EDUCAÇÃO SUPERIOR INDÍGENA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS A PARTIR
DAS EXPERIÊNCIAS DOS ACADÊMICOS INDÍGENAS DA UCDB1
Luiz Henrique Eloy Amado2
Marta Regina Brostolin3
Resumo: O presente trabalho é resultado de pesquisa de Iniciação Cientifica – PIBIC, e
teve como ponto de partida a preocupação de como está ocorrendo à trajetória acadêmica
dos estudantes indígenas que estão inseridos na Universidade Católica Dom Bosco, visto
que, nos últimos anos, tornou-se notório a presença de indígenas nos espaços universitários.
A cada semestre, os acadêmicos têm ganhado visibilidade na academia se posicionando de
maneira firme em relação às questões relativas às suas comunidades. O acesso à graduação
pelos indígenas já faz parte do roteiro daqueles que estão cursando o ensino médio em suas
aldeias, o que faz aumentar a preocupação de como a universidade pode melhor contribuir
para a permanência destes a partir de experiências vividas pelos acadêmicos que hoje estão
inseridos na academia. Falar em educação superior indígena não é apenas se referir as
condições de acesso, ou seja, como o índio pode estar ingressando na universidade, a
preocupação agora é outra, é saber de que forma a universidade como instituição, os
funcionários, os docentes, os companheiros de classe e, até a própria comunidade, pode
estar contribuindo para a permanência desse indígena no ensino superior. Neste intuito, esta
investigação parte da experiência daqueles que estão na universidade com o propósito de
identificar e compreender como está se dando o diálogo intercultural entre o acadêmico
indígena e a universidade. Ademais, salientamos que, educação superior é um mecanismo
de fortalecimento das culturas e das identidades dos povos indígenas. A educação superior
permite a conquista da efetiva cidadania, pelo direito de acesso aos bens do mundo
contemporâneo, sem interveniência e sem intermediação de não índios.
Palavras-chave: Educação superior Indígena; Acadêmico Indígena; acesso e permanência;
Diálogo Intercultural.
Apoio: UCDB
1
Artigo elaborado no âmbito de Pesquisa de Iniciação Científica – PIBIC/UCDB. Ciclo 2010/2011.
Apresentado no IV Seminário Povos indígenas e sustentabilidade: saberes tradicionais e formação
acadêmica. 2011.
2
Indígena da Etnia Terena. Bacharel em direito pela UCDB. Integrante do Programa Rede de Saberes:
Permanência de indígenas no ensino superior. E-mail: [email protected]
3
Doutora em Desenvolvimento Local. Coordenadora local do Programa Rede de Saberes. Orientadora da
pesquisa. E-mail: [email protected]
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Vivemos em uma sociedade democrática que tem por definição a pluralidade, o
convívio e a interlocução na diversidade. O direito de participar nos espaços e processos
comuns de ensino e aprendizagem realizados pela escola está previsto na legislação, e as
políticas educacionais devem estar compatíveis com esses pressupostos que orientam para o
acesso pleno e condições de eqüidade no sistema de ensino.
A Constituição Federal (1988), quando adota como princípio a “igualdade de
condições para o acesso e permanência na escola”, compreendido como efetivação do
objetivo republicano de “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, prevê uma sociedade com escolas
abertas a todos, em qualquer etapa ou modalidade, bem como o acesso a níveis mais
elevados de ensino.
Desta forma, o que temos observados nos últimos anos é que vivemos numa
“Era Constitucional Compensatória”, em que o Estado brasileiro vem adotando medidas
nitidamente fraternais e solidárias. No que se refere aos Povos Indígenas o que podemos
observar é uma gama de reconhecimentos que conferem aos índios uma autonomia e,
conseqüentemente, um posicionamento mais firme por parte das comunidades indígenas em
suas relações com o Estado.
Nesse sentido, considerando que a educação é sem sombra de dúvida um dos
fundamentos para que uma sociedade se desenvolva e que tenha um mínimo de dignidade,
e que, nos últimos anos, muitos indígenas vêm conquistando espaços no ensino superior,
necessário se faz saber como está se dando essa nova vivência e/ou experiência por parte
dos acadêmicos índios que tiveram por base uma educação dentro de sua aldeia e um
processo ensino-aprendizagem próprio de sua cultura.
Importante ressaltar também que o ensino superior é direito de todos e que tal
direito se insere num movimento coletivo de mudança, que aponta para a adoção de
políticas públicas inclusivas, para a transformação dos sistemas educacionais e das práticas
sociais, que envolvem as relações com as famílias e a comunidade. Neste sentido, as
políticas educacionais devem prever a eliminação das barreiras à educação, tanto por parte
do Estado quanto por parte da universidade em si.
A presente investigação se pautou numa abordagem qualitativa, com
delineamento de estudo de caso. Inicialmente fizemos um levantamento investigando a
trajetória dos acadêmicos índios que estão na universidade e daqueles que já terminaram a
graduação utilizando como fonte documental o banco de dados do Programa Rede de
Saberes/NEPPI/UCDB. Depois, estudamos sobre ensino superior indígena e as políticas
inclusivas que visem à permanência de índios na universidade e se tais medidas estão sendo
adotados pela UCDB ou podem ser adotadas. Logo após, aplicamos questionários com o
intuito de buscar respostas que atinjam os objetivos da pesquisa, questionários que foram
aplicados junto a 12 acadêmicos índios; a Pró – reitora de extensão da universidade, ao qual
coordena setor de Apoio ao Estudante da instituição e algumas lideranças da comunidade
indígena da Aldeia Ipegue e Água Branca. Portanto, em sequência apresentaremos e
discutiremos alguns resultados neste trabalho que, com certeza, não exauri o assunto, mas
serve como contribuição para outras e maiores reflexões.
2. DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E DO ACESSO À UNIVERSIDADE
PELOS INDÍGENAS
A atual Carta Magna reconhece aos povos indígenas suas formas próprias de
organização, seus costumes, tradições e seus modos próprios de transmissão de
conhecimento. Esta gama de reconhecimento é fruto de uma evolução e conquistas de
direitos ao longo de cinco séculos, começando desde o período colonial. Conseqüência
disso foi o empoderamento e capacidade de apropriar-se dessa instituição chamada de
escola pelos povos indígenas, implementando novos elementos que vão de encontro com
seus usos, costumes e tradições. É neste sentido que é a afirmação de Guimarães e Villardi
(2010, p. 19):
A escola, historicamente, um espaço de imposição de valores e
assimilação da economia de mercado – devoradora de identidades –, a
partir dos direitos educacionais dos povos indígenas, passa a ser
reivindicada pelas comunidades indígenas como espaço de construção de
relações intersocietárias, baseadas na interculturalidade e na autonomia
política.
Segundo os autores a demanda ao ensino superior pelos povos indígenas tem
que ser vista a partir de três premissas: a) inserção dessa demanda em uma agenda de luta
pelos direitos indígenas; b) pluralidade de visões e de perspectivas que marcam o debate
sobre a implantação de ações afirmativas para comunidades indígenas nas universidades
públicas; c) necessidade de participação das comunidades a serem atendidas na formulação
das políticas de inclusão.
Desta forma, mais uma vez vemos o movimento indígena mobilizado em prol
da conquista de espaços no ensino superior que se deu justamente a partir dos relevantes
avanços do ensino básico. Por outro lado, essa multiplicidade de visões e identidades de
cada povo revela reflexões muito importantes no sentido de se abordar à melhor forma de
implantar as políticas públicas.
No entanto, ainda dentro do rol de desafios que o poder público terá que
enfrentar, será como implementar políticas públicas que atendam as especificidades de
diversos povos e, ao mesmo tempo, mantém intacta a autonomia destes. É neste sentido a
preocupação da participação da comunidade que será atendida por tais medidas de inclusão.
A Universidade Católica Dom Bosco já tem um tradicional trabalho
desenvolvido junto às populações indígenas e, no campo da educação, esses laços se
estreitam. Atualmente, a instituição adota uma política de concessão de bolsas sociais
parciais para os índios que estão incluídos em seu corpo discente, mas, esta demanda,
começou em cursos voltados para a formação de professores que, se olharmos para o
histórico da educação superior indígena no Estado de Mato Grosso do Sul, foram os cursos
que deram o ponta pé inicial no que diz respeito ao acesso no ensino superior pelos povos
indígenas.
3. POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS
Já dizia Flávia Piovesan (2002, p. 93) que ações afirmativas são medidas que
buscam a igualdade. No entanto, em relação à educação superior indígena, essas medidas
devem se pautar na autonomia dos povos indígenas e na pluralidade de povos que têm suas
pedagogias próprias e cosmovisões. Hoffmann (2005, p. 02), aponta como decorrência da
implementação de ações afirmativas voltados para os povos indígenas no Brasil o seguinte:
a. determinações constitucionais voltadas à garantia do exercício de
direitos culturais diferenciados aos povos indígenas.
b. políticas de ação afirmativa implantadas no país na virada do milênio,
em meio às quais se situam, de um lado, a perspectiva de criar
alternativas econômicas e sociais para a garantia dos projetos políticos
coletivos destes povos, e, de outro, as demandas por ascensão social e
carreira individual, ambas vistas como justificativas igualmente
legítimas para a invocação de direitos diferenciados.
Não há dúvida que a inovação constitucional que trouxe a Carta Magna de 1988
refletiu também na educação e, agora segue seu ritmo chegando ao ensino superior.
Primeiro porque se reconheceu a educação específica e diferenciada na educação básica,
conseqüência disso foi à exigência de formação de professores indígenas para atuar nessas
escolas. Depois veio corroborando as políticas de cotas para indígenas adentrarem nas
universidades e terem acesso ao ensino superior.
Como bem aponta Guimarães e Villardi (2010, p. 41), o debate sobre ações
afirmativas para os povos indígenas traz à cena duas novas questões, vejamos:
A primeira diz respeito ao objetivo da educação superior para indígenas.
Tal questão se articula à imensa gama de problemas a serem enfrentados
por indígenas que decidem fazer frente ao desafio de se diplomarem. A
segunda delas diz respeito à natureza do conhecimento não indígena,
distinto, em seus meios e suas formas de produção e de transmissão, dos
conhecimentos inerentes às culturas indígenas.
Assim nos deparamos com a seguinte situação, será que o índio que deixa sua
comunidade e vem para a cidade se “diplomar” deixa de ser índio? É justamente essa
questão que iremos nos deparar no decorrer desse trabalho, para tanto, vamos defender o
que desde o início estamos seguindo, no sentido de que o indígena nessa trajetória possui
uma “identidade cultural somática”, pois desde o momento que começa a estudar lá na
escola indígena de sua comunidade, já vem adquirindo esse somatório de elementos que
não são próprios de sua cultura, mas que dizem respeito a esta instituição ocidental
chamada escola. E, na universidade e fora de sua comunidade, esses elementos vão se
multiplicando, alguns sendo descartados e outros sendo agregados ao seu modo de ver o
mundo, mas em nenhum momento ele deixou de ser aquele índio que veio em busca do seu
“diploma”, mesmo que sua presença passe despercebida dentro da universidade.
Outro ponto fundamental que iremos nos deparar é o que fazer com o
conhecimento tradicional que o indígena aprendeu em sua comunidade frente aos novos
conhecimentos adquiridos na academia, os chamados conhecimentos científicos. Será que
um sobrepõe o outro? Ou, será que o conhecimento tradicional não é mais válido? São
essas as questões dentre outras que vêem a tona quando do ingresso do indígena no ensino
superior que iremos tratar mais adiante. O que se deve frisar é que as ações afirmativas para
os povos indígenas demandam reflexões complexas frente a essa diversidade de povos e
modos de ver de cada um.
4. O ÍNDIO E A UNIVERSIDADE
A participação indígena cria condições para o estabelecimento do diálogo
intercultural entre representantes indígenas e gestores públicos. Cada povo tem sua
organização própria, pedagogia própria, costumes e tradições, lideranças e modos de
resolver seus conflitos; assim não pode o Estado implementar uma política única que visa
atender todos esses povos. Para tanto, terá que se valer de um diálogo intercultural que
poderá ser realizado por meio da participação indígena na universidade e, até mesmo,
através daqueles que já concluíram, visto que na sua trajetória tiveram que se “balancear”
entre o conhecimento tradicional e o científico; entre a cidade e a comunidade; entre seu
modo de ser e o modo de ser dos seus companheiros de sala; entre suas realizações pessoais
e os anseios de sua comunidade. São inúmeros os desafios que o indígena que quer se
“diplomar” terá que enfrentar, não apenas de ordem econômica, mas também social,
lingüística, religiosa, política, cultural, identitária, etc.
Neste ponto, importante trazer as ponderações de Araújo(2008, p. 99). Segundo
esta autora, os grupos sociais possuem regras, idéias e elaboram informações próprias ao
longo da sua história e sob o reflexo das diferentes relações que estabelecem. Nesse
processo, sua identidade se constrói, dando-lhe especificidade. Entretanto, quando os
elementos da identidade coletiva são questionados ou subestimados, um novo processo tem
início: o surgimento das representações sociais. E quanto ao acadêmico indígena à
universidade será o espaço que ele utilizará ou pelo menos tentará utilizar, conforme o seu
jeito, para poder desenvolver e sustentar os saberes sobre si próprio e sobre seu povo.
Para Moscovi (1978, p. 35), as representações sociais é uma “resposta do grupo
às intervenções externas que põem em perigo sua identidade coletiva”, e são essas respostas
que o acadêmico indígena tem dado quando do ingresso na academia. É um
empoderamento de novas técnicas na busca de efetivação dos direitos de seu povo. Não
muito raro vemos lideranças indígenas de diferentes etnias e diferentes regiões utilizarem
em seus discursos a seguinte frase: “nossa arma hoje não é o arco e flecha, e sim a caneta”.
Porque vêem justamente esses acadêmicos como uma nova casta dentro da organização
indígena.
A pesquisa que empenhamos na UCDB trouxe dados muito interessantes no
sentido de contribuir na busca de algumas respostas e, até mesmo, constatações.
Primeiramente, convêm salientar que a Universidade Católica Dom Bosco é uma instituição
particular de ensino superior de Mato Grosso do Sul, sem fins lucrativos e que há muito já
desenvolve um trabalho junto aos povos indígenas. A instituição possui atualmente cerca de
52 acadêmicos indígenas distribuídos em vários cursos: direito, pedagogia, biologia,
educação física, engenharias, filosofia, designer, história etc. A etnia predominante é a
Terena. Mas a informação que devemos levar em conta é que os acadêmicos da UCDB em
sua maioria são oriundos de comunidades próximos a Campo Grande, no entanto, há
também acadêmicos que já vivem na cidade, pois já tem seus parentes vivendo no
município de Campo Grande.
De início, o que percebemos é que o índio quando entra na universidade não
abandona os laços que têm com sua comunidade de origem, pelo contrário, procura manter
um vínculo maior com seus familiares. Essa atitude percebemos também com relação
àqueles que já vivem na cidade, pois a partir do momento que entram na academia,
procuram reavivar os laços com sua comunidade ou de seus pais. Esta constatação pode ser
observada quando olhamos os trabalhos de conclusão de curso desses acadêmicos, dos
entrevistados, foi unânime o tema que envolve direta e indiretamente a questão indígena.
Ademais, há uma preocupação de conhecer a história de seu povo e uma procura dos
elementos que marcam a presença indígena em variados espaços da universidade.
Sem sombra de dúvida, a principal dificuldade que os estudantes índios
enfrentam na cidade é a de ordem financeira, não há por parte do poder público uma
política que o apóie e garanta a sua permanência na universidade. Já consignamos que o
acesso ao ensino superior se deu justamente a partir de direitos e reconhecimentos
aplicados no ensino básico e, consequência disso é o aumento pelo acesso ensino superior.
Entretanto, não são apenas problemas econômicos que estes acadêmicos enfrentam, são
várias as barreiras que eles têm que quebrar.
Neste sentido Guimarães e Villardi (2010, p. 45):
O grande desafio que se apresenta às instituições brasileiras é como
viabilizar o acesso de estudantes indígenas à educação superior. A
conclusão do ensino médio já é, em si, uma conquista obtida com grande
sacrifício pelos jovens e suas famílias. Além das questões de ordem
econômica [...]. Estudantes indígenas enfrentam, nas escolas,
discriminação e preconceito. Estudantes indígenas enfrentam o despreparo
até mesmo de gestores e docentes das escolas, regulares ou supletivas, nas
quais o direito à diferença é simplesmente ignorado.
Numa leitura da Constituição Federal de 1988, passamos os olhos no artigo que
prevê a garantia do uso da língua materna quando do ensino fundamental das escolas
indígenas. Podemos imaginar o acadêmico que teve sua educação básica dentro de sua
comunidade, assim como a maioria de nossos entrevistados; enfrentando todos os
obstáculos e vivenciando toda a falta de infra-estrutura de uma escola pública e, quando
ingressa na UCDB, lhe é imposto e cobrado uma postura, ignorando toda a sua vivência
dentro de sua comunidade. Ora, se lhe é permitido ter uma educação de base de acordo com
a pedagogia própria de seu povo, o que fazer quando o mesmo entra na academia e lhe é
cobrado como se tivesse sempre estudado na cidade? Como fica aquele que teve seu ensino
na língua materna e, lhe é cobrado o domínio da língua portuguesa, sendo que nem mesmo
aquele que tem toda a sua formação a domina. São questões que não podem ser deixadas de
fora nessa reflexão.
Outra questão é a relação desses acadêmicos com os funcionários da instituição
de ensino, como também o transitar pelos diversos ambientes da universidade. Pois de uma
forma ou de outra, esses espaços são diferentes de todos os ambientes que eles já tinham
passado, e o impacto é maior em relação aqueles que pela primeira vez saem de sua aldeia.
Pois bem, nessa interação em que participam todos os funcionários da instituição, podemos
voltar nossa atenção ao professor, pois este terá um contato mais assíduo com o acadêmico
indígena e, nessa relação, o profissional deverá atentar para as especificidades desse
indígena no que diz respeito ao processo de aprendizagem, respeitando o seu modo de ver o
universo que está posto para esse indígena. Em nossa pesquisa, foi inquirido há quem o
acadêmico pede ajuda quando se encontra diante de certas dificuldades no que diz respeito
aos conteúdos lecionados em sala de aula. E, o resultado foi que o acadêmico se fecha em
suas dificuldades, não procurando auxílio nem junto ao professor e nem buscando outras
alternativas, sejam elas, buscando auxílio junto a um colega ou até mesmo se socorrendo
junto aos livros da biblioteca. Pois bem, diante de tal situação temos que nos posicionar no
sentido de que os acadêmicos indígenas necessitam sim de uma atenção especial, mas por
outro lado, o profissional da mesma forma precisa se pautar numa conduta de
reconhecimento dessa monitoria,
sabendo respeitar todas essas especificidades dos
indígenas, para assim, juntos, caminharem para um desenvolvimento harmonioso do
processo ensino aprendizagem. Só assim, poderemos então estar reconhecendo as
diferenças presentes em nossa sociedade e, ao mesmo tempo, demonstrando maturidade na
condução dos processos sociais.
5. O PROGRAMA REDE DE SABERES
O Programa Rede de Saberes: Permanência de Indígenas no Ensino Superior,
teve início no ano de 2006 e, desde então, é financiado pela Fundação Ford. Desenvolve
suas atividades na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), na Universidade Estadual
de Mato Grosso do Sul (UEMS), e conta também com a participação das Universidades
Federais, de Mato Grosso do Sul (UFMS/Campus de Aquidauana), e da Grande Dourados
(UFGD). Outras IES do estado de Mato Grosso do Sul têm a oportunidade de ter seus
acadêmicos indígenas inseridos em todas as atividades realizadas pelo Programa Rede de
Saberes. Com esta estrutura o programa atinge quase a totalidade dos acadêmicos indígenas
de Mato Grosso do Sul. Seu objetivo é promover ações de apoio aos alunos indígenas em
sua trajetória acadêmica nas universidades de todo o estado. O Programa também apoia o
fortalecimento da articulação entre os acadêmicos índios das diversas Instituições de
Ensino Superior (IES) e dessas com suas comunidades, lideranças e organizações. Busca
também, novas alternativas para os acadêmicos egressos, tendo em vista a sua inserção
profissional no contexto regional.
O Estado de Mato Grosso do Sul possui uma das mais significativas populações
indígenas do país, cerca de 60 mil pessoas. Sua realidade apresenta duas características
relevantes: a perda territorial e correspondente confinamento em terras indígenas reduzidas,
com os recursos naturais profundamente comprometidos e a intensa inserção no entorno
regional, com ênfase nos espaços urbanos. Nesse contexto, essas populações vêm buscando
de forma crescente, o acesso ao ensino escolar básico e, mais recentemente, às
universidades, como novos espaços de relevância estratégica na busca por maior
autonomia. Aproximadamente 800 acadêmicos estão atualmente cursando o ensino superior
na UCDB, UEMS. UFGD e UFMS, campus de Aquidauana e estão sendo potencialmente
beneficiados pelo Programa Rede de Saberes.
O Programa Rede de Saberes surgiu num momento em que o acesso ao ensino
superior pelos índios estava numa fase de expansão inicial, foi logo após a Lei Estadual nº.
2.589, de 26 de dezembro de 2.002 que criou a reserva de cotas na Universidade Estadual
de Mato Grosso do Sul e a UCDB tinha um número considerável de acadêmicos indígenas
em seu corpo discente. Entretanto, havia um problema a ser enfrentado, se por um lado era
grande a demanda de acesso a universidade, por outro lado havia uma evasão muito grande,
pois não existia nenhuma ação que apoiasse esses acadêmicos por parte do governo como
até hoje não existe.
Desta feita, o que aparentemente parecia estar resolvido diante da conquista
pelos indígenas do ensino, acabou sendo o ponto inicial para questionamentos e reflexões
sobre a permanência de índios no ensino superior, tendo como agravante a não
possibilidade de concessão de bolsas pelo Programa Rede de Saberes. Ou seja, como fazer
para que os mesmos, diante de tantas dificuldades, pudessem avançar academicamente se
empoderando dos instrumentos ali postos e, superando ao mesmo tempo, todas as
dificuldades financeiras e outras demandas de ordem social, cultural e política. Esta foi a
linha de raciocínio que direcionou as ações do programa, tendo como preocupação inicial
detectar as causas de evasão e apoiar e dimimuir o índice de índios evadidos das
universidades.
Foi por meio de diversas ações coletivas que o Programa Rede de Saberes
conseguiu dar uma visibilidade para esses acadêmicos, criando espaços e momentos em que
estes pudessem se encontrar e debater as questões atinentes ao seu povo. Não só isso,
possibilitou aos mesmos adquirirem autonomia e valorização no sentido de serem os
prioritários a falar e opinar sobre seu povo. Foi neste âmbito de articulações que
percebemos o tradicional e o inovador, pois possibilitou ao individuo buscar e modificar o
seu mundo ou seu “universo social” e, ao mesmo tempo, contribuir para o bem-estar social
coletivo que, neste caso, são as comunidades de origem e, em geral, os povos indígenas.
6. O ACADÊMICO INDÍGENA E SUA COMUNIDADE
Podemos nos apegar as palavras de Pacheco (2007, p. 13), frisando que às
sociedades indígenas e sua relação com esse novo momento, no decorrer do processo
histórico, tem mostrado que sua resistência não está centrada na possibilidade de
absorverem ou não elementos de outras culturas, mas sim na forma como estes elementos
podem ser rearticulados positivamente. Com efeito, dentro das universidades, o que tem
sido a preocupação desses acadêmicos é a “devolutiva” que eles darão para sua comunidade
de origem. É grande as expectativas em relação a esses acadêmicos por parte de sua
comunidade, incluíndo aí seus familiares, as lideranças de sua aldeia e todos aqueles que
fizeram parte de sua trajetória até chegar ao ensino superior. Embutido nesta devolutiva,
está a elaboração de projetos que tendem a buscar melhorias nas diversas áreas de
conhecimento. Na área de educação, estes projetos já estão bem avançados, principalmente
no tocante a educação diferenciada indígena, na constante busca de afirmação da identidade
étnica e também na elaboração de propostas que visem preservar a memória dos povos
indígenas. Já na área do Direito, a cobrança é muito maior visto que aí encaixam
problemáticas relacionadas ao território e também a constante busca de espaços e
oportunidades no setor público.
Por ocasião da oficina de Direito Indigenista4 realizado em comunidade Terena,
umas das ações dos acadêmicos de Direito com apoio do Programa, deixou muito claro a
diferença entre direito indigenista e direito indígena. Sendo a primeira o conjunto de leis
que regulam e tratam da temática indígena, e a segunda o conjunto de instituições próprias
da comunidade indígena, tais como a resolução de conflitos segundo o próprio costume da
comunidade. Ter essa noção é de fundamental importância visto que antes de chegar em
uma comunidade e demonstrar a gama de direitos que eles tem assegurado, é muito mais
importante frisar que estes não se sobrepõem sobre as suas formas de organização.
Outro ponto é, antes de opinar sobre determinado assunto à luz da legislação
que aprendemos na universidade, é necessário saber primeiramente se a comunidade tem
um meio próprio de resolver ou encarar determinada situação. Em segundo lugar, o
acadêmico tem que ter a preocupação de não criar conflitos dentro da comunidade, visto
que é uma realidade nova dentro da aldeia, pois se olharmos para a historia dos povos
indígenas, o cacique sempre foi quem conduzia a comunidade, ele era o detentor do
conhecimento que a comunidade necessitava.
Agora chega um jovem que estudou na cidade, trazendo novos conhecimentos e
sendo valorizados pela comunidade. É normal que a princípio isto traga uma estranheza,
visto que tudo isto é novo tanto para o cacique quanto para a comunidade. O acadêmico
deve estar preparado para eventuais conflitos e saber contornar estas situações, sempre
tendo os olhos voltados para o bem da comunidade e, ao mesmo tempo, posicionando-se de
4
Oficina de direito indigenista constitui uma iniciativa dos acadêmicos indígenas do curso de direito da
UCDB, apoiado pelo Programa Rede de Saberes. Faz parte da segunda etapa de uma ação que começou em
2007, com a realização de um curso de extensão sobre direitos indígenas voltado para acadêmicos do curso de
direito, tendo em vista que a legislação especifica voltada para os povos indígenas não são contemplados na
grade dos cursos de graduação de direito. Assim, foi realizado este curso de extensão primeiramente para os
acadêmicos e, depois, como uma continuação daquele, concretizou-se uma ação inédita, qual seja, acadêmicos
índios ministrando um curso de direito para seu próprio povo.
maneira imparcial quanto aos conflitos internos existentes. Por fim, constatamos por meio
das falas de acadêmicos que tentaram desenvolver projetos em suas comunidades que não é
cem por cento das comunidades que valorizão o trabalho que o acadêmico quer
desenvolver.
Embora algumas lideranças se manifestem dando apoio a essas iniciativas,
parece-nos que há certa resistência e tal atitude não é condenável. Se voltarmos para a
história, veremos que a comunidade indígena sempre foi alvo desse tipo de ações e que o
principal desafio dos acadêmicos indígenas será quebrar esse “gelo” que ainda existe e que
surge como sendo uma nova “casta social” que está se formando dentro da organização
social da comunidade indígena.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para finalizar, devemos ter em mente que no Brasil existem mais de 225 povos
indígenas que, cultural e linguisticamente, representam uma magnífica soma de
experiências históricas e sociais diversificadas, de elaborados saberes e criações, de arte, de
música, de conhecimentos, de filosofias originais, construídos ao longo dos tempos.
Ademais, cada povo possui uma pedagogia própria que é reconhecida e tem assento
constitucional, é a chamada “pedagogia indígena”, que nada mais é do que o
reconhecimento dos processos próprios de aprendizagem que deriva do conhecimento das
diferentes formas de organização social dos povos indígenas. Outro ponto, é a
autodeterminação das comunidades indígenas, que é outra ideia que conceitua o campo da
educação escolar indígena e está intimamente ligada a ascenção ao ensino superior.
Quanto a universidade, a instituição deve não só buscar mecanismos para
amparar os estudantes indígenas financeiramente, mas oferecer a eles os meios para que
possam cumprir a trajetória acadêmica com sucesso. Isso significa se dispor a aprender com
eles, trocando experiências, pondo em prática o diálogo intercultural e, principalmente,
sempre estar disposta a fazer mudanças. Para isso, é indispensável que a instituição conte
com um programa estruturado de acompanhamento, que deve não apenas investir no
reforço da aprendizagem e no apoio financeiro, mas envolver toda a comunidade
acadêmica.
Por fim, tentando completar a reflexão sobre o acesso de indígenas à
universidade, devemos levar em conta que junto com este debate veio a tona a
compensação pelos danos históricos que os povos indígenas sofreram desde a colonização.
E, sobretudo, não podemos deixar de refletir sobre as dicotomias: saberes indígenas ou
tradicionais e saberes científicos ou ciência ocidental, que a partir da trajetória dos
acadêmicos indígenas poderemos aprimorar e aprofundar sobre o assunto.
Finalizando, educação superior é um mecanismo de fortalecimento das culturas
e das identidades dos povos indígenas. A educação superior permite a conquista da efetiva
cidadania, pelo direito de acesso aos bens do mundo contemporâneo, sem interveniência e
sem intermediação de não índios. Isso significa que a partir disso se formarão profissionais
que sejam no mínimo capazes de articular os conhecimentos provenientes, por um lado, das
tradições de seus povos, por outro, da tradição ocidental e, ao mesmo tempo, dará ao país a
oportunidade de quebrar a visão estereotipada que uma parcela significativa da população
brasileira ainda guarda sobre os índios.
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Luiz Henrique Eloy Amado