Marcos Vinícius Teixeira JOÃO TERNURA: ROMANCE DE UMA VIDA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE LETRAS 2005 Marcos Vinícius Teixeira JOÃO TERNURA: ROMANCE DE UMA VIDA Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras – Literatura Brasileira. Orientadora: Profª Drª Maria Cecília Bruzzi Boechat. Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG 2005 Dissertação intitulada JOÃO TERNURA: ROMANCE DE UMA VIDA, de autoria do Mestrando MARCOS VINÍCIUS TEIXEIRA, aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores: ___________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Cecília Bruzzi Boechat - FALE/UFMG - Orientadora ___________________________________________________________ Prof. Dr. Murilo Marcondes de Moura - USP ___________________________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Alves Peixoto - FALE/UFMG Profa. Dra. ELIANA LOURENÇO DE LIMA REIS Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da UFMG Belo Horizonte, 28 de junho de 2005. A Odilinha Cherubini, José Teixeira, Adriano Teixeira, Claudine Cherubini, Luciano Cherubini e Welington Teixeira, in memoriam. A Adriana dos Santos Teixeira e família. AGRADECIMENTOS Agradeço: à minha orientadora, profa. Maria Cecília Boechat, pela amizade, pela seriedade acadêmica e pelos caminhos apontados; aos professores Murilo Marcondes de Moura, Sérgio Alves Peixoto, Duda Machado, Dulce Maria Viana Mindlin, Jair Tadeu da Fonseca, Claudia Campos Soares, e aos amigos e professores do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto; aos amigos Matheus Martins, Kaio Carmona, Suzana Ruela, Flávia Lins, Rosana Simões, Miriam Ribeiro, Lisa Carvalho, Anselmo Campos, Solange Rebuzzi, Ágata Dumont, Fernanda de Sá, Ednaldo Cândido, Dirlenvalder Loyolla, Sérgio Selingardi, Ligiane Souza, Fabiano Botelho, Dirlean Loyolla, Valdirlen Loyolla, Tida Carvalho, Fernando Campos, Janíci Pascual, Carlos Araújo, Paulo Teixeira, Nelson Sena, Delcio Rocha, Leandro Bichara, André Miranda, Moacir C. Lopes, Rosana Weg, Moema Nascimento, Cecília Pereira, Bianca Lauro, Rogério Souza, Dóris Magna e Renata Toledo. à família Santos: Sérgio Luís, Marcelo, Ricardo, Eli Antônio Teixeira, Heloísa dos Santos Teixeira e demais parentes. à Adriana Teixeira, também navegante desse mar, pelas conversas sobre a obra de Aníbal Machado e pela constante presença. Agradeço ainda a Chico Aníbal, pelas importantes informações fornecidas durante a pesquisa, ao Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, por ter permitido a pesquisa nos originais de Aníbal Machado, à Hemeroteca Pública de Belo Horizonte e às bibliotecas da UFMG e PUC-Minas. Este trabalho recebeu apoio financeiro do CNPq — Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. As memórias valem às vezes pela pintura indireta dos costumes sociais e das reações do comportamento humano em determinado meio. Valem também quando o dado biográfico se dissolve em poesia. Aqui, já não é mais memória, é superação do real pela evocação lírica ou pelo humor. O que fizemos passa a ser contado como aquilo que desejávamos fazer; o que nos aconteceu, como o que sonhávamos acontecesse. Aníbal Machado – Cadernos de João — Garanto que quem está mais embevecido com a Caixa é o nosso amigo aqui. Ternura não se perturba. E Arosca falando sério: — A miséria mesma você não percebe, Ternura. Vive se enganando com as aparências. Vê as coisas como queria que fossem, não como são. — Vejo o que você está vendo — disse Ternura — o que todo mundo vê... — É capaz de repetir aquilo que disse outro dia? — Aquilo o quê? — Que gosta da vida... — Gosto, sim. Acha vergonhoso a gente dizer que gosta da vida? Aníbal Machado – João Ternura SUMÁRIO RESUMO INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 09 1 INFÂNCIA À BEIRA-RIO ..................................................................................... 25 1.1 Anseio de liberdade ........................................................................................... 38 2 NA TERRA DOS HOMENS IMPORTANTES ..................................................... 50 2.1 Uma visão de mundo ......................................................................................... 50 2.2 Os homens importantes ..................................................................................... 55 2.3 Um “romance chapliniano” ............................................................................... 63 3 DESAPARECIMENTO DE JOÃO TERNURA ..................................................... 71 3.1 Experiência surrealista ....................................................................................... 71 3.2 Utopia ................................................................................................................ 79 3.3 Desfecho ............................................................................................................ 82 4 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 90 5 BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................101 ABSTRACT RESUMO Estudo do romance João Ternura,de Aníbal Machado, a partir da relação, já indicada pela fortuna crítica, entre a obra e a vida do escritor, observando tanto a presença de elementos autobiográficos quanto os processos de ficcionalização a que esses dados são submetidos. Escrito durante mais de quatro décadas e só terminado às vésperas da morte do escritor, o romance pode ser entendido como uma espécie de “livro-testamento”, na medida que também apresenta idéias e valores que remetem à visão de mundo do autor. 9 INTRODUÇÃO “João Ternura nasceu de todas as idades que Aníbal ia atravessando e é o resumo poético de sua fabulosa experiência através da vida” Pedro Nava Aníbal Monteiro Machado [1894-1964] foi, durante muito tempo de sua vida, um escritor sem livros. Entre 1921 e 1924, participou da escrita coletiva do romance O capote do guarda, publicado em folhetins, e que não chegaria a ser reunido em livro. Em 1942, o mesmo se deu com Brandão entre o mar e o amor, que foi escrito com Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego e Raquel de Queiroz. Somente em dezembro de 1944 seu primeiro livro, Vila feliz, foi publicado, ainda assim por iniciativa de sua amiga Eneida de Moraes. Em 1959, este livro, somado de mais sete contos, passou a se chamar Histórias reunidas. Título que seria mais tarde alterado para A morte da porta-estandarte e outras histórias, em 1965, quando é acrescentado mais um conto ao livro, e para A morte da porta-estandarte, Tati, a garota e outras histórias, em 1974. O mesmo procedimento ocorreu com Cadernos de João, que também constitui uma reunião de textos anteriores. Em 1951, Aníbal Machado publicou ABC das Catástrofes – Topografia da insônia e, em 1955, publicou Poemas em prosa. Somente em 1957 estes livros foram reunidos pelo autor e, revistos, completam o livro Cadernos de João. Ao mesmo tempo em que se dedicava a essas obras, Aníbal Machado escrevia seu romance João Ternura, que resultou numa experiência atípica de construção literária, pois levou várias décadas para ser terminado e só foi publicado em 1965, como obra póstuma. Quando, entretanto, Aníbal Machado começou a escrever João Ternura? 10 “Em 1926 (morava na Tijuca), baseado em episódios de infância e nas lembranças de Sabará, [Aníbal Machado] iniciou o seu famoso romance João Ternura, lírico e vulgar”, afirma Renard Pérez1. Como informa o crítico2, assim como a maioria das biografias que compõem o livro, a de Aníbal Machado foi feita “em contato direto” com o escritor e por ele revisada3. A informação, assim, parece ter ganhado o aval do autor, tendo-se firmado como referência; vários outros críticos recorreram ao texto biográfico de Perez e confirmam a data: Fernando Py, Fausto Cunha, Rui Mourão, Elza Miné da Rocha e Silva, Raúl Antelo e Maria Angélica G. Lopes4. Porém, o memorialista Pedro Nava, em Beira-mar (1978), apresenta uma outra versão5. Segundo Nava, o romance foi iniciado antes de 1926: “Nessas visitas que comecei a lhe fazer em 1922 ele já estava às voltas com o seu João Ternura [...], que foi livro de mocidade, maturidade e velhice”6. Tendo convivido com o escritor, como amigo dele e de seu irmão Paulo Machado, Pedro Nava freqüentava a casa de Dona Marieta — ou a casa “dos Machado” — e registra também o local onde tomou 1 PEREZ, Renard. Aníbal M. Machado. In: Escritores brasileiros contemporâneos, p. 24. PEREZ, Renard. Explicação necessária. In: Escritores brasileiros contemporâneos, p. 02. 3 Na edição que utilizamos, encontram-se reunidas biografias publicadas no suplemento literário do Correio da Manhã entre outubro de 1955 e março de 1958. Em outro texto de Perez, Aníbal Machado: vida e obra, somos informados de que entrevistaram Aníbal numa manhã de janeiro de 1956 para a série de “reportagens biográficas”. Cf. PEREZ, Renard. Aníbal Machado: vida e obra. In: MACHADO, Aníbal. João Ternura, p. xv. 4 Fausto Cunha faz referência também a um dicionário de literatura que, cerca de trinta anos antes do término do romance, prematuramente anunciava a publicação do livro e confirmava o ano do início de sua escrita: “Num conhecido dicionário de literatura se lê esta frase: ‘Em 1926 iniciou o romance João Ternura, que o consagrou’”. CUNHA, Fausto. Aníbal Machado entre a poesia e a prosa. In: Seleta em prosa e verso, p. 135. 5 As biografias reunidas em Escritores brasileiros contemporâneos foram escritas, originariamente, para o suplemento literário do Correio da Manhã. Na apresentação do livro, Perez adverte: “Não imaginávamos, ao tempo em que iniciamos a série, reuni-las algum dia em livro. Simples reportagens, escritas semanalmente, elas se ressentiam de um certo esquematismo”. Seja pelo pouco tempo de pesquisa e entrevista aos escritores, dado o caráter de publicação semanal, seja por não imaginar que algum dia as biografias alcançariam grande importância, o texto de Perez acaba por incorrer em alguns erros. Perez nos informa, por exemplo, que Aníbal teve seis filhas em seu primeiro casamento. Todavia, sabe-se, por Maria Clara Machado, que sua mãe, Aracy Jacob Machado, deu-lhe somente cinco filhas. A sexta viria do segundo casamento, com Selma (irmã de Aracy). Encontramos outra falha com relação ao título do livro Histórias Reunidas, grafado por Perez como “Novelas Reunidas”. Dois registros de datas também aparecem errados. O texto nos informa que Vila Feliz (1944) teria sido publicado em 1946 e que Cadernos de João (1957) teria sido publicado em 1958. 6 NAVA, Pedro. Beira-mar, p. 91. 2 11 conhecimento de trechos do João Ternura, na cidade de Belo Horizonte: “Como Aníbal não desgostasse de mostrar aos amigos seus escritos ali, no porão da rua Tupis, ouvi vários trechos do João Ternura...”7. No entanto, o livro, que em 1922 já estava sendo escrito, pode ser ainda anterior a esta data: “Esta [a obra de Aníbal] vinha de mais longe, de 22, 21, talvez de anos antes desse período, talvez dos tempos da promotoria em Aiuruoca”8. Fica sugerido, assim, que o escritor tenha iniciado o livro quando ainda residia nessa cidade, o que significa dizer que talvez o romance tenha sido iniciado em 1919. Como podemos perceber, não há uma data exata que marque o início da criação de João Ternura9. E as declarações do próprio autor também não esclarecem a questão. Embora Aníbal possa ter realmente revisado o texto biográfico de Perez, validando a data de 1926, o fato é que, na Introdução de João Ternura, diz claramente não saber quando começou o romance: “Iniciado o livro já não me lembra quando, e não sei quantas vezes esquecido [...] cheguei a deixá-lo de lado definitivamente”10. Parece certo, entretanto, que o primeiro período de elaboração do romance se estenderia por mais ou menos 10 anos. Como dissemos, Pedro Nava tomou conhecimento do João Ternura quando Aníbal ainda morava em Belo Horizonte, em 1922. O autor mudou-se para o Rio de Janeiro em 1923. Segundo Renard Perez, Aníbal escreveu o romance até 1932, quando o amigo Oswald de Andrade declarou ser o livro 7 NAVA, Pedro. Beira-mar, p. 92. NAVA, Pedro. Beira-mar, p. 91-92. 9 Curioso observar ainda que, em O desatino da rapaziada (1992), Humberto Werneck, mesmo tendo consultado o Beira-mar de Pedro Nava, insiste em afirmar que o romance João Ternura foi iniciado em 1926, em concordância com Renard Perez: “Ali [na casa da rua Tupis, 303], num porão cheio de livros, Pedro Nava ouviria dele a leitura dos primeiríssimos trechos de João Ternura, o legendário romance que, iniciado em 1926, só estaria concluído poucos dias antes da morte do autor...”. No entanto, como sabemos, em 1926 Aníbal Machado já se encontrava no Rio de Janeiro e as tardes que Nava passava na casa da rua Tupis em Belo Horizonte são anteriores a 1924. Cf. WERNECK, Humberto, O desatino da rapaziada, p. 39. 10 MACHADO, Aníbal. Introdução. In: João Ternura, p. 03. 8 12 “um dos pontos mais altos do romance nacional”11. Nessa época, segundo Perez, com o excesso de elogios, o escritor engavetou os originais de seu livro. Embora a obra se encontrasse engavetada, isso não impediu que, segundo Elza Miné da Rocha e Silva, Eneida de Moraes, que era amiga do escritor, consultasse os originais e os passasse a limpo: “Eneida, que além de amiga fora também secretária do escritor, conseguiu decifrar os hieroglíficos originais e passá-los a limpo. Sucederam-se novas e infindáveis revisões”12. Otto Maria Carpeaux informa que, quando começou a freqüentar a casa do escritor na década de 40, muitos dos amigos de Aníbal já esperavam a publicação do romance: “Quando conheci Aníbal — parece-me que foi em 1941 — me diziam os amigos: os contos são ótimos, muita outra coisa ótima está escondida nas gavetas, mas Aníbal ainda não tem dado toda medida do seu talento; espere o João Ternura”13. De fato, enquanto escrevia o romance, Aníbal o divulgava, mostrando algumas partes aos amigos, que freqüentaram as casas pelas quais o escritor passou, e publicando outras, de forma isolada, em revistas e jornais da época. Na Revista Acadêmica do Rio de Janeiro, por exemplo, o escritor publica, em 1937, vários trechos referentes à infância do personagem, sob o título de “Fragmentos de João Ternura”. No entanto, muitas dessas partes publicadas de modo esparso, e que fariam parte do romance, o escritor não as aproveitaria na composição final da obra14. Assim, o personagem João Ternura começou a viver antes mesmo que o livro tivesse sido publicado. Prova de que muita gente aguardava com ansiedade o livro está na maneira como Aníbal Machado começa a introdução de seu livro: “É possível que alguns leitores, de 11 PEREZ, Renard. Aníbal M. Machado. In: Escritores brasileiros contemporâneos, p. 24. SILVA, Elza Mine da Rocha e. Um vigoroso agente da modernidade. In: Literatura comentada: Aníbal Machado, p. 104. 13 CARPEAUX, Otto Maria. Presença de Aníbal. In: MACHADO, Aníbal. João Ternura, p. xiii. 14 No livro Parque de diversões, Raúl Antelo, organizador da edição, reúne sob o título “No caminho de João Ternura” o que chamou de “textos prévios” do romance. No entanto, não conhecemos o critério utilizado para esse agrupamento. 12 13 tanto ouvirem falar neste livro, o recebam de pedras na mão. Especialmente os da geração mais antiga”15. Fausto Cunha registra uma frase dita pelo escritor Jones Rocha a Aníbal Machado que ilustra bem a expectativa criada em torno do romance João Ternura: “Dizem que João Ternura morreu e que agora o senhor está escrevendo a história do filho dele”16. Aníbal respondeu, segundo Cunha, que não, que não havia trabalhado mais no livro e que talvez só publicasse algumas partes do seu início, onde são contadas a infância e a adolescência do personagem. O momento em que o escritor decidiu voltar aos seus manuscritos e concluir a obra é registrado por Perez, em 1960: “Durante 28 anos permaneceram os originais engavetados; há pouco tempo, entretanto, resolveu Aníbal exumá-los e concluí-los, para oportuna publicação, acompanhada de um indispensável prefácio”17. Segundo Fernando Py, o entusiasmo de Renard Perez com a obra João Ternura foi um dos motivos que teriam levaram o escritor a retomar o seu livro. Perez, escritor da nova geração e freqüentador da casa de Aníbal, teve papel importante ao demonstrar que depois de décadas o personagem estava vivo e o livro possuía importância: “Frente ao entusiasmo de Renard, aceita retomar Aníbal a sua obra; prossegue, e será esta a sua máxima preocupação literária até o fim da vida. De 1960 a 1963 foi definitivamente escrito o romance...”18. A filha de Aníbal, a escritora e atriz Maria Clara Machado, declara que o escritor terminou seu romance quando estava de cama, no fim de sua vida: “Acabou João Ternura na cama, quando já estava para morrer. E me mostrando os originais, disse: 15 MACHADO, Aníbal. João Ternura, p. 03. CUNHA, Fausto. “Aníbal Machado entre a poesia e a prosa”, p. 136. 17 PEREZ, Renard. Aníbal M. Machado. In: Escritores brasileiros contemporâneos, p. 24. 18 PY, Fernando. Chão de crítica, p. 236. 16 14 ‘Minha filha, pode tomar conta disso aqui, já acabei’”19. Também Eneida afirma que Aníbal conversou consigo dias antes de morrer, ocasião em que ele falou sobre o fim de seu personagem no romance: ... Conversamos muito; estava sem febre, consciente de sua doença mas de pé, declarando “quero viver”, “sabes, preciso viver”. Disse-me: — João Ternura está pronto, quero retocá-lo aqui e ali. Mas [e]le acaba triste. Perguntei-lhe por que razão Ternura acabava triste. — Não sei; é o fim d[e]le. Ternura não morre, Ternura desaparece. 20 Aníbal Machado faleceu, segundo nota da editora José Olympio, no dia 19 de janeiro de 1964, sendo enterrado no dia 20, dia de São Sebastião21. A pedido do escritor, os originais de seu romance foram confiados ao seu amigo, o poeta Carlos Drummond de Andrade, a quem, segundo nota da José Olympio, coube fazer o cotejo entre dois textos datilografados, nos quais se inseriam algumas páginas em manuscrito. A primeira edição de João Ternura foi publicada, como obra póstuma, em 1965. Um ano após a morte do escritor. Se considerarmos o intervalo de tempo entre 1922 e 1963, perceberemos que o romance teve uma gestação de mais de 40 anos. A longa convivência do escritor com sua obra sem dúvida explica alguns aspectos do romance, como sugere o próprio autor: Não poucas vezes porém ele [o romance] se insinuava dentro de mim, antecipando-me ao acaso fragmentos que eu nem sempre trasladava para a escrita, e que pareciam desgarrados da mesma constelação. Se os anotava às vezes, não era tanto com o propósito de realizar obra literária, senão pelo desejo de deixar crescer um personagem que em meu pensamento se formava e de meu subconsciente se nutria. Ia assim o livro se fazendo quando menos se cuidava dele. Um jogo secreto que era o meio mais eficaz de que eu dispunha para restabelecer, nos momentos de depressão e nos períodos de doença, o gosto e o interesse de viver.22 19 Em entrevista a Jorge de Aquino Filho publicada originalmente na revista Manchete de 03 de abril de 1982 e reproduzida no Suplemento Literário do Minas Gerais de 28 de janeiro de 1984, com o título “Aníbal Machado, meu pai”. Cf. MACHADO, Maria Clara. “Aníbal Machado, meu pai”, p. 03. 20 MORAES, Eneida. “Escrever sôbre Aníbal não é coisa fácil”, p. 14. Também encontramos outro texto de Eneida, Aníbal Machado, que possui conteúdo semelhante, na seção de recortes de jornais do Acervo de Escritores Mineiros – AEM da UFMG. 21 Segundo Elza Miné da Rocha e Silva, a morte do escritor teria se dado no dia 20 de janeiro: “1964 — Morre de pneumonia no dia 20 de janeiro, no Rio, onde é sepultado”. Cf. SILVA, Elza Mine da Rocha e. Literatura comentada: Aníbal Machado, p. 13. 22 MACHADO, Aníbal. Introdução. In: João Ternura, p. 03. 15 Essa “relação secreta” com o livro, sempre em construção, se diz respeito a uma questão existencial — como “meio eficaz [...] para restabelecer o gosto” de viver —, indica também que faz parte do processo de criação da obra uma relação estreita estabelecida com a personagem. Assim, o escritor admite que João Ternura é, em parte, ele mesmo e que na sua estória se encontra a sua própria vida, ao dizer que o personagem se nutria de seu subconsciente. Em outro texto, Aníbal Machado declara que João Ternura carrega a sua alma: “Um livro! Mercadoria à venda em toda parte com a alma da gente nua, exposta, cega e surda, mas nua...”23. Não é ocasional, portanto, que a recepção crítica do romance tenha sempre insistido em relacionar o personagem ao autor, esclarecendo os laços que se estabeleceram entre o romance e a vida do escritor. Nesta perspectiva, Valdemar Cavalcanti, significativamente, se refere ao romance como um “livro-testamento”. A idéia de um romance-testamento não encontra fundamento apenas no fato de a obra ter sido publicada somente após a morte do escritor, mas pelo fato de o leitor encontrar nessa obra a própria vida de Aníbal Machado, ainda que ficcionalizada. Tendo em vista a relação escritor-personagem, Cavalcanti afirma que caberia a João Ternura “a tarefa incrível de ressuscitar o autor”24. Se antes o personagem sobrevivia, ainda que em rodas de conversa, graças à vida e ao cotidiano de seu autor, atravessando mais de quarenta anos como uma espécie de mito, ou, como diz Cavalcanti, de “mistério de maçonaria literária”, com a publicação de sua estória em 23 Retiramos essa frase de Aníbal Machado de uma citação recuada presente na introdução do livro Parque de diversões. Esse texto de Aníbal, segundo o autor da introdução e organizador da edição, Raúl Antelo, pertence a um posfácio inédito de João Ternura. No entanto esse mesmo posfácio não foi reproduzido no livro em questão — que reúne inéditos e esparsos — e só tivemos acesso ao trecho citado pelo crítico em seu texto. 24 CAVALCANTI, Valdemar. Vida e morte de João Ternura. In: Suplemento literário do Minas Gerais. Ano x, n. 477, p. 04. 16 livro, feita após a morte de Aníbal Machado, o escritor é quem passa a viver pelo romance: “autor e personagem, agora, vivos, unidos como nos velhos tempos, identificados pela íntima e profunda convivência, admiráveis ambos pela expressão de gemeidade, ambos dispostos à permanência”25. Definindo o romance como uma “experiência de ficção em termos surrealistas”, o crítico associa, claramente, ao termo livro-testamento, a idéia de transposição de vida para a literatura: “João Ternura representa a mais corajosa e rica experiência de ficção em termos surrealistas jamais tentada entre nós. [...] Experiência de uma visão lírica e fresca da vida transposta para a literatura”. É nesse sentido que Cavalcanti afirma que o escritor empregou no livro o seu senso do humano, ou, poderíamos dizer, o seu modo de perceber a vida e o mundo: “Aníbal Machado, ele próprio muito João Ternura, deu nessa obra de apaixonada e lenta feitura a medida do seu senso do humano além da medida do seu valor literário”26. Em perspectiva semelhante, Raúl Antelo atribui à demorada finalização do romance o processo de identificação entre escritor e personagem: “A[o] poupar João Ternura até sua morte, Aníbal Machado operou curiosa inversão de fatores: não se alienou na mercadoria, porém se diluiu na personagem e, nas trilhas de Mário ou de Flaubert, passou a ser identificado com seu anti-herói”27. Rodolfo Alonso, no mesmo sentido, afirma: “Porque João Ternura não era outro senão ele mesmo”28. E, segundo Perez: “Na verdade, não é João Ternura senão uma figura simbólica, de que se serve o 25 CAVALCANTI, Valdemar. Vida e morte de João Ternura. In: Suplemento literário do Minas Gerais. Ano x, n. 477, p. 04. 26 CAVALCANTI, Valdemar. Vida e morte de João Ternura. In: Suplemento literário do Minas Gerais. Ano x, n. 477, p. 04. 27 ANTELO, Raúl. Introdução. In: Parque de diversões, p. 16. 28 ALONSO, Rodolfo. Em torno a Aníbal Machado. In: REVISTA TRAVESSIA, n. 819, v. 5, p. 45. 17 romancista para traçar uma espécie de retrato interior, onde se reflete a sua interpretação da vida”29. Desse modo, a recepção crítica do romance vem esclarecendo as funções da relação entre a vida do escritor e o romance: os dados biográficos seriam, assim, fundamentais tanto para a construção do personagem, quanto para a estrutura do texto, que narra a trajetória de João Ternura. Rolmes Barbosa, afirmando que João Ternura é a obra em que a presença do homem Aníbal Machado se encontra de forma mais forte — ou, em outras palavras, na qual encontramos a presença de elementos autobiográficos de forma mais intensa e perceptível —, refere-se a ela como “álbum de ‘momentos’ perdidos” ou, fazendo referência direta ao enredo do romance, “memórias de uma infância mineira e romance das confissões de um adulto na confusão carioca”30. A idéia de um romance de confissões, retomando a ligação existente entre a vida de Aníbal e a estória de Ternura permite que, no texto de Barbosa, as duas coisas se confundam. Assim a chácara de Ternura pode ser chamada de Sabará: “João Ternura reflete, na sua série de flagrantes, anotações, poemas etc., as aventuras e desventuras do herói, desde a meninice em Sabará, até seus últimos instantes na Guanabara”. Ou o rio que instiga a curiosidade do menino pode ser nomeado: “São pedaços da vida desse parente de Macunaíma e de Carlitos, na chácara da beira do rio das Velhas, entre o pai e a mãe, as tias solteironas, os fantasmas dos antepassados...”31. Outros estudiosos enfatizam os traços biográficos do romance. Renard Perez concorda que o escritor iniciou o romance João Ternura baseado em episódios de sua 29 PEREZ, Renard. Aníbal Machado: vida e obra. In: MACHADO, Aníbal. João Ternura, p. xxiii. Este texto de Rolmes Barbosa, publicado originalmente em O Estado de São Paulo, encontra-se reproduzido na orelha da quarta edição do livro João Ternura. Cf. MACHADO, Aníbal. João Ternura, s/n. 31 É-nos claro que essas duas nomeações não ocorrem no romance. Todavia, a afirmação de Rolmes Barbosa é coerente, dada a identificação entre vida e obra já discutida. 30 18 infância e nas lembranças que tinha de Sabará e que a experiência resultante da vida do escritor no Rio de Janeiro foi importante para a criação dos episódios encontrados no romance: Às recordações de sua infância em Sabará, captadas numa aura surrealista e que dão a primeira motivação da obra, vai o escritor acrescentando episódios que lhe são trazidos pela vida afora e lhe marcam a sensibilidade: seu encontro com o Rio, a descoberta do carnaval, sua integração progressiva no íntimo da cidade. A [e]sses e outros fatos, próximos e longínquos, acrescenta elementos subjetivos, problemas de suas preocupações, seu modo de sentir o mundo, e que aparecem ali, às v[e]zes através de um poema, às v[e]zes em anotações indiretas, o mais das v[e]zes vividos ou sentidos por aqu[e]le personagem símbolo.32 Ressalta, porém, o caráter ficcional do romance: Em João Ternura, romance saboroso, de toque surrealista (como os Cadernos de João), apresenta Aníbal Machado um personagem que é a projeção de si mesmo — de seu espírito, sobretudo — e a quem acompanha ficcionalmente pela vida afora desde a infância — infância que é uma evocação lírica de sua própria, em Sabará.33 Quanto à parte final do romance, Perez, referindo-se à proximidade da morte de Aníbal, reafirma: “Como antigamente, os problemas de suas preocupações são transferidos para a obra”34. Também para Fernando Py, as preocupações de ordem espiritual presentes no final de João Ternura são um reflexo da situação do escritor que, ao escrever a última parte do romance, encontrava-se doente e pressentindo a morte próxima. Para Py, as últimas páginas do livro são exclusivamente alegóricas e representam a última fase da vida de Aníbal: “representam a própria vida de Aníbal, toda disseminada no entrecho essencialmente autobiográfico, ou melhor, um autoretrato psicológico”35. A relação vida-obra, por outro lado, gerou discussão em torno do gênero do romance. Curiosamente, com a morte do escritor, alguns jornais anunciaram que João 32 PEREZ, Renard. Aníbal Machado: vida e obra. In: MACHADO, Aníbal. João Ternura, p. xxiii. PEREZ, Renard (org). Escritores brasileiros de hoje, p. 16. 34 PEREZ, Renard. Aníbal Machado: vida e obra. In: MACHADO, Aníbal. João Ternura, p. xxviii. 35 PY, Fernando. Chão de crítica, p. 237. 33 19 Ternura era um livro de memórias. Encontramos, na seção de recortes de jornais, no Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, duas matérias sobre o falecimento do escritor, datadas de 21 de janeiro de 196436. O jornal Estado de Minas, anunciando o falecimento de Aníbal Machado, refere-se ao romance nos seguintes termos: Seu livro de memórias ainda inédito, “João Ternura”, trabalho ansiosamente esperado pelo que contém de revelador de uma alma “terna”, de um “João”, como só ele o soube ser, em muito contribuirá para a história da literatura brasileira. Traço de sua personalidade marcante foi o seu comportamento tipicamente mineiro entre os cariocas. Hospitaleiro por Excel[ê]ncia, muitos dos nossos vitoriosos romancistas, críticos, ensaístas de hoje iniciaram suas atividades sob o teto da sua acolhedora casa. A todos An[í]bal Machado recebia como a um membro da família.37 O jornal Diário também chama a obra de livro de memórias: “[Pouco] antes de falecer, An[í]bal Machado entregou a seus editores o livro de mem[ó]rias ‘João Ter[n]ura’”38. Esses dois casos ocorridos em 1964 demonstram bem que havia uma expectativa em torno de João Ternura mais relacionada ao gênero memórias do que ao de romance. Evidentemente que, dada a longa gestação da obra e elementos correspondentes entre a vida do escritor e a de seu personagem, é compreensível que os jornais tenham associado a obra escrita durante décadas ao gênero memórias. O que temos considerado aqui como uma união entre personagem e escritor ou uma mistura de elementos autobiográficos e de ficção não deve, entretanto, ser confundido com memórias ou mesmo com autobiografia, gêneros que se prendem à questão da identidade. Philippe Lejeune, autor de Le pacte autobiographique, define a 36 Por se tratar de recortes, é-nos difícil afirmar com precisão a data desses artigos. Um dos jornais é o Estado de Minas. O outro está com uma indicação feita à mão: “Diário – 21/01/64”. Acreditamos que o Estado de Minas seja mesmo de 21 de janeiro, conforme anotação manuscrita e conforme texto publicado. Porém, uma parte da matéria está datada com o dia 20, no jornal mineiro. Já com relação ao jornal Diário, mesmo sendo o jornal do dia 21, encontramos na matéria a referência “RIO 20”, que indicaria lugar e data. 37 Estado de Minas, 1964, s. n. Cf. Coleção Aníbal Machado no Acervo de Escritores Mineiros da UFMG. 38 Diário, Sepultado Aníbal Machado, s. n. Cf. Coleção Aníbal Machado no Acervo de Escritores Mineiros da UFMG. 20 autobiografia como uma narrativa em prosa, que possui uma perspectiva retrospectiva, feita por uma pessoa real acerca de sua própria existência, abordando assim a sua vida individual, e mais particularmente a história de sua personalidade. Para Lejeune, duas condições são necessárias ao gênero autobiográfico. Trata-se da identidade do autor, cujo nome deve remeter a uma pessoa real, com o narrador, e da identidade entre o narrador e o personagem principal. Para ele, “uma identidade é, ou não é”39. Nesse sentido, não podem haver níveis ou graus quando o assunto é identidade, e, conseqüentemente, quando se trata de autobiografia. No caso de João Ternura, a vida do personagem difere em muitos pontos da vida de seu escritor. As diferenças, na obra, impedem-nos de afirmar que há uma identidade entre autor, narrador e personagem principal. Por outro lado, a escolha do título do livro e do nome do personagem não permitem que haja, de início, um pacto de leitura referente a autobiografia ou a memórias. Pelo contrário, o título João Ternura abaixo do nome do escritor induz ao leitor um pacto de leitura ficcional. Segundo Lejeune, de modo implícito, o pacto autobiográfico pode estabelecer-se segundo dois meios: pelo emprego de títulos que não deixam dúvida sobre o fato de que a primeira pessoa remete ao nome do autor como “História de minha vida” ou “Autobiografia”; e por meio de um pacto proposto pelo narrador, na parte inicial do texto, na qual se escolhe um contrato mediante o leitor. Já no caso da ficção, do romance, por exemplo, o pacto de leitura se faz, a priori, como pacto romanesco já mediante uma classificação feita pela editora, pelo uso do termo romance na capa, folha de rosto, ou apresentação do mesmo. No caso da primeira edição de João Ternura, os textos críticos que apresentam o livro, além da introdução do autor, já anunciam que se trata de um romance. 39 LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique, p. 15. 21 Importante observar que Philippe Lejeune coloca em discussão a idéia sensocomum de que o romance seria mais verdadeiro, mais profundo e mais autêntico do que a autobiografia. Essa idéia, sem autoria, tenta mostrar que o romance, mais do que a autobiografia, permite uma aproximação maior do que é verdadeiro. Permanecendo uma discussão sobre os gêneros. Diante dessa idéia, Lejeune coloca duas indagações: por que muitos escritores não se contentaram em escrever apenas romances? E como estabelecer uma certa verdade no romance sem utilizar as autobiografias? Assim sendo, diante da questão de se descobrir qual o gênero mais verdadeiro, Lejeune afirma que nem o romance nem a autobiografia. À autobiografia faltaria a complexidade, a ambigüidade, etc. Ao romance faltaria a exatidão. Para ele, um remete ao outro. Esses apontamentos de Lejeune parecem esclarecer a questão do gênero de João Ternura e, no caso, ainda indicar a metodologia para uma leitura da estória de Ternura que, sendo criação, é também a projeção de Aníbal Machado: a de que, para o estudo do romance, nessa perspectiva, torna-se necessário um diálogo com os textos de Aníbal Machado que tragam informações autobiográficas. Sendo, portanto, romance, resta ainda a discussão, estabelecida em torno de João Ternura, sobre que tipo de romance se trata 40. O próprio Aníbal adverte: “Tratando-se de livro que não é romance no conceito usual da palavra, fiz o possível, usando elipses e equilibrando planos, por assegurar-lhe certa unidade de composição sob a descontinuidade aparente dos fragmentos”41. A crítica literária, não satisfeita com o termo romance, atribuir-lhe-á vasta adjetivação na tentativa de classificar a obra. 40 Importante observarmos que a discussão acerca do gênero é encontrada freqüentemente na crítica acerca da obra de Aníbal Machado. Inicialmente, por exemplo, o escritor chamou seus contos (ou o que hoje se lê como conto anibaliano) de novelas, classificação que Sérgio Milliet colocou em discussão em seu diário. Cf. MILLIET, Sérgio. Diário crítico de Sérgio Milliet, p. 317-322. Segundo Elza Miné da Rocha e Silva, um jornal da época considerou Cadernos de João uma obra inclassificável. Cf. SILVA, Elza Mine da Rocha e. “Uma casa, de mesa posta e luz acesa”. In: Literatura comentada: Aníbal Machado, p. 104. 41 MACHADO, Aníbal. Introdução. In: João Ternura, p. 05. 22 Para Fausto Cunha, João Ternura seria um “romance episódico-rapsódicolírico”42. Já para Raúl Antelo, “depois de Macunaíma, João Ternura é o outro grande não-romance antropofágico”43. Fernando Py afirma que o livro, sendo romance, é também um vasto poema em prosa, não só por causa da carga lírica, mas pela estrutura fragmentada e, propositalmente, caótica. E, ainda: “Sendo romance, foge à construção característica do gênero, semelhando um painel, uma pintura subjetiva (se cabe esse termo), a expressão íntima do autor-personagem que foi Aníbal”44. Ou que se trata de uma bela e trabalhada peça de poesia e prosa imune, para ele, a qualquer rótulo dentro dos padrões habituais. Também Renard Perez, indagando se se trata de romance, afirma que João Ternura não apresenta uma estrutura tradicional. Enfim, embora todos os críticos busquem uma classificação para a obra, cada um a sua maneira, preferimos seguir a abordagem feita por Fernando Py, em 1965, e considerar João Ternura como uma romance que, embora não apresente uma estrutura tradicional, apresenta três partes, podendo o enredo ser dividido em três fases: Como construção, ou melhor, como desenvolvimento do enredo, João Ternura apresenta três fases bem nítidas: a infância provinciana, a vinda para o Rio de Janeiro e a fase final, mais concentrada e metafísica, mais séria, onde reponta uma preocupação quase obsessiva com a morte e suas conseqüências. Essas três fases sofrem tratamento estilístico diverso. A primeira guarda mais o sabor modernista “antropofágico” em que foi escrita: é a mais antiga, mais extrovertida, sem especulações de ordem espiritual. Depois, com a vinda para o Rio, a mudança de perspectivas e ambientes imprime ao livro um tom mais ágil, cheio de cortes cinematográficos, um desenvolvimento sumário de caráter bem mais visual. A imagística se enriquece, o livro se torna mais “filmável”. Enfim, a partir do feérico episódio do carnaval, um dos mais trabalhados do volume, surge, rompendo o esconderijo do segundo plano, a especulação metafísica sob a forma de preocupação com a morte, suas aparências e variedades.45 Essas fases correspondem à trajetória do escritor. Se em 1922, e talvez antes disso, Aníbal já havia iniciado o seu romance, as primeiras partes foram produzidas em 42 CUNHA, Fausto. Aníbal Machado entre a poesia e a prosa. In: Seleta em prosa e verso, p. 137. ANTELO, Raúl. Literatura em revista, p. 158. 44 PY, Fernando. Chão de crítica, p. 235. 45 PY, Fernando. Chão de crítica, p. 236. 43 23 Belo Horizonte e talvez, como sugere Nava, em Aiuruoca. Ou seja, em Minas Gerais. A segunda fase do personagem coincide com a mudança do escritor para o Rio de Janeiro, onde manterá residência até o fim de sua vida. E a terceira fase do personagem, mais metafísica, mais séria, como afirma Py, encontra a preocupação de Aníbal com a morte próxima: o escritor, que retomou o romance no período de 1960 a 1964, terminou a estória de Ternura dias antes de falecer. Importante notar que o comentário de Fernando Py não se reduz a uma relação simplista com a vida do escritor. Isto é, não tratou simplesmente de buscar no romance a sua biografia, mas de ressaltar como o estilo se altera no romance em paralelo às três fases pelas quais compreende a vida do escritor e, conseqüentemente, a trajetória de Ternura. Em nosso estudo, também dividimos o romance em concordância com as três fases referidas. Nessa perspectiva, temos: a primeira parte do livro, referente à infância do personagem, e que se constitui dos dois primeiros livros do romance; a segunda parte, referente a sua ida para o Rio de Janeiro, que reúne os livros de III a V; e a terceira parte, que se compõe do livro VI, em que se dá a morte de Ternura. . Pode-se dizer que a relação entre vida e obra norteou o nosso estudo, que se dividiu em três capítulos, correspondentes ao estudo de cada parte do romance. No primeiro capítulo, mostramos que essa relação é mais forte na primeira parte do romance, quando o narrador trata da infância do personagem. Recorremos a diversos textos que nos forneceram dados biográficos ou informações autobiográficas e impressões do próprio autor sobre sua infância, passada na Chácara Fogo Apagou, em Minas Gerais, mostrando tanto a recorrência a esses dados, quanto o processo de ficcionalização a que são submetidos. No segundo capítulo, constata-se que o uso de dados biográficos diminui na segunda parte do romance, sem, entretanto, que a relação 24 entre vida e obra desapareça. Analisa-se, então, a figura do vagabundo, cuja referência obrigatória é o Carlitos, de Charles Chaplin, procurando-se esclarecer que valores são representados pelo personagem do romance e relacionar esses valores com uma visão de mundo compartilhada pelo autor. No último capítulo, dividimos a terceira parte de João Ternura em duas partes: a que trata do carnaval e a da “dupla morte” do personagem. Ao analisarmos o episódio do carnaval, traçamos uma relação com o surrealismo de André Breton. Aníbal Machado, como se sabe, se manteve em sintonia com as idéias de Breton e foi um dos principais divulgadores do surrealismo no Brasil. A análise da morte da personagem procura compreender a tensão entre uma perspectiva desencantada da vida e a reafirmação da validade dos valores representados pelo personagem. Feito o estudo do romance, refletimos, na conclusão, sobre a posição ocupada por Aníbal Machado no movimento modernista e sua importância na história da literatura brasileira. 25 1. INFÂNCIA À BEIRA-RIO “Mas o meu desejo era voltar para as montanhas de Minas, para a chácara às margens do Rio das Velhas” Aníbal Machado Aníbal Monteiro Machado nasceu no dia 09 de dezembro de 1894 na região de Sabará, Minas Gerais, onde seu pai havia fixado residência. O lugar, que será chamado por sua família simplesmente de chácara, é um terreno, cortado pelo Rio das Velhas e pela Estrada de Ferro Central do Brasil, localizado próximo à cidade histórica. Consultando o Acervo dos Escritores Mineiros da UFMG, encontramos, na Coleção Aníbal Machado, um quadro pintado por Francisco Rocha, datado de novembro de 1927. Pintado com a técnica óleo sobre tela, o quadro, cujo título é Chácara do fogo apagou, pertenceu a Maria Luíza Machado Gontijo, filha do escritor. O título do quadro de Francisco Rocha é significativo, pois Lúcia Machado de Almeida se refere a um fogo que alastrou na região na época ainda da Guerra dos Emboabas, em Sabará. Segundo ela, o lugar onde começou o fogo passou a se chamar Rua do Fogo 26 (atual rua Comendador Viana) e onde o fogo terminou, Rua Fogo Apagou. Esta foi renomeada para Rua Mário Machado, nome de um dos irmãos de Aníbal. Essa região, que se tornou o Bairro Fogo Apagou, fica ladeada pelo Rio das Velhas e pelos trilhos da Central do Brasil. A pintura nos apresenta o casarão ao centro, cercado por algumas árvores, em dia de céu claro. Um caminho nos leva a um portão avermelhado. Este tem uma de suas duas partes aberta e compõe o muro de alvenaria. Atrás deste muro vemos o casarão. Há uma varanda que, aproveitando o declive do telhado, contorna boa parte da construção, compondo-se assim como parte da fachada principal e de duas laterais. O peitoril, que percorre todo o espaço da varanda, possui cor branca assim como as quatro janelas e a porta central, que pertencem à parede azul da fachada mais importante. À esquerda desta fachada principal, vemos uma outra parede frontal mais aos fundos, de cor rosada e com janelas semelhantes. O quadro, conforme a disposição do muro, indica que o casarão se encontra no alto de alguma montanha, e com declive no terreno à direita da construção46. Contando com Aníbal Machado, Virgílio e Dona Marieta tiveram onze filhos. Aníbal e seus irmãos Paulo, Maria Carolina e Lúcia foram escritores47. Os outros irmãos eram: Mário, Virgílio, Anita, José, Otávio, Lucas e o político Cristiano Machado. Nas obras de Lúcia e Paulo, também o tempo e o espaço da infância são referidos. Lúcia Machado de Almeida, no livro infanto-juvenil Menina, menina..., converte em ficção episódios de sua infância48 e em Passeio a Sabará, toma como tema a região em que 46 Ao nos referirmos à Chácara onde Aníbal Machado passou sua infância, utilizaremos o nome Fogo Apagou dado à pintura. Essa distinção se torna importante pelo fato de impedir que seja confundida com a Chácara Nova-Granja, referida por Maria Clara Machado no livro Eu e o teatro, cuja descrição se assemelha muito à de Sabará. 47 Como se pode perceber, a família de Aníbal Machado se caracteriza como uma família de escritores. Sabemos, por meio de Renard Perez, que o pai Virgílio escrevia versos para sua esposa. Registramos ainda que Aníbal era primo do poeta Murilo Mendes. 48 Essa relação é abertamente anunciada em nota à primeira edição: “E como que puxados por uma pinça, foram surgindo do fundo da arca da memória retalhos de infância, desbotados trapos avulsos de dias idos, 27 Aníbal nasceu. No livro de memórias de Paulo Machado, Menino feliz, foram registrados diversos episódios de sua infância e da de seus irmãos ocorridos na Chácara Fogo Apagou. Segundo Renard Perez, o terreno da Chácara Fogo Apagou ficava a uma distância de dois quilômetros de Sabará. Paulo Machado confirma: “O local era singular — a ‘Chácara’ — isolada, em lugar alto, a poucos quilômetros de Sabará, à margem direita do Rio das Velhas, que desli[z]ava embaixo, tendo do outro lado, acompanhando-lhe o curso sinuoso, a linha da Central do Brasil”49. Informa, ainda, que numa distância de oito quilômetros da Chácara se encontrava a Estação de General Carneiro e de suas recordações faz parte a imagem do trem chegando: “da ‘Chácara’, via-se o trem da Central chegar, iluminando, perfurando a noite, do outro lado do rio. Era um deslumbramento vê-lo assim, em demanda da estação próxima”50. O menino Aníbal visitava pouco a cidade mineira, preferindo ficar no velho casarão da Chácara, “em brincadeiras com os irmãos e em contato com a paisagem que o envolvia”51. Mais tarde o autor de João Ternura afirmaria que lia pouco na infância, preferindo admirar a paisagem: “Leu muito pouco na adolescência, procurando antes descobrir o mundo exterior”52. Em A arte de viver e outras artes, o escritor revela os laços afetivos que o ligam à Chácara: ainda palpitantes de vida, incólumes ante a inelutável destruição do tempo”. Cf. ALMEIDA, Lúcia Machado. Menina, menina..., p. 11. 49 O livro de Paulo M. Machado, Menino feliz, trata, em perspectiva memorialística e dividido em episódios, da infância vivida na Chácara Fogo Apagou, antes da mudança da família para Belo Horizonte. Sendo o mesmo espaço, evidentemente o ponto-de-vista é de Paulo. As memórias deste, ou as recordações de sua infância, trazem o seguinte problema para os pesquisadores: o escritor renomeou o nome dos personagens. Assim, ao mesmo tempo em que permite um maior grau de ficcionalização de suas memórias, Paulo dificulta em alguns casos e impede em outros que os personagens sejam identificados com as pessoas reais. O pai Virgílio se torna, no livro em questão, o personagem Cel. Augusto. É possível identificá-lo graças ao episódio “O trator poderoso” do livro em relação a algumas informações fornecidas por Maria Clara em Eu e o teatro. Mas como identificar o menino Aníbal na obra se este teve dez irmãos? Cf. MACHADO, Paulo M. Menino feliz, p. 08. 50 MACHADO, Paulo M. Menino feliz, p. 08. 51 PEREZ, Renard. Aníbal Machado: vida e obra. In: MACHADO, Aníbal. João Ternura, p. xviii. 52 MACHADO, Aníbal. Flash. In: A arte de viver e outras artes, p. 296. 28 Foi nas águas de um rio histórico, o Rio das Velhas, em Sabará, que as lavadeiras nos últimos anos do século passado atiraram o meu umbigo (para que dizer a data?). Esse rio de águas turvas até hoje ainda passa em mim. Quando abri mais os olhos, e comecei a distinguir as cousas, divisei da varanda da chácara onde nasci no alto de uma colina as torres de uma porção de igrejas da velha cidade colonial. Se o vento era favorável, de lá me chegavam, também, sons de sinos.53 O Rio das Velhas, que compõe a imagem da Chácara, tem grande importância na vida de Aníbal. Importância, talvez, instigada pelo pai, que, apaixonado pelo mar, trabalhava na navegação do Rio das Velhas. O menino Aníbal, antes de completar dez anos, atravessará pela primeira vez esse rio a nado: “e antes dos dez anos, comboiado por um preto filho ou neto de um dos escravos de meu bisavô, atravessei [o rio] pela primeira vez a nado. É fácil supor que não dormi aquela noite, tamanha a minha emoção”54. Em Rio das Velhas, velho..., Aníbal reafirma a significação do rio, relacionando-o intrinsecamente com a sua infância: Diante de mim corria o velho Rio das Velhas. Ainda agora ele está abrindo o leito e se espraiando neste papel sem pauta, o Guaicuí dos nossos bandeirantes e primeiros povoadores, o Uaimii dos selvícolas primitivos. Nunca na infância indagamos de onde vêm nem para onde vão os rios que nos molham a vista, porque nos parece indiscutível que eles vêm de onde não se sabe e vão para o fim do mundo. O que nos interessa de um rio, na sua atração indefinida, são as suas praias e seus peixes, os nadadores que o atravessam, as barcas e ajoujos que o descem, as lavadeiras que batem roupa nas suas pedras. São as suas águas que nos atraem e enchem a nossa infância, formando como o fundo fluvial de nossa memória. Um jovem francês, Philippe Soupault, viu o Tamisa e começou a fazer os primeiros versos. Percebeu de repente que era poeta. Quase todos os brasileiros que não são do litoral nasceram junto de um rio ou no vale de algum rio. A gente cresce, vaise embora, mas fica sempre um rio banhando a alma da gente.55 Ao falar de sua época escolar, o escritor se recorda das aulas sobre o Rio das Velhas e faz um paralelo entre a intimidade de menino com o rio e o tom acadêmico e distanciado do professor. Aníbal Machado, que atravessou esse rio a nado quando 53 MACHADO, Aníbal. Autobiografia. In: A arte de viver e outras artes, p. 289. MACHADO, Aníbal. Autobiografia. In: A arte de viver e outras artes, p 289. 55 MACHADO, Aníbal. Rio das Velhas, velho... In: Parque de diversões, p. 234. 54 29 menino, prefere o sabor de suas aventuras, as suas próprias impressões a um conhecimento preciso e racional: Rio das Velhas... As perguntas que me fazia o professor, eu me envergonhava e quase chorava de ignorância. — Eu sei, doutor, eu sei, espere um pouco... Eu nasci juntinho dele, já atravessei ele a nado. E o professor falava sobre o Rio das Velhas, como certos psicólogos da Sorbonne discorrem sobre o amor sem nunca terem tido um caso. E eu fui informado de tudo. Ele nasce na serra do Capanema, na linha de divortium aquarum dos rios Paraopeba e Doce, em zona de formação paleozóica, no município de Ouro Preto. Com o Rio das Velhas, o Paraopeba é também contribuinte do São Francisco, ao passo que o Rio Doce, afastando-se, aumentando sempre as suas águas, toma a direção do mar. Calculam-lhe extensão entre 1.130 e 1.150 quilômetros. São as curvas que o fazem tão comprido assim e lhe diminuem a velocidade das águas. Entretanto, se ele corresse em linha reta, seria reduzido à terça parte do tamanho. Embora não haja sobre a terra nenhum rio que queira correr em linha reta, o Rio das Velhas abusa do direito de descrever curvas, o que é um encanto para quem o contempla.56 O Rio das Velhas da infância de Aníbal é largo, denso e navegável. Muito diferente do que se tornou já com o escritor adulto, como observa, desgostoso, no mesmo texto: Eu vi uma mulher atravessar o rio a va[u], arregaçando a saia até onde a moda a colocou atualmente. Ela não podia perder a missa na colina da margem oposta. A ponte estava longe e o vigário era rápido. Essa cena mais católica do que esportiva, significava para mim a desmoralização completa da força do rio. E eu senti a sensação do orgulho com que na infância atravessei pela primeira vez as suas águas e alcancei com o peito arfante as areias do outro lado. Veio uma insônia feliz. De vez em quando eu abria a janela e olhava para o bruto que o luar me mostrava embaixo, roncando as águas que eu tinha vencido. Eu me sentia um colosso. Entretanto, aquela mulher foi fazer aquilo...57 A decadência do Rio das Velhas, com a diminuição do volume de suas águas, é representada no conto “Viagem aos seios de Duília”, quando o rio aparece “emagrecido” aos olhos do personagem José Maria. Em João Ternura, entretanto, encontramos é o rio em sua exuberância. O espaço da infância continuará a ser para Aníbal Machado, até o fim de sua vida, significado de terra da felicidade. 56 57 MACHADO, Aníbal. Rio das Velhas, velho... In: Parque de diversões, p. 237-238. MACHADO, Aníbal. Rio das Velhas, velho... In: Parque de diversões, p. 246. 30 A primeira parte do romance João Ternura é a que apresenta maior aproveitamento de dados biográficos. Embora constituída por fragmentos, a história da infância de João Ternura pode ser lida numa linha de progressão. O livro I reconstitui o nascimento e a primeira infância do personagem, terminando com a entrada no colégio do Rio de Janeiro. No livro II é narrado o retorno de João Ternura à chácara, seu ingresso num colégio de padres da região, de onde fugirá e retornará para a chácara. Tal como os pais de Aníbal, Antônio e Liberata fixam residência em uma chácara, numa casa grande, em terreno à beira de um rio, nas proximidades de uma cidade colonial: Nela [barca Beija-Flor], há dezenove anos, eu descia o rio em viagem de núpcias... Na proa, um dos barqueiros tocava sanfona. Eu aproveitava a música e o silêncio das margens para beijar Liberata. Nossas sombras faziam uma só no espelho das águas... Quando encostamos no barranco, uma cidade colonial piscava lá em cima seus lampiões de querosene. E os sinos da velha Matriz tocavam a ave-maria. Descemos para o pernoite. E numa casa grande, não longe dela, ficamos para sempre. Ainda não havia Ternura. (p. 60-61) Além de assim ficarem estabelecidas as relações com a Chácara Fogo Apagou, o episódio em si guarda um fundo biográfico: de forma muito semelhante Virgílio Cristiano Machado realizou a sua viagem de lua-de-mel. Segundo Renard Perez, o pai de Aníbal Machado enfeitou um barco e o usou para descer o Rio das Velhas: “para sua lua-de-mel, Virgílio preparou um barco enfeitado com arcos recobertos de rosas e entrelaçados de guirlandas. Com sua jovem esp[o]sa, desceu nesse barco o Rio das Velhas”58. Não é mera coincidência, também, a escolha da profissão do pai de Ternura. Como o de Aníbal, que trabalhava na navegação do Rio das Velhas, sua profissão está ligada ao rio. Antônio, no romance, possuía barcas que transportavam as mercadorias pelo rio, mas com a inauguração da estrada de ferro, perderá o negócio: “Desde que 58 PEREZ, Renard. Aníbal Machado: vida e obra. In: MACHADO, Aníbal. João Ternura, xvii. 31 inaugurou o ramal da via férrea, compridas composições com a locomotiva apitando na frente transportam o grosso das mercadorias. Não mais as barcas do pai” (p. 60). Como o pai de Aníbal, o de João Ternura é um homem dado a muitas viagens. O seu trabalho de alguma forma já anuncia essas viagens e uma certa ausência durante a criação de seu filho. Aníbal conta sobre as chegadas de seu pai da seguinte maneira: “Meu pai viajava sempre e quando chegava minha mãe o recebia debaixo dos bambuais, de vestido novo, pálida de emoção. Nós esperávamos que os beijos acabassem para receber os presentes”59. No romance, o personagem se refere aos “caixotes de presentes que vinham do Rio de Janeiro. Era uma delícia essa exploração de malas e caixotes, que tornava possível o encontro de grandes novidades” (p. 40). No livro de Paulo, Menino feliz, encontramos o mesmo entusiasmo do menino mediante a chegada do pai associado aos presentes vindos do Rio de Janeiro: Atravessando o rio na barca, presa ao cabo aéreo, alguns minutos mais, precedido de grandes malas, lá vinha o pai a cavalo. Devia ser [e]le, pois a atenção do menino já estava com exclusividade absorvida no que chegava na frente — a mala enorme, sempre trazida pelo Egídio, retendo em seu b[o]jo as balas de [o]vo. Oh, as balas de [o]vo! Tinham maior importância que o pai... Vinham do Rio de Janeiro e nunca faltavam.60 Outros detalhes da história do personagem também conferem com os da história do autor. Tal como Aníbal, Ternura nasce no mês de dezembro. Não há coincidência de data, uma vez que o escritor nasceu no dia 09, e Ternura numa noite de Natal, no momento mesmo em que os sinos ressoam: “De repente, ao ressoar mais forte dos sinos no céu da noite, o quarto se encheu de um cheiro de criança nova e houve alvoroço por toda a casa” (p. 10). 59 60 MACHADO, Aníbal. Autobiografia. In: A arte de viver e outras artes, p. 289. MACHADO, Paulo, M. Menino feliz, p. 08. 32 Tal como o escritor, que foi “amamentado por mãe preta, como bom mineiro”61, o personagem teve que ser amamentado por Isabela: A mãe de Ternura chorou porque chegou um médico de cavanhaque e disse da porta do quarto, em voz fanhosa, que o leite não prestava, que a criança morreria, e que o defeito dele é ser franco. João Ternura então mamou em Isabela que não tinha marido, mas que era boa de leite. A mãe de Ternura tinha raiva de Isabela. (p. 12) Há outros personagens, além dos pais de Ternura, que podem ser relacionados com a infância do escritor: é o caso das lavadeiras, que atiram tanto o umbigo de Aníbal quanto o de Ternura ao rio, e das tias. O personagem Isaac pode ter ligação com o menino negro, descendente de escravo que pertenceu ao bisavô do escritor, que o ajudou a atravessar o Rio das Velhas quando menino. Alguns episódios do romance ajudam na constituição detalhada da localização da chácara, em clara associação com a Chácara Fogo Apagou. Em um deles, quando Ternura foge de casa para ir ver o trem, o casarão é visto de longe: Quando a porta da cozinha se abriu, ainda de madrugada, Ternura saiu ao terreiro, ganhou o pasto, respirou a neblina que escondia as vacas, e transportou-se de canoa para a outra margem do rio. Subiu o barranco. Lá de longe, avistou a chácara entre as mangueiras, e a cidade enevoada para onde seguia o rio. Já seus pés descalços pisavam o chão negro de coque moído. Seis linhas de aço paralelas internavam-se num grande armazém cinzento, de madeira e zinco. (p. 29-30) Além de se confirmar a localização à margem de um rio, perto de uma cidade, detalha-se que a casa se encontra cercada de mangueiras e próxima dos trilhos da estrada de ferro. No episódio “Manga madura”, do livro de Paulo Machado, encontramos uma referência à existência de mangueiras ao redor da Chácara de Sabará: “as mangueiras que cercavam a ‘Chácara’ eram enormes, generosas” 61 62 MACHADO, Aníbal. Flash. In: A arte de viver e outras artes, p. 295. Cf. MACHADO, Paulo M. Menino feliz, p. 15. 62 . E tanto os 33 trilhos que levam João Ternura ao Rio de Janeiro quanto os trilhos que cortam a Chácara Fogo Apagou pertencem à Estrada de Ferro Central do Brasil63. No romance, os comentários sobre uma cidade que é construída próxima à cidade colonial despertam o interesse do personagem: A cidade que nasce — A princípio as pranchas vinham apinhadas de trabalhadores; depois, carregadas de barricas, picaretas, tubos, manilhas. Passaram os guindastes, os caminhões. O pai explicou que há mais tempo tinham seguido os engenheiros para o levantamento; e, na frente dos engenheiros, os compradores de terrenos, de olhos vorazes. [...] Deve ser uma cidade enorme! — disse Ternura. Procurava no horizonte sinais de poeira; e no ar, os barulhos da construção. (p. 59) Essa cidade que nasce pode ser associada a Belo Horizonte. Em “Rio das Velhas, velho...” Aníbal, comentando a história desse rio, traça a relação: “Seu vale atraiu a princípio os bandeirantes, depois os mineradores, os cientistas, os criadores, os comerciantes, os revolucionários liberais e os soldados legalistas de Caxias”, escreve, “e depois ainda atraiu os trilhos da ‘Central’ e os engenheiros brasileiros que foram fundar Belo Horizonte”64. A construção de Belo Horizonte, próxima da velha Sabará, participará do imaginário do menino Aníbal Machado e de seus irmãos, cidade para onde a família do escritor se mudará, fixando residência, na década de 20, na rua Tupis 303, conforme nos informa Pedro Nava. Aníbal segue para Belo Horizonte antes de sua família: “Em 1913 meu pai internou-me no Colégio D. Viçoso em Belo Horizonte, que era então uma cidade mausoléu, de tão silenciosa”65. De todos os elementos que compõem a chácara, o rio será o mais importante para o personagem, assim como o Rio das Velhas possuiu grande significado para o escritor Aníbal Machado. Além do umbigo de João Ternura que é jogado ao rio, também a 63 Ainda hoje existe nas ruínas da antiga estação de Sabará as siglas EFCB. MACHADO, Aníbal. Rio das Velhas, velho... In: Parque de diversões, p. 234-235. 65 MACHADO, Aníbal. Autobiografia. In: A arte de viver e outras artes, p. 290. 64 34 pedra que encontra dentro do rio e que ele carregará por grande parte de sua vida é um símbolo que liga a vida do personagem ao rio e à infância. Entretanto, se Aníbal Machado deixa em João Ternura marcas biográficas evidentes, de modo também evidente usa de procedimentos para distanciar a figura do personagem da de sua própria. De início, o pacto autobiográfico é quebrado pela não identificação do nome do personagem com o do autor, fundamental, como observa Philippe Lejeune, para os gêneros memorialísticos. No mesmo sentido, é significativo que, no romance, tanto a chácara quanto a cidade próxima e o rio não estejam nomeados, não se fechando, assim, uma imagem que deve permanecer aberta. Significativa, portanto, é a informação de Raúl Antelo, de que o artigo “Rio das Velhas, velho...” faz parte dos textos prévios do livro João Ternura, mas que o autor não incluiu o texto no romance. Aníbal evita, assim, a identificação imediata e direta entre ele e João Ternura. Por outro lado, o próprio uso de dados biográficos para a composição de um mundo romanesco — procedimento fundamental do romance — implica na transfiguração, e não na mera transposição, desses dados. Assim, a imagem da chácara, ao mesmo tempo que guarda “fidelidade” ao espaço referencial, vivido pelo escritor, reveste-se de um outro significado, que diz respeito a uma processo de idealização da infância. Nesse sentido, ela pode ser relacionada com as considerações feitas por Gaston Bachelard, em seu livro A poética do espaço. O filósofo utiliza a imagem do ninho, elemento de condução que desperta em nós uma primitividade que está ligada a um psiquismo imaginante, para caracterizar o espaço da infância como um espaço feliz: “Descobrir um ninho leva-nos de volta à nossa infância, a uma infância. A infâncias que deveríamos ter tido”66. 66 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço, p. 106. 35 Segundo Bachelard, a imagem do ninho está relacionada com a imagem da casa velha, o espaço da infância, a casa-ninho, estando marcada pelo signo do retorno. Daí a necessária distinção entre essa imagem e a simples lembrança dela. Em A terra e os devaneios do repouso, o filósofo compara a casa real à onírica: O mundo real apaga-se de uma só vez, quando se vai viver na casa da lembrança. De que valem as casas da rua quando se evoca a casa natal, a casa de intimidade absoluta, a casa onde se adquiriu o sentido da intimidade? Essa casa está distante, está perdida, não a habitamos mais, temos certeza, infelizmente, de que nunca mais a habitaremos. Então ela é mais do que uma lembrança. É uma casa de sonhos, a nossa casa onírica.67 Assim, a casa perdida vale menos do que as lembranças que guardamos dela, ou melhor, às lembranças que participam do sonho de voltar à casa natal. Trata-se de uma imagem aberta. Não interessa a Bachelard um possível encontro com a terra do passado, a casa como construção ou prova de um passado. Interessa como imagem perdida conservada na memória, nas lembranças, como sinônimo de um espaço feliz. A literatura também teria esse papel de conservar a casa imaginária de seu escritor e de despertar o interesse do leitor pela sua própria: “Uma das provas da realidade da casa imaginária é a confiança que tem um escritor de nos interessar pela recordação de uma casa da própria infância. Basta um sinal que atinja o fundo comum dos sonhos”68. No romance João Ternura, a chácara exerce o mesmo papel. E como “casa imaginária”, a Chácara Fogo Apagou, ou melhor, a infância de Aníbal Machado, é buscada, idealizada e transfigurada. Alguns episódios são significativos para a explicitação desse procedimento. Em “Autobiografia”, Aníbal fala sobre a educação recebida em casa, quando criança: 67 68 BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso, p. 75. BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso, p. 79. 36 Era preciso prepararmo-nos para a vida. Minha mãe enfraquecida pelo último parto, nada conseguia. Foi mandada vir uma alemã, educadora conhecida, mulher enorme, enérgica, ilustrada. Obrigou-nos a horário, à aprendizagem do alemão, à disciplina de colégio. A casa perdeu subitamente o encanto, a vida ficou triste. Minha irmã no piano chorava aos pitos da severa educadora. Feliz era o pretinho que ia campear os cavalos na várzea. O rio nos provocava pela janela, à hora das lições. A natureza ficava como que nos esperando. Pensou-se em dar-nos uniformes. Rebelamo-nos todos.69 Em João Ternura, Aníbal Machado recupera a experiência e, transformando-a, busca uma imagem feliz para a infância de seu personagem, em que não caberia uma educadora alemã que, severa, trazia tristeza a todos de sua casa. Na perspectiva do romance, encontramos o passado de Aníbal refeito, ficcionalizado, numa dimensão mais terna: Escolha da professora — Mamãe, a magra, não. Eu quero ficar é com a gorda. A gorda é quente, quente... (p. 16) Em outra cena, num momento de solidão, o personagem gostaria de desfrutar da companhia da professora, o que demonstra, ao invés de repulsa, afetividade: Ó professora que dorme lá em cima na casa fechada, com os rios do mundo na cabeça e a nostalgia do marido no coração, vem tomar conta da gente, enquanto as barcas não descem da noite. Me tira do barranco. Eu não quero dormir junto desse corpo de águas móveis e de vegetais crescendo. Sinto os pés de chumbo se enterrando nas areias. Me tira do barranco... (p. 27) Outro episódio de interesse é o da visita da prima à casa de João Ternura. Em “Autobiografia”, Aníbal narra um episódio muito próximo. Trata-se de seu primeiro contato e primeiro deslumbramento diante da natureza feminina. O escritor nos mostra como foi sua atitude diante da beleza de uma menina de quatorze anos: Certa vez fora jantar em nossa casa uma menina de quatorze anos. Tão bestificado fiquei diante de sua beleza, que perdi o caminho da boca e já ia levando o garfo na direção dos olhos, quando a gargalhada de todos me interrompeu cruelmente e eu me retirei da mesa para chorar. Foi a minha primeira agonia diante de outra força da natureza. A adolescência havia chegado. Daí por diante comecei a freqüentar o rio menos 69 MACHADO, Aníbal. Autobiografia. In: A arte de viver e outras artes, p. 290. 37 por ele do que pelas lavadeiras que batiam roupa às suas margens. Imagem de moças, de criadinhas e primas já me circulavam pelo sonho. Coisa curiosa: sempre misturadas às águas do rio, dos tanques ou das lagoas.70 Se o menino Aníbal fica bestificado diante da menina de quatorze anos e, diante de sua beleza, resolve fugir ou se esconder, João Ternura não se retirará, tal qual Aníbal, da mesa para chorar, mas enfrentará a beleza da menina que o visita dando-lhe um beijo: A prima entrou toda diferente. O corpo dela desprendia um calor vermelho, e ela parecia mesmo maior e mais macia. Ternura também começou a ficar maior, cresceu, cresceu, abriu os braços; quando os fechou a prima estava dentro, feito um passarinho. Ternura beijou-a. Mas as tias viram tudo, e ele, ao percebê-las, parecia que tinha caído de um vôo. A desgraça entrou em casa. (p. 26) Visto pela família do personagem como algo necessário de se repudiar — “...foi justamente perto daquele sofá. O capeta entrou no corpo dele” (p. 26) —, o episódio, considerado pelo narrador como um “desastre moral do menino”, não deixará de ser o momento de glória do personagem e não trará espécie alguma de arrependimento com relação a seu ato. Como percebemos, então, a semelhança que encontramos na obra e na vida do escritor vem transformada, reparada, trabalhada, pela ficção. É o que acontece no que diz respeito à vida escolar do escritor. No mesmo texto autobiográfico, Aníbal Machado conta, sobre a vida de interno no Colégio Dom Viçoso, em Belo Horizonte: Privado da vida ao ar livre, tornei-me retraído e tímido. Veio-me a vontade de aprender. Eu estimava bastante o diretor, mas tinha uma vontade secreta de incendiar o seu colégio. Fiquei triste de repente, à procura difícil de outros irmãos que não os de sangue. O colégio não tinha conforto, sendo embora o melhor da época. Rezávamos alto e sem fé naquele seminário leigo. O futebol nós o praticávamos com grande entusiasmo e bola de meia de mulher numa área minúscula de duzentos metros quadrados de poeira. À noite, os percevejos nos festejavam. Expedições desses bichinhos vi descer pelo rosto de alguns companheiros que ressonavam. Chorava de desespero e no dia seguinte já me faltava o humor para me divertir com o professor de 70 MACHADO, Aníbal. Autobiografia. In: A arte de viver e outras artes, p. 290. 38 matemática que limpava as mãos cheias de giz no fraque austero. Nunca apanhei nem nunca bati; não sei por que me respeitavam.71 Se em sua vida o colégio de padres representa uma época em que se viu entristecido, com vontades que não se realizavam, ou seja, se nessa época havia uma apatia e uma aceitação do mundo por parte do escritor, em seu romance isso novamente será convertido em atitude diante do mundo, na poética fuga do colégio dos padres narrada no final do livro II. João Ternura, fugindo do casarão onde os padres ensinavam latim, ao mesmo tempo em que busca a sua liberdade, demonstra atitude diante de seu mundo: “Era a revolta contra as trevas, o mofo, a angústia” (p. 61). Por outro lado, o episódio funciona como uma concentração de outra “força” atuante em toda a primeira parte do romance e que faz parte da constituição do personagem: o anseio de liberdade. Nessa perspectiva, pode-se falar da presença de uma outra imagem da infância, em que o personagem se confronta com o mundo fechado da chácara. 1.1. Anseio de liberdade Faz sentido, então, a análise do nome da mãe de Ternura, Liberata, do latim liberata, que significa “posto em liberdade, libertado, desatado”. Por outro lado, pode ser decomposto em liber, “liberdade”, e ata, que prende, que aprisiona. Temos assim o paradoxo daquilo que liberta e aprisiona ao mesmo tempo. Deslocando essa relação para João Ternura, poderíamos pensar num personagem que vive o paradoxo de, ao mesmo tempo, ansiar por sua liberdade, estando, entretanto, fortemente ligado ao espaço da 71 MACHADO, Aníbal. Autobiografia. In: A arte de viver e outras artes, p. 290-291. 39 chácara de seus pais, à sua mãe que, no dia de dar à luz, “sentia-se enorme como a Terra” (p. 09) e, nesse sentido, à sua mãe-terra. O confronto com o mundo é representado em uma das primeiras cenas da infância do personagem: A porta indiferente. Abre, porta! Abre, porta! A criança chora e a porta não se abre. A criança grita e a porta não se abre. Até então, não havia obstáculo que a criança conhecesse. Agora, ela já está berrando e a porta não atende, a porta nem dá sinal! E não vem nem mãe, nem tia, nem criada, nem ninguém. Como é que a porta faz isso? Ó porta, a criança chora e o milagre ainda não se fez. Diabo de porta, porta!... A criança está sofrendo! (p. 15) Embora revestida de delicadeza poética, a cena não deixa dúvidas quanto ao questionamento da imagem da infância como espaço de plenitude e felicidade. Ela como que concentra uma série de episódios em que o personagem é caracterizado pela vontade de se aventurar no mundo. O primeiro desejo da criança diante do mundo é anunciado, no romance, pela tentativa de fazer a porta se abrir sem tocá-la. Ainda que ela chore e grite, a porta não se abre e ninguém surge para satisfazer a sua vontade. Podemos entender essa porta fechada, ou melhor, essa tentativa de Ternura abrir a porta, como uma metáfora de sua busca por liberdade e o seu constante interesse pelo desconhecido. O confronto com o mundo surge, evidentemente, na impossibilidade de abrir a porta: “Diabo de porta, porta!... A criança está sofrendo!”. Esse interesse pelo desconhecido ocorre de modo gradativo no romance. Aos poucos João Ternura vai conquistando a sua liberdade e explorando a região em que se encontra a chácara paterna. Nesse sentido, um objeto significativo é o binóculo, com o qual, ainda da varanda da casa, o personagem poderá avistar lugares a que ainda não pode ir. Aníbal Machado conta que, em sua infância, Dona Marieta usava um binóculo para vigiar as brincadeiras 40 dos filhos, ao mesmo tempo deixando-os “desfrutar” da liberdade, sem, entretanto, perder o domínio sobre eles: Quando os comboios que vinham do Rio de Janeiro passavam na margem oposta, já nos encontravam dentro d’água, ao sol, fazendo gestos para os passageiros. Minha mãe nos prendia sempre que de binóculo verificava a obscenidade deles. 72 No romance, o binóculo alcança um outro significado: tanto será usado para Marina, tia de Ternura, namorar de longe o seu telegrafista, quanto para João Ternura descobrir o mundo: “Delícia pegar o binóculo e caçar imagens ao longe. A maquinazinha de aumentar o mundo alegrava as manhãs na varanda” (p. 25). Assim sendo, Ternura verá no binóculo uma forma de ir mais longe, mesmo que sem sair de casa. O quintal da casa será o próximo espaço das aventuras de Ternura. O personagem encontra asas de anjo entre objetos guardados num baú, onde havia “muitas novidades com cheiro de naftalina” (p. 39). Carregando-as debaixo do braço, segue escondido até o quintal, onde planeja voar. Essa tentativa de voar representa, assim como o episódio da porta, a busca pela liberdade e pelo desconhecido, a vontade de explorar cada vez mais o mundo que o cerca. A primeira tentativa é falha: Tinha certeza de que ia voar, mas o vôo não se iniciava. Começou outra corrida na direção da várzea. Devia ser assim mesmo: quando menos esperasse, o vôo pegaria e depois... era só dizer adeus cá para baixo e ver o efeito. Dava saltinhos. Faltava apenas uma coisinha à-toa. Ainda tinha muito peso, talvez. A questão era começar. Tentou novamente. Dessa vez o cachorrinho o seguiu, latindo atrás. Quase se atirou pelo barranco. Que vontade de voar lhe veio agora! (p. 41) A criada avisa Liberata e as tias e, da janela, os adultos assistirão às corridas do menino. A frustração de Ternura com as asas que não funcionam aumentará com a presença dos adultos. Novamente temos, associada à vontade de se aventurar, o 72 MACHADO, Aníbal. Autobiografia. In: A arte de viver e outras artes, p. 290. 41 confronto com a rispidez do mundo: “De repente, ouviu-se barulho no galho da ameixeira. Ternura despencou no chão. As galinhas se assustaram. As asas não tinham funcionado” (p. 41). O personagem, que tentará novamente voar correndo em direção à várzea, logo terá de reconhecer a impossibilidade de voar: Correu outra vez com a respiração presa. Já nem podia mais. Estava desanimado. Que pena! Houve um momento em que esteve quase... quase! Retirou as asas e estraçalhou-as. Só tinham beleza. Entretanto, qualquer urubu... que raiva!... (p. 41) A frustrada tentativa de voar de João Ternura pode ser entendida como a sua própria situação de menino na chácara dos pais: um desejo de liberdade limitado pela situação de filho e de dependente dos outros. Importante observarmos ainda que nesse propósito de voar aparece uma outra característica importante do personagem, o de ser sensível aos problemas do mundo: “No alto da serra tinha criança com febre; era possível que voasse também até lá levando remédio” (p. 40). Ainda não muito distante da casa paterna, mas já se aventurando pela região, Ternura viverá outro episódio importante, quando decide ir ver de perto o trem: Quando a porta da cozinha se abriu, ainda de madrugada, Ternura saiu ao terreiro, ganhou o pasto, respirou a neblina que escondia as vacas, e transportou-se de canoa para a outra margem do rio. Subiu o barranco. Lá de longe, avistou a chácara entre as mangueiras, e a cidade enevoada para onde seguia o rio. Já seus pés descalços pisavam o chão negro de coque moído. Seis linhas de aço paralelas internavam-se num grande armazém cinzento, de madeira e zinco. (p. 29-30) Pode-se dizer que a proximidade com a chácara garante uma certa segurança ao menino. Mas o personagem, que chega a pensar na companhia de Isaac, realiza sua aventura ainda de madrugada e sozinho. O encontro com a locomotiva revela o temor e a satisfação de Ternura: A locomotiva devia estar dormindo. Podia agora ser vista de perto. Ao mesmo tempo que desejava um companheiro, o Isaac por exemplo, pois se sentia amedrontado como junto da 42 jaula de um leão — Ternura preferiu ir sozinho para gozar melhor a aventura. A linha férrea rasgava a serra num corte vermelho e seguia, depois da curva dos cajazeiros, para longe, para outros países. Teve ainda que atravessar uma cerca de arame, saltar um bueiro. Ei-lo finalmente diante da locomotiva: — Ah! (p. 30) A máquina confunde-se, na perspectiva do menino, com a imagem de um bicho ou monstro: Carecia de energia bastante para ver aquilo, não estava em idade de aproximar-se de tão poderosa coisa. O coração batia-lhe forte. E se ela apitasse de repente, se mexesse e desandasse — que seria dele ali dentro, sozinho, com o monstro cujas intenções desconhecia? Na verdade, a locomotiva aparentava calma. Mas ele sabia que sua índole era violenta, a prova estava na fúria com que subia a serra e fazia estremecer os pontilhões. Quantos bois já não esmigalhara. Entretanto, pelo que parecia, ou estava distraída no momento, ou era mesmo mansa. Ternura foi fazendo intimidade. Tocou-a com o dedo, sentiu um arrepio. O seu dedo na pele do gigante! (p. 30) A idéia de não estar ainda em idade de se aproximar da locomotiva colabora para o contraste existente entre o trem — um monstro, um gigante — e o menino, pequeno e indefeso. Diante de tamanha coisa, o coração bate-lhe forte. Essa imagem nova foge da previsibilidade do mundo adulto: “e se ela apitasse de repente, se mexesse e desandasse — que seria dele ali dentro, sozinho, com o monstro cujas intenções desconhecia?”. O fato de a locomotiva se encontrar calma, talvez adormecida, instiga João Ternura a explorá-la. Ele sabe que ela é violenta, pois já pôde observá-la de longe, furiosa, subindo a serra. Mas a sua curiosidade leva-o a tocar a pele do gigante, a estrutura férrea do trem. Observando o trem de perto, o personagem começa a perceber que se trata de uma máquina, cheia de peças e equipamentos: Tornou a espiar de perto. Quanta peça entrelaçada. Alguns tubos vinham de longe, encurvavam-se, de repente afundavam nos intestinos do gigante e repontavam vermelhos; as rodas da frente, de tão pequenas, pareciam de brinquedo; as outras, as que esmagavam os bois, metiam medo. Eixos, manivelas, bielas, cilindros, pistões e, no meio, o bojo do fogo. (p. 30-31) 43 Já observando a máquina de frente, Ternura volta a considerá-la como um monstro, do qual sente medo e admiração: ...Ternura deu a volta, foi observar de frente. — Ih! olho medonho!... Novo arrepio. Vista de frente, parecia que a máquina vinha devorá-lo em grande velocidade. A chaminé exalava fiapinhos de fumaça. Acamarado com a locomotiva, com a sua locomotiva, Ternura, meio pálido ainda, sentou-se no limpa-trilhos. (p. 31) No entanto, a narrativa utilizará o pronome possessivo (“sua locomotiva”) para mostrar o início de uma intimidade entre Ternura e o trem. A proximidade chega então ao ponto máximo: “buliu num parafuso. O monstro não se importou. Ternura fecha os olhos, e começa a viajar...” (p. 31). A relação entre o trem e o sonho da viagem é clara. O corte do devaneio, entretanto, não tarda: — Ó guri, isso aí não é lugar de dormir! Era o vozeirão do guarda-chaves. O viajante imaginário levanta-se, ao mesmo tempo que a locomotiva dava um resfolego forte, emitindo vapor. Parecia um suspiro profundo. Ternura salta para trás, tropeça numas latas de óleo e cai. O despertar do gigante! Ainda no chão, o menino recebe uma rajada de vapor. Perturba-se. Mal pôde ouvir a voz que o chamava. O vapor parecia dar maior propulsão e vulto a essa voz. Em meio do alarido e da fumaça, cheio de respeito, sentiu que a locomotiva estava dando uma demonstração de seu poder infernal. (p. 31) Tanto o barulho quanto a fumaça, demonstração de que o monstro possui um poder infernal e está despertando, une-se à voz de repreensão do guarda-chaves. A aventura do personagem termina assim diante da demonstração de poder da locomotiva e em meio ao próprio medo que, diante dela, sente. Após a sua aventura do outro lado do rio, resta ao personagem voltar para a casa dos pais. Essa volta será comparada a uma volta à prisão: A criada tivera ordem de apanhar o menino onde quer que fosse encontrado. Ternura desceu o barranco, tomou de novo a canoa. Só então percebeu que um pouco de sangue lhe gotejava da perna. A cidadezinha já estava nua, ao sol. Subiu o caminho de cascalho. Foi entregar-se à prisão. (p. 31) 44 As próximas aventuras do personagem alarga a exploração das redondezas. À medida que Ternura atende, por meio de suas aventuras, à sua necessidade de conhecer mais sobre as coisas do mundo que o cerca, mais se permite distanciar da casa em que vive. Por outro lado, o retorno do personagem à chácara sempre se ligará a uma nova perspectiva, a uma representação diferenciada do espaço da casa. O relato da aventura na fazenda de Zé Lourenço mostra bem essa mudança: — Lá no sítio de Zé Lourenço onde eu fui é um lugar bonito, muito melhor do que isto aqui... É longe, longe mesmo... Eu saí sozinho, andei... andei... não tive medo. Eu mais o Piquira. Nós atravessamos uma mata feia, mas lá eu rezei um tiquinho e tirei minha faca. O Piquira é um cavalo muito bom. Quando chegamos num lugar bonito, tinha uma porção de bananeiras, tinha um córrego, tinha um moinho. Me disseram que era a fazenda do Zé Lourenço. As moças me agarraram, perguntaram de quem é que eu era filho. Eu respondi que era filho de você e de papai. Me deram cana pra chupar, me mostraram uma porção de bichos e um sagüi danado de parecido com o Isaac; uma moça muito bonita me apertou; eu trouxe o retrato dela. Depois, eu mais o Piquira voltamos com o Pai Joaquim. O Piquira é um cavalo estupendo... Mamãe, o rio lá pra cima é muito mais bonito e tem uma porção de praias. Quase que eu descobria donde é que vem esse rio... (p. 35) Descobrir que, naquela região, o rio e o sítio de Zé Lourenço são bonitos representa não só o acesso do personagem a lugares por ele desconhecidos, mas possibilita-lhe comparar a chácara paterna com as paisagens vistas. Assim, João Ternura descobre que o terreno de seu pai é muito inferior ao do Zé Lourenço e que também o rio, lá, é mais bonito e tem praias diferentes das que conhece. Por outro lado, a casa continua sendo um lugar de refúgio e afetividade. A reação da família dá a dimensão ao personagem da preocupação e do amor de toda a família: “[Ternura] Saltara da garupa de um cavalo pampa montado por um sitiante. Produziu-se um tumulto na casa; braços amorosos disputavam, carregavam o menino como a um vitorioso; faziam-lhe perguntas, riam e choravam todos” (p. 35). Trata-se, de certa forma, da construção da imagem da infância que ele carregará por toda a vida: imagem dos tempos de ingenuidade e felicidade que será perdido e passará a viver por meio de sua memória. 45 A viagem para o Rio de Janeiro, onde será internado em um colégio, representa a maior experiência do menino com o mundo externo à chácara e anuncia a ruptura que se dará na segunda parte do romance: E.F.C.B. — O trem chegou, medonho. Parou por favor. Era agudo e comprido. Estava impossível na plataforma. Soprava de raiva. E vinha doirado da poeira do sertão. Puseram Ternura dentro. Ele fez barulho, os passageiros de guarda-pó abriram os olhos vermelhos. Homens queimados que vinham do fundo do Brasil. Não tinha moça. Um apito. A paisagem começa a cirandar. Os bambuais devagar, o mandiocal correndo, a guarida de Maria do Carmo numa chicotada, e mamãe, coitada, ficando longe!... — Voltar a gente não pode mais, não é, papai? (p. 51) De dentro do trem, Ternura verá a chácara ficando para trás. Estar dentro do trem é resolver o mistério da locomotiva, é aumentar a sua intimidade com a máquina, a sua locomotiva, sinal de que um mundo inteiro que o personagem não conhece se revelará no fim da estrada de ferro. É, afinal, a certeza do retorno impossível: “Voltar a gente não pode mais, não é, papai?”. Assim, o primeiro contato com a cidade grande explicita essa segunda força da primeira parte do romance que estamos analisando. O contato com a cidade grande deixará atônito o personagem. Pela carta que envia para sua mãe, é possível observarmos a percepção das novidades que lhe surgem: Mamãe eu já cheguei isso aqui é uma beleza mas há muita desordem. O povo aqui é muito afobado não se sabe bem o que eles querem, passam diversos bondes e automóveis vendem muitos jornais. Viajei a noite inteira, a viagem foi horrível. Este mundo é enorme e eu comi todos os pastéis. A escuridão não deixou a gente apreciar bem o Brasil. Eu queria saber até onde é que ia o rio não pude fiquei danado porque quando cheguei na janela apareceu um que me disseram que era outro, lembranças a todos. João P. S. As vendas aqui botam as coisas bem na porta e ninguém rouba nada eu fico admirado. Nunca vi tanta moça. Fala com Isaac que só navios já vi mais de mil. João. (p. 54-55) Logo se estabelece então a diferença do seu lugar de origem, do interior, com a cidade onde se encontra: tudo é mais veloz, há bondes e automóveis, e, além do mar, Ternura viu também os navios, o que certamente causará inveja no companheiro Isaac. 46 O mundo é enorme e há muito nele para se conhecer. Internado no colégio, porém, Ternura se verá impedido de viver esse novo mundo. Atrás do muro alto, que barulheira!... Mercadorias, gente, laranjas, aves, legumes... E depois, o silêncio que não chega a pousar, porque aparecem outras rodas a rodar... [...] Tudo atrás do muro, na estrada dos acontecimentos, cheia de poeira... Que algazarra! Ó muralha tão alta, tapando o mar, tapando a cidade. Alta pela madrugada, durante o dia e a noite, muralha fechando o mundo!... Com automóveis aos relâmpagos pelas frestas!... (p. 56) O muro alto do colégio nos lembra a cena da porta fechada: obstáculo insuperável diante do desejo do menino. Querer abrir a porta ou ver além do muro é sinônimo de busca pela própria liberdade. Apreciar o ritmo do mundo na cidade do Rio de Janeiro, por outro lado, é condição necessária para o que o personagem sinta o contraste com a terra em que nasceu quando voltar ao interior. Assim, no início do livro II temos o retorno de Ternura e o seu reencontro com o companheiro Isaac: “— Traz as pedras, Isaac, vamos acabar o açude. Eu vou tirar o navio que veio no fundo da mala; depois eu explico como é que é lá longe e o tamanho deste mundo...” (p. 57). Novamente, com o seu retorno, João Ternura achará tudo quieto, mais devagar e menor: Depois eu te explico como é que é o mar... Ih! aqui tudo é quieto... Houve um soco, um professor de arit... escuta o vento, Isaac, pois não é o vento no capinzal? O trem corria, corria, nunca mais que aparecia nossa casa. Eu dormi. Acordei. O trem estava voando. Eu pensava que tudo estava perdido mesmo, já nem me importava mais, quando de repente eu chego na janela, e olha o rio!... olha os córregos!... as árvores! a ponte! O maquinista conheceu logo o lugar e foi parando. Olha a estação! Olha o cheiro de goiaba... Olha o pessoal. Olha mamãe chorando. Tudo menor, Isaac. E mais devagar. A estação, mamãe, papai, você — tudo muito menor. (p. 57) João Ternura volta do Rio de Janeiro com um olhar crítico e pode rever a chácara paterna com um certo distanciamento. O personagem se alegra com a paisagem que lhe é conhecida, mas, depois de ter conhecido uma cidade grande, reconhece que tudo no 47 lugar onde nasceu corre mais devagar. O reencontro com os parentes e com o amigo virá sobre outra ótica: tudo lhe parece muito menor. Eis o principal efeito do episódio: a certeza do retorno impossível: a chácara já não é a mesma, e algo da infância já se perdeu. Esse distanciamento, que permite o olhar crítico do personagem, foi sendo, como vimos, construído gradativamente. Voltamos, assim, ao último episódio do livro II, que nos apresenta um personagem modificado pelas aventuras anteriores e que, agora forçado a freqüentar uma escola de padres, sente-se ainda mais preso. As batinas enegreciam a sombra dos corredores. À noite, os pesadelos. Por nove meses o barulho do rio e as batidas do monjolo eram o som e o ritmo de sua melancolia. Um dia, tomara a decisão. Era a revolta contra as trevas, o mofo, a angústia. O rio, perto, fora o apelo constante; o sol daquela manhã, o convite. (p. 61) A fuga se dá pelo rio, elemento que assume, então, com clareza o seu significado: ao mesmo tempo, liga Ternura à chácara, para onde retorna, e concentra suas experiências de libertação. O primeiro aspecto se revela na chegada de Ternura à chácara, quando se repetem as efusões afetivas do retorno das outras aventuras: Quase chorou de alegria ao reconhecer as imbaúbas no alto de uma colina. As janelas azuis não tardariam a aparecer no horizonte. Alguns minutos mais, a casa surgiu como que sorrindo. Os pais se assustaram. E antes que o fugitivo terminasse a explicação, foram buscar roupa para cobrir-lhe o corpo. (p. 62) O segundo aspecto também é claro. Será nas águas do rio de sua infância que o personagem terá a sua mais forte sensação de liberdade: Pulou a janela, embrenhou-se no mato que margeia o caminho. Chegou às águas, desamarrou a canoa. [...] Aos poucos foi-se despojando das roupas. Confiava na correnteza que o ajudaria a libertar-se mais depressa. Nadando de costas, descobriu que era imensa a concha do dia. Viu a cratera do sol. 48 E viu o universo em movimento. E se sentiu enorme entre o céu e as águas. (p. 61-62) Assim como Zeca da Curva, que no conto “O iniciado do vento” fica nu na chuva com vento, João Ternura, para sentir-se mais integrado à natureza que o cerca, para sentir-se mais livre, também abandonará as suas roupas e se apresentará nu em casa, tornando-se assim, como Zeca73, incompreensível para as pessoas que o cercam. Embora a distância que o separa da casa materna seja menor do que de outras aventuras, a fuga pelo rio possui um significado maior. Há uma consciência maior de sua busca pela liberdade. O procedimento de João Ternura causará estranhamento em Liberata, deixando-a triste: “O que mais a assustava era o distanciamento moral e afetivo do filho” (p. 62). Liberata, que queria seu filho por perto e sob a sua proteção, perceberá que não é mais possível moldar o seu destino, que seu filho seguirá sua própria trajetória, percorrendo caminhos por ela desconhecidos: “Muito vagamente, mas com pavor, Liberata pressentia a perdição do filho” (p. 62). A fuga de João Ternura pelo rio significa assim, no romance, a abertura da porta que insistia em não se abrir. Ao finalizar a parte da infância do personagem com a cena do rio o escritor Aníbal Machado parece direcionar o livro para a sua própria vida e para o seu contato íntimo com o Rio das Velhas. Assim como seu personagem, o escritor sente-se ligado ao rio. É significativo, nesse sentido, o modo como narra o seu nascimento no texto “Autobiografia”: 73 Lendo o texto “Autobiografia”, de Aníbal Machado, encontramos uma parte em que o escritor confessa que se banhava nu numa praça de Belo Horizonte: “Nessa época, já a capital mineira era menos mausoléu, tanto assim que uma vez, às 9 da noite, quando me banhava nu no tanque de uma de suas praças, já um guarda-civil me perseguia aos apitos...”. Cf. MACHADO, Aníbal. A arte de viver e outras artes, p. 291. 49 Foi nas águas de um rio histórico, o Rio das Velhas, em Sabará, que as lavadeiras nos últimos anos do século passado atiraram o meu umbigo (para que dizer a data?). Esse rio de águas turvas até hoje ainda passa em mim.74 A negativa em determinar a data de nascimento permite pensar o umbigo como símbolo, por meio do qual o escritor anuncia a sua ligação com o rio e com sua terra natal, a Chácara Fogo Apagou, que é confirmada quando diz que esse rio ainda se encontra consigo. É preciso ressaltar que essa imagem do rio, para o escritor, também possui uma duplicidade. Ao mesmo tempo em que o rio é um dos elementos que marcam a sua origem, também significa um convite para sair. Em “Rio das velhas, velho...”, ele parece confirmar essa proposição: “É sempre uma provocação ao deslocamento a presença de um rio, um convite para sair, mais imperioso que o do mar pela constância da corrente”75. No mesmo texto, também escreve em tom mais confessional: “A gente cresce, vai-se embora, mas fica sempre um rio banhando a alma da gente”76. 74 MACHADO, Aníbal. Autobiografia. In: A arte de viver e outras artes, p. 289. MACHADO, Aníbal. Rio das Velhas, velho... In: Parque de diversões, p. 241. 76 MACHADO, Aníbal. Rio das Velhas, velho... In: Parque de diversões, p. 234. 75 50 2. NA TERRA DOS HOMENS IMPORTANTES 2.1. Uma visão de mundo A saída definitiva de João Ternura do espaço da família marca o início da segunda parte do romance, constituída pelos livros III, IV e V. Se a primeira parte de João Ternura pede uma aproximação entre a chácara do personagem e a infância do escritor, o espaço da segunda e da última parte é declaradamente a cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, para onde o escritor realmente se mudou em 192377, realizando um antigo desejo: “O que eu queria era cair no Rio, tão diferente do da minha infância. Para mim, estar nesta cidade era viver um sonho. Até os seus aspectos mais sórdidos me pareciam maravilhosos”78. A composição do personagem, entretanto, passa a ser traçada a partir de diferenças evidentes em relação ao escritor. Enquanto Aníbal Machado constitui família numerosa, chegando ao Rio já casado com Aracy Jacob, com quem teve cinco filhas, e mais uma, com Selma, irmã de Aracy (que morre em 1930), João Ternura não terá filhos nem relacionamentos fixos, vivendo solitariamente num quarto de pensão. E se Aníbal ocupou cargos que lhe colocavam em posição respeitada de autoridade, como o de delegado de polícia, o de promotor de justiça, o de professor de literatura e o de titular de cartório, além de ter sido escritor e crítico de arte, seu personagem será um vagabundo. João Ternura é um desajustado, um joão-ninguém, um personagem que, tornado homem, não chega a seu amadurecimento, ou melhor, recusa-se a se comportar como os demais, vivendo segundo as regras que estabelece. Marcado pela ingenuidade e lirismo, revela-se preocupado com a natureza humana e se compromete com a alegria de 77 A informação é de Pedro Nava, que nos informa também: “já bem adiantado o 1923”. Cf. NAVA, Pedro. Beira-mar, p. 189. 78 MACHADO, Aníbal. Autobiografia. In: A arte de viver e outras artes, p. 291. 51 viver. O personagem, portanto, representa valores próprios, que entram em conflito com aqueles socialmente estabelecidos. Assim, embora a segunda parte do romance, tal como acontece com a terceira, apresente menor aproveitamento de dados biográficos, eles não deixam de se fazerem presentes na narrativa: o personagem e os episódios, ao se afastarem cada vez mais das referências biográficas diretas, acabam por comporem um modo de ver o mundo que o reaproxima do autor. É o que pode ser percebido no que pode ser o único episódio de fundamento claramente biográfico desta parte do romance. Trata-se do episódio “A lei contra a lei do amor”, que guarda nítida relação com a época em que Aníbal Machado trabalhou como delegado de polícia. Curiosamente, trata-se de uma época cuidadosamente evitada pelo autor em seus textos autobiográficos. Não encontramos, nos livros Parque de diversões e A arte de viver e outras artes, qualquer menção do fato de ter trabalhado seis meses como delegado, na Ilha do Governador, em 1923. Em “Autobiografia”, Aníbal afirma: “Meu ideal era mudar-me para o Rio. Vencendo a oposição de toda a família, aqui [no Rio de Janeiro] me encontrei em 24, feito promotor público”79. Em “Flash”, Aníbal nos informa que “não escapou de ser bacharel em direito, tendo sido promotor de justiça [...] no Rio e em Minas, com exemplar má vontade”80. A informação, portanto, até o momento, é exclusiva do texto “Aníbal M. Machado”, de Renard Perez, que conta sobre o período vivido pelo escritor no estado do Rio de Janeiro anteriormente a fevereiro de 1924: Com a ascensão de Arthur Bernardes à Presidência da República, é prometido a Aníbal o lugar de promotor-adjunto, no Distrito Federal. O escritor vem para o Rio e enquanto espera a nomeação, aceita o lugar de delegado de Polícia (1923), cujas funções vai exercer na ilha do Governador, a conselho do hoje desembargador Vieira Braga (então segundo delegadoauxiliar). Mas Aníbal tinha horror àquele serviço, que gritava contra o seu 79 80 MACHADO, Aníbal. Autobiografia. In: A arte de viver e outras artes, p. 293. MACHADO, Aníbal. Flash. In: A arte de viver e outras artes, p. 296. 52 temperamento e que só aceitara devido à pressa de se transferir para o sul. O melhor do trabalho era ainda a travessia de barca para a ilha, onde ia três v[e]zes por semana... Ficava meia-hora na delegacia, acompanhava os processos e fugia para o Rio.81 Nos seis meses em que Aníbal trabalhou como delegado, somente duas ocasiões exigiram que o escritor usufruísse de seu poder e interferisse em algum acontecimento. Numa delas, quando o delegado Aníbal controlava as eleições, foi preciso prender o comandante do destacamento da Ilha do Governador, que se encontrava alcoolizado. “A cena foi cômica: enquanto segurava o braço do homem, que tinha o d[o]bro de sua altura mas que d[o]cilmente se deixava prender, Aníbal pedia-lhe desculpas por se ver obrigado a tomar tal atitude...”, comenta Renard Perez 82. O outro caso é aquele que foi aproveitado no romance. Trata-se de uma queixa-crime de um comerciante que queria efetuar flagrante delito contra sua própria esposa, para solicitar uma ação de desquite. Aníbal, constrangido com aquela situação, adiou o quanto pôde. Todavia, certa tarde, não podendo fugir mais da situação, seguiu com o comerciante para a Ilha do Governador, para que, assim, pudessem surpreender os amantes em casa, à hora do jantar. Segundo Perez, Aníbal Machado já havia intimamente tomado o partido dos namorados, o que tornava a situação ainda mais a contragosto do escritor que, “no meio da baía” ainda teria feito “um último ap[e]lo de desistência ao negociante; mas de nada valeu”. Chegando à ilha quando escurecia, o escritor dirige-se à casa: Então, confessando lamentar sinceramente tudo aquilo, Aníbal pediu ao casal que o acompanhasse à delegacia para a lavratura do flagrante. Diante do ch[o]ro da mulher, envergonhada pelo escândalo em perspectiva, prometeu discr[i]ção: iriam lentamente, como se passeassem... [...] Na delegacia, o encontro do marido com o sedutor quase resultou numa cena de pugilato. Afinal foi lavrado o famigerado flagrante. Sendo crime afiançável, consultou Aníbal o código e arbitrou a fiança mínima. 83 81 PEREZ, Renard. Aníbal M. Machado. In: Escritores Brasileiros Contemporâneos, p. 22. PEREZ, Renard. Aníbal M. Machado. In: Escritores Brasileiros Contemporâneos, p. 22. 83 PEREZ, Renard. Aníbal M. Machado. In: Escritores Brasileiros Contemporâneos, p. 22-23. 82 53 O amante, não possuindo o valor necessário, teve que contar com a ajuda da mulher, que mandou buscar as próprias jóias com o fim de garantir o pagamento. Mediante o pedido do comerciante de que o amante ao menos passasse uma noite na delegacia, Aníbal prometeu que o mesmo ficaria detido, mas em casa. “E a história melancólica acabou à meia-noite, no cais Pharoux — onde o escritor recebeu, constrangido, os agradecimentos do marido vingado...”84. No romance, em “A lei contra a lei do amor”, um delegado surpreende o personagem João Ternura e uma menina menor de idade “abraçadinhos”: O delegado os surpreendeu abraçadinhos. Olhou para a menina e disse: “Você é menor.” E de cara fechada para Ternura: “Contra a lei. Não pode.” E segurando-os pelo braço: “Estão detidos.” E esvaiu-se o encanto de tudo. [...] Formou-se o préstito com certa dificuldade. Os inspetores do trânsito providenciavam. Ternura foi colocado entre os dois agentes de polícia e a caftina, que usava mantô claro. Atrás, vinham o delegado, a menor e os repórteres. De frente para todos, caminhando de costas, fotógrafos e um cinegrafista. (Muitos acharam que o delegado devia vir na frente entre o sedutor e a caftina ou, pelo menos, à esquerda do sedutor.) Em seguida, populares e um ciclista. (p. 90-91) Três frases marcam o discurso do delegado: “Você é menor”; “Contra a lei. Não pode”; e “Estão detidos”. Se em sua vida, Aníbal foi um delegado conversador, suscetível ao sentimento dos seres humanos, chegando a tomar o partido do casal autuado na Ilha do Governador, na ficção, o seu personagem é severo, irredutível, uma autoridade. “Numa sala seca e sem folhagens, o delegado era o homem mais poderoso do mundo” (p. 92). De modo que poderíamos dizer que o delegado, no romance, possui mais semelhança com o comerciante traído do que propriamente com a atuação de Aníbal como tal. Ambos agem com firmeza e rigidez. 84 PEREZ, Renard. Aníbal M. Machado. In: Escritores Brasileiros Contemporâneos, p. 23. 54 Se Aníbal Machado não se identifica com o delegado de seu romance, é a João Ternura que podemos relacionar o escritor, ou seja, ao plano dos “desajustados”, ou das consciências questionadoras. Pensando, nesse sentido, numa transposição de dados autobiográficos para a obra, num processo de ficcionalização, podemos falar também numa inversão de papéis necessária a esse processo. A partir desse episódio, portanto, fica mais clara a função desempenhada pelo personagem, que atua como uma espécie de porta-voz do autor. Interessante lembrar que o escritor também teve a sua experiência de “vagabundagem”. Desempregado por um longo período, obrigado a se manter com o dinheiro que seu pai lhe mandava, em ócio, lembra-nos o modo de viver de seu personagem: Em 30, a minha mulher morrera tragicamente em uma casa de saúde, ao lado de um recém-nascido que também morrera. Fiquei sem saber o que fazer, cercado de cinco filhas. Com a volta inesperada do catedrático efetivo, perdi também a cadeira de literatura do Pedro II. Triunfava o movimento político de 30. Sem trabalho, sem aptidões para a vida prática, apenas com o dinheiro que o meu pai me mandava com esforço, passei quase dois anos na praia esperando dar um jeito na vida. Lia bastante e nadava. Ir para a praia era ao mesmo tempo gozar o mar e fugir dos credores.85 João Ternura, por sua vez, vive do jeito que pode, mantendo-se com o dinheiro mandado pelo avô, como revela Liberata: “Enquanto você [Ternura] não arranja emprego, seu avô vai mandando um dinheirinho para as despesas, pois com a falência tudo ficou difícil para nós” (p. 95). Riqueza, respeitabilidade social, porém, não chegarão a constituir os verdadeiros valores do personagem. Num encontro com seu primo, em que Ternura se apresenta “mal vestido e insignificante”, Bernardo lhe oferece uma nota de duzentos, que será rejeitada por ele: “— Obrigado. Não preciso” (p. 76). Seu amigo Manuel possui uma gráfica na qual Ternura aparece para trabalhar “quando lhe dá na veneta” (p. 137), ou seja, de forma esporádica. Mesmo assim, o motivo para o 85 MACHADO, Aníbal. Autobiografia. In: A arte de viver e outras artes, p. 293. 55 trabalho parece incerto para o dono da gráfica: “Mais de uma vez apareceu trazido pela mão de Luisinha. Não sei se é por Luisinha ou pelo trabalho que o diverte” (p. 138). No mesmo episódio, “Na gráfica de Manuel”, João Ternura mostra seguir, ainda, um tempo próprio, distinto do tempo social: “... agora está entretido com o que faz. Calmo. Valerá a pena despertá-lo? Mas já passou da hora.” — Vou fechar, João. Todo mundo já foi. Ternura sacudiu os ombros, no susto. Ergueu a cabeça, fixou Manuel: — Para onde? — exclamou. Sua voz era de espanto e esperança. (p. 138) Morando num simples quarto de pensão, João Ternura não se preocupa em enriquecer ou mesmo melhorar de situação financeira. Essa é a posição que escolhe, a de excluído, de insignificância, de pobre e vagabundo. Desse plano, vê a vida com ternura. É nesse plano que se sente à vontade para viver: em meio a pessoas comuns e longe dos chamados “homens importantes”. 2.2. Os homens importantes “Se queres penetrar intimamente na alma de uma cidade, evita-lhe os homens importantes, e pergunta a qualquer transeunte de suas ruas: ‘Quais os desconhecidos mais interessantes deste lugar?’” Aníbal Machado O conflito de valores entre o personagem e o mundo fica estabelecido já na primeira cena da segunda parte do romance. Na chegada à cidade do Rio de Janeiro, entrando em um bar, Ternura vê sua imagem refletida num espelho: A primeira vez que entrava num bar. Pediu um chope. Viu-se refletido no espelho. Era já um homem empunhando um chope. Acendeu um cigarro. Isso mesmo, era também um homem fumando. Levantou a cortina. Passava gente. A cidade funcionando. Seria mais um, mais alguém no mecanismo dela. (p. 65) 56 A passagem anuncia ao leitor que o personagem chegou à idade adulta; o cigarro aceso e ato de empunhar a bebida demonstram bem a sua mudança de comportamento no romance. Diante do espelho, João Ternura se sente adulto. Porém, diante da visão da cidade, sente-se diminuído. Está traçada a problemática do personagem para a segunda parte do livro. O encantamento vivido pelo escritor transforma-se, no personagem, em experiência de deslocamento. Ante a cidade grande, os carros velozes, a agitação nas ruas, a multidão nas calçadas, é esse o sentimento de Ternura: “Não era convidado, sentia-se estranho. Entrou como um penetra” (p. 64). A continuidade da cena reforça a imagem: ... A mulher servia aos fregueses um sorriso geral e fixo. Ternura começava também a sorrir para ela quando recebeu um soco. Balançou o corpo e rolou no chão. Ao acordar, não sabia se o soco viera de fora, pela janela, ou do homem que olhava com raiva. Agora era Ternura que olhava com raiva para o homem. Seria o agressor? O sujeito assumira um ar tímido, e evasivo. De quem então o soco? (p. 65) A narrativa não deixa dúvida; é mesmo a própria cidade que o esbofeteia: “Não sabia de quê, nem de onde viera. Um soco da própria cidade. Do que havia de cruel na alma oculta da cidade...” (p. 67). Ao contrário de seu tempo de infância, transcorrida entre afetos, agora, diante do turbilhão, Ternura percebe a crueldade e rispidez que terá que suportar e enfrentar. A continuidade da cena, além de reforçar esse conflito, é também importante para a caracterização do personagem: Saiu a perambular. Agora já sem o relógio e sem o pouco dinheiro que trazia. E com uma bofetada a doer mais na alma que na cara. Foi sentar-se num banco de jardim. Achou a cidade amarga. Amarga... Estava meio no pileque. Confuso e deprimido. (p. 65) O relógio e o dinheiro roubados são elementos significativos, pois já anunciam o comportamento de Ternura, que nega uma das premissas do capitalismo, que relaciona 57 tempo a dinheiro. Toda a cena parece funcionar como uma espécie de condensação da situação do personagem e da narrativa da segunda parte do romance, pois anuncia o fracasso das tentativas que fará para se adequar à cidade e aos homens que a regem. No entanto, não só perceberá que não obtém sucessos nas tentativas que faz, como acaba compreendendo que não nasceu para se tornar um homem importante. Seu primeiro contato com a cidade parece ter determinado a sua posição naquela sociedade. Nessa perspectiva, observa-se que os personagens do romance compõem dois grupos opostos: o dos desajustados, pobres e marginalizados, e o dos homens importantes, ricos, poderosos. Ao lado de Ternura, os amigos desajustados, fracassados, ou incompreendidos. Manuel, considerado pelo personagem como o irmão que nunca teve, tem o gosto parecido de viver: “Seu gosto de viver tinha algo de infantil e se exprimia pela aceitação deslumbrada mas calma das coisas. Era o melhor da pensão” (p. 80). Por meio de Manuel, conhecerá Matias, “meio escroque, meio sonhador”, e Pepão, “ex-boxeur e vagabundo sentimental, expulso do Lóide por aversão ao trabalho, e membro da diretoria de uma escola de samba” (p. 93). À roda de amizades de Ternura, acrescentase ainda: o estranho Silepse; Biba, procurado pela polícia; Arosca, personagem irônico e preso à razão, e Luisinha, irmã de Manuel. Residindo em uma pensão, assim são descritos os personagens que compõem o cenário em que vive: Havia outros personagens: um homenzarrão vermelho que saía pela manhã com a bailarina magra; uma baiana gorda que apanhava do marido, e cantarolava no quarto depois que ele descia; um nortista que lia filosofia e achava o rio Amazonas “escandaloso e estúpido”. E havia uma quarentona ruiva que só era feliz quando o amante viajava. A ruiva atraía Ternura para o quarto, onde vivia a dar corda a uma caixa de música com valsas do século XVIII. O resto, gente própria a ser esquecida. Estas, as primeiras amostras de uma cidade que ele sonhara esplêndida... (p. 81) 58 Dentre os homens importantes, sobressai a figura do primo Bernardo, parente enriquecido fora da província. No primeiro encontro com o primo, “Ternura, esmagado pelo olhar e a voz do gigante” (p. 66), recebe as primeiras instruções sobre a vida na grande cidade: — Não vai ser tão fácil como imagina. Primeiro que tudo, você terá que arranjar outro físico, ou melhorar esse que tem. Engorde. Adquira alguns quilos, muitos quilos a mais... Precisa ter presença. Está-se vendo que é tímido. Fui logo notando. Nada bom isso... Vá metendo os peitos! Mas respeitando sempre as autoridades. Eu me refiro às autoridades, não às leis... Não seja como seu pai, que tem mania de escrúpulo. Fale devagar. E com firmeza, mesmo que não tenha nenhuma convicção. Vista-se melhor. E freqüente boas rodas. De preferência os importantes. Olhe (e fez o gesto de abranger a muitos) esses todos aqui são importantes. E apareça daqui a alguns meses. Mas engorde, primeiro. (p. 66) Ternura acaba admirado: “um metro e oitenta e cinco de primo! Sim, senhor... isso é que é primo!” (p. 67). Mas João Ternura, por natureza, não pode compartilhar de seus valores. Consulta o mar e resolve lhe entregar as cartas de recomendação que trazia. O abandono dessas cartas significa também a recusa pelo modo de vida dos homens importantes. Na segunda vez que Ternura encontra o primo, ele está cercado de cavalheiros ilustres e o ignora. Como Bernardo conversava em língua estrangeira, Ternura, desconfiado, chama-o pelo nome para certificar-se. Aquele, finalmente abandonando a roda dos importantes, dirige-se a este em voz baixa. No diálogo que travam, a distância que separa os personagens é evidente: — Já arranjou algum emprego? — Não. — Por onde andou todo esse tempo? — Por aí... — O que tem feito? — Nada. O primo encarou-o de alto a baixo. Pela maneira de olhar, só faltou dizer que o achava mal vestido e insignificante. (p. 76) 59 O episódio seguinte, “Os importantes”, traz um monólogo de João Ternura que, tendo como interlocutor o amigo Manuel, caracteriza esse tipo social: os importantes se alimentam bem; dormem em camas macias; suas filhas têm uma pele maravilhosa, são delicadas, quase não têm seios e parecem proibidas; eles falam devagar e dormem com as mulheres mais belas; esses homens nunca vão para a guerra e mandam os outros, que não são importantes, em seus lugares. Naturalmente, é feita referência a Bernardo: Eu tenho um primo que já é [importante] ... garanto que ele vem vindo por aí. Outro dia fiquei mofando no escritório dele; o danado falava pra São Paulo, pra Paris, pra Nova Iorque. Em três telefones diferentes! E numa língua que não era a nossa!... Meu primo maneja o mundo com facilidade... oh, como o mundo deve ser bom para os importantes!... E também para os parentes e amigos dos importantes. Eles têm os nomes em ruas, nas praças, nos navios. Uns viram estátua e apanham chuva. São donos de fábricas, de bancos. (p. 77) Numa carta escrita ao avô, Ternura acaba afirmando ter tomado horror de seu primo rico: “O primo Bernardo não deu certo comigo, é um homem muito importante, só vi ele umas três ou quatro vezes, e não quero ver mais. Tomei horror” (p. 78). O personagem comunica ainda a seu avô que o que está lhe faltando é “a figura”. A ironia da narrativa em relação aos homens cuja importância aparece vinculada a uma aparência imponente chega ao auge, e de forma cômica, no episódio “Oração para ficar grande”. Trata-se de uma solicitação feita a Deus, por meio de oração, na qual João Ternura pede para crescer e engordar: Quarenta e seis quilos e este tamanhinho! — é uma miséria, Senhor, para eu agüentar essa cidade!... [...] Senhor, eu não sou mais aquele onanista do tempo em que minhas tias me botavam no colo. O que eu quero é crescer, participar, influir, ter cara de gente. E força bastante para não ter medo de ninguém. 50... 59... 60... se for possível, 70! De setenta quilos, sim, é que eu preciso, Senhor. ...para suportar a pressão do mundo em meu peito, receber a ventania sem perder o equilíbrio... [...] Ah, eu calmo, de 68 a 70 quilos! Um metro e oitenta de altura! (p. 79-80) 60 O tema, embora desenvolvido nesta parte do romance, já se encontra esboçado na primeira parte, sendo oportuno voltar à cena de nascimento de nosso herói. O fato de Ternura ter nascido numa noite de Natal é significativo. Uma de suas tias anuncia a data — “E se for esta noite, hein? Que beleza!” —, que é confirmada, em seqüência, pelo narrador: “Ele também ia nascer numa noite de Natal!” (p. 10). A tia mais velha reforça a relação: “— Ah, se for esta noite, ele será como... Um nó na garganta não a deixou terminar. — ...Espero que tenham compreendido!... (p. 10) Outros elementos da narrativa, por sua vez, recriam a atmosfera natalina, como podemos perceber na frase “uma vaca lambia os caixilhos da janela do seu quarto, um cavalo branco vinha se aproximando” (p. 10) ou ainda em “no céu alto estava ausente a estrela dos Reis Magos” (p. 10). Por outro lado, nascido o personagem, parte da família se reúne na sala vizinha para a escolha do retrato do homem importante que deveria influenciar Ternura: Na sala vizinha reuniu-se o conselho de família. Ia escolher-se o padrão para o recém-nascido. O avô folheava uma “Galeria de Homens Célebres”. Os demais parentes, reclinados em semicírculo, opinavam diante das gravuras. Homero e Píndaro eram hipotéticos. César não servia. Nem Cipião, nem Agostinho, nem Richelieu. Carlos Magno andou quase. Um primo manifestou, sem resultado, o seu entusiasmo por Alexandre. [...] Goethe foi o candidato da prima; Filipe II, de uma velha. Apareceu, finalmente, um senhor com cara de menor impúbere, mão no peito e um olhar póstumo mas fatal para as mulheres. As tias suspenderam a respiração. Todos quedaram. O homem da gravura olhava com uma insistência doce. O avô então compreendeu tudo e, com sua unha marrom, riscou vigorosamente a página do destino: — Serás uma espécie de Napoleão, meu neto! (p. 11) Um retrato do imperador é providenciado para ser colocado na cabeceira de sua cama. Com a mudança do personagem para o Rio de Janeiro, o retrato de Napoleão Bonaparte é abandonado na chácara. Do Rio, Ternura escreve ao avô: 61 Vovô, não precisa mandar aquele busto de Napoleão que eu esqueci aí. Não se incomode. Eu queria mesmo dizer ao senhor que não simpatizo muito com esse homem, aliás eu não acho graça em nenhum desses generais do livro que o senhor me deu para ler, nem em general nenhum. (p. 79) As dimensões ética e política da cena devem ser observadas. Rechaçada a identificação com o conquistador, demonstrada a aversão ao domínio pela força e pelo poder, a narrativa passa a afirmar valores que podem ser ligados à figura de Cristo — o humanitarismo, a luta pelo amor e pela liberdade, a defesa dos oprimidos e marginalizados. Nessa perspectiva, duas pequenas cenas da segunda parte do romance revelamse significativas. Numa delas, Ternura conta sobre uma briga na qual acabou se envolvendo. Dois homens brigavam, um muito fraco e o outro muito forte: “O mocinho era um trapo no chão, tão franzino! E o espancador pisando, pisando...” (p. 148). Ternura, que é baixo e magro, resolve ajudar o sujeito que apanhava: “O outro era que nem um ratinho, Manuel... um camundongo sangrando. O que batia parecia um leão... Eu me levantei do chão, fui em cima dele como um relâmpago” (p. 149). Ao que Manuel responde: — Se você inventa agora de querer bancar o Dom Quixote, vai ser um nunca acabar de surras. Tem muita gente apanhando na vida, Ternura. Em cada esquina há pelo menos meia dúzia de desgraçados precisando de socorro. Os “fortes” são estúpidos em geral, e pisam nos fracos. E você não tem o tipo nem a bravura de Dom Quixote para defender os fracos. (p. 149-150) A defesa dos fracos e dos injustiçados, sendo um valor para Ternura, corresponde, por sua vez, a uma posição política, como demonstra a outra cena a que nos referimos. Nela, Ternura destrói um material da gráfica que trazia propaganda da ditadura salazarista. Essa posição política, antibelicista e democrática, assumida pelo personagem, pode ser reconhecida em um dos episódios centrais desta parte do romance. 62 Trata-se do episódio em que Ternura, recentemente chegado à cidade, alcança a categoria de herói. A participação do personagem na Batalha do Túnel86 não ocorre de forma espontânea nem forçada. O personagem se envolve absolutamente por acaso, quando pede cigarros aos soldados: “Encontrou um grupo, pediu cigarro, deram-lhe uma carabina” (p. 82). Não por acaso, porém, no momento em que está vestido com blusa e quepe para lutar, o personagem é comparado a Napoleão: “Deram-lhe um quepe que não lhe entrava bem na cabeça, vestiu uma blusa que lhe sobrava no corpo. Esboço grotesco do Napoleão sonhado pelo avô” (p. 83). O final do episódio é francamente irônico: Carregaram-no em triunfo. Ao descer dos ombros de um companheiro, escorrega numa casca de banana e quebra a cabeça. Chegaram os fotógrafos. Ternura concedeu-lhes várias poses. Para uma destas, pediram-lhe que pusesse um boné de aviador. Ia assumir um ar marcial, sua fisionomia era mansa demais para a natureza do feito. Que se fotografasse assim mesmo, com o sangue escorrendo. (p. 86) “Esboço grotesco” de herói, João Ternura funciona, portanto, como uma espécie de anti-herói, ou de herói às avessas, ou, mais precisamente, de um outro tipo de herói, que se representa na figura do vagabundo. 86 A Batalha do Túnel é um episódio da Revolução no romance. Embora o combate não seja nomeado no livro, trata-se de uma referência à Revolução de 1930, em que ocorre o fim da República Velha. Essa relação se torna clara pelo seguinte trecho: “Ouviam-se tiros espaçados. Uma camioneta passou ao longe com gente dando ‘morras’ à República velha. A nova estava quase a nascer”. Cf. MACHADO, Aníbal. João Ternura, p. 83. 63 2.3. Um “romance chapliniano” “João Ternura é um vagabundo inquieto, a rua seduz o seu espírito constantemente: de instante a instante ele se anula no meio da multidão. Segue uma mulher. Queda-se horas a fio diante de um cartaz, mergulha as suas idéias na confusão psicológica da expressão dos passantes. A rua livra-o sempre dos instantes pungentes do seu drama interior de homem só” Aníbal Machado Vários comentadores e críticos já chamaram atenção para a relação entre João Ternura e o personagem do vagabundo Carlitos, de Charles Chaplin. Pedro Nava classificou o romance como “lírico, satírico, pungente, chapliniano, autoanalítico”87. Para Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado tinha “em Chaplin, seu irmão mais velho, em João Ternura, seu irmão mais moço”88. Rolmes Barbosa também chama Ternura de “parente de Carlitos” 89. O próprio Aníbal assume a influência: “Carlitos influiu. Tanto assim que eu me vejo obrigado a escrever um ensaio sobre Carlitos assim que publicar João Ternura”90. De fato, ainda que não publicando o romance, o escritor chegaria a escrever três ensaios sobre o tema: em 1937, “Charles Chaplin matou Carlitos”; em 1944, o prefácio para a edição brasileira do livro Carlitos: a vida, a obra e a arte do gênio do cine, de Manuel Villegas Lopes; e, em 1956, “Chaplin e os irmãos Marx”. Desses, talvez o mais relevante para o nosso estudo seja o texto “Chaplin e os irmãos Marx”, uma vez que, ao contrapor dois tipos de humor, Aníbal Machado acaba por enunciar os possíveis significados de seu personagem. Um dos pontos ressaltados pelo autor é o que diz respeito à posição solitária de seu “herói”: Carlitos está sozinho em sua solidão. Com os irmãos Marx são três a operar contra a solidão. Quase uma firma... 87 NAVA, Pedro. Beira-mar, p. 91. ANDRADE, Carlos Drummond de. Balada em prosa de Aníbal M. Machado. In: MACHADO, Aníbal. A morte da porta-estandarte, Tati, a garota e outras histórias, p. xii. 89 Encontramos esta referência de Barbosa no texto que, publicado originalmente em O Estado de São Paulo, encontra-se reproduzido na orelha da quarta edição do livro João Ternura. Cf. MACHADO, Aníbal. João Ternura, s/n. 90 MACHADO, Aníbal. Vamos ver o que diz Aníbal Machado. In: Parque de diversões, p. 50. 88 64 Carlitos sonha com o que não encontra. Os irmãos Marx quebram tudo o que encontram. Aquele, um vagabundo; estes, uns desordeiros. Os irmãos Marx, quando em correrias, vão desembestados. Em Carlitos, a corrida é um esboço de dança, com algo de vôo.91 Carlitos é um vagabundo cuja corrida é “um esboço de dança, com algo de vôo”. O personagem de Chaplin encanta pelas maneiras do próprio tipo criado, os passos de pingüim, o jeito de levantar uma perna quando na curva ou o jeito de correr com os pés abertos. Novamente, pode-se dizer que Carlitos não só é cômico, mas, nesse sentido, é também encantador. Daí a distância entre um humor “destruidor” e um “lírico”. Em Cocoanuts, Harpo entra no escritório do diretor de uma agência imobiliária, bebe o tinteiro, cospe na escrivaninha. Depois começa a rasgar papéis. Em Monkey Business, quando vai à alfândega, procede com a mesma fúria destruidora. Mas seus desatinos não ultrapassam o estado primário de insurreição mecânica. As coisas conspiram contra Carlitos, vítima delas. Os irmãos Marx conspiram contra as coisas, vítimas deles.92 Com essa “fúria destruidora”, os irmãos Marx agem contra o mundo; para tal, identificam-se com a própria modernidade: Aos irmãos Marx, a ordem social quanto mais rígida e convencional mais lhes desperta o impulso de subvertê-la. Entram de sola contra as instituições. [...] Os irmãos Marx são mais engenhosos e atuais nos seus recursos. Incorporam ao jogo cômico a técnica moderna. Basta ver o estratagema que inventariam: fazer que o seu cavalo, em plena carreira (“uma tarde das corridas”), escutasse a voz e visse o retrato do antigo dono a quem odiava.93 Carlitos, ao contrário, sente as coisas conspirarem contra ele. É vítima delas. No prefácio escrito para o livro de Manuel Villegas López, Aníbal Machado contrapõe explicitamente Carlitos à modernidade: À mitologia do homem do século XX, homem a que a desumanidade do regime capitalista não conseguiu destituir da faculdade de sonho, se incorporou para sempre esse herói. Porque a criação de Chaplin não exprime apenas, restituídos pela mímica, certos movimentos e aspirações secretas do 91 MACHADO, Aníbal. Chaplin e os irmãos Marx. In: Parque de diversões, p. 73. MACHADO, Aníbal. Chaplin e os irmãos Marx. In: Parque de diversões, p. 75. 93 MACHADO, Aníbal. Chaplin e os irmãos Marx. In: Parque de diversões, p. 73-74. 92 65 nosso subconsciente; significa também o protesto solitário da fome e da ternura decepcionada ante a brutalidade e as convenções dos tempos modernos. Um protesto alimentado pela contradição permanente entre a alma pura de Carlitos e o mundo. Coração ingênuo, mundo empedernido.94 Carlitos enfrenta, assim, uma modernidade que é empedernida, brutal, desumana. O jeito que encontra para enfrentá-la, porém, é surpreendente, pois segue os caminhos da ternura, da ingenuidade e da esperança: Depois de cada proeza infeliz, Carlitos parte quase sempre em direção à linha do horizonte. É menos uma retirada do que uma nova busca de solução. Visto de costas, sente-se pela hesitação do andar que a amargura ainda lhe pesa na alma. Pára de caminhar, dá uma olhada no mundo e imagina. A alegria de novo o toma pelas pernas. E, mais vivo agora, vai seguindo nos seus passos de pingüim, impelido por um sonho que nunca se realiza.95 Aníbal Machado descreve no trecho acima uma situação comum nos filmes de Chaplin. Em muitos dos finais de seus filmes, Carlitos ainda sente, como ressalta, amargura. À medida que vai caminhando, o personagem vai também se livrando desse sentimento. Isso é perceptível pela mímica que faz ao caminhar, pela maneira como mexe os ombros, ou simplesmente pela forma como espreguiça diante do horizonte ou de uma estrada, como podemos perceber em Police. Às vezes a própria corrida já demonstra essa fuga de uma situação aflitiva, como encontramos no filme The count. Um movimento, porém, parece ter se tornado emblemático: trata-se da famosa cambalhota de Carlitos. Como lembra Aníbal, no prefácio escrito para o livro de Manuel Villegas López, Carlitos “não pode combater o dragão, nem discernir bem se é um espantalho ou o que seja; sabe entretanto desembaraçar-se dele por um prodígio de recursos numa sucessão maravilhosa de cabriolas e bufonarias”96. Com uma delas, finaliza o filme The tramp, resumido e comentado por Carlos Heitor Cony do seguinte modo: 94 MACHADO, Aníbal. Chaplin e os irmãos Marx. In: Parque de diversões, p. 70. MACHADO, Aníbal. Chaplin e os irmãos Marx. In: Parque de diversões, p. 73. 96 MACHADO, Aníbal. Carlitos. In: Parque de diversões, p. 70. 95 66 O vagabundo chega pela estrada, aceita o empr[e]go na fazenda, enamora-se da filha do patrão, se ilude, salva o patrão e a fazenda de um malfeitor, espera a recompensa — que para Carlitos é sempre o pão e o amor — e surge um outro para ficar com o pão e com o amor. Não desanima, porém. Sai em silêncio, sem se fazer notar, e some pela mesma estrada. Dá uma cambalhota e some. Como parábola, é tão perfeita em seus elementos técnicos quanto a parábola do Filho Pródigo ou a do Bom Pastor. Nada é demais, tudo é necessário.97 Não parece ser mera coincidência, portanto, que a cambalhota ajude a compor o personagem João Ternura, que com ela se desembaraça de situações desagradáveis e reafirma sua liberdade. Como, por exemplo, na passagem em que o personagem tem que descontar um cheque e acaba se perdendo no banco. Os corredores do prédio lhe parecem um labirinto e a pompa do lugar o oprime. O retorno à rua e à vida é assim saudado: Ao receber na cara a luz do dia, teve vontade de comemorar com uma cambalhota o seu encontro com a liberdade da rua. (p. 109) Em outro episódio, “Diante do Sr. Ministro”, Ternura, estimulado pelos amigos, e ainda que a contragosto, resolve conseguir algum benefício pelo fato de ter lutado na Revolução: — Ternura, você é uma besta. Há mais de três anos você está com essa cicatriz e ainda não tirou partido dela!... Olhe bem pra mim e escute: sabe que você é um herói?! — Não. — Mas é. É um herói. Nem que não queira. Sua cicatriz é que precisa de mais publicidade. — Mas foi numa casca de banana, Matias... — Não tem importância, uma cicatriz é cicatriz em qualquer parte do mundo e merece respeito. Vá com ela ao Ministro, conte a sua participação no combate do Túnel. Diga que entrou na Revolução por idealismo, mas que a miséria e a fome andam rondando o seu lar... (p. 110) 97 CONY, Carlos Heitor. Charles Chaplin, p. 21. As versões de The tramp a que tivemos acesso não trazem a cena da cambalhota. É possível tenha sido cortada em algumas fitas ou no processo de digitalização para DVD. 67 Na seqüência, Ternura é mal recebido por um importante funcionário público, que passa a vê-lo com desprezo. À saída do gabinete, uma corrida e uma cambalhota desafogam o personagem: Tomaram o corredor. Ternura respirou feliz. Matias voltou para apanhar o maço de cigarros esquecido na poltrona. E Ternura, num desafogo, saiu correndo. Como remate à corrida, e antes de fazer a curva do corredor, executou uma cambalhota. Caiu em si e olhou para trás, assustado. Precisava certificar-se de que não tinha ninguém... (p. 122) Na discussão que se segue, fica claro o sentido do gesto: Dei; dei sim a cambalhota. Este ministro não tem nenhuma importância para mim. Mas tinha toda razão quando me botou para fora. E seu olhar de desprezo me humilhou... me humilhou porque tudo o que eu fiz partia de uma fraude. Era uma farsa para ajudar você. E foi a minha fraqueza. Dei a cambalhota, sim. De alegria. Por me ver livre de vocês, do ministro, e do vexame. Deixem a minha cicatriz em paz e vão para o inferno. (p. 123) Outro traço que caracteriza a figura do vagabundo, e que João Ternura compartilha com Carlitos, é a sua disponibilidade para a aventura, uma vez que a rua é o seu espaço privilegiado. As estórias vividas por esses personagens são construídas, na maioria das vezes, como fruto do acaso. Sobre João Ternura, escreve Aníbal: João Ternura é um vagabundo inquieto, a rua seduz o seu espírito constantemente: de instante a instante ele se anula no meio da multidão. Segue uma mulher. Queda-se horas a fio diante de um cartaz, mergulha as suas idéias na confusão psicológica da expressão dos passantes. A rua livra-o sempre dos instantes pungentes do seu drama interior de homem só.98 Já vimos que no importante episódio da Revolução, Ternura entra no combate do Túnel por acaso: pede a um grupo de homens um cigarro e ganha uma carabina. Está armada a estória. Os fatos se sucedem e o personagem sai como herói do combate. Quando tudo está terminado, João Ternura se lembra de perguntar a um sergipano para qual lado eles estavam combatendo: “— Home, eu também num sei não...”, responde o 98 MACHADO, Aníbal. Vamos ver o que diz Aníbal Machado. In: Parque de diversões, p. 49. 68 soldado. “Eu vim fugido da seca arrumá minha vida em São Paulo, passei por aqui, me botaram esta carabina na mão e eu peguei de atirá...” (p. 89). Sobre Carlitos, Aníbal já havia observado: “Se o metem na guerra, torna-se herói sem querer e não sabe bem contra que inimigo está atirando”99. Ele, tal como João Ternura, não foi moldado para a guerra, e, se participa dela, o faz de forma atrapalhada, desorganizando-a sem querer. The great dictator, em que a guerra e o poder estão bem representados, representam bem a dimensão política da obra de Charles Chaplin. Ao escrever sobre esse filme em 1944, Aníbal ressalta o papel importante que o filme teve diante dos acontecimentos históricos de sua época: O Grande Ditador, além de ato de coragem de quem o concebeu e realizou, constituiu durante muito tempo a única válvula por onde milhões de espectadores do mundo desabafaram seus recalques, numa risada precursora da atual destruição do nazi-fascismo pelas armas da democracia. Não esqueçamos que o cinema, tantas vezes corrompido e infiel ao seu destino, nos deu, no momento mais sombrio da humanidade, o alívio dessa gargalhada ecumênica. Para tanto, foi preciso que esse incomparável instrumento de expressão encontrasse a pureza e o heroísmo de um Chaplin.100 No filme em questão, Chaplin faz dois papéis: o do ditador Hynkel e do de um barbeiro judeu. A dimensão da figura de Carlitos, tal qual se constituiu ao longo da carreira do cineasta, está presente no segundo personagem. Antes do discurso final, os dois personagens trocam de lugar no filme. Quem faz o discurso é o Carlitos que foi injustiçado. Pensando ainda no que irá dizer, ele sussurra a palavra esperança. O início do discurso marca a mensagem que Chaplin quer deixar para o espectador: Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é [e]sse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar a todos — se possível —, judeus, o gentio... negros... brancos. Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os s[e]res humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo — não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há 99 MACHADO, Aníbal. Carlitos. In: Parque de diversões, p. 71. MACHADO, Aníbal. Carlitos. In: Parque de diversões, p. 71-72. 100 69 espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a t[o]das as nossas necessidades.101 “Romance chapliniano”, como diria Pedro Nava, João Ternura também afirma a esperança num mundo melhor e a convicção de que o homem é um ser livre, destinado a sonhar. “Chaplinianamente” também, o romance registra o descompasso entre esses valores e a modernidade. Daí se possa compreender a reação do público, como observa Aníbal Machado: “As platéias o receberam a princípio com gargalhadas; depois, com um sorriso triste (já não eram mais um clown); e, finalmente, com um soluço ambíguo (era um símbolo humano)”102. Um comentário de Aníbal é particularmente interessante. Nas aventuras de Carlitos, o personagem vive sempre um sonho que acabará em desilusão: Depois de uma decepção, transido de frio e de fome, Carlitos se recolhe à água-furtada, para não dizer ao seu buraco. É quando de seus olhos descem uma luz que é todo um poema de desamparo e tristeza. Basta, porém, o mais ligeiro estremecer de folha ou um sorriso de mulher a ele endereçado por equívoco para que lhe reabra o lirismo fundamental numa reconciliação e fuga com a vida. E o homenzinho pálido reenceta novas andanças em busca do que sabemos lhe vai ser negado.103 A persistência na reafirmação da vida, expressa na disponibilidade para a nova aventura, o novo sonho, não esconde, portanto, a dupla constituição do personagem: Porque o essencial da criação de Chaplin não se define apenas pelo riso, nem unicamente pelas lágrimas; mas na maneira porque a sua arte os juntou e confundiu numa substância nova tão cheia de poesia e de saturação humana, que Carlitos se transformou logo num símbolo universal.104 João Ternura, por sua vez, também mostrará essa duplicidade. Sendo o personagem da esperança e da ternura, vai aos poucos percebendo que a vida e o mundo são muito diferentes daquilo que ele gostaria que fosse. Há, nesse sentido, uma nítida 101 CHAPLIN, Charles. História da minha vida, p. 402. MACHADO, Aníbal. Carlitos. In: Parque de diversões, p. 71. 103 MACHADO, Aníbal. Chaplin e os irmãos Marx. In: Parque de diversões, p. 74. 104 MACHADO, Aníbal. Carlitos. In: Parque de diversões, p. 72. 102 70 mudança da primeira para a segunda parte do romance. Sua chegada ao Rio de Janeiro já anuncia o seu impasse diante de um mundo que não compreende, daí sua solidão irremediável: As coisas perdiam a consistência, fugiam. Ninguém lhe dava atenção, ninguém dava atenção a ninguém. Sentia-se à margem, como nos primeiros tempos depois da chegada. Excluído de tudo, excluído mesmo do mundo físico, tinha a sensação de que perdera o contato com as raízes do universo. Não mais corpo químico, espírito ou o que fosse a circular na atmosfera. Olhou para o Rio de Janeiro com a mágoa de amante desprezado. Pela primeira vez pensou na morte. [...] Não se lembrava de tristeza igual. Terrível a certeza de que os dias iam se repetir, e de que não haveria solução. (p. 97-98) A constituição do personagem corresponde, portanto, ao movimento instaurado pela narrativa, que transita entre o sonho, a ilusão, e a impossibilidade de sua realização. A cidade sonhada não é a cidade vivida, assim como a infância sonhada é a infância perdida. 71 3. DESAPARECIMENTO DE JOÃO TERNURA 3.1. Experiência surrealista “O espírito de rotina se assusta ante as formas anormais com que a liberdade e o amor se desvencilham das convenções sociais. Muitas dessas formas se apresentam num halo inesperado de poesia” Aníbal Machado A terceira parte de João Ternura, constituída pelo livro VI105, pode ser dividida em duas partes: a longa cena do Carnaval e a parte final, com a “dupla morte” do personagem. E a essas duas partes também correspondem “tons” diferenciados, seguindo-se, ao humor e estranhamento causado pela primeira, a melancolia do desfecho. Até aqui centrado no personagem principal, o foco do romance, durante a cena do Carnaval, se abre e João Ternura passa a mais observar do que agir. Mantendo-se anônimo na multidão, prefere ouvir os discursos dos outros, admirando a rápida fama conquistada pelos oradores e a transformação ocorrida de forma repentina na sociedade, a qual lhe parece mais livre e mais aceitável. O episódio pode ser entendido, nesse sentido, como um momento de libertação, não só de João Ternura, mas de toda a cidade. É quando conclui que as pessoas vivem escondidas e aprisionadas, que a folia é uma espécie de válvula-de-escape do cotidiano, e que a vida devia ser diferente para que não fosse mais necessária uma liberação tão explosiva. Por outro lado, o tema do Carnaval permite ao autor realizar o que se pode chamar de uma experiência surrealista, podendo causar certo estranhamento no leitor. É a parte do romance, afinal, que mais explora situações absurdas, que fogem às regras da verossimilhança realista. 105 Embora o livro V pertença, conforme a divisão de Fernando Py, à segunda parte do romance, ele funciona como uma espécie de preparação para a terceira parte. 72 O interesse de Aníbal Machado pelo movimento surrealista já foi ressaltado pela fortuna crítica. Mário Barata refere-se a essa influência em um artigo escrito para a revista Leitura: Por 1940 ou 1941, Aníbal mostrava-me e comentava, lentamente, em seu escritório do fundo da sua residência, números do Le Surrealisme au Service de la Revolution, preciosidades que [e]le possuía e lia [a]vidamente. [...] Seu amor ao surrealismo era visível e atuou na sua expressão literária...106 Anos mais tarde, em dezembro de 1949, Aníbal Machado escrevia a Maria Clara, que se encontrava em Paris, pedindo que lhe mandasse alguma revista surrealista: “Se vires aí uma ou outra revista surrealista barata, manda pra gente pelo correio”107. Fausto Cunha, por sua vez, afirma que o próprio escritor se considerava um surrealista: A nós, pessoalmente, ele declarou certa vez que era sobretudo um surrealista. [...] Onde Aníbal Machado pôs em prática suas idéias surrealistas? Talvez em toda a sua obra. Mas esta, pela própria maneira como foi feita e publicada, dificulta enormemente uma abordagem por esse ângulo. 108 Alguns críticos já sugeriam a possibilidade de analisar o romance João Ternura a partir da questão. Rolmes Barbosa, por exemplo, chama o livro de “misto de itinerário de emoções iluminadas por um halo surrealista”109. Na mesma linha, Renard Perez teria sido mais específico, reconhecendo traços surrealistas na primeira parte do romance: Às recordações de sua infância em Sabará, captadas numa aura surrealista e que dão a primeira motivação da obra, vai o escritor acrescentando episódios que lhe são trazidos pela vida afora e lhe marcam a sensibilidade: seu encontro com o Rio, a descoberta do carnaval, sua integração progressiva no íntimo da cidade.110 106 BARATA, Mário. Visualidade e surrealismo de Aníbal Machado. In: Revista Leitura, n. 83-84, ano XXIII, p. 29. 107 Esta carta, assim como a correspondência trocada com sua filha, encontra-se publicada no livro Eu e o teatro. Cf. MACHADO, Maria Clara. Eu e o teatro, p. 137. 108 CUNHA, Fausto. Aníbal Machado entre a poesia e a prosa. In: Seleta em prosa e verso, p. 131. 109 Em texto publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo e reproduzido na quarta edição de João Ternura. Cf. MACHADO, Aníbal. João Ternura, s. n. 110 PEREZ, Renard. Aníbal Machado: vida e obra. In: MACHADO, Aníbal. João Ternura, p. xxiii. 73 Fernando Py, que também fala de surrealismo no romance de Aníbal, concordaria: Fala-se bastante em surrealismo a propósito de João Ternura. Talvez isto seja correto quanto à primeira parte, a da infância. No entanto, especialmente na parte final, o romance já se encontra nitidamente em outro rumo.111 Desse modo, embora a relação do romance com o surrealismo já tenha sido abordada pela crítica, ela tem sido geralmente reconhecida apenas na primeira parte do romance. No entanto, a última parte seria a que mais facilmente poderia ser chamada de surreal, já que, de modo absurdo, o personagem morre não uma, mas duas vezes. Com razão, porém, refuta Fernando Py, para quem a última parte do romance está vinculada a uma “especulação metafísica”. O crítico associa as preocupações de ordem espiritual ao fato de o escritor encontrar-se então doente, pressentindo, talvez, que a morte lhe estava próxima. No entanto, embora a parte sobre o Carnaval componha a última parte do romance, ela parece não responder a essa especulação metafísica, podendo ser melhor compreendida a partir dos preceitos surrealistas Contemporâneo de André Breton [1896-1966], o escritor mineiro via o surrealismo como uma doutrina que buscava a libertação total do homem. Para ele, no plano literário, sonho e realidade deviam caminhar juntos: “O mal dos poetas foi ter consentido no distanciamento entre o sonho e a realidade. A meu ver, só os surrealistas e seus precursores lutaram contra essa ruptura”112. Segundo Aníbal Machado, a primeira fase desse movimento foi a mais agressiva, pois era-lhe necessário que ocorresse uma desmoralização das convenções existentes e da realidade então imposta e tida como única e verdadeira. Passada esta fase de ruptura, 111 112 PY, Fernando. João Ternura. In: Chão de crítica, p. 237. MACHADO, Aníbal. Divergir não importa – diz Aníbal Machado. In: Parque de diversões, p. 60. 74 importará a continuação desse processo de renovação de valores, que transcende, segundo Aníbal, o campo estético e se organiza numa nova concepção do universo. Assim, o real e o imaginário, como o visível e o invisível, devem permanecer unidos. Observando que, embora vários outros movimentos literários tenham agido nesse sentido, será o surrealismo francês que buscará uma sistematização e terá uma abordagem maior quanto à questão do inconsciente, o autor anota: A importância do surrealismo, como doutrina e como ação, se caracteriza por essa procura sistemática de um mundo maravilhoso, que parece zombar de nossa mediocridade, mediante os seus contínuos e constantes afloramentos no campo da vida prática. Desde muito, vinha o sonho invadindo a realidade. Nerval o anunciava explicitamente. Antes dele, no romantismo alemão, o irreal já era uma presença maior. Porém o grande assalto praticado nos domínios do inconsciente foi planejado e realizado pelo surrealismo francês, onde o movimento recebeu batismo e se constituiu em sistema.113 Reconhecendo que já havia no Brasil poetas e artistas cujas obras traziam versos e imagens surrealistas, realizando uma interrupção nos hábitos normais de pensar e sentir, aliviando assim, segundo ele, o espírito das “tiranias da razão”, lamenta, ainda, o fato de a literatura brasileira não ter tido conhecimento desse movimento de uma forma mais ampla: “Se se nota aqui algum reflexo isolado, é mais de periferia e no aspecto formal”114. No entanto, considera que o Brasil constitui um campo propício para o movimento: “Basta o Carnaval para atestar quanto o nosso povo está próximo das forças inconscientes que precisa desencadear. [...] Ele me interessa agora como sintoma e manifestação da riqueza do subconsciente coletivo em derivações espetaculares”115. Fica indicado, assim, um dos possíveis sentidos do Carnaval no romance, episódio que passamos a analisar. “Cair no fuzuê” significa, desamarrar-se das convenções sociais, entrar na dimensão do delírio, libertar-se. Esse desregramento, ou melhor, esse 113 MACHADO, Aníbal. Divergir não importa – diz Aníbal Machado. In: Parque de diversões, p. 60. MACHADO, Aníbal. Divergir não importa – diz Aníbal Machado. In: Parque de diversões, p. 61. 115 MACHADO, Aníbal. Divergir não importa – diz Aníbal Machado. In: Parque de diversões, p. 61-62. 114 75 não-regramento, permite que a busca pela liberdade seja atingida116. É necessário que não haja os limites que, no decorrer de nossa história, foram impostos ao homem. Nesse sentido, Breton afirma: “Ela [a experiência] circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair. Ela se apóia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso”117. A essa liberdade une-se a imaginação. Segundo Breton, é necessário que sonho e realidade se unam: “Acredito na resolução futura destes dois estados, tão contraditórios na aparência, o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se assim se pode dizer”118. O início da narração do longo episódio do Carnaval é, nesse sentido, significativo: Uma vez — “Tu vais ver. Surgirão novas luzes na noite, e milhares de corpos dançando na luz. Vais ver como a cidade treme fora dos gonzos. Vais ver como a lava arrebenta a calota das aparências. Vais ouvir o canto do povo. Vais entrar na dimensão do delírio. Fica, bobo!” (p. 156) A idéia de entrar na dimensão do delírio lembra a imagem do castelo explorada por André Breton. Sempre de portas abertas, metade em ruínas e com o interior restaurado, esse castelo, cujas dependências “não acabam mais”, representa o espaço da fantasia. Habitar esse castelo é viver na dimensão do delírio: “Vivemos de fato à nossa fantasia, quando estamos lá”119. Significativamente, o início do Carnaval é dado pelo grito de um bêbado: “— Abaixo à lóoogica!” (p. 161). Curioso observarmos que tanto o início do referido festejo quanto a primeira fase do Surrealismo vão contra as tiranias da razão, vão contra a 116 Com relação a isso, André Breton escreve: “Só o que me exalta ainda é a única palavra: liberdade. Eu a considero apropriada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela”. Cf. BRETON, André. Manifestos do surrealismo, p. 35. 117 BRETON, André. Manifestos do surrealismo, p. 40. 118 BRETON, André. Manifestos do surrealismo, p. 45. 119 BRETON, André. Manifestos do surrealismo, p. 49. 76 “intratável mania de reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável”120. O rompimento com o cotidiano fará com que João Ternura estranhe a folia: “Tudo de repente ficou distante, absurdo...” (p. 161). Em poucos intantes, Ternura já se encontra misturado à multidão, esquecendo-se desse estranhamento. A narrativa também assume esse caráter, tornando-se cada vez mais absurda. Entretanto, a própria narrativa se encarregará de atribuir sentido ao episódio. Observe-se a seguinte passagem: Para Josias, o fenômeno era mais complexo, embora muito conhecido: a suspensão provisória das proibições leva o povo a praticar tudo o que secretamente deseja fazer durante o ano; e como não pode fazer tudo o que deseja [...] contenta-se em dizer uma boa parte do que pensa. Vocês imaginem uma múmia que se desprendesse das ataduras e começasse a pular em frente aos guardas do museu. Que susto para os guardas, que alegria para a múmia! Visto a grosso modo, o carnaval é uma espécie de quebra-quebra geral nos preconceitos. A moral em férias. (p. 183) A suspensão da moral e das proibições do mundo real aproximam o Carnaval do sentido libertário do surrealismo, como já vimos. Por outro lado, é também no Carnaval que a fantasia prevalece, abalando as fronteiras entre verdade e mentira, real e irreal. Nessa perspectiva, atente-se para uma das cenas do episódio. Uma mulher embriagada se aproxima de um velho, homem austero e de guarda-chuva na mão, fazendo seu convite: “Vem / Meu bem / Faz nenen / Nim mim” (p. 168). Estabelece-se a confusão com o respeitável cidadão, que não participava da folia. Os dois vão parar na delegacia: O delegado hesita. Ao velho aconselhou que não saísse assim naqueles dias; era arriscado. Mudasse de roupa, suprimisse o guarda-chuva. Se possível, também a barba. [...] O velho protesta. Disse usar a roupa que lhe convém e as barbas que entender — a Constituição lhe garante. — Que se há de fazer, meu velho? — explica o delegado. — Nestes dias toda barba é postiça, todo guarda-chuva é disfarce. (p. 168) 120 BRETON, André. Manifestos do surrealismo, p. 39. 77 Estabelecida a transgressão das convenções sociais e da realidade cotidiana, várias são as passagens que estabelecerão a ruptura com a verossimilhança realista. Assim, um fantasma dos arquivos do Instituto Histórico discursa: — É possível que Vossas Senhorias, devido à minha quase transparência corporal, não estejam vendo em mim nem calvície, nem suíças, nem fraque. Pois sou calvo, uso suíças e de fraque me sinto. São os meus apetrechos subjetivos. Em resumo: sou um fantasma. E disso me orgulho. Senhores, acabo de sair dos arquivos do Instituto Histórico. Justamente dos porões. Venho protestar contra esta algazarra que estão fazendo aí fora. Desde sábado que não consigo dormir. Não entendo nem quero entender do presente, não me interesso pelo futuro, muito menos por isso que Vossas Senhorias aí chamam de carnaval. (p. 169) Se o personagem acima pode sugerir tratar-se de um louco ou mesmo um carnavalesco, empenhado em afirmar que vê a corte fugindo de Napoleão, ou Dom João VI chupando coxinha de galinha, não é o que sugere o fim da cena, que parece refutar esse tipo de interpretação: “Girando nos calcanhares, seguiu até os fundos da Biblioteca Nacional, onde desapareceu em estado de fumaça e naftalina” (p. 170). Depois, o surgimento de Deus também vem confundir os personagens: “Um homem de impressionante aspecto atravessava a multidão. Alto, pálido, olhos negros como a cabeleira que lhe descia pelos ombros. De vez em quando, parava e repetia baixinho: ‘Eu sou Deus, eu sou Deus’” (p. 176). Aos poucos uma corte o acompanha, com devoção. Ao fim, já é motivo de notícia: Como quer que fosse, a notícia [da presença de Deus] alterava a fisionomia do carnaval. Turistas de várias seitas e procedências foram tomados de repentina excitação, enquanto fotógrafos e cinegrafistas colocavam as câmaras em pontos estratégicos na esperança do flagrante mais sensacional de todos os tempos. Já as agências telegráficas americanas pediam informações urgentes, ameaçando demitir os seus correspondentes relapsos. (p. 188-189) Surgem então os boatos de que Deus teria sido preso. Esse assunto interessará tanto a Ternura quanto a Arosca, que travarão conversa. Aquele dirá que ouviu dizer que o chefe de polícia ficou na dúvida e relaxou a prisão. Este afirmará que se trata 78 apenas de um mascarado sem importância. Para Arosca, Ternura não tem, e nunca chegará a ter, o espírito amadurecido (Cf. p. 179). Para Ternura, Arosca “raciocina muito [...]. Ele não é para essas ocasiões” (p. 193). A contraposição dos personagens, assim, caracteriza Ternura do lado da imaginação, do sonho e do mundo poético. Outra relação merece ser observada: ao fim dos quatro dias de Carnaval, Ternura passa a pensar em sua infância: “Espantava-se de que o maravilhoso, que na infância quase chegara a tocar com as mãos, de tão perto, tivesse ressurgido agora de maneira tão profusa e estridente, para logo depois desaparecer, e tudo voltar às regras antigas” (p. 196). A relação entre infância e surrealismo, por sua vez, foram também estabelecidas por Breton: O espírito que mergulha no surrealismo revive com exaltação a melhor parte de sua infância. Para ele é um pouco como a certeza de quem, a ponto de morrer afogado, repassa em menos de um minuto todo o insuperável de sua vida. Dirão que é muito animador. Mas não faço questão de animar quem me diz isto. Das recordações de infância e de algumas outras, vem um sentimento de não abarcado, e pois, de desencaminhado, que considero o mais fecundo que existe. Talvez seja a infância que mais se aproxima da “vida verdadeira”; a infância além da qual o homem só dispõe, além de seu salvo-conduto, de alguns bilhetes de favor; a infância onde tudo concorria entretanto para a posse eficaz, e sem acasos, de si mesmo. Graças ao surrealismo, parece que estas chances voltam.121 Passado e presente se misturam na percepção do personagem: “Os acontecimentos se sucediam dentro e fora da sua cabeça. [...] Ternura encolhia-se todo debaixo do banco. Por fim, escapando por uma ribanceira, salvou-se nas águas de um rio que subitamente aparecera não sabia como” (p. 194). Chama pelos amigos que o acompanharam durante o Carnaval, mas também por seu pai, por Liberata e por outros personagens de sua infância: Perdido numa planície deserta, Ternura pôs-se a chamar: “Manuel! Manuel!... Matias!... Arosca!... Pepão!... Josias!... Tia Natália!... Rita!... Rita!... Luisinha!...” 121 BRETON, André. Manifestos do surrealismo, p. 73-74. 79 Depois mergulhando mais fundo no tempo: “Mamãe Liberata!... Papai Antônio!...” E ainda: “Isaac! Tia Marina! Josefina!” (p. 194-195) Por fim, outra cena importante, em que o irreal irrompe na realidade é a da chuva de pastéis e empadas: Chove pastéis em Vila Isabel — O fenômeno se verificou na Zona Norte. Dizia-se a princípio que era chuva de pedra. Logo se notou que as pedras se desmanchavam no chão, espalhando um recheio mole e odorante — acontecimento estranho às leis da meteorologia. Um popular agacha-se, cheira, toca a matéria viscosa e grita: — Pastéis! Houve começo de rebuliço... A multidão avança. Estava chovendo pastéis em Vila Isabel!... (p. 190-191) Outro popular vem avisar que do último pavimento de um prédio do Largo da Carioca estava caindo uma chuva semelhante à de Vila Isabel. Chovia empadas agora: “A chuva do Largo da Carioca era de empadas. Chuva mais fina. Da mesma família, porém, e variante da que caíra em Vila Isabel” (p. 191). Esses “eventos”, ao mesmo tempo em que podem ser relacionados com a chuva de maná bíblica — “Algumas mulheres humildes puseram-se de joelhos. Enquanto rezavam, a multidão se deslocava para o centro da cidade” (p. 191) —, revelam o caráter crítico da narrativa, que se volta, ainda em cenas marcantemente “surreais”, para a realidade social do país. 3.2. Utopia Boa parte do episódio do Carnaval é dedicada à discussão dos problemas do país; mas, ao lado de uma visão crítica, aparece também a esperança de uma visada utópica. Que não se confunda, porém, essa utopia com os discursos oficiais sobre a grandeza do país. O primeiro orador do Carnaval pede que Anchieta participe da folia e que depois conte a Deus que nem tudo aqui em baixo é “sujeira e lama”, nem tudo é 80 crime e luxúria. Os pecados existem, mas, segundo o orador, falta água e o povo vem sofrendo com o preço dos aluguéis e da carne-seca; Deus deveria considerar: “há mais de três séculos nossa gente vem mofando nas filas da esperança” (p. 162). Segundo o orador, enquanto não chegarem a felicidade e a riqueza, o povo deve se distrair e esquecer um pouco a vida. Em seu discurso, ele aproveita para apostar num futuro promissor: Nosso dia chegará. O nosso chute já é o mais forte. O petróleo começa a jorrar; as estradas se abrindo; jazidas de ferro e minério atômico dando sopa. Um bocado malandros sempre fomos, é verdade; e não há meios de chegarmos à hora marcada. Mas damos sempre um jeitinho... e o direito dos outros sabemos respeitar. Em matéria de camaradagem então, desafiamos qualquer povo do mundo! Se fizermos uma forcinha, e se Deus nos ajudar, ainda havemos de ser uma nação saudável e circunspeta. Isso, para o futuro. Agora não, tenham paciência. (p. 163) Terminado o discurso, o homem é jogado ao mar. Outro orador, que discursava sobre a garupa da estátua do General Osório, também é atirado ao mar. Um sujeito de cabeleira desgrenhada propõe então jogar ao mar tudo o que causa atraso ao Brasil e se pronuncia: “— Ao mar! Ao mar tudo o que nos retarda a marcha! Ao mar os escroques de alta patente, os latifundiários, os picaretas, os sanguessugas do povo” (p. 165). Surge o bloco Custa-mas-Vai e os carros do carnaval gritando as riquezas do Brasil: No carro seguinte, um locutor gritava pelo alto-falante as nossas riquezas. Três mocinhas — uma loura, uma preta e uma mestiça — ora exibiam amostras de coco-babaçu, café e diversos minérios atômicos, ora mostravam fotografias de nossas cascatas, praias e florestas, num rasgado por-que-meufanismo. De cinco em cinco minutos, uma delas desfraldava uma faixa verde-amarela com o mapa do Brasil, e gritava: “8.550.000 quilômetros quadrados!” (p. 181) Mediante o tamanho do Brasil, João Ternura considera, entretanto, que gente que nasce nem sempre corresponde a gente que é feliz. Conclui, então, que seria difícil preencher o Brasil com gente feliz: “Considerou que ia ser difícil encher tudo aquilo de gente feliz” (p. 181). 81 Ao lado dos discursos é importante, nesta parte do romance, a “reprodução”, em nota-de-rodapé, de dois manifestos que correm pelas ruas: o “Manifesto dos NãoNascidos” e o “Telegrama ao futuro”. A narrativa alerta: “O manifesto e os discursos da Praça Quinze vinham mostrar que se fazia da confusão carnavalesca um uso que transcendia os limites da brincadeira e perturbava os espíritos” (p. 173). O Manifesto dos Não-Nascidos protesta contra o aborto, dirigindo acusações contra as mães e os cirurgiões — “feticidas!” — e termina numa promessa de atormentá-los: “Não vos deixaremos em paz” (p. 174). A postura contrária de Ternura e seus motivos são claros: “Os não-nascidos então que esperassem melhores tempos. [...] Ternura discordava, na parte final do manifesto, daquela ameaça às mães culpadas. O mundo estava cansado de discórdias entre os homens, e ainda permanecia o temor de outra guerra. Por que a intransigência dos não-nascidos?” (p. 176). Já o telegrama ao futuro, lido por Josias, traz idéias de melhoria para o Brasil e para o ser humano que deixarão Ternura fascinado. O telegrama enfatiza a importância de se viver com alegria e dignidade: ...stop queremos repor inteligência em sua função crítico-construtiva a fim levantar nível vida humana e dominar natureza stop não temos pretensões explicar mistério vida sim viver com alegria e dignidade stop [...] nosso objetivo mais alto consiste voltar estado inocência mediante desenvolvimento extremo faculdade poética até agora atrofiada pressão forças utilitárias stop acreditamos que a maldade seja reação defesa contra injustiça e encarecemos prática bondade sem sentimentalismo como virtude máxima espécie humana stop... (p. 177-178) O telegrama terminará com uma referência ao futuro, confiante de que ele poderia nos trazer um mundo melhor: “futuro vírgula de ti esperamos um mundo melhor e te saudamos confiantes” (p. 178). Os valores aqui defendidos pela narrativa e por Ternura, entretanto, diferem dos discursos ufanistas; o futuro do país, nessa perspectiva, não se distingue da melhoria ética do ser humano. Mas, após essa afirmação de crença no Brasil e nos homens, a narrativa prossegue para narrar a morte, ou melhor, o 82 desaparecimento de João Ternura, como que a indicar a consciência do caráter utópico dessa esperança. 3.3. Desfecho Aníbal Machado escreveu a última parte de seu romance poucos dias antes de morrer. Quando considerou seu romance finalizado, o escritor fez o seguinte comentário a amiga Eneida de Moraes: — João Ternura está pronto, quero retocá-lo aqui e ali. Mas [e]le acaba triste. Perguntei-lhe por que razão Ternura acabava triste. — Não sei; é o fim d[e]le. Ternura não morre, Ternura desaparece.122 “Ternura não morre, Ternura desaparece”. A fala de Aníbal já anuncia um ponto importante do fim do livro: embora haja a representação de duas mortes do personagem, curiosamente, ele acaba apenas por "desaparecer" da narrativa, numa espécie de afirmação da permanência de seu valor simbólico. A primeira morte de Ternura, quando o personagem visita a eternidade, se dá de modo repentino no livro. No episódio “Vaiado na eternidade”, João Ternura já se encontra deitado na cama, moribundo: Chega para cá, Zequinha. Daqui você aprecia melhor. Quem assim falava era a mãe de Zequinha, procurando colocar o filho bem em frente ao moribundo. Dali ele apreciaria melhor a morte. E Zequinha, admirador principal de Ternura, estava interessado em aprender o seu jeito de morrer. (p. 204) 122 MORAES, Eneida. Escrever sôbre Aníbal não é coisa fácil. In: Revista Leitura. A morte de Aníbal Machado, n. 78, p. 14. 83 A cena, entretanto, é construída com humor: além de Zequinha, a dona da pensão esperava ansiosa pela morte do personagem, pois mandaria caiar o quarto novamente para outro inquilino. As tias Natália e Marina surgem para acompanhar o desenlace. O padre e o farmacêutico são chamados. Diante do olhar da mãe de Zequinha, Ternura pergunta: “— Alguma observação a fazer, minha senhora? Será que não estou morrendo direito?” (p. 204). Encontramos esse humor não só nas falas dos personagens, mas também nos comentários do narrador: “Ao que parece, Ternura vai morrendo em ótimas condições. A ligeira contração do rosto não foi trabalho da morte, mas efeito de um pingo de vela que lhe sapecou a pele” (p. 205). Enfim, Ternura comparece à eternidade, onde será vaiado por criaturas desocupadas: Uma arquibancada comprida desaparecia na bruma, cheia de gente que vaiava e fazia gracinhas. Que falta de respeito, ali... nas imediações da Eternidade!... “Fiau! Fiau!... Que vergonha!” — recomeçavam os desalmados. Três moleques corriam puxando latas de sardinha vazias: “O homem chegou... chegou! Quentinho da terra! Venham ver o bicho, venham ver...” (p. 206) A constatação é a de que não existe paraíso: Circunvagou o olhar aflito, à procura das portas do paraíso. Desde pequeno ouvira falar nelas. E não havia nada. [...] Não havia sequer um anjo por ali. Muito pálido, Ternura reclamava contra essa ausência quando um espanta-coió arrebentou perto... (p. 206) Desta vez, entretanto, Ternura retornará ao mundo dos vivos: às nove e quarenta e cinco da manhã, Ternura faz o gesto de uma banana, que, dirigida aos habitantes da eternidade, é recebida pelas pessoas presentes no quarto: Ternura porém não dera por terminada a vida. Ao contrário, abrira bem os olhos vermelhos de raiva, reclamou com veemência coisas deste mundo. Água mineral, um pedaço de pão, cigarros... e que se escancarassem as janelas. Queria ver o sol da manhã, árvores, gente se mexendo. Pedia tudo 84 num tom satisfeito de quem acabava de vencer a morte e as humilhações do Além. (p. 210) Essa ida de Ternura ao plano da eternidade é importante para o desfecho do livro. Lá, o personagem percebe que quer voltar. Ternura, que andava triste e desesperançado com o fim do carnaval, vence a morte com o conhecimento do vazio da transcendência: “E a tal orquestra celestial que ninguém vê nem ouve? E a inocência, o sorriso geral, a bem-aventurança? Então Deus era boato?!” (p. 208). Resta a Ternura a vida que os homens levam na Terra. O retorno, porém, é novamente frustrante. Observando seus amigos, percebe que eles se acostumaram com o cotidiano: “Estranhava os próprios companheiros. Pareciam-lhe de proporções mesquinhas. [...] Por que deixaram a vida cair tanto?” (p. 214). Diante do modo como os companheiros passam a viver, João Ternura se aborrece e se entedia: Manuel só cuidava da gráfica. Matias, casado de novo agora, perdera o ar cafajeste e estava ameaçado de tornar-se marido exemplar. Só as mulheres ainda guardavam a chama da vida. No olhar de algumas reencontrava Ternura a tentação de viver. Mas passavam cada vez mais longe. (p. 214-215) O personagem permitirá, então, que os acontecimentos da vida lhe aborreçam, dirá que está envelhecendo, que as mulheres não mais o quererão, que tem sentido solidão. Em conversa com Josias, o personagem confessa: — A vida que os outros aceitam e estão vivendo me parece cada vez mais absurda. E eu não queria ser diferente dos outros. Me parece que eles é que têm razão. Como é que vai ser, Josias? (p. 215) Melancólico, Ternura passa a viver escondido, receoso de se encontrar com os amigos, de que os outros vissem o seu “cartaz de tristeza”: Escondia-se para não expor aos outros o seu cartaz de tristeza. Teve receio de encontrar-se com Matias ou mesmo com Manuel. 85 As crises se repetiam. Como livrar-se daquela sensação de vazio que lhe subia das raízes do ser? De que combinações do corpo e do espírito se forma a angústia? Aquele destilar de sombras no pensamento, nenhum fato ou circunstância exterior explicava. [...] A ironia de Arosca tinha fundamento. Não mais diria “eu gosto da vida”. (p. 218) O personagem sofre, aparentemente, uma profunda modificação. A continuidade da narrativa, entretanto, explicita que a perda do gosto pela vida não significa a derrota da força da vida. Como afirma, em seguida: “Afinal, que adianta gostar ou não gostar da vida? O principal é tê-la no sangue, na alma, seguir com ela o mesmo ritmo de movimento” (p. 218). Enfim, não se trata propriamente de uma mudança de princípios do personagem, mas do reconhecimento de que não segue o mesmo ritmo da vida, ou seja, somente agora Ternura se dá conta de sua solidão, da diferença irredutível entre os valores que preza e os valores de seu tempo. Dotado dessa consciência, Ternura passa a viver, cada vez mais, como um incompreendido: Arosca achava que ele [Ternura] não dava para nada. Além do mais, dizia, a marcha dos acontecimentos nos últimos anos era de tal natureza que não havia tempo de pensar em quem quer que fosse. Muito menos nos probleminhas de cada um. Ternura não era mais que um grão de areia no torvelinho. (p. 221) A narrativa se encaminha, então, para a segunda "morte" de Ternura, desta vez, desejada pelo próprio personagem: Ternura tivera sempre o desejo e a ilusão de que, depois que morresse, poderia continuar de olhos abertos por alguns anos. Abertos, mas sem direito à vida!... Só para espiar!... Um olho espiando. Ficaria escondido atrás da Serra do Mar. Anos ali, a esperar pelo futuro. Queria ver como surgiam as novas gerações e assistir ao crescimento do Brasil. O progresso material havia de ser igual à grandeza humana de seu povo. A natureza vencida, os homens simples e cordiais, todos livres da exploração e do medo. (p. 222-223) 86 Podemos perceber pelo menos duas possibilidades de leitura do significado deste "desaparecimento". Por um lado, afirma-se assim que o personagem, mesmo desesperançado, desinteressado pela vida do presente, ainda possui esperança. Sentimento que agora é destinado ao futuro do Brasil e de seu povo — E “esperar pelo futuro” significa, então, ter esperança de ver os homens livres e sem medo. Por outro lado, o desaparecimento de Ternura, pode ser entendido também como a perda dessas mesmas ilusões: cada vez mais desumana, não haveria espaço na sociedade para a ternura. Essa última interpretação é a sugerida por Aníbal Machado na introdução do romance: Tão desarmado e inocente repontava o personagem em sua fase embrionária, que lutei comigo mesmo para que não vingasse; mas, de tanto insistir em querer sair, achei de melhor aviso evitar o aborto, e facilitar-lhe a aventura de nascer para morrer cá fora. [...] esse pobre João Ternura que nas nuvens melhor ficaria, uma vez que sua simplicidade e inocência nem sempre encontravam resposta num mundo em que não conseguiu (e nem suportava) atingir a chamada idade da razão e das conveniências sociais que tão tristemente já alcançamos. 123 O desaparecimento de João Ternura representa, assim, o questionamento da modernidade, que não deixa espaço para os valores simbolizados pelo personagem. Nem por isso, entretanto, eles parecem ter perdido sentido, uma vez que o romance defende justamente a pertinência desses valores, ainda que, em tempos desfavoráveis, eles pareçam ter "desaparecidos", tal como o personagem: Eis o filho de Liberata há muito tempo espiando do alto de uma colina — a colina ou terraço de arranha-céu. Está diferente o traçado das ruas, a forma dos edifícios! Em vão procura identificar os bairros que habitara, as praias em que tomava sol. Praias e ruas apinhadas. Ele espiando!... Quantas Ritas e derivados de Rita passando, pisando a areia, ostentando o corpo! Ele sem poder participar!... (p. 223) 123 MACHADO, Aníbal. Introdução. In: João Ternura, p. 04. 87 Observando o mundo, Ternura não se reconhece naquilo que vê. A conclusão é inevitável: “o mundo mudava, e a Ternura não interessava mais viver depois que tudo ficara diferente. Para que voltar?” (p. 224). Somente então é que se dará o desaparecimento definitivo do personagem, sugerido de modo poético e simbólico. Um elemento importante do livro consiste em uma pedra que metaforiza o coração e a vida de Ternura. Encontrada no rio da chácara paterna, essa pedra acompanha o personagem desde a infância. Objeto mantido em segredo e, por isso, escondida até mesmo do leitor, ela só aparece no episódio “Tome esta pedra pra você”, quando o personagem a entrega a Luisinha: Uma vez, Luisinha, eu era menino, acordei de madrugada, corri à praia, e vi uma pedra. Ela parecia me chamar de longe. Eu me aproximei pra apanhá-la. Devia estar rolando há séculos no leito do rio. Eu acho que ela se escondia dos outros, e se enterrava na areia toda vez que alguém a via ou que a correnteza ameaçava levá-la. Era uma coisa viva, diferente. Só faltava falar. Eu tinha certeza de que essa pedra me esperava. Toda a vida me fez companhia. E está aqui comigo. Eu a trouxe para você, Luisinha. Fique com ela pra sempre. É como se fosse o meu coração. (p. 200) Retirada do rio da infância, a pedra possui função semelhante ao umbigo do personagem, que foi atirado nas águas desse mesmo rio, representando uma ligação com a terra natal e com o tempo da infância. Assim, o fato de Ternura entregar a pedra a Luisinha, ou livrar-se dela, pode ser entendido como uma maneira de se desfazer das lembranças que o atormentam. É também uma demonstração de que a vida, que o personagem tanto amou e tanto quis, pode estar se aproximando do fim. Porém, ainda não é o momento de a pedra voltar à natureza. Ternura pede, como vimos, que Luisinha a guarde para sempre, guardando assim também o seu coração. Significativamente, Luisinha, a guardiã do coração de Ternura, será também a guardiã de sua memória: “Luísa, na extrema velhice, era a única a recordar um ou outro fato da vida do desaparecido. Alguns anos depois, numa tarde de outubro, ela também desaparecia” (p. 222). 88 Assim, o instante em que o personagem deixa de avistar os últimos sinais da terra, ou seja, em que ocorre o seu desaparecimento definitivo, corresponde, na obra, ao momento em que, tendo morrido Luísa, a pedra é jogada fora, voltando à terra: Numa casa de subúrbio, a moça de nome Joanita, neta de Luísa, casada com um mecânico do aeroporto, encontra no porão uma caixa com os guardados da avó. Fios apodrecidos, rendas, vidros vazios, papéis amarelados. No fundo, envolta em papel de seda, uma pedra. Lisa, negra, um risco marrom atravessando-a de lado a lado. Para que, aquilo? Guardado em papel de seda, por quê? A moça atira a pedra pela janela. E a pedra, caindo na encosta de uma colina, voltou à terra. Nesse instante, Ternura desapareceu definitivamente. Sem nada, sem ninguém que o lembrasse, era como se nunca tivesse existido. (p. 224) Pode-se dizer, nessa perspectiva, que a pedra une as duas pontas da vida de João Ternura, ligando ao mesmo tempo a infância à morte do personagem. Curiosamente, a pedra atirada por Joanita, pela janela, atinge a encosta de uma colina, retornando à natureza, sugerindo ao mesmo tempo tanto uma idéia de retorno ao lugar de origem, possibilitado com a sua “morte”, quanto a insignificância do personagem, que é relacionado a uma simples e inútil pedra: “Para que, aquilo?”. É preciso considerar, ainda, que a pedra constitui uma referência feita pelo escritor à sua terra natal. Nesse sentido, é válido observar o nome da cidade em que nasceu: Sabará. Em Passeio a Sabará, Lúcia Machado de Almeida explica a origem do termo que dá nome à cidade: SABARÁ, ant. Tabará de que se fêz Tabaraboçu, como se vê em velhos documentos. Tabará é a forma contracta de Itabaraba ou Itaberaba que é Itaberaba, a pedra reluzente, o cristal.124 Essa relação reforça a idéia de um livro-testamento, já comentada em nosso estudo. A pedra, sendo uma maneira encontrada pelo escritor de demonstrar que criador e criatura se fundem em João Ternura, é também uma forma de expor que a obra traz a 124 ALMEIDA, Lúcia Machado de. Passeio a Sabará, p. 153. 89 sua visão de mundo. Assim, a pedra, tão cara a João Ternura e tão inútil a Joanita, simboliza a própria ternura. Temos, nesse sentido, a perda da ternura diante do crescimento da cidade, da evolução do mundo, enfim, da própria modernidade. Livro de toda uma vida, João Ternura carrega consigo uma mensagem de humanismo e de esperança que se contrapõe a épocas difíceis vividas por Aníbal como, por exemplo, a Revolução de 1930 e a Segunda Guerra Mundial. 90 4. CONCLUSÃO Rua Visconde de Pirajá 487. O endereço da casa de Aníbal Machado, em Ipanema, ficou famoso entre os escritores e artistas no Rio de Janeiro. A casa funcionou como um ponto de encontro não só de intelectuais, mas também de escritores iniciantes e de curiosos, que a freqüentavam aos domingos. Espécie de salão literário, a casa de Aníbal se tornou um espaço importante para os artistas que residiam na cidade ou que por lá passavam. Diversos escritores, dentre eles Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes e Rubem Braga, freqüentaram a sua casa. Drummond125 chegou a escrever uma crônica sobre estas reuniões, que ficaram conhecidas como as “domingadas” na casa de Aníbal. Há registros ainda de visitas de escritores como Albert Camus126 e Pablo Neruda127 às reuniões. Quem faz um desses registros é Maria Clara, quando enumera uma lista de personalidades que conheceram a casa de Aníbal: Como meu pai era crítico de arte e amigo de pintores e intelectuais, minha casa ficou famosa por receber toda a espécie de gente. De escolas de samba até companhias estrangeiras de balé e teatro, os domingos em minha casa ficaram conhecidos como um centro de encontros entre gente interessante. [...] Jean Babille, famoso bairarino, Albert Camus, Pablo Neruda, Maria Helena Vieira da Silva, Dante Milano, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Adalgisa e Ismael Nery, Di Cavalcanti, Goeldi, Guignard, Portinari e todos os novos que surgiam na época, Otto Lara Rezende, Paulinho Mendes Campos, Rubem Braga, João Cabral de Mello Neto, Scliar, Fayga, Glauco Rodrigues, Anna Letycia, Tonia Carrero e muitos e muitos outros freqüentaram os domingos do 487.128 Somente na década de cinqüenta, quando seu irmão, Cristiano Machado, candidata-se à presidência da República, é que as domingadas são interrompidas. 125 O título da crônica de Drummond é “Ontem, em casa de Aníbal...”. Cf. ANDRADE, Carlos Drummond de. Auto-retrato e outras crônicas, 1989, p. 27-29. 126 Camus visitou Aníbal Machado em 01 de agosto de 1949. Cf. CAMUS, Albert. Diário de viagem: a visita de Camus ao Brasil, p. 118. 127 Segundo Drummond, a visita de Pablo Neruda a Aníbal Machado ocorreu em 30 de junho de 1945. Cf. ANDRADE, Carlos Drummond. O observador no escritório, p. 45. 128 MACHADO, Maria Clara. Eu e o teatro, p. 29. 91 A importância que os encontros promovidos na 487 tiveram para o Modernismo permite-nos traçar o seguinte paralelo: assim como Mário de Andrade, em São Paulo, pode-se dizer que Aníbal Machado exerceu grande influência no Rio de Janeiro de sua época. Otto Maria Carpeaux, para quem o escritor teve o papel de líder do modernismo brasileiro na então capital federal, atribui o esquecimento da influência de Aníbal Machado ao fato de esta ter sido feita de forma oral: Foi, em grande parte, uma influência oral: Aníbal Machado, chamando a atenção para livros novos e para tendências novas que surgiram no estrangeiro; recomendando leituras; interpretando teorias e teses; sugerindo enredos; lendo originais de novos, estimulando os autores, introduzindo-os em revistas literárias, em jornais, em casas editoras; promoveu mais as obras dos outros que as suas próprias; pedindo críticas e artigos aos confrades, fazendo ele próprio a crítica, raramente escrita, as mais das vezes em conversa; foi uma conversa que semeou idéias e formas.129 Carpeaux ainda nos informa que o próprio poeta Drummond o considerava como mestre e que Aníbal Machado teve papel de animador cultural também em outras áreas artísticas: “Em todos esses setores — poesia, pintura, romance e conto, cinema, teatro — Aníbal Machado foi um animador sem-par”130. Como se pode perceber, a maneira como Aníbal Machado aconselhou e influenciou os novos resulta num ponto problemático para a crítica literária, pois não há como medir a importância que realmente teve para a geração modernista do Rio de Janeiro. O fato de não ter registrado a maioria das críticas que fez, seja por meio de artigo ou por meio de carta, ou seja, com um registro escrito, tem prejudicado a análise crítica do papel que lhe coube. Em 1964, Otto Maria Carpeaux anunciava que o escritor mineiro teria um certo destaque nos livros que tratassem da literatura brasileira como um todo. Já Raúl Antelo afirmaria, trinta anos depois, que Carpeaux havia se enganado, e lembrava que a maioria 129 130 CARPEAUX, Otto Maria. Presença de Aníbal. In: MACHADO, Aníbal. João Ternura, p. x. CARPEAUX, Otto Maria. Presença de Aníbal. In: MACHADO, Aníbal. João Ternura, p. xi. 92 dos manuais havia ignorado a importância de Aníbal Machado. O fato é que muitos aspectos interferiram na recepção da obra do escritor e, conseqüentemente, no seu enquadramento dentro do Modernismo. Dentre eles, parece-nos ser de maior relevância o fato de o escritor ter interrompido e engavetado o romance João Ternura. Aníbal Machado foi um escritor de pequena produção literária. Pode-se dizer, grosso modo, que Aníbal publicou dois livros de ficção em vida, sendo um de contos e outro de “poemas em prosa”. Ao evitar a publicação de seu único romance, prolongando a gestação de seu personagem, Aníbal acabou frustrando a expectativa dos críticos, que viam em João Ternura a promessa de obra inovadora para o movimento. Ao ser publicado em 1965, João Ternura comprovou a expectativa dos críticos, ainda que com algumas décadas de atraso. A parte mais antiga do romance, a que trata da infância do personagem, é a mais significativa nesse sentido: a inovação se faz presente, por exemplo, na ruptura do gênero, no uso de justaposições, pela fragmentação da narrativa, pela linguagem coloquial, dentre outros aspectos. No entanto, essa comprovação resultou também em um lamento por parte dos críticos, pois, quando a obra veio a lume, as inovações vinham com sabor de coisa do passado, já eram conhecidas pelo leitor. Um comentário feito por Rui Mourão exemplifica bem essa expectativa: O único escritor a experimentar em Minas as trilhas abertas por obras como João Miramar e Macunaíma parece ter sido Aníbal Machado, em João Ternura, que vinha sendo escrito desde 1926 mas, havendo se constituído num dos casos mais anormais de gestação de que se tem notícia, ao ser publicado, em 1965, apenas resultou em grande anacronismo. Poderia a nãoparticipação mineira nas refregas da primeira quadra modernista se explicar por uma certa falta de arrojo radicalizante dos nossos prosadores, o que deixa entrever o núcleo básico da própria tentativa de Aníbal Machado, que muito possivelmente não chegou a ser descaracterizado pelas sucessivas reelaborações ao longo do tempo?131 131 MOURÃO, Rui. A ficção modernista de Minas. In: O Modernismo, p. 194. 93 É possível, no entanto, que Aníbal Machado desejasse que seu romance não fosse lido como uma obra da primeira fase, ou seja, em comparação a livros como Memórias sentimentais de João Miramar e Macunaíma. Visto sob este viés, faz sentido o engavetamento de seu único romance. Como já dissemos neste estudo, a interrupção de João Ternura pode ter sido causada pela divulgação inesperada que seu romance teve, ocorrida a contragosto do autor. Nessa ocasião, o poeta Oswald de Andrade havia declarado publicamente que considerava o livro, que estava apenas iniciado, como um dos pontos mais altos do romance nacional132. A declaração de Oswald poderia, assim, induzir a crítica caso João Ternura viesse a lume naquela década. Hoje, só sabemos da declaração dada por Oswald por meio de um pequeno texto biográfico escrito por Renard Perez. A opinião de Oswald poderia interferir na recepção da obra naquela época. A exemplo do que ocorreu com Mário de Andrade, em que o poeta foi considerado publicamente um futurista, e do impasse gerado nos jornais com Drummond, o comentário de Oswald poderia resultar em uma classificação inadequada do livro de Aníbal. Vale lembrar que são escritores de raízes diferentes: Oswald é considerado o primeiro importador do futurismo de Marinetti; Aníbal se manteve em sintonia com o surrealismo de Breton. Embora Aníbal Machado achasse que o Brasil possuía terreno fértil para o surrealismo, as idéias de Breton não tiveram tamanha repercussão, salvo em alguns escritores, na literatura brasileira. Já as idéias futuristas se popularizaram tanto que a palavra chegou a ser usada como sinônimo de vandalismo em alguns lugares do país. Ainda que se trate de lugar e grupo específicos — a Belo Horizonte da década de 132 Embora tenha sido interrompido em 1932 e somente publicado em 1965, foi inevitável que os críticos relacionassem João Ternura à primeira fase do movimento Modernista. 94 vinte e o grupo de Pedro Nava — as atitudes de seus integrantes serão confundidas com o nome da nova estética: E depredávamos. Casas, jardins, logradouros. Na noite da cidade deserta e despoliciada quem? Quebrou uma por uma as vidraças consulares do Comendador Avelino Fernandes. Quem? [...] Grandes quantidades de solução de ácido sulfídrico e empolas de mercaptã são atiradas no salão do Odeon durante a última Sessão Fox e o odor infecto determina suspensão da projeção e a retirada das famílias indignadas. Quem? [...] A Família Mineira ultrajada sabia muito bem bem bem. [...] Afinal, de prova em prova ficou claro que tudo aquilo era coisa dos nefelibato-futuristas. E de dois dos mais perigosos... O belo advogado jejuno de causas, o almiscarado Zasparone dei Zasparoni foi à casa das Bevilacqua oferecer-se para processar de graça os dois incendiários e bandidos futuristas (não se dava por menos).133 Em sentido mais amplo e se dirigindo à nova forma de versificação, Pedro Nava depõe sobre como a sociedade mineira tratava os modernistas mineiros nessa época. Em seu relato já fica claro uma tendência do senso-comum em enquadrar o novo movimento ao “futurismo”, mesmo que forçosamente: Ora, aqueles rapazes desrespeitosos, escrevendo em revistas do Rio e depois de São Paulo, fazendo versos sem rima e sem metro, descobrindo pedras no meio do caminho — só podiam ser uns canalhas. Tudo de malfeito que aparecia lhes era atribuído. Isto é coisa destes filhos da puta dos futuristas — dizia o Raul Franco, como ouvi certa vez. [...] Pois futuristas e nefelibatas não éramos considerados melhor que os habituês das tascas, os freqüentadores dos cabarés, a ralé dum Parque Cinema já inexistente mas conservando seu valor simbólico...134 No entanto, foi em São Paulo que o futurismo alcançou grande importância. Mário da Silva Brito atribui a Oswald de Andrade a responsabilidade pela popularização do termo: O artigo de Oswald de Andrade sobre a poesia e o poeta Mário de Andrade, deu maior circulação às palavras futurista e futurismo. De certo modo, introduziu-as entre nós. Antes dele, é exato, esses vocábulos já eram conhecidos e usados, mas não vinham cercados de rumor e nem continham a carga polêmica que então adquiriram nos meios artísticos e literários de S. Paulo.135 133 NAVA, Pedro. Beira-mar, p. 200-202. NAVA, Pedro. Beira-mar, p. 199. 135 BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro, p. 243. 134 95 Brito se refere ao artigo “O meu poeta futurista”, escrito por Oswald em 1921, para lançar a poesia e o poeta Mário de Andrade. Como o próprio nome do artigo já anuncia, Mário é apresentado aos leitores como um poeta futurista. Oswald informalhes que o poeta tem um livro a publicar, cujo título é Paulicéia desvairada: “Ele é o autor de um supremo livro neste momento literário. Chamou-o Paulicéia Desvairada — cinqüenta páginas talvez da mais rica, da mais inédita, da mais bela poesia citadina”136. A publicação do artigo de Oswald terá forte repercussão na vida do então professor de música Mário de Andrade. Mário da Silva Brito depõe a esse respeito do seguinte modo: O artigo de Oswald de Andrade envolve Mário de Andrade em verdadeiro escândalo. O poeta sofre, então, em nome da literatura moderna, os mesmos vexames sofridos, poucos anos antes, por Anita Malfatti, em nome da pintura avançada. Narra Fernando Goes que foi “tão forte a celeuma provocada nas rodas literárias”, que de uma hora para outra o nome de Mário de Andrade, “até aí só conhecido dos ‘novos’”, toma conta da cidade, ganha uma popularidade, uma celebridade espantosa. É que pela novidade, pelo atrevido da forma e das idéias do poema, todos, artistas e público, enxergam no seu autor um cabotino e, o que é pior, um maluco. O pobre professor (nessa época Mário de Andrade lecionava no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo), que vivia sua vida de um modo pacífico, estudando, lendo continuamente, passa a ser apontado nas ruas, aos cochichos, sob olhares irônicos e sorrisos de mofa.137 Diante de tal situação, Mário escreve o artigo “Futurista?!”, em resposta ao de Oswald, no qual nega o seu envolvimento com o futurismo e afirma que não se prende a nenhuma escola. Sobre sua obra, afirma que não sabe se a publicará: “Não tinha e não tem ainda nenhuma intenção de a publicar. ‘Paulicéia Desvairada’ é um livro íntimo, um livro de vida...”138. 136 ANDRADE, Oswald. O meu poeta futurista. In: BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro, p. 226. 137 BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro, p. 227-228. 138 ANDRADE, Mário de. Futurista?! In: BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro, p. 231. 96 Quando o livro é publicado, Mário retoma o assunto no seu “Prefácio Interessantíssimo” e nega mais uma vez a classificação de poeta futurista, dada por Oswald: Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contato com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do mundo.139 No entanto, foi difícil não tachar Mário de futurista dado o seu envolvimento com o grupo de Oswald e sua participação na Semana de Arte Moderna. Sobre isso, escreve Brito: De nada valiam, no entanto, as explicações. Os jovens escritores de São Paulo estavam classificados como futuristas e para isso muito contribuíram as suas afirmações e atitudes. Para o consenso geral, eram futuristas — e pronto.140 Diferentemente de Paulicéia desvairada, que, ao ser chamada de obra futurista por Oswald, encontrava-se escrita, o livro de Aníbal Machado achava-se incompleto. Como este, ao que se sabe, nunca escreveu sobre o ocorrido, não se tem certeza sobre o motivo pelo qual interrompeu o seu romance. Nossa hipótese, como já dissemos, é de que não quisesse ser lido em comparação com os modernistas paulistas da primeira fase, ou com estes confundido. À declaração dada por Oswald de Andrade, que poderia guiar a recepção da obra se esta fosse publicada na época, soma-se o fato de Aníbal Machado nunca ter declarado quando realmente começou a escrever João Ternura. Como mostramos na Introdução, o romance teria sido iniciado quando o autor ainda residia em Minas Gerais. Sua gênese, segundo Pedro Nava, seria de 1922, ou anterior a isso. A proximidade com a Semana de Arte Moderna poderia se tornar, assim, mais uma 139 140 ANDRADE, Mário de. Prefácio interessantíssimo. In: Poesias completas, p. 16. BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro, p. 247. 97 motivação para que os críticos literários analisassem o romance como uma obra da primeira fase. Qual posição é então reservada a Aníbal Machado no modernismo brasileiro? Enquanto escrevia João Ternura, o escritor publicou seus outros livros, Histórias reunidas e Cadernos de João. Durante sua vida, os críticos só conheceram trechos de seu romance, que eram publicados de modo esparso em revistas e jornais ou que eram lidos por Aníbal, em sua própria casa. Por muito tempo, foi Aníbal o autor do famoso conto “A morte da porta-estandarte”, que chegou a ser considerado um dos dez melhores contos da literatura brasileira, numa pesquisa feita pela revista Acadêmica, quando o escritor não tinha nenhum livro publicado. Quando Aníbal Machado faleceu, Renard Perez o classificou como um dos maiores contistas da literatura brasileira: “aqu[e]le que perfaz — com Machado de Assis, Mário de Andrade e Marques Rebelo — o grande quarteto do gênero em nossa literatura”141. Já Otto Maria Carpeaux, chegou a dizer que Aníbal Machado foi “um dos melhores contistas do século”142. No mesmo sentido, Jorge Amado escreve: “sua obra é a de um mestre do conto brasileiro”143. Um ano depois de sua morte, João Ternura era publicado. Surgido no início da década de trinta, o mito em torno do romance de Aníbal Machado pôde ser, então, esclarecido pela leitura da obra. Assim, a demorada gestação do livro resultou no seguinte contraponto: possui uma parte que foi escrita durante as primeiras décadas do século XX, sem no entanto ser obra da primeira fase modernista. De fato, somente na década de sessenta os leitores puderam tomar conhecimento do livro como um todo. 141 PEREZ, Renard. Nosso Aníbal Machado. In: REVISTA LEITURA. A morte de Aníbal Machado, p. 12. 142 Cf. MACHADO, Aníbal. A morte da porta-estandarte: Tati, a garota e outras histórias, s. p. 143 Cf. MACHADO, Aníbal. A morte da porta-estandarte: Tati, a garota e outras histórias, s. p. 98 O escritor, por sua vez, atravessou todas as fases modernistas e exerceu influência sobre autores importantes, como Drummond e Pedro Nava. No entanto, como registrou Carpeaux, trata-se de uma influência oral. Tal fato atrapalha e até impossibilita uma revisão sobre o papel que Aníbal Machado exerceu em sua época e no movimento que lhe foi contemporâneo. Não há como negar, entretanto, a sua importância para a geração de escritores que residiam no Rio de Janeiro. É válido, nesse sentido, observar a classificação dada por Otto Maria Carpeaux ao escritor mineiro. O crítico o considera como líder do Modernismo no estado do Rio. Para classificá-lo assim, Carpeaux primeiro cuida de distanciar a primeira fase do movimento da segunda: Quando Aníbal Machado apareceu no Rio de Janeiro, a primeira fase do movimento modernista já era coisa do passado. Nem sei se os futuros historiadores da literatura brasileira deverão ligar muito a segunda fase à primeira. Quem relê hoje a famosa conferência de Mário sobre o modernismo, compreenderá logo a diferença.144 É importante observar que, ao falar de Aníbal Machado e distanciá-lo da primeira fase modernista, o crítico também o distancia da vanguarda futurista: Não é possível negar a influência do futurismo italiano nos inícios do modernismo brasileiro. Mas foi uma influência secundária, e quando Aníbal assumiu seu papel de líder no Rio de Janeiro, já tinha passado. O espírito ou antiespírito do futurismo lhe era alheio. Talvez nem pensasse no futuro, mas só num outro tempo, mais vivo e de maior urgência: no presente.145 Percebemos, num dos textos críticos de Aníbal Machado, “Chaplin e os irmãos Marx”, uma possível relação, ou um paralelo, entre os modernistas paulistas da primeira fase e o escritor de Sabará. Nesse texto, o encontro promovido entre Carlitos e irmãos Marx é uma maneira de mostrar que, mesmo vivendo a mesma época, tendo certos pensamentos em comum e 144 145 CARPEAUX, Otto Maria. Presença de Aníbal. In: MACHADO, Aníbal. João Ternura, p. x. CARPEAUX, Otto Maria. Presença de Aníbal. In: MACHADO, Aníbal. João Ternura, p. xvii. 99 desfrutando da mesma linguagem, seus criadores possuem formas diferentes de se manifestarem: Alguma lição a tirar dos irmãos Marx? Nenhuma. Nem pretende o espectador buscar sentido filosófico no anarquismo fundamental dessa criação cômica, senão alívio ao peso excessivo que nos impõem a moral e os costumes burgueses. Os Marx oferecem ao superego de cada um o espetáculo que o nosso subconsciente sonha fazer e não pode. E se aqui se promove o encontro dos três com Carlitos, é porque, circulando nas mesmas estradas luminosas da película, e usando embora valores cômicos diferentes, souberam os quatro formular um pensamento comum de não aceitação das formas usuais de viver.146 A seguir, esses “valores cômicos diferentes” são explicitados: Carlitos é frágil demais para tomar parte nas arruaças dos irmãos Marx. Gostaria porém de acompanhá-los e divertir-se com eles. Como os Marx, põe-se também em contradição burlesca com o mundo em que vive. A forma de manifestar-se essa contradição é diferente: amarga e contemplativa num; anárquica e turbulenta no outro.147 Aníbal faz, ainda, diversas comparações entre Carlitos e os irmãos Marx. Estes, que quebram tudo o que encontram, são considerados como uns desordeiros. Aquele, cuja corrida “é um esboço de dança, com algo de vôo”148, sonha e tem necessidade de viver, estaria mais próximo dos valores e da visão de mundo de Aníbal. O artigo ajuda, assim, também a compreender as relações do escritor com a primeira fase de nosso modernismo, a chamada “fase heróica”, porque mais combativa e radical, e que pode ser aproximada ao humor corrosivo e violento dos irmãos Marx. Ao evitar a publicação do romance, já tão anunciado, o autor evitou que João Ternura nascesse com o rótulo de obra inovadora da primeira fase, e fosse relacionado com a fase mais “destruidora” do movimento. 146 MACHADO, Aníbal. Chaplin e os irmãos Marx. In: Parque de diversões, p. 77. MACHADO, Aníbal. Chaplin e os irmãos Marx. In: Parque de diversões, p. 75. 148 MACHADO, Aníbal. Chaplin e os irmãos Marx. In: Parque de diversões, p. 73. 147 100 De todo modo, no texto de introdução ao romance, é ainda como compromisso com a liberdade — do autor, da personagem e dos leitores — que Aníbal Machado justifica o longo atraso na publicação do romance: A publicidade involuntária, que o livro recebeu antes de terminado, deixou atemorizado o autor. Gostaria este que a obra cumprisse naturalmente o seu destino, sem forçar o sentido que acaso venha a assumir em cada leitor e em cada geração literária. (p. 03) 101 5. BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Lúcia Machado de. Menina, menina... São Paulo: Cultrix, 1985. _____. Meu irmão Aníbal. In: Suplemento Literário do Minas Gerais. Belo Horizonte: S. Literário, ano X, n. 477, nov. 1975. _____. Passeio a Sabará. 3. ed. [ilustrações de Guignard]. São Paulo: Martins, 1964. ALONSO, Rodolfo. Em torno a Aníbal Machado. In: REVISTA TRAVESSIA. Florianópolis: Ed. UFSC, n. 819, v. 5, jan / jun 1984, p. 42-46. ANDRADE, Carlos Drummond de. Balada em prosa de Aníbal M. Machado. 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