José
O velho tinha fundas covas que o tempo lhe esculpira no rosto, cabelo grisalho, barba mal
feita e olhar jocoso. O rapaz de quatro anos respirava movimento e vida e nunca ouvira a
palavra jocoso. Foi chamado pelo velho à entrada da taberna, acercou-se, viu-o de perto,
temendo por momentos os gigantes pêlos que irrompiam das suas orelhas, ouviu-o sussurrar
uma palavra, talvez melhor se dissesse palavrão, dito e não transcrito aqui para evitar ferir
susceptibilidades, manda-o depois o velho perguntar à tia o que aquilo significava, olha a
criança como quem prevê um escape à monotonia da aldeia, sorrindo sem dentes, diz-lhe que
vá para casa, para casa ele vai. Lá chegado, o rapaz, rebentando de incompreensão e
curiosidade, pergunta à tia-avó com quem vivia o que significava aquele vocábulo que
aprendera. A tia surpreende-se, vira-se, plaf, sai o pequeno de casa com a nádega direita
ardendo durante três dias, aquela fora a mais dolorosa palmada que levaria da tia que lhe
servia de mãe.
Esta é a primeira memória de José, nome dado pelo vigário, ao qual acrescentam
frequentemente o adjetivo pequeno com letra grande. Recorda também a raiva que sentiu, o
ressentimento em relação ao velho, emoção encurtada pela visita do mesmo ao que a tia
chamava Quinta das Tabuletas, pouco tempo depois. José Pequeno vivia então com a tia-avó,
filho de pais que nunca conheceu, tê-lo-iam deixado quando partiram com o mesmo destino
daquele velho, era José novo demais para saber do mundo, ou foi esta a versão que lhe
haviam contado, a única que conhecia até ao momento em que um outro rapaz de dez anos
como ele chamou à sua mãe mulher das ruas, eufemismo que na situação não se considerou
necessário, que ficara prenha de um desconhecido e o deixara para ser acolhido por uma
alma caridosa. Soco bem aplicado, afirmações desmentidas, mas já em José se instalara a
dúvida como sorrateiro parasita, alimentada pelas interrogações que tivera e que viria a ter.
As palavras têm este efeito engraçado, quase imprevisível e por isso perigoso, de tomar vida
por si, de deturpar intenções, as palavras não se intimidam com convenções sociais, quem as
diz sim, mas uma vez no ar elas traçam o seu caminho alheias ao que o humano pretende,
chegam aos ouvidos alteradas, fomentam inseguranças, favorecem inquietações. Para José,
aquelas palavras que ouviu aos dez anos foram as que nunca esqueceu.
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Criança traquina, irrequieta, cresceu sem tempo para ir à escola, sem dinheiro e sem
interesse também, já que na aldeia perto de Torres Vedras onde vivia apenas o pároco sabia
as letras. Ajudava a tia com a horta, ia com ela ao mercado, cuidava do burro que sempre foi
seu confidente, brincava como quem desvenda os segredos de viver e cresceu até deixar de
crescer para cima e começar a minguar de novo, isto de mecanismos do corpo ninguém sabia
o que dizer, benziam-se três vezes as mulheres e ficava calma a pecaminosa vontade de
responder a perguntas. Mas antes disso ainda José Pequeno descobriu a magia e o terror, com
oito anos feitos, num mato de pinheiros mansos, vá-se lá achar este local digno de eventos
sobrenaturais, é necessária atenção, se no bosque se encontra sonho, havê-lo-á também em
mais povoadas localizações. Ia José com um grupo de rapazes, seguindo o caminho que a
vontade os fazia percorrer, naquele quente dia de primavera a vontade apontava para onde
havia sombra, quando ao longe avistaram uma casa velha quase ruindo sob o peso das telhas e
do Tempo, Esperem, disse um deles, aproximaram-se. O silêncio tornou-se inquietação
quando da casa saiu uma mulher, cabelos longos e soltos, repousados nos ombros onde trazia
xailes negros, na fogueira que ameaçava engolir o mato colocou algo, fez-se fumo, se se
fizesse luz ainda se criava universo e a história era bem mais interessante, iluminou-se a sua
face delirante, da boca saíram palavras em exóticas linguagens numa torrente insana, voz
forte demais para aquele corpo delgado que se adivinhava debaixo das camadas de xailes que
trazia. Parou, olhou-os, em horror fugiram como lebres, como baratas, como crianças
assustadas com o que não compreendiam, embora hoje homens de bata branca e ar altivo
pudessem rotular o que acontecera, É a bruxa, gritou um quando pararam muito depois, perto
da padaria, recebeu de resposta acenos de cabeça, relembraram a história que todos haviam
ouvido, da mulher que se untava com unguentos e voava numa vassoura à noite, José não
confessou que não a tinha visto, desviara os olhos para proteger a alma que ouvira ser o maior
bem dos homens, não dormiu bem durante muitas noites, fizeram uma jura de nunca contar,
nenhum nunca contou.
Conheceu a inocência das paixões pouco depois, quando a neta do ferreiro o visitou nas festas
da aldeia. Achou-a deslumbrante porque aprendera essa palavra havia pouco tempo, sem
conseguir descrever o que nela havia que o fizesse gravitar à sua volta como se achava ser o
universo a girar tendo a Terra como centro, naqueles dias ela foi a sua Terra, despertou-lhe a
timidez, a auto-censura, depois a alegria que não antes sentira, o riso que não sabia que
tinha, a perícia que achou possuir quando ao pé da velha fonte partilharam um desajeitado
beijo, a angústia, a saudade acompanhada do despir das árvores, tudo até ao inevitável
esquecimento, quando o Tempo lavou a memória de um José a perceber o mundo. Muito
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depois, desvalorizou o que passara, como fazem todos às memórias de dores idas, teve outras
paixonetas, mas quando a idade ainda se conta com os dedos das mãos tudo é sentido com
mais força, embora tentem convencer-nos de que funciona ao contrário.
Mais tarde, passou de José a José Pequeno. Já antes foi mencionado e agora vai ser
explicado, cada coisa tem seu tempo e esta quis a caneta e o escritor que aqui fosse falada.
José não se recordava onde esta alcunha que lhe moldou a identidade surgiu, nem quem o
baptizou, padre não fora mas não deixara de ser real o baptismo e, se não sabia o seu autor,
relembrava todos os dias a sua origem. Pois, ao entrar na puberdade, José não mais cresceu.
Em vez disso, curvou-se sobre si mesmo, como se tentasse abarcar um coração partido, como
se o céu já não tivesse segredos para lhe revelar, as costas viraram corcunda e nenhum sábio,
nem nenhum não sábio, não por isso menos opinativo, o soube explicar. As mulheres da málíngua, essa constante presença, diziam ser castigo, o rapaz metera-se nas artes negras,
desígnios ocultos, Deus recusara-lhe o direito de crescer aproximando-se da sua divina
morada, amaldiçoara-o para que olhasse o chão, José nunca escutou estas palavras mas
pensou nelas, como pensam todos os adolescentes atormentados e com tempo a mais.
José não sabia o que achar de Deus. Nunca o haviam ensinado a questionar o que ouvia da
boca da freira Maria que cheirava mal, sem lhe terem no entanto ensinado como acreditar
também, Faz o que Ele diz, ouvia da voz de homem da freira, o que Ele dizia correspondia
frequentemente ao que Maria ordenava sob a ameaça de um pau estalando contra mãos
estendidas. Olhava para cima quando procurava o pai e a mãe, depois deixou de os procurar,
assistia às procissões para ver as meninas vestidas de anjo, ou talvez não estivessem
disfarçadas e só ele as via assim, nunca conheceu Deus, não O viu, não O tratou por Tu,
muitos anos depois falou com um louco que lhe disse em segredo que tudo era mentira, mais
tarde com um homem sem uma mão que declarava ter voado e não O ter visto, José não sabia
o que pensar, culpou-O quando não tinha mais ninguém a quem culpar e se via preso num
corpo defeituoso e insuficiente, terá Deus as costas largas porque arca as culpas de muitos
males, embora tome mérito de muitos bens.
José fugiu da aldeia com quinze anos, Vou ver o Mundo, o mundo para ele não era maior que
Portugal, roubou fruta dos pomares, aprendeu a nadar nos canais de Coruche, um velho
sapateiro de Santarém achou-lhe piada, deu-lhe guarida, ensinou-o a coser, a pregar,
ensinou-lhe as artes de fazer calçado e as artes de ser homem. José fez amigos e inimigos, viu
pena e contentamento nos olhos dos que conhecia com um sorriso, doíam-lhe as costas depois
de um dia de trabalho, aborreceu-se, um rápido adeus e fugia de novo. Deambulou pelo
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Ribatejo, experimentou profissões e sensações, cresceu por dentro o que fora impedido de
crescer por fora. Percorreu milhas de solo português à procura de vocação, de trabalho que
não o entediasse, sempre encontrou compaixão e cedência, grande parte sendo mérito da
corcunda, o restante por causa do coração de ouro que a deficiência lhe trouxe, tornara-se
bom sem saber, a sua fraqueza ajudava-o a reconhecer as fraquezas dos outros, a ele valialhe a simpatia para arranjar favores remunerados, já que o ouro do coração não lhe punha na
mesa refeições.
Foi em Fátima, antes do milagre que a fez famosa, o milagre sendo ouvidos adultos crerem
em palavras de criança, que encontrou a sua paixão. A descoberta surgiu de um acaso, sob a
forma de um homem que ao seu lado falava, afirmando que lhe fazia falta quem tratasse do
gado, José Pequeno viu-se boieiro por acidente, o devoto dirá que por desígnio, apaixonou-se
pelo silêncio, pelo andar calmo das criaturas, pelo entendimento mudo que partilhavam, a
felicidade genuína quando lhes dava uma guloseima, esta relação bois e homem, homem e
bois estranhava às gentes da vila, José apenas sabia o que via, como eram semelhantes
quando os bichos se curvavam para comer, subitamente todos eram curvados e ele já não
estava sozinho. A vida tem destas coisas, conexões inesperadas, compreensão mútua, apoio e
consolação mesmo quando vêm dos olhos gigantes de um bovino, gigantes são também as suas
pestanas, este facto sempre espantou José Pequeno, bicho tão bruto, ali tão feminino,
pestanejando lentamente como quem não teme o que perdemos da vida quando os olhos se
fecham. Os bois não o olhavam de cima, não tinham pena dele e isso bastou-lhe para
permanecer junto dos animais durante os anos que se seguiram, até quando na barba que
deixara crescer começaram a aparecer discretas madeixas cor da neve que José nunca viria a
ver.
A vila acabou por acolhê-lo e ele tornou-se um deles. Pensava na aldeia lá longe, a distância
na nossa cabeça torna maior o comprimento da estrada, pensava na tia-avó que já devia ter
partido para a Quinta, pensava no Xavier, que crescera a seu lado e o ensinara como fazer
explodir colmeias, pensava nisto e naquilo, coisas de um passado que há muito passara,
pensava em tudo menos em voltar. Sentia-se em casa, via-se ficando por Fátima e lá teria
ficado não fossem os acasos que tanto perturbam os planos, o proprietário dos bois vendeuos, José nunca soube a quem, não houve tempo de despedidas, estas consolam menos os
bichos que vão e mais o bicho da saudade que se vai alimentando dos que ficam, saudade é a
palavra mais portuguesa que existe, realmente, é o que permanece quando a esperança leva
homens a lugares longínquos, mais interessante ainda é a saudade do que nunca se teve, a
saudade do amor por vir, do lar por encontrar, da felicidade que ainda falta sentir, é isso que
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leva os homens a sonhar, essa saudade de grandeza, já os portugueses têm saudade da glória
que Portugal nunca teve.
Consolemo-nos sabendo que José Pequeno não ficou muito tempo sem ofício, fecha-se uma
porta, abre-se uma janela, surgiu o rumor de um convento, obra-mor, a ser construído em
Mafra, coisa como nunca antes se vira nestas paisagens, fruto da jura e do desejo do rei,
Precisam de homens, Muitos, E de boieiros corcundas, Certamente se arranja trabalho para
boieiro, corcunda ou não, quando se é bom no que se faz pouco importa a altura. Então José
partiu de novo, perseguindo a esperança, pronto a provar-se melhor do que o olhar alheio o
julgaria ser, caminhou até Mafra sem se desviar do destino, guiado pela determinação e pela
promessa de um bom salário. Mais se contaria, mas essa é outra história, que um ilustre
português se encarregou de escrever.
Autora: Maria Teresa Parreira
12º Ano
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José - Plano Nacional de Leitura