Luiz Henrique Mignone- Era Agostiniana
Cinquenta anos se passaram, mas ainda bem me lembro de meu primeiro contato com o Colégio de Muqui – foi em
uma manhã de inverno dos idos de 1956, final de julho, início de agosto, com meu pai conduzindo-me, de
caminhonete, através da estrada que interliga Mimoso a Muqui. Fazia frio e eu ali, entre ele e o motorista, triste,
acabrunhado, temeroso do meu fim.
Lembro-me ainda de que, ao passar pela fazenda Santa Marta, que bem conhecia de minhas andanças de moleque,
caçando passarinhos, deu-me uma vontade enorme de parar o carro, saltar, fugir, porém julguei mais
apropriado que eu o fizesse quando chegasse ao bambuzal mais adiante, pois lá não teriam condições de me
encontrar – pularia do carro ainda em movimento, me embrenharia por entre os pés de bambu e pronto. Contudo,
talvez justamente prevendo que eu o fizesse, meu pai colocara-se à porta do veículo, impedindo-me.
Em minhas lembranças, sinceramente não me ocorrem os motivos pelo qual estava sendo assim penalizado, sendo
conduzido para o degredo, sendo extraditado e banido do convívio familiar, para longe de meus pais e irmãos,
dos amigos de infância, de meu habitat; certamente por alguma que aprontara, menino irrequieto, adrenalina pura
e concentrada em um pitoco de gente – sempre fui meio “esmirrado”, menor que meus companheiros, ao menos
durante a infância, talvez até mesmo por, tendo nascido em novembro, meus amigos serem alguns meses mais
velhos, o que me tornava sempre o menor da turma, porém, tenho que ressaltar, o mais folgado.
Ainda vejo meu pai, de pé a minha frente, ameaçador, no dia anterior, ao definir que eu iria para Muqui, para o
internato, para fazer a “admissão ao ginásio”. Naquela época não tinha esta moleza de hoje de se concluir o
primário e ingressar direto no curso ginasial (nem mesmo sei se são estes os nomes que se usam hoje) – tinha-se
que ralar, estudar pra caramba e, se não fosse aprovado, tinha que se “repetir o ano”, até ver-se aprovado.
Chegando a Muqui, fui conduzido até Frei Gastão, Diretor do Colégio. Lembro-me ainda de nosso primeiro contato,
ele alto, magro, circunspecto em sua batina cinza; não sei o que conversaram, estava sentado a uma distância
que não me permitia ouvi-los, porém, pelos olhares que Frei Gastão me dirigia, de vez em quando, sei que não era
boa coisa. Creio que meu pai deu a ficha completa, contou todos os motivos pelos quais estava sendo ali
encarcerado, porém, posso afirmar, grande parte de sua aversão era fantasiosa, não correspondia a minha versão
dos fatos.
Após, fui conduzido pelo Monitor, que me mostrou os diversos setores do Colégio – salas de aula, salão-nobre, sala
de estudos, dormitório e refeitório – onde, daquele dia em diante, seria prisioneiro, não sei porquanto tempo.
Felizmente, único consolo, ali ainda existiam o Gilberto e o Gualberto Pedrini, primos de meus primos, pessoas
amigas que seriam minhas referências e guardiões da mesada a mim destinada, a eles confiada e que
gastava comprando sanduíches de doce de mamão na cantina do colégio, ali mesmo, na guarita.
Gilberto Pedrini – o Alemão – era um italiano enorme, forte pra burro, sorriso sempre postado em seu rosto amigo,
presidente do Grêmio e goleiro do time de futebol. Com tais referências, além de sua indizível e constante simpatia,
estimado, respeitado e admirado por todos, era meu guardião e protetor das “feras” que ali se encontravam, à
espreita. Gualberto – o Chapada – seu irmão, não ficava muito atrás: italianão forte, grande
camarada como o sabem ser estes garotos simples de interior, era mais respeitado por ser irmão do Alemão do que
por seus próprios atributos. Com suas apresentações, logrei obter um pouco de respeito, apesar do apelido que
me imputaram logo no primeiro dia – Zé Minhoca - pois era primo do Alemão, livrando-me de muitas merecidas
surras – já lhes falei, eu era muito folgado.
O prédio principal era dividido em três partes, interligadas por uma escadaria central - sala de estudos, refeitório e
dormitórios. No térreo, à esquerda, a sala de estudos, onde devíamos comparecer em duas ou mais ocasiões
diárias, para obviamente estudarmos as matérias que nos tinham sido dadas durante o dia. À noite, antes de
dormir, éramos obrigados a frequenta-la, mesmo que mortos de sono e despertados sempre pelos doloridos
petelecos na orelha que nos aplicava o Irmão Rui, quando flagrados dormindo – somente quem levou um de seus
petelecos pode avaliar seus efeitos para manter-nos acordados.
Defronte, o refeitório, onde, após as devidas preces, saboreávamos o melhor tutu de feijão que já comi em toda
minha vida, elaborado com esmero pelo Nelson, acompanhado de arroz, linguiça frita e farofa. Muitas vezes, deixei
de comer as linguiças para, sorrateiramente, após a sessão de estudos noturna, amarrá-la com arame na corda do
sino que ficava defronte à sala, e ir deitar-me assim, como quem não quer nada, deixando que os cães vadios que
sempre vinham à noite terminassem de fazer o serviço. E morria de rir quando, já madrugada, todo o colégio era
acordado pelo soar insistente do sino, padres correndo ainda em suas vestes de dormir, todos os alunos às janelas
e nada, o pátio deserto, sem que aparentemente alguém o houvesse tocado, já que os cães se evadiam com o
barulho – certamente obra dos fantasmas que, diziam, ali habitavam.
No dormitório dos menores, à direita do prédio – à esquerda ficava o dos maiores e ao centro o dos médios enorme, com cerca de 100 outras, ocupava a quinta cama da segunda fileira, estrategicamente colocada defronte
à porta do banheiro, cama esta sempre mantida impecável, com lençol e fronha esticadinhos, sem rugas e o
cobertor dobrado aos pés. O piso era de madeira corrida e divertíamo-nos jogando bolas de gude no assoalho, à
noite, após o toque de recolher, ouvindo-as correndo e fazendo barulho que ecoava no grande salão, para
desespero de nosso Monitor, que não sabia quem as jogara e que, por não saber a quem culpar, colocava todos de
castigo, de pé ao lado da cama, sem podermos dormir.
Ali, tive os primeiros contatos com estes Mestres que consolidaram a reputação do Colégio e que tornaram tão
digna e nobre a profissão, pessoas que viram que seus misteres não eram somente os de transmitirem cultura,
conhecimentos, mas, sim, o de transmitir-nos algo indelével em nossos corações e mentes – Professores Humberto
Capai, Venâncio, Pastor Bernardes, Nize, Terezinha, Agostinho e Alcindo Paraguaçu e tantos outros, expoentes e
luminares de uma era grandiosa.
E, com o tempo passando, ocupado em construir represas e moinhos utilizando talos de mamoeiros no pequeno
regato que descia da parte superior em direção ao nível da piscina, em roubar bombas, pólvora e rojões da
fábrica logo acima do Colégio para enfrentar a turma brava da Boa Esperança, que detestava os internos do
Colégio, em assaltar ninhos de urubu com Chico Guiço, as brigas com travesseiro, as tardes de finais de semana
em que descíamos até a cidade, para as paqueras na praça e irmos ao cinema, assim chegamos a novembro, mês
de meu aniversário, ocasião em que recebi a visita de meus pais, que quase não me reconheceram, de tão sujo,
após quatro meses de pouquíssimos banhos nas gélidas águas dos chuveiros e sim, tão somente, alguns
esporádicos na piscina, agora finalmente cheia.
E, com o ano terminando, finalmente aprovado, em noite de gala, eis-me conduzido de braços dados com uma
normalista para a festa de formatura, no salão-nobre do Grêmio, apoteótico final para este pequeno período em
que vivi em Muqui, esta simpática e acolhedora cidade, tão próxima, tão distante, porém guardada eternamente em
minhas mais doces e queridas lembranças.
LHMignone
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