Press Release CD NOVIDADE| RE-EDIÇÃO José Afonso “Fura Fura” Orfeu 35.029 – Digifile CD *Edição remasterizada a 24bits a partir dos masters originais. *Inclui textos exclusivos da autoria de Gonçalo Frota e Pedro Coquenão (Batida) À venda dia 20 de Maio O passado que há no presente Fura Fura José Afonso, 1979 A nove quilómetros de Santiago do Cacém e onze de Grândola. Um ponto minúsculo em qualquer mapa, um lugar cuja História morre habitualmente com os seus habitantes. O ponto tem um nome: São Francisco da Serra. E foi aí que, durante algumas curtas temporadas, José Afonso escolheu refugiar-se. Lá, “numa casa isolada, chão de terra, praticamente sem condições algumas”, descreve António Chainho, o músico terá feito alguns retiros criativos. Pedro Caldeira Cabral chegou a juntar-se-lhe para trabalhar umas quantas músicas que nunca chegou a gravar. Fura Fura, possivelmente, terá tido nesse lugar remoto um dos seus momentos de génese. Na aldeia de onde é originário Chainho, Zeca Afonso procurava o convívio com os populares, que mantinham por ele uma admiração da mesma altura que uma respeitosa distância. Por vezes, quando se deslocavam ao chafariz para recolher água, observavam-no a passear pelo montado, de olhar ausente, perdido em conjecturas, quem sabe a garimpar melodias. Depois, na taberna, as gentes da terra sorviam cada uma das suas palavras com a devoção de quem ouvia um iluminado. Chainho, ele que migrara já para Lisboa e era o fiel guitarrista de Carlos do Carmo, ia sabendo das histórias através do pai e do tio. Até ao dia em que se encontraram os dois na casa de Manuel Quaresma, homem da aldeia com quem Zeca gostava de partilhar sabedoria. Zeca, de voz coimbrã, achava já graça aos trinados lisboetas que Chainho roubava à guitarra portuguesa. Tanto assim que lhe diz: “Um dia gostava de fazer uma coisa assim com a guitarra, você está nessa disposição?” Em muitas outras histórias, a narrativa acabaria aqui. O convite seria gesto de cortesia ou até de genuínas intenções, mas na verdade a ideia alapa-se no turbilhão de ideias e vontades que agitam Art!Orfeu Media // 21 771 32 00 1/4 Press Release CD NOVIDADE| RE-EDIÇÃO José Afonso em permanência. Até que, anos depois, chegada a gravação de Fura Fura, em 1979, o cantor retira a ideia do amontoado que vai acumulando na cabeça ao longo dos anos. Chainho é chamado a participar em dois temas, “Quanto É Doce” e “”Quem Diz que É pela Rainha”, e fica estarrecido com a facilidade que Zeca o dirige através de um simples método de corte-e-costura. “Eu apenas fiz uma espécie de fado corrido”, lembra o guitarrista. Foi quanto bastou para o autor saber o que lhe interessava extrair: “Olhe, esse trinado que você faz aqui é muito bonito. Se pudesse fazer mais ou menos isso dentro do acompanhamento da minha música talvez ligasse muito bem”. E a cada nova volta, a cada novo improviso de Chainho, Zeca compunha a parte do guitarrista quase em tempo real, interrompendo-o para lhe pedir “aproveite também essa coisinha mas assim e assim”. “Era uma pessoa que se inspirava no momento”, diz o guitarrista. A gravação é rápida, não mais de duas horas, passando depois mais uma hora na conversa, como se o encontro magicamente se transpusesse para a taberna do avô de Chainho em São Francisco da Serra. Sem fazer exactamente ideia do álbum em que está a participar, António Chainho não chega a cruzar-se com outros músicos em estúdio. Sabe apenas que foi acompanhado por José Maria Nóbrega e não pelo segundo guitarra e pelo viola baixo porque Zeca não terá ficado especialmente atraído por um naipe mais alargado de instrumentos. “Falaram-me no seu conjunto de guitarras”, ter-lhe-á dito, “mas acho que isto mais simples fica mais bonito”. “Ele precisava que as ideias e os instrumentos fossem chegando desde que não o atrapalhassem”, contextualiza Luís Represas. “Se aquilo começasse a atrapalhar, ele começava a achar que eram coisas a mais porque tinha uma grande voz que não precisava de se apoiar em nada”. Chegado a esse ponto, saía-lhe um “Já é muita coisa, já não estou a ver nada”. “Ele sabia que tinha uma grande voz”, continua Represas, “que abria a boca sozinho, cantava as palavras e de pouco mais precisava à sua volta. Por isso é que as baterias lhe faziam muita confusão. A música tinha de ser muito clara, muito transparente – tudo o que fosse além de guitarra acústica, cavaquinho, acordeão e percussão fazia-lhe muita aflição. Nós, nessa altura, estávamos, de facto, numa fase muito acústica”. O “Nós” de que fala Luís Represas corresponde, naturalmente, aos Trovante, chamados por Zeca Afonso para o ajudar a pôr de pé Fura Fura. O grupo começara pouco antes, em 1976, entrando sem demora na agenda dos cantos livres, acompanhando frequentemente Adriano Correia de Oliveira, que os leva pela mão até à presença do mestre. Na verdade, já se conheciam de outras andanças: com Represas Zeca tinha-se cruzado na LUAR; João Gil, ao lado de Miguel Portas, fizera parte de um grupo de estudantes que organizava umas sessões clandestinas às quais o cantautor gostava de comparecer. Depois, aproximados por Adriano, tinham acompanhado Zeca algumas vezes em concerto. “Até que quando ele começou a montar o Fura Fura lembrou-se de vir ter connosco perguntar se queríamos ser os arranjadores, o núcleo de suporte do disco”, conta Represas. “É legítimo pensar que ele procuraria algum fulgor, algum sangue quente e alguma da nossa insubmissão”, arrisca João Gil. Apesar da atrapalhação inicial gerada pela proposta – havia a vontade, espreitou a dúvida, venceu o atrevimento –, a proximidade dos universos musicais facilitou o encaixe. “Sentíamo-nos irmanados com a estética da música do Zeca. Ele achava graça aos Trovante e achava que éramos uns sucessores e herdeiros daquilo que ele e outros começaram a fazer no fim da década de 60. E nós também nos sentíamos assim, porque a música que fazíamos tinha muito a ver com essas referências”. Tudo começou então por uma cassete com as partes cantaroladas por Zeca Afonso. Cavaquinhos, acordeões, ferrinhos, tudo estava já imaginado e registado através de tururus e tirititis na fita partilhada com os Trovante. “Lembro-me de ter a cassete em casa, sozinho, e estar a tirar os acordes. Assim que o fiz passei a cassete outra vez ao grupo e tocámos juntos as canções”, Art!Orfeu Media // 21 771 32 00 2/4 Press Release CD NOVIDADE| RE-EDIÇÃO recorda João Gil. A assimilação daquelas ideias por parte dos Trovante quase se fez em menos tempo do que leva a escrever Música Popular Portuguesa, facilitada pela linguagem comum. “A música do Zeca era muitas vezes transcendente, mas nunca deixou de ser clara como a água”, identifica Gil. “Essa para mim é a grande qualidade do Zeca Afonso: ter alguém na nossa História que reuniu as suas raízes filosóficas, camonianas, linguísticas e tradicionais, pegou no código genético e conseguiu reinventá-lo de uma maneira tão bonita e tão simples quanto a poesia de Camões”. Depois de aprendidas as ideias registadas na cassete, Trovante e Zeca começaram a encontrarse na sala de ensaios do grupo, levantando algumas canções de Fura Fura. “Ele ia cantando as ideias dele, nós íamos tocando as nossas. Era muito simples”, conta Represas. “Tal como ele, nós tínhamos disponibilidade total para ir buscar influências de outros universos e de outras culturas para dentro da nossa cabeça, que também estava cheia de coisas do universo popular português. Não havia mistérios nenhuns entre aquilo que o Zeca queria e aquilo que tínhamos para lhe dar”. Depois, no entanto, o disco tomou uma direcção inesperada para o grupo. Após terminados os arranjos e gravações de “As Setes Mulheres do Minho”, “O Cabral Fugiu para Espanha” e “De Quem Foi a Traição?”, Júlio Pereira é chamado para assumir os arranjos e a direcção musical do disco. “Na altura ficámos tristes”, confessa o vocalista dos Trovante. Mas com o passar dos anos, a situação foi-se aclarando aos olhos do grupo, percebendo quem eram, afinal, em 1979: “um grupo de cinco putos, com a cabeça, o coração e as ideias aos saltos”. “Nunca tivemos uma atitude reverencial com o Zeca. Tínhamos admiração e respeito, mas a proximidade que vinha de trás fazia com que houvesse à-vontade para lhe atirarmos para o colo uma profusão de ideias e a energia inventiva que tínhamos para lhe dar. Acredito que o Zeca se tenha sentido, a certa altura, bastante atrapalhado com o andar dos acontecimentos e que lhe tenhamos tornado o universo confuso, a ponto de ele já não saber se o disco era dele ou nosso. Ele precisava de ter ali um norte, um farol”. Esse farol chamava-se Júlio Pereira e era, de certa forma, uma escolha óbvia. Após uma primeira e fugaz experiência em Com as Minhas Tamanquinhas, o músico reaparece num disco cujo alinhamento é fortemente inspirado pela música para teatro composta por Zeca para as peças O Zé do Telhado, de Helder Costa, encenada por Augusto Boal para A Barraca, e Guerra do Alecrim e Manjerona, de António José da Silva (O Judeu) levada à cena pel’A Comuna – “De Sal de Linguagem Feita” e “De Não Saber o que me Espera”, por seu lado, são compostas em 1973, a par das canções que figuram em Venham Mais Cinco, quando esteve preso em Caxias. Júlio Pereira tinha precisamente essa experiência e familiaridade com A Barraca, companhia formada por Maria do Céu Guerra que se inicia com peças musicais, como Barraca conta Tiradentes e Ao qu’isto Chegou. É então que Céu Guerra chama Júlio Pereira para se juntar, enquanto músico, a essas duas peças. Apesar de já não faz parte do elenco de Zé do Telhado, Júlio Pereira continua a frequentar A Barraca e é durante os ensaios para a nova peça estreada em 1978 que Zeca Afonso o convida para trabalharem juntos. “Essas músicas foram feitas para o teatro”, recorda Júlio Pereira sobre a metade do álbum proveniente da peça, “mas foi tudo feito de novo em estúdio e não são tanto esses os temas em que toco” – trata-se precisamente daqueles em que participam Trovante e Chainho. “As canções vinham de uma peça de teatro, mas cada uma valia por si, tinha a sua identidade própria”, confirma Represas. “As Guerras do Alecrim e da Manjerona foram expurgadas dos elementos de natureza erudita, ópera designadamente, substituídos por temas de inspiração popular numa tentativa para transformar o espectáculo nisso mesmo – numa festa popular”, explicaria Zeca a António Macedo, em entrevista publicada no Se7e, em Março de 79, semanas Art!Orfeu Media // 21 771 32 00 3/4 Press Release CD NOVIDADE| RE-EDIÇÃO antes da entrada em estúdio. Das treze canções compostas para a peça de O Judeu, só duas verteriam para Fura Fura, sendo que uma emprestaria o seu título ao álbum. Zé do Telhado, por seu lado, acenderia em João Gil memórias das suas origens beirãs. “Lembro-me de a minha avó falar do Zé do Telhado como alguém que rondava a zona, uma figura mítica, um delinquente que andava por ali. Quando o Zeca nos falou do Zé do Telhado foi uma surpresa boa para mim, porque liguei imediatamente às histórias que ouvi dos mais velhos e que estavam muito ligadas ao frio, ao medo, à ideia de alguém que vem no meio da noite”. Júlio Pereira surge, por outro lado, para dar corpo a temas novos num estado muito cru. Tal como acontecera com os Trovante, também Júlio Pereira se lembra de tomar contacto com melodias que Zeca transportava consigo num gravador e que lhe mostrava para que ele desenhasse as harmonias na guitarra. Por vezes, o trabalho afincado de muitas horas a trabalhar arduamente num arranjo era “desfeito”, por Zeca, em segundos. “Ele não sabia exemplificar tocando, mas exemplificava com o corpo, a dançar. A maneira de ele fazer um beat já me ajudava a mudar aquele arpejo ou dedilhado. Era a única maneira que ele tinha de falar de música. Era muito mais por ritmo do que por notas. Acho que fazia ou concebia os arranjos em função de um ritmo interior que ele sentia”. “Depois”, continua Júlio Pereira, “essa parte musical, física, ficava entregue aos outros músicos, mas ele já tinha um filme na cabeça e era gratificante porque obrigava-nos a pensar como íamos parar a esse mundo que ele imaginara”. Mas Zeca nunca deixava de estar no controlo da orquestração. “É alguém que nunca delegou nos outros o seu próprio milagre”, diz Gil. E se para Júlio “onde o Zeca se destaca da maioria dos músicos do meu país é exactamente na construção de uma música que não obedece a um género musical concreto”, o ex-Trovante concretiza esse espaço como um alfabeto, um mapa pessoal, “uma geometria entre Coimbra, Beira Baixa e África – Moçambique”, atravessada por um “saber reinventar as coisas antigas, meter os impulsos do presente”. Ou, nas palavras, do próprio Zeca a António Macedo: “Com este disco pretendo aproximar os acontecimentos ocorridos (e relatados) no século XVIII, com aquilo que se está a passar agora. (...) É importante assumir o passado cultural ainda presente”. E talvez não soubesse, talvez suspeitasse, que nunca a sua música deixaria de ser presente. Gonçalo Frota, Abril de 2013 Alinhamento: 123456789101112- Quando é doce As sete mulheres do Minho O Cabral fugiu para Espanha De quem foi a traição Quem diz que é pela rainha Na catedral de Lisboa Achégate a mim, Maruxa (cantar galego) Senhora que o velho De sal linguagem feita Não é meu bem De não saber o que me espera Fura Fura Art!Orfeu Media // 21 771 32 00 2!56” 3!48” 2!04” 1!15” 2!38” 2!39” 2!12” 2!13” 2!22” 3!14” 2!25” 3!04” 4/4