1.
Para minha sorte, não entro em pânico em es‑
paços pequenos e escuros ou qualquer coisa parecida. Sou
um tipo diferente de louca.
Então, quando as luzes se apagam não faço muita coisa,
exceto evitar os tarados do ensino médio tentando apalpar as
meninas no escuro. Vou às festas da Smith‑Latin Boys’ Aca‑
demy duas, talvez três vezes por ano, mas nada desse tipo
jamais aconteceu antes. A eletricidade deve ter acabado na
cidade toda. Há um momento de silêncio, como um arquejo
preparatório, e então o caos.
Talvez seja verdade o que dizem sobre ser cego: os de‑
mais sentidos ficam mais aguçados. Porque, no instante em
que as luzes e a música são interrompidas, percebo como o
cheiro no ginásio é nojento. E, por um momento, os sons dos
meus colegas tagarelando e caindo uns nos outros, gritando
com medo fingido, predominam. Em seguida ouço um baru‑
lho familiar, um ritmo que conheço bem. É o passo tenso e
super‑rápido de um ataque de pânico. Está vindo de algum
lugar à minha esquerda, então uso isso como uma espécie de
farol para encontrar o caminho em meio à multidão.
A respiração entrecortada se transforma em inspirações
cada vez mais tensas, e o pobre garoto que sofre o ataque está
sufocando com a própria respiração. E sobre isso eu sei tudo:
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tive a sorte de descobrir formas de impedir meus ataques de
pânico antes mesmo que eles começassem. Então me sento
ao lado do cara com falta de ar, encontro seu ouvido e sus‑
surro. Digo‑lhe para se acalmar e respirar fundo, e estendo
uma das mãos no escuro em busca de sua testa, que consigo
tocar por inteiro. Ele relaxa com o contato, e faço o mesmo
em mim, colocando a mão livre na testa. É agradável tocá‑lo,
essa intimidade com um total estranho, então acho que estou
meio que amando a falta de luz. Isso nunca aconteceria sob
luzes fluorescentes. Pensando bem, acho que isso serve para
um monte de coisas.
— Isso é bom — diz ele numa voz ainda engasgada, po‑
rém menos apavorada. — Não sei o que aconteceu.
— Ataque de pânico — respondo.
Estou pronta para listar todos os sintomas e causas e lhe
dar o mesmo conselho que a Dra. Pat me dá quando estou
tendo um ataque, mas assim que tomo fôlego para recomeçar
a conversa ele me interrompe.
— Entendi.
Acho que é de propósito, para não me deixar falar, mas
não soa como se estivesse me dispensando, e sim como uma
tentativa de me salvar de mim mesma, o que sou obrigada a
apreciar. Como regra geral, quando se trata de falar com es‑
tranhos é melhor eu desistir enquanto ainda há tempo. Em‑
bora no escuro eu pareça ser realmente boa em decifrar as
pessoas. Fecho a boca. Respiro fundo duas vezes. Então me
permito tentar falar outra vez.
— É seu primeiro ataque de pânico? — pergunto. Per‑
guntaria isso em plena luz do dia, mas parece ainda mais na‑
tural no escuro. Seu corpo ainda se contrai um pouco como
consequência da onda de ansiedade, e sua pele tem uma
textura fria e suada. Mantive meu braço encostado no dele.
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Com toda essa loucura acontecendo ao nosso redor, é bom
simplesmente ter algo se encostando em mim. Alguém.
— Acho que sim — responde. Depois, nada.
— Eu sou a Bea — digo, para preencher o silêncio. Não
que esteja tudo quieto: o lugar parece ainda mais barulhento
do que estava com as porcarias das Top 40 explodindo no
volume máximo. Mas esse cara é calmo, e em breve a luz vai
voltar e a realidade da nossa visibilidade provavelmente tor‑
nará tudo mais estranho.
— Beck — diz ele.
— Nome estranho.
— É, o seu também.
Estico as pernas para a frente. Agora, o silêncio entre
nós se parece mais com um acordo, um pacto, e menos com
uma luta.
É engraçado como meus nervos funcionam: pulsando
num minuto e recuando no seguinte, me deixando totalmen‑
te exausta. Se o clima de camaradagem que sinto com a res‑
piração pesada de Beck e suas mãos suadas estiver certo, ele
agora deve estar sentado nessa mesma gangorra.
— Quer tentar sair? — sugiro.
Nada está mudando aqui. Os professores estão tentando
falar mais alto que os alunos, e parece que o centro do giná‑
sio/pista de dança se transformou numa rave improvisada.
Se estivéssemos na Greenough Girls’ Academy em vez de na
Smith‑Latin, conseguiria encontrar o caminho até a bibliote‑
ca, onde poderia me esconder até que toda essa coisa de falta
de luz tivesse passado. Teria tudo de que gosto ao alcance:
sofás, luzes portáteis para livros, o cheiro daqueles livros ra‑
ros centenários pelos quais nosso bibliotecário é obcecado.
Espero que Beck conheça um local parecido na Smith‑Latin.
E que seu senso de direção não seja prejudicado no escuro.
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Desejo mais do que tudo que seu rosto combine com sua
voz: baixa, doce e um pouco rouca. Rostos podem se parecer
com sons?, me pergunto. E seria este o tipo de cara que tenho
procurado, em vez daqueles com quem sempre acabo, atletas
do ensino médio feios de rosto mas bonitos de corpo?
— Não consigo me mexer — diz Beck.
Eu me estico para tocar suas pernas, como se ele talvez
estivesse com gesso ou um aparelho ortopédico ou não tivesse
um membro ou algo assim. Um pouco tarde demais percebo
que é um movimento muito estranho de se fazer, mas, como
sempre, não consigo me segurar. Minha mão está bem no topo
da coxa dele, e permanece ali por mais tempo do que deveria.
Meu Deus, como sou estranha.
Juro que posso sentir suas pernas tensas e talvez o movi‑
mento de alguma outra coisa.
— Parece normal para mim. — Deslizo a mão para longe
de sua perna.
— Pode ir lá fora se quiser — diz Beck. — Eu simples‑
mente não consigo. Isto é, não quero. Não vou a lugar ne‑
nhum até que a luz volte, OK?
— Não tem nada a temer. Você sabe, além de jogadores de
futebol realmente excitados. Sem ofensa, se você for um deles.
Ou será que estamos evitando alguém? Talvez uma garota feia
da Greenough com quem tenha ficado sem estar muito a fim?
Beck ri apenas o suficiente para que eu saiba que não se
importa com as provocações.
— Você é a única garota da Greenough com quem fa‑
lei hoje à noite — diz, e fico sorrindo no escuro como uma
boba, como uma menina de 8 anos, que é exatamente o que
eu pareceria se alguém pudesse de fato me ver agora. Tenho
até um espaço entre os dentes da frente que, supostamente,
me dão um sorriso doce, de menina.
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— Bem, nesse caso, é melhor eu ficar, então — digo.
Coisas caem ao nosso redor: pessoas, equipamentos de
DJ, faixas escolares. Não posso acreditar que meu coração
está palpitando tanto com o som de sua voz e com a ideia de
tê‑lo para mim, mesmo que por alguns minutos, mesmo que
ainda não saiba como esse cara é. Largo sua testa e toco a mão
dele, e quando nossas palmas se encontram, ele aperta. Em
seguida, outra vez. E mais uma. Depois de alguns apertos, ele
expira. Ficamos de mãos dadas por mais uns minutos antes
de ele começar a entrar em pânico outra vez. Então ele solta.
— Estou dizendo, você vai se sentir melhor com um pou‑
co de ar fresco — insisto.
No escuro não consigo ver se Beck balança a cabeça ou
qualquer coisa, mas ele definitivamente não diz que não, e
sou um tipo de menina copo‑meio‑cheio, então para mim
aquilo significa que ele vai levantar comigo. Puxo‑o para que
fique de pé. É preciso um bom esforço, e ele me puxa de vol‑
ta numa tentativa de ficar sentado no chão. Não me importo.
— Está com medo de me deixar ver você? Você é
superfeio?
Espero que isso o faça rir, mas não faz, e me dou conta
de que talvez ele seja mesmo feio, e não de forma subjetiva,
mas verdadeiramente desfigurado. Tenho um talento espe‑
cial para dizer verdades terríveis para estranhos.
— Hum, isso foi uma coisa superestranha de se dizer.
Sou assim, às vezes. Um pouco estranha. Ou, como gosto de
pensar, peculiar. Estranha e peculiar. — Bem aqui, é por isso
que afasto os caras.
— Eu também — diz Beck. Sabia que havia uma razão
para gostar dele.
O ginásio começa a esvaziar. Os professores estão conse‑
guindo agrupar as pessoas no estacionamento para ficarem de
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olho em nós. Eu os ouço gritando ordens em meio ao caos.
Passou tempo suficiente para que a maioria dos presentes co‑
mece a ceder aos pedidos. Afinal de contas, com certeza já es‑
tamos sem bebida e a emoção de tocar corpos de estranhos ou
de esbarrar em seus amigos, no sentido literal, drenou da sala.
— Fica quieto e não se mexe — sussurro.
Tenho a sensação de que, se formos pacientes, teremos
todo o ginásio para nós. Minha melhor amiga, Lisha, e eu
sempre tentamos encontrar espaços secretos onde ninguém
pensará em nos procurar. Como uma espécie de pique‑escon‑
de com o mundo. Quando éramos pequenas, decorávamos
o interior do meu closet com glitter e almofadas e fazíamos
todas as brincadeiras, conversas e lanches lá. Acolhedor e só
nosso. Penso que ficar para trás no ginásio escuro com Beck
seria algo parecido. Lisha, onde quer que esteja neste enxame
escuro de corpos adolescentes muito perfumados, aprovaria.
Quase chamo o nome dela, para que nos encontre, mas
sei que Lisha não se importaria que eu tivesse um momento
extra a sós com o se-Deus-quiser-bonito, com certeza atraen‑
te, menino da Smith‑Latin.
Em apenas alguns minutos, o ginásio passou de pratica‑
mente lotado para quase vazio, e as luzes dos carros no esta‑
cionamento não chegam ao canto em que estamos escondidos.
Se ficarmos quietos, algo grande pode acontecer. Pelo som da
respiração pesada de Beck, temo que ele esteja começando a
entrar em pânico outra vez (esse garoto tem medo do escuro
ou o quê?), então encontro seu ombro e sigo a linha do seu
braço para baixo até chegar à mão novamente. Ele aperta.
Considero deixar por isso mesmo. Pelo menos até eu en‑
contrar alguma maneira de ter um vislumbre de seu rosto.
Em vez disso, passo meus dedos de volta pelo braço de
Beck, do pulso ao cotovelo e ao ombro e para o pescoço até
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encontrar seu rosto. E então seus lábios. E, apesar das pernas
trêmulas e das suas ​​inspirações e expirações pesadas, eu o
beijo. É uma coisa boa na qual ele deve se perder por pelo
menos alguns segundos, porque seu corpo relaxa contra o
meu. Mas tão depressa quanto relaxou, volta a ficar tenso, e
deixo que minha boca se afaste.
Ele tinha gosto de hortelã e suor frio. Mentolado. Salga‑
do. Perfeito.
Realmente o tive, por um segundo.
— Vamos ficar aqui — digo. Não de forma sedutora,
porque dou uma risadinha na última sílaba. Estou nervosa
demais, mas não tão agitada quanto ele.
Os pés de Beck batem no chão, e ele parece prender a
respiração, e recua para ficar mais perto da parede. Fica gru‑
dado ali.
— Não posso — diz Beck, quando dou mais um passo na
sua direção. — Preciso ir para casa. Estou me sentindo estra‑
nho. Estou meio confuso agora. — Sua voz é um murmúrio.
Posso sentir o calor surgindo enquanto ele fica corado,
mesmo a alguns centímetros de distância. Quero tranquili‑
zá‑lo com um toque, talvez até beijá‑lo de novo, mas quando
chego perto, alguém se arremessa contra mim, com força to‑
tal, me derrubando. Eu caio. Beck vai embora.
— Também estou muito confusa! Sou totalmente confu‑
sa! — digo atrás dele, e sinto que ele ainda está no ginásio;
sinto que me ouviu, mas a escuridão é profunda demais para
eu enxergar até mesmo o menor movimento. Sinto a parede
e a acompanho, na esperança de alcançá‑lo, mas não esbarro
com ele em canto nenhum, nem agarrado a alguma batente
de porta. Ele saiu do ginásio. Acho que de alguma maneira
ficou com mais medo de mim do que do escuro.
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