1 O ALEMÃO - Realmente, um tempo assim em Novembro… não há memória. Muito menos trovões. Nem que quisesse não podia voltar pr'a casa. Depois, há a velhota. Não pode ir por causa do acontecido. Olhe, com este temporal até os caminhos ficam ribeiras. - Sim, sou da terra dele. Bem, mesmo da terra dele não. Duma terra quase pegada. Agora, com os emigrantes, há casas duma terra à outra. À beira dos caminhos, nos altos e até nos fundões. Por onde calha e onde podem. De todos os feitios. As terras até nem parecem as mesmas. Cada casario que faz ver. Um faz grande e bonito o outro a seguir faz ainda maior e mais bonito! Quem pode, claro. - Sim. Conheço lá toda a gente e a ele também o conhecia. Muito bem e desde rapazito… e ao pai e à mãe e até à avó. Todos. - Pobres, mas boa gente. É por isso que vim com a velhota. A senhora sabe, às vezes perde o tino e vareia. Parece que tem as veias da cabeça entupidas. Umas vezes está melhorzita… outras, não diz coisa com coisa. Pobrezinha! Até das giestas tem medo! Desanda, de casa em casa, a dizer que uns sarroneiros a quiseram roubar nos caminhos. A princípio o povo acreditava… faziam rusgas pelas terras à procura dos bandidos… nunca se sabe, não é? Ele há tanto malandro por esses termos de Deus! Agora, a gente deixa-a falar, mas não faz caso. Ela lá continua, umas vezes pior outras melhor. - Medinho tem! Sol-posto, casa. Não vai a parte nenhuma… ela que tanto gostava de andar de casa em casa a tirar o folar. Se a gente lhe pergunta… querem-me roubar as minhas arrecadas, que o meu homem me comprou na Feira dos Santos… e aponta para as orelhas, de olhos esbugalhados! Mas, fora isso, mexe-se bem. O mal dela está no senso, que se foi… Por isso, não pode andar só… fora da terra dela. Sabe, ali toda a gente a conhece e se for preciso trazemna dos caminhos. - O filho? Bem lhe custava, mas ela nem quer ouvir falar em sair de lá, da casinha dela. Olhe, ele até me pagava de vez em quando pelos meus cuidados por êla… Eu não queria. Fazia-o por amizade. Por êla… e por ele. Desde pequenos que nos conhecemos, fazíamos brincadeiras… criançadas. Depois ele saiu para fora, eu fiquei. A vida. De pobres, cada um a tentar ganhar o pão como pode… e onde calha. Mas nunca deixou de ir à terra e de me précurar. Tanto de solteiro como de casado e viúvo. Essa atenção lhe devo! 2 - Não, não tenho. O tempo foi passando, nunca casei… Tamém não fiz por isso. Quase não saía da terra e lá as coisas não se arranjaram. Olhe… Deus não quis… é o que é. - Não! Parece que está a canear mas não dorme por completo… Está a ouvir tudo… é para que não desconfiem! Às vezes põe-se de olhos arregalados… muito parada…parece que viu o diabo, salvo seja, e zanga-se por nada. Mas passa-lhe depressa… fica esquecida, como se nada fosse. Eu nem ligo. Temos de ter paciência com os mais velhos… para lá vamos… Olhe, ela conhece-me bem, desde pequenina… ia muitas vezes a casa dêla. Era como se fosse minha mãe. Antes do filho abalar… o Manuel…passava lá tardes inteiras. Pois olhe… há dias em que parece que me não conhece… não me liga e até parece que me quer mal… mas não. É da cabeça… a mim e a toda a gente… menos ao filho! Olhe, nem sei. Se calhar Deus tirou-lhe o juízo para lhe poupar o desgosto de ver o filho assim… Quem vai cuidar dela? Nem sei! Há-de ter de ir para um lar de velhos lá na vila. Mas ela nem quer ouvir falar nisso. Da minha casinha ninguém me arranca… não senhor. Só morta! Olhe, vai ser uma grande tristeza… em cima desta. Mas eu não posso. Agora que ele já cá não está… Olhe p'ra ela… parece que acordou… não pára, entra, sai, sobe, desce, vai até à porta da rua… sempre à prècura do filho… Nem sabe que ele está ali! Há bocado perguntou-me se ele já chegou de Chaves. Se alguém lhe disse que ele foi p'ra lá? Não sei. Se calhar a outra… A mim só me préguntou porque havia tanta gente e entrar e a sair e porque está de preto a sirigaita e a choramingar, ela que anda sempre de sais curtas e blusas burmelhas e decotadas, mesmo com frio. Sabe, nunca lhe chamou pelo nome! Diz sempre a outra, a que está com o meu filho. Nunca gostou dêla. Veio ocupar um lugar que não lhe pertence! A Amália morreu, mas o homem dêla, O MEU FILHO, e os filhos deles ficaram e ela não tinha nada que se vir meter na família da defunta! Cuidasse das duas filhas que arranjou lá pela França que bem tinha que fazer com êlas… umas cabras sem vergonha! Quando vinham de férias … eram só poucas vergonhas… até que arranjaram uns mandrongos franceses… que cá da terra ninguém as levava à igreja! Criadas sem pai, que a bem dizer nem sabem quem é, não admira que fossem umas doidas por rapazes… a mãe já assim era… da idade dêlas… quem o herda não o rouba! Era só disto e para quem a queria ouvir! 3 Não. Vinha aqui poucas vezes. No tempo da Amália, sim. Vínhamos muitas vezes as duas e ficávamos às temporadas… quando a lida deixava. Ele ia lá menos… lá a trazia e lá a levava. Depois de ter casado com esta, êla não queria vir se a outra cá estivesse. Quando vinha ia contar-me mundos e fundos dos desgovernos dêla… das filhas e dos mandrongos. Foi pouco depois do casamento dele com esta que começou a varear da cabeça. P'rà não contrariar era ele que ia lá à terra e até lá dormia umas vezes por outras… Olhe, ela ficava tão contente! Marília, O MEU FILHO fica cá, tens de me ir ajudar a fazer a comida que ele gosta. E eu lá ia… e de boa mente. Olha, faz coisas simples… como dantes… o dinheiro não muda nada, dizia-me ele. O coração é sempre o mesmo, novo ou velho, pobre ou rico… Olhe, o que ele mais gostava eram batatas cozidas com couves-galegas e um caldo bem verde com um fiozinho de azeite cru! Carne? Muita como eu! Quero como dantes, que tudo me sabia tão bem… nas panelas de ferro… ao lume. Até me regalava de o ver comer! E não era por não haver outras coisas. Ele enchia a casa da mãe de tudo o que era bom, de comer e do resto. A casa é pequena mas ele mandou arranjar tudo. Tem uma salinha com duas camas, um quarto bem mobilado, uma cozinha com um grande fogão a gás cidla… um frigorífico… uma grande televisão a cores… muitas imagens nas paredes…. Coisas lindas! Sempre que ia a Fátima ou à romaria trazia uma imagem grande… ele gostava de dar boas esmolas aos santos… está tudo encaixilhado de madeira dourada… tem santos quase tão grandes como os da igreja. Olhe que até na igreja há muitos novos que ele deu para pôr no lugar dos velhos carunchosos que lá estavam e que o senhor padre disse que tinham de ir para compor. É verdade. Este filho encheu-lhe a casa de tudo o que é bom. E está lá tudo… as imagens penduradas nas paredes… os santos em cima das malas… como um altar … colchas lindas e lençóis bordados, dos propagandistas… louças… muito valor! Olhe, êla nem sabe o que tem, coitada… se calhar, agora com a falta de tino … tudo pode acontecer… compreende… E bendito é o fruto do vosso ventre e Jasus Amém. Este deve ser o último terço… É verdade! Já foram três… mas com este tempo não deve vir mais ninguém. Já se foi toda a gente… Mas se houver mais… melhor. É sempre bem ter quem nos reze por alma… que ele não deve precisar muito… tamém se ele não vai para o céu quem irá? Um coração de oiro que o dinheiro não estragou. Ninguém tinha nada de mal a dizer dele… nem tanto como o negro de uma unha. A verdade se diga… toda a 4 família era boa gente… pobres sim mas muito honrados… que ser pobre não é desonra não é verdade? Bem, toda a gente o conhecia por Manulo em pequeno e tamém… pelas costas… lhe chamavam o rasga a manta… mas era por causa do pai dele…que Deus tenha mas que não foi grande peça para a mãe e para o filho… Enganou-a, fez-lhe um filho e nem casou com ela nem perfilhou o filho! E ela ficou sempre honrada… nunca mais quis ninguém… criou o filho sozinha. Eu não sei ao certo mas dizem que o pai dele ficou sem pai ainda pequeno com outro irmão que foi p'rá África como colono… Por lá estará… se não morreu. Uns dizem que foi morto pelos turras, outros que ainda vive. Nunca mais cá voltou. Porque lho chamavam ao pai? Não sei ao certo. Parece que a nomeada já vem de longe, do abó dele…Dizem, não é? Naquela altura viviam noutra terra… Parece que o abó deste, quando o pai morreu… já depois de a mãe ter morrido… ficou com mais irmãos… todos ainda novos. Cada um quis seguir a sua vida, um para cada lado… a servir, claro… e partiram o pouco que havia… umas mantas e uns cobertores. Sobrava uma despernada. Todos a queriam mas não podia ser… Então o mais velho… o abó deste… disse: bem pr'a não haver chatices não fica p'ra ninguém. Rasga-se a manta que sobra e ninguém se fica a rir! Não é p'ra ninguém! … e assim fizeram. Pronto, soube-se, a nomeada ficou e agora todos dizem o Manulo do rasga a manta… Amem! Vá com Deus, senhor… vá com Deus,que o tempo está mau e está escuro como breu, de mais a mais com esta trovoada… Nós cá ficamos a fazerlhe companhia… É verdade, ele bem o merece… É verdade. Já estamos NÓS SÓS… e a outra e a velhota, claro… mas êla nem dá por nada! Medo? Eu também não… e logo dele… Olhe e eu tamém… não me importava nada de ficar aqui a vida toda ao pé dele… antes assim que vê-lo partir para sempre… É verdade… é verdade… Nem sempre se pode dizer isto de todos! Chama-se Carolina? Engraçado! Não sei se é a senhora, mas ele falava-me muitas vezes duma Carolina desta terra. Um dia enchi-me de o ouvir e disse-lhe: 5 mas Carolina de quem aqui?... Olhe eu não quero ofender… se não é nome… mas ele disse-me a Carolina do ti Catumba… Ai é a senhora! Bem, o apelido Catumba não é muito normal… mais parece uma nomeada… mas, ora essa, é um apelido como outro qualquer… Muito gosto… Eu sou Marília… já percebeu… Sim, Marília Trinta… nomeada do meu falecido pai… que Deus tenha… mas a gente não liga… Ai ele tamém lhe falava em mim? Que engraçado! Quem diria que nos íamos encontrar… Tem razão! Engraçado, não. Triste… e bem triste… ò menos p'ra mim… Sim… p'ràs duas… É verdade! Olhe que p'ra êla… e mais é mulher dele… não me parece que tenha grande tristeza no coração… que Deus me perdoe se peco… dizem que a tristeza que nos vai na alma se vê nos olhos… se assim é os meus devem estar bem mortificados… que eu não os vejo… mas os dêla… nem por isso. SÓ EU e Deus sabemos! Vê-lo assim… eu nem quero acreditar… Deus por ele, que já o lá tem … e por nós que ainda cá ficamos… Então que Deus nos ajude e conforte a ambas… - Amém…Amém. - Olhe, senhora Marília, parece que foi ontem que ele apareceu por aqui na terra… ainda o estou a ver… muito direito, ao lado do nosso patim… morávamos, eu e a minha mãe, paz à sua alma, numa casinha mesmo pegada à taberna, à beira da estrada… eu ainda lá moro. Ele chegou pelo pôr-do-sol e préguntou se na terra haveria alguém que lhe desse trabalho na lavoura e um sítio onde passar a noite. Claro, a gente préguntou o costume, como se chamava, de quem era, donde vinha, se era solteiro… ele lá respondeu a tudo de boa mente… quanto a 6 comida… só se fosse uma malga do caldo de couve-galega e umas azeitonas com pão… era a nossa ceia. Trabalho, só o feitor da casa de baixo… Lembro-me bem! Era nas sementeiras… eu bem comia… a fartura é pouca… mas primeiro vou ver do trabalho… e lá foi… é ali adiante, da parte de baixo da estrada, mesmo a última casa da povação, com uns grandes portões de ferro verdes. Fale com o senhor Manuel pirete... mas não diga pirete senão é logo corrido, que ele chama se Manuel Póvoa, diga só o senhor feitor, que ele até gosta. Dali a pouco voltou todo contente! Estava lá o senhor doutor, o patrão, disse logo que ficasse... Pelo menos p'rás sementeiras e depois logo se via... Olhe, foi p'rás sementeiras e p'ra depois... a apanha d'azeitona... as decruas, tudo. Ficou como criado de lavoura... comida, dormida, roupa lavada e um ordenado... estava tão contente... ainda veio dar a boa notícia... comeu das azeitonas...e duas malgas de caldo! Lembro me bem!... Realmente a fartura não devia ser grande... Olhe, senhora Marília, não sei porquê mas simpatizei logo com os modos dele... muito delicado connosco e muito agradecido... pelo pouco... Lá voltou p'rá dormida... a dizer que lhe dei sorte... por ser a primeira pessoa com quem falou nesta terra! Graças a Deus bem a mereceu depois... a vida começou logo a correr bem. A casa de baixo era duns fidalgos do Porto que tinham dois casais por estes termos e jeireiros certos... O patrão, o senhor doutor Fernandinho médico, Deus o tenha no reino dos céus, gostava muito dele e lá arranjou a tirar lhe a carta de tractor. Pois não saberia ler não mas lá que a tirou, tirou... Bem, havia os que diziam que era das compradas... das do Zita da vermelhinha... Sabe, a inveja faz falar... mas ele ao voltar de Chaves mostrou a no largo da taberna a quem a quis ver e o retrato dele estava lá... isso vi eu... e mais, se a guarda passava por ele, até o saudavam e falavam com ele e nunca o multaram...é porque era das boas... E como ele se empertigava no tractor!... Todo teso pela rua a cima!... Um belo rapaz, muito trabalhador e bem parecido! As raparigas do meu tempo não se importavam nada que ele lhes atirasse chalaças, até lhe devam trela... Eu? bem...nós até nos falávamos muito... a ponto de o povo começar a dar com a língua nos dentes... mas só acontece o que tem que acontecer e Deus quer. Casou com a Amália... boa moça, não desfazendo...sabe, era criada da casa... Foi um casamento de arromba, que o senhor doutor queria lhe como se fosse dele. Solteirão e sem filhos que se conhecesse afeiçoou se à pequena que já tinha nascido na casa filha de uma criada dos tempos do pai do senhor doutor Fernandinho. Pai no papel não tinha, já a mãe também era zorra...mas afora isso, ninguém tinha nada que dizer dela, nem da mãe... Adoadas como as que o são, mais do que algumas casadas... a verdade se diga! Bem... más línguas há em todas as terras... há quem diga que eram filhas dos patrões. Vá lá saber se... Deus 7 sabe e basta. E depois, no melhor pano cai a nódoa, não é verdade? Muito boa gente isso sim e sempre prontas a ajudar. Muitos favores lhes devo, à mãe que Deus a tenha em descanso e à filha que também já lá está. Mas só lhe digo, foi um casamento como nenhuma das filhas dos remediados da terra teve. Os dois no casal, ordenado certo, comida da casa, pouco a pouco sempre se junta e ele dizia às vezes que se Deus quisesse ainda havia de comprar alguns dos melhores prédios do casal, pelo menos a peça grande e o lameiro do paço, verde todo o ano, e pasto e feno para 10 vacas torinas. E olhe... há males que dão em bem! Quando começou a guerra nas nossas Áfricas já ele tinha saído da tropa há mais de um ano. Veio de lá com as cartas de carro e de comionete e a ler e escrever como se fosse estudado. Depois com a guerra lá fora... ele começaram a apurar toda a gente... Até o Zé da senhora Brites, um enfezadito que mal sabia falar... meio fraco dos cérebos e fanhoso. Chamavam lhe o moquemotora por ter ido a correr para casa a dizer que queria uma moquemotora como a do Zé Albano mecânico na vila e que andava sem dar aos pedais. Como ele era atrazadito e não queria ir à escola, o pai disse lhe que lhe comprava uma quando passasse p'rá quarta... e bem podia, que era dos bem remediados desta terra. O rapaz correu toda a gente a dar a novidade que quando fosse até à quarta o pai lhe comprava uma moquemotora. À quarta não chegou mas a nomeada ficou com êla! Pobrezito, foi o primeiro desta terra a ir p'rá guerra! Olhe que muita gente chorou quando foi da despedida! O senhor padre parece que adivinhava! Na prédica disse que íamos ficar sem ele... que era a última missa em que o José Castelo levava o cestinho para o sagrado peditório... ia p'rás nossas África p'ra defender Portugal ... Até mandou rezar para que voltasse em bem e disse que metade do peditório da igraja era para ele comprar umas roupas e o resto para obras da Santa Igreja por esse mundo de Deus e para a nossa senhora padroeira da aldeia...não se esquecessem disso quando ele fosse com o cestinho ao pé de cada um dos irmãos presentes. Lá partiu e olhe que nem foi preciso os turras p'ró matarem... morreu ele mesmo a treinar p'rá guerra no navio dos tropas... dizem que caiu como um passarinho... Um mês depois de embarcar voltou dentro de quatro tábuas e não lhe digo, foi uma tristeza nesta terra! Que ele nem com uma aguilhada sabia conduzir as vacas do pai quanto mais uma arma... Aquilo até com o medo dos tiros morria... O povo começou a dizer que p'rá apurarem aquilo é porque a coisa estava feia e que iam chamar outra vez todos os que já tinham feito a tropa há pouco tempo! Olhe, o pobre que ali está temeu pela mulher que andava de barriga no fim do tempo e uma noite abalou p'rà França a salto. E lá ficou. Por acaso não foi chamado de novo mas o medo obriga nos a muita coisa. Olhe que na verdade ele até já tinha passado uns tempos na nossa índia e só veio mais depressa porque tiveram de vir todos. Do mal o menos... foi mau porque perdemos aquelas terras mas foi bem porque os rapazes vieram p'ra casa e nunca se sabe o que pode acontecer quando andam na tropa. 8 Rasga a manta? aqui não, só se fosse alguém por acaso... mas francês... isso sim. A ele e aos outros emigrantes da França. E por trás, que el rei tem costas, até lhe chamam os avéques. Mas a ele até só lhe chamavam a Manél alemão ou o alemão. Bem... a culpa até foi dele... um dia num adjunto na taberna disse que já não era francês, era alemão, já não estava na França, estava na Alemanha por o câmbio lá ser melhor e assim as terras que queria comprar podiam vir parar às mãos dele mais depressa se as vendessem quando o patrão e padrinho de casamento moresse... como aconteceu. Os herdeiros que moravam no Porto passaram tudo a pataco e como ao junto era muito dinheiro foram vendendo a uns e outros, sobretudo a emigrantes, uns para fazer casa outros para plantar vinha. Foi um casal que se desfez por muitos e é bem, que assim repartiu se o que era só de um e até já estava a ser desprezado pelo feitor com a doença do senhor doutor Fernandinho que nos últimos tempos vinha muito raro até que morreu. Vá, vá, senhora, que nós ficamos a velar... com tanto sofrimento por esta desgraça tão de repente deve estar necessitada de descanso. Encoste se que nós cá ficamos. Não se preocupe com êla, nós damos uma olhadela... êla já está a dormir há uns tempos... Pois como lhe dizia... tudo foi vendido às peças e meu dito meu feito, o Manuel não se enganou e com as economias e o trabalho dele e da mulher que também foi p'ró pé dele depois de nacer o filho do meio, compraram o lameirão, um lindo prédio que dá tudo, lameiro e mais umas baixas de terra funda , a peça grande, com olival, vinha e terras de trigo e centeio e ainda a pala do gaiteiro... esta terra não é grande coisa... ele pôs lá pinheiros que agora parece a floresta! Eu um dia até lhe disse: ó Manuel, p'ra que queres a pala do gaiteiro? aquilo é só terra de fraga e um buraco que até mete medo!... ele olhou para mim daquela maneira muito dele... metade sério metade a rir... então, rapariga, não advinhas? Ora essa, eu não! ...pois escusas de pensar muito no resto...pensa só na pala e nos molhos de palha que p'ra lá acarrei às costas!... Não me digas que não gostavas de lá voltar!...Olhe fiquei vermelha que nem um tomate bem maduro...o maganão! comprou aquele terreoulo por causa do buraco nas fragas... das recordações que lhe dava!... Um termo, coutivado que nem um brinquinho!...Não, não vieram logo embora. Ainda por lá ficaram mas começaram logo a fazer este casão onde nos vê. A Amália não cabia nêla! Uma casa que nem a dos patrões e num sítio bem à vista de todos os lados, com muitos cômodos... armazém, lagar, adega, cortelhos para os animais, cabanal para o tractor. Tudo! Mais bonita e maior do que a casa de baixo quando era do patrão... êla bem dizia que não via a hora de vir para 9 encher o curral de criação... que estava farta das patroas estrangeiras...que lhe diziam para fazer isto e aquilo mas êla às vezes nem as entendia e tinha vergonha e medo de o dizer, não fossem despedi la! O problema não era tanto arranjar outra patroa... trabalho nas casas não faltava, que naquelas terras as mulheres são todas fidalgas... não gostavam de fazer a lida da casa... o que queriam era cafés e cinemas! ...o pior era o caminho! Diz que tinham de andar léguas dentro da terra p'ra ir dum lado p'ró oitro e êla não sabia que carreira tomar... já viu... tudo escrito em estrangeiro? Êla até tinha a quarta, mas diz que eles a falar e com licença um burro a zurrar entende se o mesmo... a modos que mudar de patroa era mais uma carga de trabalho para aprender o caminho... E lá veio mas não a gozou muito, não. Nem chegou a dez anos. Quando o filho mais velho lhe morreu de desastre debaixo do tractor que se chimpou nas corgas nunca mais foi a mesma. Ia como uma doida esbaforida pelo campo fora a chamar pelo filho e era preciso ir lá buscá la... não comia, desleixou se de tudo, às vezes nem respondia às boas horas, outras vezes respondia com palavras que a gente não entendia... diziam que era alemão, olhe, senhora, uma tristeza que nem quero que me lembre, que Deus tenha em paz a sua alma... A pobre sofreu tanto com a morte daquele filho, o orgulho da casa e até da terra ... a cara chapada do pai.. um rapagaão bem posto e bem falante... Ó senhor Zé! a esta hora da noite e com este tempo! Pois é, o seu amigo bem o merece... vamos rezar uma Salve Raínha que a MÃE de Deus sabe tocar o coração do seu amado filho para que lhe dê um bom lugar no reino dos céus... Êla não está mas digo lhe que o senhor Zé passou e olhe que bom sacrifício fez para aqui chegar, com este tempo. Pois é... a vida é assim... basta estar vivo, p'ra morrer... amanhã lá estará na missinha de encaminhamento... digo digo, senhor Zé. A pobre foi se encostar um bocado que estava morta de sofrimento e nós cá tomamos conta dele... coitado, não foge, antes fugisse... era bom sinal. ....Amém. É um dos que costumavam andar por aqui, a fazer o que calhava, depois de amanhar as suas courelas... e ele nunca o deixava sem uma recompensa... chamam lhe o Zé bicanca ou o manaixa... bicanca não se interessa...é do nariz de picão... mas manaixa! ainda hoje fica maroto, com os sessenta passados... Porque lhe chamam manaixa? olhe, eu até quase tenho vergonha, eram coisas de rapaziada... mas... sabe como é, dantes, pelas romarias aqui de perto e na da terra, vinham por aqui umas pobres perdidas... a mais conhecida até era a maria do grelo que ficou sózinha depois de uma grande trovoada que levou os pais e 10 dois irmãos... era aqui duma terra dos arredores ... Então o Zé, que morava no cimo do povo, ainda raparigo, ia espreitar os grandes que iam com êlas para os palheiros... quando apanhava alguns descuidados vinha por aí fora à taberna e começava a berrar, olha a manaixa nos palheiros... pois é... tanto espreitou até que um dia viu o Arreguila de rabo no ar e as calças nos joelhos... desculpe mas foi assim mesmo... em cima da irmã mais nova... ainda uma catraia e ele já perto dos trinta... uma tristeza... toda a gente ficou a saber... passaram a chamar lhe a bicha calão... êla ainda andava na escola... mas já era espigadota...eram um rebanho de filhos dum latoeiro ambulante... um dia lá se foram todos... pegaram nas trouxas e na carroça... agora, por o que o Zé bicanca diz, a rapariga e os outros irmãos até estão bem, são franceses... oxalá... é verdade, são casos de todas as terras... mas este cá ficou e vai governando vida... Mas voltando à outra conversa... que já ia perdendo o fio à meada...depois do desastre do filho e da mulher a vida tinha que seguir, não é? Ele sofreu muito!...eu que o diga! Ainda se aguentou uns 5 anitos só com os dois filhos... e aguentava se mais que a gente sempre o ia confortando e dando uma mão, mas depois lá se encontrou com esta, deixou se embeiçar pelas denguices dêla e casou se... êla é daqui de perto e já tinha duas filhas que já naceram na França. Êla foi p'ra lá a salto com uns conhecidos e por lá andou ora com um ora com outro... segundo dizem, que eu não posso jurar nada... mas pai as filhas não conhecem ao certo. Êlas dizem que é um senhor francês de Paris muito rico e que faz muito caso delas e onde a mãe esteve nas limpezas mas que como é casado não lhes pode dar o nome. Pode ser e oxalá seja mas a verdade é que sempra andaram com a mãe e vieram para aqui até que foram de vez para a França e estão lá já arrumadas e só cá vêm nas férias, todos. Êla ia lá muito a miúdo e deixava o cá só, às temporadas... deixou de ter criação... nem galinhas... nem porcos... nada! Dizia que não tinha feitio para tratar disso...não tinha sido criada na laboura.. Não era nenhuma labroscas. Porque se casou com ele? não sei mas é fácil que esta casa e os teres dele estejam por trás do casamento. Sempre era uns 15 anos mais velho e a verdade é que sem passar pelo padre não quis deixar a França p'ra se enterrar aqui... como êla dizia. Claro que o povo fala e êla ainda outro dia me foi dizendo que se os filhos dele não gostavam dêla nem das filhas a ponto de não virem a casa quando sabiam que estavam cá de férias... pior p'ra eles ... êla era herdeira como eles e as filhas herdeiras dêla. Coitado do Manuel que teve a triste sina de ficar sem o filho mais velho daquela forma... que levou a Almália para a cova. Não... eu até me dou muito bem com êla e quando êla vai p'ra Paris eu ocupo me de tudo aqui, que o Manuel bem o merece e eu não tenho saúde para andar por aí à jeira e nem idade, com os 50 passados. A minha reformazita da casa do povo vai dando e ele ajudava me muito! Quando resolveu casar se com êsta ainda estive para não por aqui mais os pés... que eu desde que ele ficou viúvo passava aqui o meu tempo todo a tratar lhe das coisas muito amiúdo, coitado e os filhos dele até gostavam e gostam muito de 11 mim mas ele deixou se levar por landainas e lá se casou com êla e olhe, senhora, nem os filhos gostaram nem a bem dizer eu embora não fosse nada comigo mas era mais que certo que não ia dar resultado. Muito bem arranjada, e vistosa diga se, gente de cidade. Depois tudo passa e continuei a vir por aqui sobretudo quando êla e as filhas não estavam... bastas vezes depois do desastre do irmão dêla. Não, não vivia aqui...Ele também estava em França e quando vinha nas férias metia se aqui com êlas, esse é que era um estroina retinto... sempre a mudar de carro todos os anos, cada vez seu... até que deve haver uns 3 anos esborraçou se todo contra uma camioneta quando ia p'rá borga p'ra Chaves e como não tinha nada na terra dele foi enterrado mesmo aqui e esteve nesta mesma sala para o mortório e olhe que Deus me perdoe até me parece que estava mais pesarosa pelo irmão que pelo homem, que tanto conforto lhe deu!... e às filhas... Aqui há tempos até esteve uns seis meses sem cá vir... Ao certo, ao certo, não sei mas ele disse me que as coisas iam muito mal entre elles... parece que lhe escreveram uma carta sem assinatura da França a dizer umas coisas dêla... que ele nem queria acreditar...mas sabe como é... fumo sem fogo não há, não é? Depois lá se resolveu e lá veio mas andavam indiferentes um com o outro... eu bem o sei... conheco o muito bem...Ah também deu por isso? está a ver? Então sempre é verdade... a desavergonhada!...É por isso... é por isso que ele está ali! Elas não matam... mas moem...E cada vez que me lembro... olhe ele até parece que adivinhava... bem, eu até nem gosto de falar nisto que as coisas da nossa vida devem se guardar p'ra nós... mas a Marília também foi franca e eu vou lhe dizer... eu tenho uma filha e um neto... êla chama-se Manuela e o netinho António Manuel... Sim, Manuela e António Manuel... António foi escolha da mãe e Manuel, minha. Sabe, António era o nome do filho dele que morreu do desastre do tractor... Ela não me queria dizer porque lhe põs o nome do filho dele.. mas acabou por ceder... Quando ele morreu êla ficou maluca de todo... olhe, no dia do enterro saltou aos gritos ao ver baixar o caixão à terra e caiu p'ró lado! Toda a gente estranhou... eu até fiquei embasbacada... parecia morte de homem dêla... bem, quando a barriga já não podia esconder nada foi um desaforo na aldeia... êla sempre muito calada, até que quando foi do nome me confessou e me fez jurar pela cabeça do meu neto que nunca diria nada a ninguém... trabalha no dispensário da misericórdia e no hospital na vila, agôra até é cidade, mas p'ra mim dá o mesmo, a terra não mudou...é chefa das lavadeiras... foi ele que lhe arranjou o lugar pouco depois do filho morrer... quase logo que o meu neto nasceu... isso lhe devo também a este santo homem... não êla não é dele...não ... é dum rapaz que até ainda é da família afastada e também se apelida Catumba... Sabe, coisas da vida... fraquezas de rapariga...da juventude! A bem dizer eu até não fui de acordo... ele apareceu aqui de carro ligeiro de Lisboa... quem o tinha 12 aqui naquela altura, há uns trinta e tal anos?...apresentou se como primo, que o pai tinha uma mercearia, lugar e taberna tudo pegado perto de Lisboa e quis vir dar uma volta para conhecer os do seu sangue... a nossa casa era modesta, com poucos cômodos mas para uns dias arranja se sempre... por cerimónia deitámos o primo, como ele queria ser chamado, na cama do quarto, a minha mãe deitou se na da sala e eu também na sala no chão, em cima dumas mantas dobradas... sabe como é... uma noite passa se como calha... na primeira noite, tudo bem, andámos pela terra, levou nos de carro ver outras povações das redondezas, comemos uma merenda... nesse dia à noite ele veio de dedo na boca e descalço a cochichar na minha orelha... eu até me assustei e quase ia dar um grito mas ele apontou p'rá cama da minha mãe... sempre de dedo nos lábios p'ra eu não fazer barulho... e eu, tola, meia assarapantada... era p'rá aí meia noite... deixei me levar pela mão... nem me lembrei que esteva em combinação... como ainda era da família, não desconfiei de maldade e lá fui... pensei que me queria alguma coisa importante... e queria!... mal entramos no quarto ele fechou a porta, tapou me a boca e comecou a forçar me... eu bem tentava dizer que não mas se a minha mãe acordava e nos via a vergonha ainda era maior e olhe ele era mais forte e fez o que quis... a princípio fiquei muito desgostosa mas no dia seguinte ele começou com denguices, a prometer mundos e fundos... sabe como os homens são quando querem limpar se do mal que fizeram!... depois... olhe, a verdade é que eu também estava um pouco magoada com o casamento do Manuel e da Amália e até tinha pensado ir p'ra Lisboa servir...Nas noites a seguir... o mal estava feito... o malandro já não se fazia rogado... quando a minha mãe começava a ressonar lá vinha ele na ponta dos pés e de dedo espetado! Eu até já lhe achava graça...era um malandro de boas falas!... ficou duas semanas e disse me que depois me mandava ir quando falasse com o pai... ia mesmo logo lá para casa... sempre ajudava a mãe no lugar da fruta e a arranjar as galinhas e os coelhos p'rós clientes... nunca mais o vi e...olhe, nove meses depois lé estava a minha Manuela a bater à porta... é verdade, é a vida duma rapariga pobre e inocente...dos pobres parece que toda a gente pode fazer pouco, não é? Então duma rapariga e mais a mais com um palmito de cara bonito como, não desfazendo, eu tinha... bem, podia ser pior! Olhe, a minha filha está aí de boa saúde e tem um filho que é o meu encanto! Não, não é casada... mas o meu neto tem o registo completo, graças a Deus! O nome de pai está lá bem escarrapachado, ninguém tem nada a dizer! Há gente que pensa que não... eu cá não digo nada, mas quando ele for p'rá escola vão ficar com a cara à banda! O meu neto não é incónito! E êla tem se portado como uma verdadeira mulher casada... quer dizer viúva... O pai do meu neto? Morreu... Dele? Não, credo! Ele gostava muito dêla mas como se fosse filha! 13 Quando ela nasceu... Primeiro ainda ficou meio às avessas, quando soube... mas ele estava lá p'ra fora... mulher e filhos... tinha que compreender... que tudo pode acontecer a quem está só. Eu até lhe contei tudo,tudo, uma vez que ele cá veio e começou com meias conversas...Depoi disso as coisas voltaram a... como dantes. O que se passou agora? Olhe, pela certa não sei, não sei, mas a desgraça foi ontem quando ia com a mulher à feira dos santos de Chaves. Como êla não gostava de criação, a bem dizer nenhuma...era eu que ia tratando de alguma... e ele quando calhava, ia muitas vezes a Chaves comprar coisas para comer , bacalhau, presunto, carne fresca ...que ele não queria que faltasse nada em casa, disse mo muitas vezes... Carolina, eu não me devia ter deixado enganar por tentações mas o que está está. Tu tens o teu lugar nesta casa e conheces os cantos todos como eu. Se vires que falta alguma coisa diz me que eu não quero faltas. O dinheiro ainda não se acabou e não se fez para outra coisa. Quanto a isso era verdade e eu bem sabia o que ele queria dizer mas Deus é Deus e tudo sabe e pode e ele, o pobre, ali está agora sem poder nada. Mas olhe que ele era casado com êla mas falava muito comigo da vida dele no estrangeiro... eu nunca saí daqui e ele contava me histórias de quando andava por lá, sem saber uma palavra do que os estrangeiros diziam e quando lá havia um português que lá estava há mais tempo e já os entendia a coisa lá se compunha mas quando estava só e o mandavam buscar qualquer coisa na obra! A princípio ele não sabia o que era... sofri muito e homem como me conheces, também chorei muito...o pobre! Olhe, ele primeiro foi p'rá França mas a ideia dele era passar se depois para a Alemanha... a tal coisa do câmbio maior... e tanto andou até que encontrou outro emigrante daqui dos arredores que lhe disse que lhe arranjava trabalho na Alemanha quando lá chegasse. Ele lá foi e o Manuel... uns meses depois, mais outros três, resolveram ir a salto da França ter com o outro. Não se entenderam com o alemão da carreira e tiveram de saír num sítio que não conheciam... ainda perto da fronteira. P'ra voltar, do que se haviam de lembrar? Quando o contava, nesta parte começava logo a rir se...olha, íamos pela aldeia fora e vimos perto duma daquelas casas com jardim que por ali havia três ferradas e zás pusemo nos nêlas até à fronteira da França, passámos a salto outra vez e na França lá nos entendemos para voltar p'ra onde estávamos. O que eu não sabia era o que eram as ferradas mas não me dei logo por achada e sempre lhe préguntei o que fizeram dos animais que montaram... qual animais qual quê? Então tu não sabes que os alemães chamam ferradas às bicicletas de pedal? e olhe que ainda hoje me dá vontada de rir quando me lembro da história das ferradas. Não posso ver uma bicileta que me não lembre... lá vai uma ferrada. Mas quando ele contava isto aos outros p'ra caçoar de mim não gostava nada! Como podia pensar que iam chamar ferrada a uma bicicleta que até tem rodas de pneu? ferrar, ferram se os machos e os cavalos, não é? 14 ...Não, os filhos ainda não chegaram, êla diz que lhes mandou a má notícia logo que pôde... que não tinha o telefone de cabeça e teve de acompanhar o marido para o hospital, que estava sem acordo de vida. Coitado! ...ele morreu logo, o pobre, o coração deve ter parado de desgosto...que ele sofreu muito... a morte do filho mais velho...logo, logo, a primeira mulher... os problemas com esta e a cambada dêla... p'ra não falar nas poucas vergonhas da carta... a ida dos filhos p'ra fora... como quaisquer pobretanas à procura de ganhar a vida... foi por causa do que se passava aqui com êla, as filhas e os genros ou o que são. Tomaram conta disto como se fosse dêlas e ele viu se só com aquela gente e eu bem o ouvia lamentar se coitado, fiz o que pude para o confortar mas o sofrimento estava lá e olhe foi o fim... Parece me que ele andava ainda com outros problemas por causa das ovelhas e da vacaria... não sei se adenúncias p'ra Lisboa e nem sei porquê, que ele tinha tudo na ordem... não sei, não sei... Mas pensativo ele andava... e era tão folgazão!... Como aconteceu? Não, não se esbarrou. O carro está recolhido e não tem nada... ninguém sabe, êla contou que pertinho de Chaves ele disse que sentia a cabeça meia encortiçada e com falta de vista... de repente, deu uma guinada com o carro p'ra um largo com um miradoiro. Ainda teve tempo de parar o carro ou ele parou sozinho... mas ele nunca mais deu acordo de vida. Lá o meteram numa ambulância para Chaves mas ontem mesmo apareceram aqui com ele como está, dentro dum caixão fechado... Êla disse que era de chumbo! Só se for por dentro... mas diz que não se pode abrir...Eu nem quero acreditar que nunca mais o vejo! Ainda se a gente pudesse abrir o caixão p'rà despedida!...é certo que não me era nada mas nem que fosse o meu homem tinha mais pena!... nem sei como o meu coração não rebenta que eu tenho mais vontade de gritar alto que outra coisa... se estou aqui a falar consigo... não é que não me falte vontada de me atirar aos pés dele e chorar até não poder mais... que Deus me perdoe se peco mas é como se ficasse ... olhe sem um pai ou um irmão ... e que Deus me perdõe, mas não posso aguentar mais se não estouro, êlas têm que saír... ó Manuel, Manuel, que tanto vou sentir a tua falta... Olha! lá está aquela a choramingar. Até parece que lhe morreu alguém... Êla nem tem ninguém de idade! só a filha e o neto... ainda bem novos... anda sempre aqui a bedeirar... a comer do que é do MEU FILHO...vestida de preto! Toda esta gente, um corropio toda a tarde e tudo de preto, parecem uns corvos... eu já préguntei se há alguém morto nesta casa, ninguém me diz nada a direito. A lambisgoia da Marília ficou aqui, p'ra quê? O MEU FILHO quando vier bem me 15 leva a casa, não é precisa aqui para nada! Eu bem sei o que êla quer, a desavergonhada, bem podia ter juízo, com a idade que tem... êla pensa que me engana! nem êla nem a outra, a do rapazito que anda sempre aqui dum lado p'ró oitro, a correr, a chamar avô ao MEU FILHO! Avô! Isso queria êla, bem tentou, bem tentou, mas Deus não quis. Um rapazão, todas o queriam... meteram se bebaixo dele e agora? Nunca mais o largam... tem muitos bens ao luar, não é? Estas mulheres... felizmente que já se foram embora quase todos e a outra já foi dormir. Tudo de preto... eu sempre andei desde a morte do meu homem mas aquelas... a Marília nem se casou... a de cá... a choradeira...a francesa está aqui, bem me admira! mas já foi dormir! só faltam as filhas e os mandrongos! A casa e o resto é do MEU FILHO e dos meus netos, não é dêlas... só me dava vontade de as por a mexer daqui... Mas ele depois ralha comigo...ele deve estar a chegar ... vou lhe contar tudo, tudo! Vamos ver se depois me ralha!... lá vem aquela com o copo de água e o romédio... o que êla quer é que eu o tome p'ra ver se me vou p'ró outro mundo... mas ainda há tempo!... está bem, eu tomo! ... maldito romédio, se não fosse o MEU FILHO não o queria, mas ele ralha me se não engulo... às vezes ficava com ele debaixo da língua... mas aquela lambisgóia, só p'ra ser agradável deu p'la conta! Agora tem que ser... senão êla dá com a língua nos dentes e eu não quero que ele me ralhe! Serigaita! Vou encostar me lá em cima p'ra ver se estas duas se vão embora! mas depois volto, quando se forem...São umas desaforadas sem vergonha! À espera do MEU FILHO! e logo as duas ao mesmo tempo... mas eu também cá estou... Já me vou deitar, já podem ir embora e fechar tudo. Até amanhã se deus quiser!... Caras sem vergonha!...eu já vos digo... quando ele vier... O raio da velha nunca mais sossega!! Bem, o melhor é telefonar para Paris. Não vale a pena virem cá! O maganão bem nos levou a todas!... Só não me vou já daqui porque parecia mal, senão ia. Alô, Flô? Ai es tu Joli... Olha, as minhas filhas não estão?... não faz mal. Com quem sairam? Ah, com esses!... Não, não gosto. Sabes bem que já tivemos problemas por causa deles e eu não quero demelês com a polícia... bem basta o que já lá vai!... - Sim, brevemente e para sempre. Vou deixar esta porcalhota de uma vez! Não, não nos zangámos. Desta vez foi mais radical. Divórcio? Este é definitivo e rápido. Para quem nos queria ver separados, está feito. Escusam de andar com bufadelas . Está bem, eu desembucho se não me interromperes. Parece que estás em pulgas! Pois aqui vai a novidade, mas senta te se estás de pé: ele morreu. Está lá em baixo, na sala de entrada, no rés do chão. Não, não estou a brincar! Foi ontem pelas 9 horas quando íamos para Chaves. Quando estávamos já na descida, naquelas curvas da entrada, sentiu se mal, meteu o carro para o miradouro e caiu lhe a cabeça p'ró lado. Imaginas o susto e a atrapalhação! 16 Chamei o 115 pelo telemóvel mas foi para o hospital já morto, acho eu. Ui, foi uma burocracia para tratar da vinda dele!... É verdade que não! Estávamos casados e no fundo ele até era bom para nós mas não esperava que me fizesse uma coisa destas! Estou furiosa com ele! Não, não tem culpa de ter morrido! não é isso... Eu já te conto... Olha vim cá para cima para telefonar às minhas filhas e contar tudo, mas como não estão digo te a ti... Já não aguentava lá em baixo! Só de me lembrar do que me fez! E depois o raio da velha da mãe dele está cada vez mais taralhoca! Até me dava nervos de ver que se não dá conta de que o filho morreu... Ali está, não há maneira de se deitar, à espera do filho!... Tem medo que lhe roubem alguma coisa! Como viu todo este corropio de gente a assistir ao velório... Não, não vale a pena explicar nada... Ela já não ouve com atenção e não entende nada. A gente diz uma coisa e ela fala sózinha de outra... Se lhe dissesse que o filho morreu, tratava me de tudo, era um escândalo. Haviam de pensar que a quis matar com o desgosto. Ficou lá na sala com mais duas labroscas, uma da terra dele e outra daqui. Ele pensava que não mas eu sabia bem que foram conquistas de juventude e se calhar nunca se largaram às escondidas...À de cá não faltavam oportunidades, andava sempre por aqui, sobretudo quando eu estava para Paris e a outra... ele ia lá quase todas as semanas, a ver a mãe. Por um lado era bom, escusava de a trazer para casa, que ela não me podia ver! às vezes até me custava a crer, umas campónias daquelas!.. Mas agora não interessa. Não, veio muita gente, mas com este temporal foram se embora quase todos, só ficaram as duas amázias... Importar antes? Nem sei. Sim uma tem uma filha e um neto e a outra é solteirona. Estes aldeãos do interior são mais manhosos que parecem... e malandros para as mulheres... Se não tiverem mais ningém nem a irmã poupam! Exagero, exegero...Eu já te conto... Sim estou que nem uma barata! Quando ficaram sós, aquelas duas corujas das torres desataram a cochichar uma com a outra e a olhar me de soslaio... olha... saí!... ainda bem que as minhas filhas não estão. Não vale a pena gastar cera com ruim defunto... Bem basto eu. Está bem, eu já te digo porque estou furiosa. Não, não me importo da conta do telefone, os herdeiros que a paguem, se quiserem! É porque não tenho ningém na China, senão até para lá telefonava! Pois é, pois é, também eu pensava. Herdeira claro que sou. Estávamos casados e a lei não mudou. Se não também não ia trocar a minha vida de liberdade em Paris para me vir meter neste buraco. Tem uma boa casa, tinha, e muito mais, mas fiquei a ver navios!... Bem me levou, o Alemão, como lhe chamavam!... Sabes, casámos com comunhão de adquiridos... eu bem queria a comunhão geral, que eu informei me antes com um advogado, mas ele disse que os filhos não iam aceitar e que ele não queria desavenças com eles por causa dos bens. Depois, ainda íamos ter tempo para comprar muito e aí eu já tinha parte. Além disso era herdeira como os filhos. Não ia ficar às sopas de ninguém. É, mas ouve 17 o resto! Bem, quando se confirmou a morte no hospital em Chaves, tratei de arranjar uma agência para o transportarem para casa em urna fechada para não ver o espetáculo daquela gente a beijar o morto e vim embora. Claro, trouxe o que havia de importância nele e um molho de chaves que ele nunca largava. Isso. Revistei o ainda antes de chegar o 115, que eu sei o que acontece se a gente deixar ir as coisas... Peguei nas chaves e fui direita ao escritório, como ele dizia duma peça no segundo andar onde tinha uma mesa e um armário com gavetas, sempre aferrolhadas. Tive sorte, ou azar, sei lá. A primeira que abri tinha logo à vista um envelope grande com o nome dos filhos. Tirei os papéis que lá estavam e comecei a dar uma vista de olhos... Começaram-me logo a tremer as pernas... o matreiro enganou me desde o princípio! Quando nos casámos tinha já feito partilhas com os 2 filhos e dado tudo o resto que herdou da mulher e o que era dele. Alguns predios até os comprou já p'ró nome deles!... Que fiz? Olha, nem estive para perder mais tempo. Peguei naquilo tudo e fui imedatamente falar com o advogado que consultei antes de me casar... Era sábado mas ele recebeu me na casa dele, por cima do escritório... Leu aquilo tudo com muita calma e de quando em quando lá ia dizendo, bem, bem, a coisa foi bem estudada... há aqui dedo de colega! No fim, virou se para mim muito sério e disparou sem mais: olhe D. Milú ... eu estava tão ansiosa... olhe doutor deixe lá a Dona que não é agora que sou viúva que vai começar!... Pois, Milú, você herdeira continua a ser. Só que não há herança para partir e quanto a bens próprios só se ele comprou alguma coisa depois do casamento. Como sabe vocês casaram com comunhão de adquiridos, não com comunhão geral... Os que você tinha antes de casar são seus mas ele... não tinha nada nessa altura. Ele comprou alguma coisa depois de casarem?... Bem, na verdade não... Ele ainda me disse antes que ia comprar um apartamento no Algarve... alugava se e dava para passarmos férias e fazer praia... mas duas semanas antes do casamento apareceu me com um bruto mercedes, prá lua de mel, disse ele, uma carrinha aberta também mercedes e um tractor novo, dos grandalhões. Tudo, deve ter custado uns largos milhares... Falei lhe do projecto do apartamento no Algarve... que eu tanto gostava... mas ele disse que tinha de aproveitar a ocasião porque o tractor e a carrinha precisava deles para o trabalho e o mercedes que tinha já estava gasto, ainda era o que trouxe da Alemanha quando voltou de vez... Depois não podia perder um bom negócio que o do stand lhe propôs, desconto no conjunto e ainda sobejava do subsídio do tractor e da carrinha dado pela CEE. Assim o mercedes vinha quase por metade. Até já tinha apalavrado um renault clio para mim. Só faltava eu dizer a côr! E lá o comprou, é o que tenho, todo foleiro, com 18 umas batiditas e agora até está todo sujo das galinhas e dos perús... Aquela estúpida da catumba, quando eu estava fora, punha tudo no curral... o carro parece um poleiro de galinhas. Ainda nem lhe mexi desta vez, nem mexo . O andar? Nunca mais e de resto, nada. Um ordenado para este outro para aquele, até as duas que estão lá em baixo iam recebendo quando calhava uns contos por serviços prestados... tratar da mãe, a lida da casa aqui, tretas... Quando disse isto ao advogado, ele respondeu com toda a calma: então Milú, não tem nada a esperar da morte do seu marido. Nem bens próprios nem herança! Fiquei sem pinta de sangue. Não pode ser! então não tem nada? E as terras, mais de 100 hectares, a casa e os armazéns, as máquinas, a vacaria, o rebanho de mais de 100 ovelhas... vinhas... olivais...cubas de vinho de cimento e inox que parecem os silos de Bordéus? São de quem, do pápa? Não, dos três filhos, disse ele. Eu explodi: quais três filhos? Ele só tem dois. Há qualquer coisa que não cola, doutor! ele só tem dois filhos. Aí há aldrabice! Estava furiosa! Isso não sei, disse ele, mas que está tudo em ordem está. Isto , mostrou os papéis, são certidões de escrituras feitas no notário e certidões da conservatória predial. E depois, que significa isso? Então ele explicou e eu nem abri a boca! Não sabia que dizer. Olhe, Milú, ouça bem: o seu marido enquanto esteve viúvo fez as partilhas com os filhos dos bens que eram da mãe deles, com quem estava casado com comunhão geral de bens. O que era dele deu o aos filhos, tudo, até o carro dele... O que aqui está diz que ele tem três, um João outro Francisco e outro António Manuel. O João e o Francisco são filhos da mesma mãe, de nome Amália, o António Manuel, doutra, chamada Manuela Catumba. Fui aos arames! Só são filhos o João e o Francisco e Amália era a mulhar dele. A Manuela Catumba é uma rapariguita filha de uma mulher da terra que anda lá por casa a tratar da criação, e o António Manuel é filho dela. É um rapazito que tem uns 5 ou 6 anos e também anda sempre por lá com a avó. Mas não é filho dele! Isso pode ser como diz, mas filho para a lei é. Está aqui nestas certidões e escrituras. Deve haver alguma coisa que a Milú desconhece! Pense bem... Pensar! Eu tinha a cabeça em água... mas na verdade a tal Manuela Catumba está registada como filha dum tipo que está em Lisboa. Eu um dia perguntei ao falecido se não seria obra dele e foi ele que me disse que não, que era filha dum sujeito que ainda é primo da mãe e que abusou dela quando veio cá visitá las... melhor isso, pensei eu, mas abusar dela! Ele estava farto de passar por lá antes de se casar e se calhar depois... está-se mesmo a ver que foi ela que se meteu debaixo do tal primo por o alemão ter casdo com outra ... assim matava dois coelhos duma cajatada: fazia lhe pirraça e sempre arranjava maneira de ir para Lisboa... Mas a mim tanto se me dava... Pelo menos assim ele não podia perfilhá 19 la mesmo que fosse dele! Mas o zorrito, filho dele? E herdou da mulher dele? Não, esse só recebeu da doação dos bens do pai, mesmo mais que os outros, a julgar pela escritura. E com toda a legalidade! Foi tudo muito bem feito! Não há ponta por onde se lhe pegue... Ai não? Mas olhe que o puto não é dele e conteilhe as minhas desconfianças. Ali havia aldrabice! Que lhe contei? Olha, o que só então me veio à cabeça! Nunca podia imaginar aquilo! O quê? Olha, realmente, pensando bem, o puto é parecido com ele mas é sobretudo a cara escarrada do filho mais velho que morreu de desastre de tractor. Há por aqui fotografias dele por todo o lado, menos no meu quarto e das minhas filhas! Depois da morte, a mãe ficou tão desvairada que mandou encaixilhar tudo quanto era fotografia dele, de todas as idades e espalhou as pela casa toda! Eu ainda disse para deixar só algumas na sala de visitas mas o pai ficou furioso! Nisso ninguém toca! Foi a mãe dele que as mandou pôr, só ela as poderia tirar e ela já não o pode fazer! Não te metas com isso! Mas ao menos do nosso quarto e dos das minhas filhas... Aí está bem! Pois, digo te, bem pensado, já sei o que se passou: o puto não é na verdade filho dele, mas é neto, é filho do mais velho, do que morreu de desastre. De facto o puto nasceu uns quatro meses depois. Está se mesmo a ver que a sonsa da mãe tinha-se posto debaixo do rapaz! Estás a ver a cena, não? A mãe da rapariga não conseguiu levar o pai... empurrou a filha para debaixo do filho dele... E pronto, o falecido quando viu que o crianço era a cara do filho não esteve com meias medidas!... foi perfilhá lo, dizendo que era filho dele... quem o ensinou numas coisas ensinou nas outras... se calhar até os apanhou lá pelo campo! Sabes, há para ali um buraco numas fragas dele, que chamam a pala do gaiteiro... ele e a avó do puto devem conhecê lo bem... Sim, se calhar uns a entrar e outros a sair! Eu ainda disse isto ao advogado para ver se se podia fazer alguma coisa mas ele disse que não me metesse por esse caminho que o mais certo era perder tempo e dinheiro... O que está no registo civil é o que vale e se eles quiserem é bem possível que eu ainda tenha de lhes pagar a eles! Só faltava! disse eu. Pagar? É verdade! Sabe que o seu falecido marido tomou algumas precauções na doação: ficou com o usufruto dos bens doados mas obrigou se a substituir todas as vacas e ovelhas vendidas ou a dar aos filhos o dinheiro da venda! Só podia ficar com o leite, a lã e as crias que nascessem. Até os subsídios da CEE lhes pertenciam, se os houvesse, tanto os dos animais como os das terras. Foi tudo previsto na escrituras. Não há uma falha a explorar... e olhe se ele vendeu animais, vacas ou ovelhas e recebeu subsídios e não os deu aos filhos, eles podem vir exigi los da Milú, que era mulher do pai e casada com comunhão de adquiridos... Comecei a ficar cada vez mais assustada! De facto havia umas 50 vacas no princípio e umas 200 ovelhas e agora nem metade... ai minha vida!... então fiquei sem herança e ainda posso ser incomodada para pagar... é que ele vendeu, vendeu! Eu até lhe dizia para as vender todas, davam muita prisão! Assim ficávamos com tempo livre para dar uns passeios... mas ele 20 dizia que não, que dalí vinha mais dinheiro para nós que eu pensava, só em subsídios da CEE, que muitas já ele vendeu... Olha, vim do advogado tão desorientada que se não desabafava rebentava! É por isso que estou para aqui a falar, a falar de tudo... olha, desabafo pelo menos... Estou morta para me por na alheta. Ainda bem que os filhos não sabem de nada!... pelo menos de mim, não. Quando cheguei de Chaves era para lhes telefonar mas com a história dos papéis nem me lembrei mais, fui logo a correr para o advogado. Depois do que ele me disse? Não! Vim de lá como o bordão de um gaiteiro! Nem telefonei, nem telefono... Não me quero encontrar com eles e logo que chegue aí vou mudar de casa para que não me possam encontrar, que eles são bem capazes de me fazer pagar as putas das vacas e das ovelhas que ele vendeu! Então a avó do zorrito, a catumba velha! Nem me pode ver! Fui bem levada, mas não quero problemas e nem dinheiro tenho para meter advogado! O outro foi logo dizendo que não se podia fazer nada mas se eu tivesse uns contos largos para gastar... podia botar o barro à parede para ver se pegava... mas o mais certo era não. Não, não! quem me dera mas é aí bem sessogada... Olha, sabes se o Patrice tem telefonado? Olha, telefono lhe eu daqui já a seguir. Sabes resolvemos parar por uns tempos... Porquê? Invejas e intrigas! A pessoa que é já pode estar sastifeita! Bem, eu digo te: lembras te da última vez que estive aí uns três meses de seguida e até nem queria vir agora? Foi por isso... Não sei como ele soube, mas alguém que estava a par lho bufou!... Claro que neguei a pés juntos, chorei, que não era verdade, que era tudo inveja, quem é que podia dizer uma coisa dessas... ele não se descoseu mas lá pareceu acomodado. E depois também tinha telhas de vidro!... Doente? Não, que eu tenha sabido, mas preocupado já andava há uns tempos! Aliás o advogado encontrou uns papéis no envelope sobre uns subsídios da CEE por causa das vacas, das ovelhas e das terras de balouto e mais umas coisas que não entendi bem: plantação de pinheiros, de oliveiras, arranque de vinha e perguntou se aquilo era verdade. Eu disse que ele me falou que recebía subsídios da CEE mas não explicou nada de concreto. Sim, eu sabia que ele tinha vendido vacas e ovelhas e não comprou outras mas plantar e terras de balouto quase nada. Tudo na mesma desde que nos casámos, cultivava o mesmo e vinha não arrancou nada... Não, o advogado não adiantou nada de certo mas foi dizendo que se havia falsidade de declarações para os subsídios podia vir a ter problemas desse lado... parece que a CEE abriu os olhos e tem havido por aqui gente que está a ser incomodada por causa disso... 21 Não sei, com o azar que tive com isto tudo... Sim, é verdade que deve haver muitos mais metidos nisso e mais gordos do que ele e para poupar o peixe graúdo vão abrir as malhas da rede e os pequenos poderão escapar se também... mas não sei, não... Olha que o governo de cá não manda na CEE... mas a verdade é que ele andava muito preocupado e abatido. Falou mesmo em deixar as terras de ladeira de balouto, arrancar duas vinhas das mais velhas e por umas oliveiritas e pinheiros. Não davam tanto trabalho... comprava mais umas vacas de leite e umas ovelhas e livrava se de preocupações. Sim, se calhar era por isso e o ataque que o matou vem daí... dizem que foi um derrame cerebral... pensando bem, há muita coisa que joga uma com a outra nestes últimos tempos!... Sabes que ele era muito religioso, há aqui caixilhos de santos por tudo o que é parede e até santos de barro e de madeira... fazia muitas promessas e lá ia cumpri Ias. A Fátima era todos os 13 de Agosto. Não falhava uma! Na última vez, na festa da aldeia, sabes como esta gente costuma pendurar as notas nos andores, espetadas com puneses? Bem até dizem que foram os emigrantes que começaram, com o dinheiro estrangeiro...bem mas agora todos fazem o mesmo, com notas de fora e de Portugal. A moda pegou. Bem, mas da última vez ele já tinha metido duas notas de 5 contos no andor da padroeira e quando a procissão passou ao pé da nossa porta ele falou com o mordomo que vai à frente a marcar o compasso e a procissão parou. Veio a casa e saiu logo depois com um manhuço de notas na mão... que era uma promessa e se tinha esquecido e além disso queria fazer ver ao pai do vizinho, um rapaz que está na Suiça, que o dinheiro português também vale, o que é preciso é ter muita nota... dinheiro é dinheiro... eu já lhe vou mostrar se a nota dele que vale mais de dez contos também vale mais que cinquenta! E lá foi... Deu as ao mordomo da festa que segue ao lado do páleo do padre para ele as ir espetar no andor de Nossa Senhora Mãe dos Aflitos. É verdade que a pegar no páleo vão sempre os que dão a esmola maior e lá ia o filho do outro, mas o andor escolhido quere dizer também que ele tinha outra ideia. Não era só pirraça!... Olha, vou desligar. Vem ali a velha maluca a barafustar, a falar sozinha! Se me sente falar vai haver barulho e eu não estou para a aturar... começa logo a dizer que estou a falar com os mandrongos e eu não sei se aguento! Estou farta disto! Sim, volto a telefonar te se houver novidade. Se não, falamos aí. Depois do funeral ponho me logo nas andadeiras daqui. Isto é terra de calhaus com olhos!... Ó minha santa combinha!... Deixei me dormir até tão tarde!... mas que horas serão... Não está ninguém... o sol vai alto... tanto trovão de noite e agora sol... está tudo maluco. E o MEU FILHO sem vir!... que vale olhar p'ró relógio! ele é bem grande... mas nunca sei qual é o ponteiro que dá as horas!... vou lá baixo ver se aquelas corujas ainda lá estão no cochicho... se vejo o MEU FILHO... não está ninguém, foi se tudo e ninguém me disse nada... são umas cabras, o 22 MEU FILHO vai saber... tudo, tudo! está a tocar à missa? bem se calhar estão p'ra lá... vou lá ver se as encontro... ah, o carro do MEU FILHO já ali está! Deve ter ido à missa ou estará no largo do terreiro... vou lá passar. Tenho tempo de ir à missa!.. Senhores, não viram o meu Manuel? Claro que não sei onde ele está! se soubesse não pécurava, não é? .. bem, vou ver na missa... já acabou?! Então eu ouvi tocar para a entrada?! São sinais!... vocês é que são uns bons sinais!... até parece que morreu alguém... Bem, bem, se a missa já acabou, volto p'ra casa e espero lá por ele... é mais certo. Sinais!... já sou velha p'ra aturar caçoadas... vou lhe contar, tudo, tudo, tudo! Não quero vir mais a esta terra, ele que me vá ver à nossa!... temos lá a nossa casinha... ele vai ouvir, isso vai... só quero ver se me ralha depois... só quero ver... - Quem é a velhota? Ela não regula, pois não? - É a mãe do alemão, o que vai agora a enterrar, não sei se conhecia.. - O da vacaria e do armazém de vinhos? - Esse mesmo, morreu ontem. - Oh diabo! Conheço muito bem. Eu até vinha para falar com ele. Comprou me as uvas deste ano. Disse me que ainda não sabia o preço que ia correr nesta safra, mas que lá para Novembro já se devia saber. Sabe, ele pagava menos que a adega cooperativa, mas sempre pagava mais depressa! Os da adega só pagam tarde e a más horas!... só depois de venderem o que a gente lá põe, quase um ano de espera pelo nosso dinheiro! - Um ano na comprativa? Mais! Este ano ainda não pagaram as uvas do ano passado! Bem burro fui em não as vender ao Alemão... embora tivéssemos cá as nossas diferenças... somos do mesmo tempo, ele enriqueceu... eu não! Não saí daqui... antes tivesse! Mas agora, com ele morto, se calhar isto vai pela água abaixo... A mulher só quer luxos, não percebe nada disto, nem quere perceber, os filhos estão lá fora... - Olhe, amigo, ele engordou com o negócio, não? - Ah isso engordou, com esse e com a CEE, que se fartou de a roubar com a história dos subsídios... Mas eles antes querem ser roubados pelos ricos que ajudar os pobres... Vá lá pedi los, vá. É só para quem tiver muitos hectares...Olhe, eu não fui p'rá França porque sempre tinha umas courelas, não era nenhum jeireiro. Ele, que não tinha nada, era um criado de servir, foi. Estava rico como um porco e eu cá ando na lavoura, como dantes... 23 - Morreu... é pena, mas não me apoquento. Alguém lhe há de pegar na casa! Vai ver, o meu está certo... não tenho medo... E olhe, quer um conselho, amigo? P'ró ano, venda também as suas, se não é a ele será a quem estiver à frente da casa. Há lá cubas p'ra muito vinho. E se não quiser dar se a conhecer por qualquer coisa entra vocês eu fico lhe com elas, carrego as nos meus contentores e venho vendê las como se fossem das minhas vinhas. Olhe que são de boa casta e têm bom grau. Ele tinha tanta confiança nisso que nem pesava o mosto. Calculava sempre pelos 12 graus. Também menos nunca devia ser... é só uva de meia ladeira... tenho lá uma latadita, pouca coisa. Mas ele dizia que dava duns para os outros. Como eu lhe vendi bastante, quase para três lagaradas... Olhe, e o meu amigo pense bem. Por uma pequena diferença pelo meu trabalho livra se de problemas... - Bem, depois falamos. Vem ali o funeral. Vou no acompanhamento... - Também vou, já agora... enquanto, falamos das suas uvas... olhe que não tem nada a perder... a quem nos tem ofendido, Amén... Pois é, sabe, na adega está cada vez pior...aquilo é demais...pense bem... se quiser, até lhe dou já um sinal... tenho uns papéis na carrinha... assina e passo-lhe logo o sinal p'rà mão... então combinado... um homem só tem uma palavra, não é verdade? Claro, claro... Pai Nosso que estais no céu... RITORTO