MARCELO FERREIRA UNS DIAS PASSADOS EM JERUSALÉM 2014 © Marcelo Ferreira da Silva Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) SILVA, Marcelo F. Uns dias passados em Jerusalém. Rio de Janeiro: Contextualizar, 2014. 146 p. Gerência editorial e de produção | Editora Contextualizar Capa | Deivinson Bignon Diagramação | Arte Lume 1ª edição: Junho/2014 É proibida a reprodução total ou parcial do texto deste livro por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos etc), a não ser em citações breves, com indicação da fonte bibliográfica. Este livro está de acordo com as mudanças propostas pelo novo Acordo Ortográfico, em vigor desde janeiro de 2009. Apoio cultural: Contatos www.contextualizar.com.br [email protected] Rua Antônio Gonçalves, 21 – Porto Velho São Gonçalo – RJ CEP: 24430-130 UNS DIAS PASSADOS EM JERUSALÉM | 5 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO | 7 A EXPERIÊNCIA | 9 O BOM SAMARITANO | 11 POR DENTRO DA HISTÓRIA | 19 TAMBORES E CÍMBALOS | 23 AH, O TEMPLO DE JERUSALÉM | 27 DIA DE DESCANSO | 41 SOBRENATURAL | 53 OS MAGOS DA CALDEIA | 55 PASSEIO EM JERUSALÉM | 65 PESCADORES DO TIBERÍADES | 69 DIA DE FEIRA | 77 O BOM GOSTO DE HERODES | 85 O TEIMOSO | 93 PERIGO | 95 “O NAZARENO ENLOUQUECEU” | 99 DISCÍPULO DE HIPÓCRATES | 103 O MURO DAS LAMENTAÇÕES | 107 VIA-CRÚCIS | 117 A CRUCIFICAÇÃO | 119 A TEMPESTADE | 127 ATO DE MISERICÓRDIA | 131 “NO NOVO TEMPO, APESAR DOS PERIGOS” | 139 SOBRE O AUTOR | 141 6 | MARCELO FERREIRA UNS DIAS PASSADOS EM JERUSALÉM | 7 APRESENTAÇÃO N a apresentação do seu livro Com a graça de Deus, Fernando Sabino fala de sua intenção ao escrevê-lo. A obra falaria do mesmo Jesus dos evangelhos, no qual o mineiro acreditava, mas numa abordagem diferente, nem por isso herética. O Cristo de Com a graça de Deus seria bem-humorado, humor aqui tomado em seu significado mais extenso. Fernando Sabino parece se desculpar ao escrever: “Corro o risco de algum leitor pensar em humorismo — uma acepção restrita da palavra humor, que ignora o sentido genérico de índole, estado de espírito, disposição de ânimo, temperamento. Eu quase diria, brasileiramente: inspirada no jeito de Jesus. Ele tinha muito espírito, como se costuma dizer”. Penso correr risco semelhante — o de ser mal interpretado. A figura do Nazareno sempre me fascinou e ainda fascina. Sei que nem todos compartilham da mesma admiração e isso é compreensível. Mas não tenho aqui, em princípio, intuito de convencer ninguém a mudar de opinião. Mais do que Uns dias passados em Jerusalém, os quatro evangelhos bíblicos, certamente, dão mais esclarecimentos sobre a vida de Jesus. Se o livro de Fernando Sabino foi inspirado no humor de Cristo, no meu tento fazer menção ao Jesus que de fato esteve aqui, no planeta Terra, que fez parte da História humana. Claro, o livro é uma ficção, mas fruto de pesquisas em obras que fazem 8 | MARCELO FERREIRA referência ao personagem central e à vida e alguns costumes de sua época, além das consultas aos evangelhos. Por fim, a história é uma aventura tupiniquim — pelo menos, foi essa a tentativa. Seu Olavo e Lino, avô e neto, é que fazem a viagem à Jerusalém dos tempos de Cristo. São dois conterrâneos nossos que ficam admirados com tudo o que presenciam. Em tom de desculpas, peço a compreensão para as licenças poéticas próprias de toda ficção. Nelas se baseiam toda e qualquer criação (verbais e não verbais). Uma delas, desde já, adianto: a de meus viajantes falarem espontaneamente com os personagens daquele tempo e lugar. Encarem como um milagre de minha criação. O autor. UNS DIAS PASSADOS EM JERUSALÉM | 9 A EXPERIÊNCIA E ra num sótão. Um ancião, em gestos frenéticos, manuseava um notebook. Ao seu lado, um pouco apreensivo, um menino. Chamava a atenção o modo como estavam vestidos. Parecia até que iam a um baile à fantasia. Quem, num primeiro instante, quisesse encontrar lógica naquela cena se contentaria com o insólito. Realmente havia algo de estranho acontecendo ali, ou por acontecer. — Preparado, Lino? — o silêncio foi quebrado. — Acho que sim, vô — o menino respondeu num fio de voz. Lino sabia das muitas experiências que o avô realizava naquele lugar. Que ali era uma espécie de laboratório dele. Mas aquela nova experiência estava amedrontando o pequeno. Embora pensasse assim, não queria admitir isso, com receio de decepcionar o avô. Fez, então, um sinal de OK para seu Olavo. Apesar da apreensão, o menino teve vontade de rir das engraçadas roupas que estavam usando. — Então, lá vamos nós — seu Olavo correspondeu ao sinal, satisfeito. Digitou umas teclas. Transcorreram alguns segundos, para os nossos amigos, uma eternidade. Avô e neto começaram a sentir um formigamento pelo corpo. Surgiram umas faíscas elétricas errando em 10 | MARCELO FERREIRA volta deles. Num último instante, as faíscas deram lugar a pequenas bolas luminosas. Seu Olavo abraçou o neto. Ficaram semelhantes a um núcleo atômico. Depois, um astro de luz própria. Não demorou muito, e um estrondo pôde ser ouvido. Os dois desapareceram. UNS DIAS PASSADOS EM JERUSALÉM | 11 O BOM SAMARITANO E nvolvidos nas brumas de um sonho, era essa a sensação que os dois tinham. Incrivelmente não estavam mais no sótão-laboratório de casa. Lino se ouviu perguntar: — Onde estamos? Seu Olavo, olhos vidrados, procurava processar tudo o que via naquele momento. Era inacreditável. Finalmente respondeu: — Pelos dados que digitei, e mais ainda pelo que estamos vendo, a experiência foi um sucesso. Agora, avô e neto, extasiados, contemplavam um novo cenário, do alto de um monte: um vale tomado por tendas. Entre elas, uma multidão se espremia. Um pouco mais além, podia-se ver um grande muro que envolvia uma cidade. — Conseguimos, Lino! — o ancião era só alegria. — Estamos às portas de Jerusalém. E, certamente, as pessoas naquelas tendas são os inúmeros peregrinos que vêm visitá-la por ocasião de alguma festa. Sem pensar muito, trazendo o neto a reboque, seu Olavo começou a descer o monte, indo de encontro à multidão. Lino, mesmo à distância, havia reparado como todos estavam vestidos. Foi então que entendeu por que ele e o avô usavam aquelas vestimentas que mais pareciam roupa de mulher. Todos, homens e mulheres, usavam algo semelhante. 12 | MARCELO FERREIRA — Eles se vestem como a gente! — Na realidade, Lino, nós é que estamos vestidos como eles. Esse é o traje da época, as túnicas. Uns usam túnicas verdes; outros, vermelhas. Existem até umas listradas como a daquele homem conversando à entrada de sua tenda, rodeado pelos amigos. O referido homem parecia estar envolvido numa dramatização, narrando uma história aos seus hipnotizados ouvintes. Levantava as mãos aos céus, colocava-as nas barbas como que aflito. Depois, tomado de alegria, passou a pular e cantar, sendo acompanhado pelos amigos. Era um nato contador de histórias do oriente. Seu Olavo notou que, tanto no relato como na música, aqueles homens mencionaram pelos menos uma palavra conhecida: páscoa. — Sobre o que estão falando? — Lino estava curioso. — Creio que da Páscoa, a festa em que os judeus comemoram a saída dos seus antepassados do Egito, onde foram escravos — disse seu Olavo. — Então é por isso que estão aqui, para festejá-la. Não conseguiram se alojar dentro, na cidade. Na certa ela já está com suas hospedarias lotadas. Seu Olavo tinha razão no que dizia, e queria captar mais da conversa daqueles homens. Fazendo ar de desinteressado, foi se aproximando dos alegres judeus, andando entre as tendas com o cuidado de não tropeçar nas cordas que as prendiam ao chão. Só que Lino não teve o mesmo cuidado. Ouviu-se um baque surdo e, logo após, um sonoro gemido. — Ai, vô! UNS DIAS PASSADOS EM JERUSALÉM | 13 O incidente chamou a atenção dos mais próximos, tudo que seu Olavo não queria naquele momento. Mas aquilo não era mais importante do que socorrer o neto. E foi o que tentou fazer. Mas alguém o antecipara. Semelhante ao bom samaritano da parábola bíblica, um rapaz já se encontrava junto a Lino, prestando-lhe os primeiros socorros. — Ele está bem? Se machucou muito? — o avô se aproximou. — Nada que preocupe, só teve alguns arranhões — disse o rapaz, procurando alguma coisa numa espécie de bolsa de couro que trazia consigo. — Tenho sempre à mão unguentos ótimos pra essas horas... Ah, aqui! Achei! É só passar um pouquinho sobre arranhões ou feridas, e pronto — finalizou com ar de entendido. — Muito obrigado, amigo — seu Olavo agradeceu. Na queda, Lino arranhara os joelhos. E era neles que o bom homem aplicava, com habilidade, o líquido viscoso. — Azeite, meu garoto — explicou ele a Lino, que fazia cara feia, nem tanto pela dor, mas porque estava intrigado com o estranho remédio. — Vai evitar que a pele afetada fique rija, aliviando um pouco a dor. Pelos menos, pensou Lino, não arde como merthiolate. Observando toda a cena com muita humildade, seu Olavo não interferiu. Sabia das propriedades curativas do óleo de oliva, o azeite. Essa era uma das utilidades, dentre muitas outras, desse produto entre os judeus. Ele e Lino aprenderiam muito ainda com esse povo. Não era este o objetivo daquela extraordinária viagem? E acho que até muito mais. 14 | MARCELO FERREIRA O ancião queria participar de cenas históricas passadas naquela santa cidade. Sabia do sucesso de algumas, podendo se encontrar na hora e lugar de muitos acontecimentos. E o incidente com o neto e a aparição daquele homem solícito já não seriam fruto da divina providência? O judeu poderia ajudá-lo, e muito, em algumas investidas. Preciso conhecê-lo primeiramente, pensou seu Olavo. — Meu nome é Jonas — disse o homem, adivinhando involuntariamente a intenção daquele senhor que precisava de mais ajuda. — Se não se sentirem incomodados, serão bemvindos à minha humilde morada. Lá dispensarei mais cuidados ao pequeno. Estava aí a oportunidade. Seu Olavo não titubeou. — O meu nome é Olavo e este é meu neto, o Lino. Estamos um pouco cansados — disse, amparando o menino, que já fazia cara de choro. — Aceito o convite. Nisto, os circunstantes, que até então observavam tudo com alguma indiferença, como se tivessem ouvido um diretor de cinema numa gravação, voltaram-se para suas obrigações. Uma matrona1, quase toda coberta numa túnica azul-escura, tratou de recolher os filhos seminus. Outras a imitaram. Os homens, que antes conversavam abertamente diante das tendas, agora afetavam discrição. Talvez com receio do estrangeiro e de seu desastrado neto. Seu Olavo notou a animosidade deles, tão diferentes de Jonas. A barba, talvez seja isso, ele pensou, passando uma das mãos no queixo — estou sem barbas. Alguns judeus da época, já 1 Matrona é uma mulher idosa e respeitável. UNS DIAS PASSADOS EM JERUSALÉM | 15 tão desconfiados com os estrangeiros, evitavam um primeiro contato com os imberbes2, assim identificavam de longe um não-judeu. Ignorando essa situação, o ancião tratou de seguir seu anfitrião, que já ia longe, conversando com Lino. Um pouco adiante, Jonas parou indicando sua morada. Era também uma tenda. Tinha logo à entrada um tapete com figuras que retratavam qualquer coisa, menos animais. Seu Olavo atentou para esse detalhe. Tratava-se de uma obediência, por parte dos judeus, a uma ordem divina, a de não desenharem animal algum por ornamento, nem sequer figuras humanas. O interior da residência recendia a azeite e a uma essência qualquer. Mas, mesmo assim, um desagradável cheiro, em algum canto, denunciava a presença recente de animais. — Sintam-se à vontade — Jonas já estava a um canto, procurando alguma coisa. — Vocês devem estar com fome. Verei o que posso fazer. Tanta solicitude ele demonstrava, que Lino imaginou Jonas dizendo: “Mi casa es su casa!”.3 Seria engraçado. E o menino não deixou de rir, esquecendo um pouco a dor das escoriações. Sentaram-se sobre esteiras dispostas bem no meio da tenda. Uma pequena mesa de madeira diante deles. Nela, Jonas colocou um pão fresco e alguns peixes assados. — Qualquer judeu, em sua modesta piedade, reparte o seu pão — disse. — Tem como norma a hospitalidade. Abraão, o 2 Homens sem barba. Popular expressão da língua espanhola, que traduzida significa: “Minha casa é a sua casa”. 3