três vezes por semana. Se Aline quer tomar um café, toma dois. Se precisar de um hambúrguer, come dois. Tudo é exagerado. “Eu gosto de fartura e não gosto de passar fome. Acho até que meu estômago já se acostumou com tudo em dobro”, brinca Aline. Desde o início do romance, os dois já ganharam vários quilos, mas não se incomodam nem um pouco com isto. “Posso emagrecer a hora que eu quiser, mas no momen- to estou a fim de aproveitar os prazeres que a comida nos proporciona. O nosso melhor programa é procurar restaurantes novos e acatar indicações de amigos. Quase sempre são boas dicas, e saímos explodindo!”, admite Júlio. O casal não acha que a gula esteja interferindo na sua vida. Casos como o de Juliana, que encontrou na comida um tapaburaco para seus problemas, merece atenção redobrada e um tratamento psicológico. O mais indicado para evitar os excessos que a gula pode gerar é descobrir que situações o levam a cometê-los. Identificando as situações e lidando com cada uma delas, não há necessidade de suprir faltas com a comida. Como diz a música, “tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranqüilo.” *Os nomes foram trocados. | novembro/2008 | primeira impressão| 21