DA PULSÃO DE MORTE AO DESEJO DE VIDA, OU AS VICISSITUDES DE UMA TERAPIA INTENSIVA Catherine Mathelin Naquela manhã eu reconheci imediatamente, entrando no serviço de neonatologia onde trabalho como psicanalista, a atmosfera das grandes urgências. Conhecemos bem esse ambiente particularmente pesado, ele é a marca ao mesmo tempo de uma extrema tensão e de uma grande calma. Sentimento de pânico, jamais. Nenhuma precipitação. Quanto mais preciosos os minutos, mais a equipe parece alheia ao tempo. Sentimos o medo na troca de olhares; nesse controle artificial, fabricado pela experiência. Duas menininhas haviam nascido com uma hora de intervalo entre um parto e outro; seus nomes, Anne e Anna, eram quase idênticos, como também tinham sido as condições dos seus nascimentos. Anne, com 26 semanas e meia de gestação, pesava 850 gramas; Anna, 820 gramas com um termo de 27 semanas. Enquanto a equipe médica, curvada sobre as incubadoras, colocava os catéteres, entubava, ventilava, as duas mamães esperavam o veredicto dos médicos nos seus quartos na maternidade. Antes de ir mais adiante no relato do tratamento das duas meninas, é preciso falar do meu trabalho numa unidade de neonatologia, a fim de que possam entrever os acasos, fracassos e 61 AGORA EU ERA O REI sucessos dessas reanimações nas quais, do primeiro ao último dia, se encontram misturados pulsão de morte e desejo de vida. Tudo começou há sete anos, quando o chefe do serviço de neonatologia do hospital Delafontaine, em Saint-Denis, telefonou para o serviço de psiquiatria infantil do mesmo hospital para solicitar que encaminhassem um “psi”1, porque ele estava com um problema com uma mãe. Meu médico-chefe propõe que eu vá e descubro então uma equipe um pouco desorientada com a seguinte situação: o chefe do serviço havia chamado uma mãe para anunciar-lhe, todo contente, que seu bebê, hospitalizado por prematuridade há três meses, estaria de alta na semana seguinte. Não havia ficado com nenhuma seqüela, e passava maravilhosamente bem. Para seu grande espanto, essa mãe responde que estava muito contente por saber que ele estava bom, mas não o queria de volta de modo algum: “Fique com ele”, disse. “Ela é doida”, pensou, e seu único reflexo foi o de discar pelo telefone para o único posto onde ele esperarava encontrar psiquiatras, pois não havia no hospital psiquiatria de adulto. Três semanas e algumas entrevistas mais tarde, essa mãe deixa o hospital com seu filho, enquanto o chefe do serviço me perguntava o que havia se passado. Expliquei-lhe que não bastava salvar as crianças, que era preciso também salvar o laço entre elas e suas mães. Três meses mais tarde, eu era chamada de novo devido a uma situação mais ou menos idêntica. Seis meses depois por uma outra, e minhas prestações de serviço poderiam ter continuado desta forma se eu fosse, por exemplo, psiquiatra, mas essa maneira de trabalhar não me interessava. Comuniquei isto ao chefe, que ficou muito insatisfeito, mas como não era o meu médico-chefe, não podia exercer nenhum tipo de pressão sobre mim. Abreviatura utilizada para designar qualquer profissional da área psicológica, seja ele psicólogo, psiquiatra ou psicanalista (N. da T.). 1 62 DA PULSÃO DE MORTE AO DESEJO DE VIDA Seis meses mais tarde, ele telefona de novo: “Você aceitaria trabalhar no meu serviço?” Não havia realmente pensado nisso, mas a idéia me interessava. Propus então, depois de algum tempo, um projeto de trabalho. Uma semana de reflexão depois ele me manda uma carta, ou melhor ainda, uma espécie de telegrama, com as seguintes palavras: “Você tem carta branca. Espero-a amanhã”. Tentei então implantar, com a ajuda da equipe, que foi de início muito favorável ao projeto, um trabalho de analista bastante diferente dos outros. Geralmente, com efeito, se faz um apelo ao “psi” na maioria dos serviços de neonatologia, sobretudo quando os pais descompensam, ou seja, quando trazem problemas para a equipe. Uma consulta é então recomendada, ou mesmo prescrita, e eles são geralmente acompanhados num consultório à parte do serviço, às vezes até durante anos, muito tempo depois da saída da criança. A maior parte do tempo os analistas não conhecem os prontuários médicos e não desejam uma ligação com a equipe médica. Por que não? Esta maneira de trabalhar coloca como prioritária a demanda da equipe. Os pais que atrapalham o trabalho são encaminhados ao analista, pedindo-se a este que ajude os médicos, mesmo que a abordagem recaia manifestamente sobre o trabalho com os pais. Por outro lado, o projeto que eu propunha consistia essencialmente em recentrar o trabalho sobre a criança e sobre a preservação do laço entre esta e seus pais. Como numa tragédia grega, haveria: Uma unidade de espaço — Eu estaria dentro do serviço, ao par do estado de saúde da criança e em contato com ela. Uma unidade de tempo — O trabalho se passaria no tempo da hospitalização do bebê e não depois. Uma unidade de ação — O trabalho que eu desempenharia seria igualmente um trabalho de reanimação, mas de um outro registro: 63 AGORA EU ERA O REI tratar-se-ia de um projeto de reanimação do desejo da criança articulado ao desejo dos pais. O gesto médico dá um sopro vital do qual não se pode prescindir, porém a palavra pode trazer de volta a vontade de viver. Quando falei do desenvolvimento desse trabalho a F. Dolto, ela me disse: “Você propõe ao coração do coração o desejo de viver, enquanto que os médicos forçam o coração de carne a continuar a bater”. Desde a admissão do bebê, dois encontros são propostos aos pais. Um com o médico responsável pela criança, o médicochefe ou o assistente, e outro comigo, psicanalista responsável pelo desenvolvimento afetivo do bebê no serviço. Esta noção de responsabilidade compartilhada, que é nova, torna, até o momento, esta experiência única no gênero. Esse primeiro encontro com os pais é sistemático, eles não são encaminhados ao “psi” porque são loucos ou porque desorganizam o serviço, mas porque nessa unidade um psicanalista é também responsável pelo acompanhamento do bebê e, por isso, atende todos os bebês e todos os pais. Durante a hospitalização eu os vejo regularmente quando estão perto da criança por ocasião das visitas. Os pais também podem pedir um atendimento sempre que quiserem, na minha sala. Por outro lado, uma reunião de síntese acontece todas as semanas, para falar dos problemas que se colocam para a equipe, a fim de trabalharmos juntos novas idéias para o melhor tratamento dos bebês, e também para convidar interlocutores que nos permitam apontar outras questões. Algumas são mais teóricas, com Alain Vanier por exemplo; outras mais técnicas, com Catherine Dolto-Tolitch, que vêm regularmente trabalhar conosco. Coloquei para vocês então a idéia do enquadre, os pressupostos teóricos deste empreendimento que poderia se resumir esquematicamente da seguinte maneira (de início os dados lhes parecerão evidentes, mas não o são num serviço de medicina tradicional): 64 DA PULSÃO DE MORTE AO DESEJO DE VIDA 1) O bebê é um ser humano, capaz de sofrer física e psicologicamente. 2) Seu corpo deve ser reanimado ao mesmo tempo em que seu desejo de viver, para permitir-lhe sublimar suas pulsões de morte. 3) Permitir com uma palavra humanizadora, além do real traumático, uma possibilidade de abrir espaço ao trabalho do imaginário e a simbolização, indispensável para que a criança e seus pais possam se apropriar da sua história. Essa história existia antes do nascimento e existirá depois. Esse laço não pode ser destruído, o trabalho inteiro do serviço deverá velar por ele, assim como vela os monitores e as sorologias. Voltemos agora à história das duas garotinhas. Lila, a mãe de Anne, tinha dado entrada na maternidade devido a risco de parto prematuro, três dias antes do nascimento da criança. Os obstetras tinham tentado de tudo para retardar o início do trabalho de parto, mas as diferentes tentativas haviam fracassado, e Anne nasceu de parto natural, em seguida a um trabalho de parto sem problemas. Sua mãe a tinha visto no nascimento, mas a fragilidade da criança não permitia que ela a pegasse no colo; mal a tinha visto de relance naquele “papel prateado” (era assim que chamava a cobertura de sobrevivência prateada na qual a criança fora envelopada para ser instalada na incubadora). Muito rapidamente, com gestos precisos e corretos, sem ter tempo de falar, as enfermeiras levaram-na para longe. “Ela era tão pequena, tão frágil”, ela me confia na primeira entrevista, “que eu não sabia se tornaria a vê-la um dia”. Na mesma noite do parto, Lila, mesmo titubeante, veio ver sua filha. Perto da incubadora, muito impressionada pelo equipamento imponente, pelos numerosos fios elétricos, barulho do monitor e sopro do oxigênio, ela escutava as explicações da enfermeira, mas recusava-se a tocar seu bebê, e caiu num choro silencioso: “Ela é pequena demais, ela não vai sobreviver.” “Vai sim, a gente já viu outros”, respondeu-lhe a enfermeira. 65 AGORA EU ERA O REI Depois houve o encontro com o médico responsável. Lila só lhe perguntou uma coisa: “Minha filha vai sobreviver?” Responderam-lhe então: “Ela é muito pequena, parece no momento suportar bem seu estado e nossos tratamentos, mais ainda é muito cedo para qualquer pronunciamento, é preciso esperar um mês, as complicações sempre são possíveis, nós a manteremos informada, dia após dia, da sua evolução.” Havia deixado a sala do médico sem dizer nada, não veio ver sua filha no dia seguinte, e só se apresentou ao serviço no dia e na hora do encontro comigo um dia depois. Eu a recebo na minha sala. Ela começa a entrevista dizendo que não ousava pedir notícias de Anne. Ela estaria morta? Não seria melhor que ela morresse, de qualquer modo? E depois, mesmo que não morresse, haveriam seqüelas. Pensava o tempo todo na morte de sua filha. “Quanto mais cedo, melhor, não posso me apegar a ela”. Evidentemente, no serviço, quando ela falava assim, tinham feito com que se calasse: “Não é para se dizer isto, não é bom”. Não é bom para quem? Para o bebê, para a mamãe ou para a equipe?... Como eu a deixava falar da morte de Anne, ela continuava: “Será mais simples para todo mundo, e no entanto essa criança que eu carregava era minha única felicidade, minha única esperança, o que me fazia viver.” Lila, de origem argelina, estava na França há dois anos. Ela vivia na casa da irmã e do cunhado, tendo fugido de uma família que ela achava severa demais. Seus pais não sabiam nada da sua gravidez: “Eles me matariam se soubessem”. Sem documentos e em situação irregular, refugiada em Paris para escapar da autoridade paterna e encontrar trabalho, Lila tinha rapidamente encontrado um homem com o qual se envolveu de maneira passional. Bonito, rico, inteligente, seu príncipe encantado lhe conta que é casado e pai de família, no dia em que ela comunica-lhe sua gravidez. Seu conto de fadas se transforma em pesadelo quando ele 66 DA PULSÃO DE MORTE AO DESEJO DE VIDA pede que faça um aborto. “Não era possível”, explica Lila, “Na nossa família as crianças são sagradas, quando a gente está grávida, a gente as coloca no mundo e as educa. Foi assim que fizeram minha mãe e minha avó e eu não podia fazer diferente.” Face à recusa de Lila, o pai de Anne decide romper com ela, mas Lila não volta atrás na sua decisão. Ela fica na casa da irmã, onde o ambiente se degrada cada vez mais, teve que fazer umas horas de faxina para dar dinheiro ao cunhado, que ameaçava mandá-la de volta para a Argélia. “Foi duro e o trabalho era cansativo, mas eu queria lutar pelo meu bebê, meu futuro era ele, nós estávamos sós mas iríamos sair dessa juntos”, diz ela. Eu a faço notar que hoje sua filhinha lutava contra a morte, sem dúvida graças a essa força que ela tinha lhe transmitido no tempo em que estava na sua barriga. Lila parece sair do seu torpor e me diz: “Eu iria vê-la, mas os médicos parecem tão pessimistas que eu não ouso dizer-lhe para continuar lutando”. Eu questiono: “O que gostaria de dizer-lhe?” “Eu gostaria de dizer a ela para não se deixar levar, que ela é forte e sairá desta.” “O que a impede?” “Eu tenho a impressão de que este não é o meu lugar, e sim dos especialistas, que não sou eu quem sabe, e sim eles”. Digo que agora só ela sabe qual é o seu lugar e o que dizer a sua filha! Ela podia se autorizar qualquer que fosse o diagnóstico deles, a escutá-la com um outro ouvido que não o dos médicos, e falar com ela com uma outra voz. Nada a obrigava a pensar como eles. Saindo da sala ela entra diretamente no serviço. Quando entrei, duas horas mais tarde, eu a vi sentada ao lado do seu bebê. Eu simplesmente entreabri a porta da incubadora dizendo-lhe: “Assim ela pode lhe ouvir” e as deixei a sós, ocupadas com a sua conversa. Esta noite, até o fechamento do serviço, e todos os outros dias, Lila falava com Anne infatigavelmente. Algum tempo depois o bebê não passava de 780g; alimentada com uma fórmula J14, ela lentamente 67 AGORA EU ERA O REI começava a ganhar peso. Lila, por sua vez, pegava no pé da equipe. Ela vinha todos os dias, ora exigente, ora deprimida, se revoltando sem cessar contra o pessoal da equipe; uma noite dizia não suportálos, na seguinte dizia não suportar sua filha, ela a achava feia e doente demais. Criticava as auxiliares, não suportava as mudanças do plantão, tinha seus inimigos e amigos: os que ela julgava bons demais para Anne, os que julgava incompetentes. Às vezes rejeitava sua filha, às vezes a defendia contra o mundo, que lhe parecia hostil, do hospital, projetando para a equipe, que estava esgotada, sua agressividade. Freqüentemente pedia para me ver, e a plantonista me fazia retornar certos dias, mais pela equipe que por ela, quando não agüentavam mais seus gritos, lágrimas e agressividade. Claro que o que lhes era mais penoso, era quando essa agressividade se voltava para a sua filha: “Até parece que ela quer sua morte”. “Mas será que esta mãe a ama?” De tanto falar com as enfermeiras e com Lila, uma confiança mútua acabou se instalando, e Lila foi de qualquer forma acompanhada tanto quanto seu bebê. Era preciso admitir o medo e a ambivalência dessa mãe, compreender que apesar do seu sofrimento ela poderia, em vez de incomodá-los, tornar-se uma ajuda preciosa na evolução de Anne. “Essa mãe é ligada a nós como seu bebê às nossas perfusões”, me diz um dia uma atendente. Anne, por sua vez, ia cada vez melhor. Viva e tônica, ela era, desde o início, de uma surpreendente presença. Ela rapidamente mostrara que reconhecia as diferentes pessoas da equipe, que se interessava por tudo. “Com ela, a gente é realmente obrigado a falar”, diziam as enfermeiras. “Se não estabelecemos um contato antes de tocá-la, ela começa a gritar e torna o contato impossível”, se queixavam os médicos. Anne induzia o interesse e o respeito de todos. Quando, antes do seu 50º dia de vida, os médicos decidiram parar a ventilação, as dificuldades começaram. Ela não tinha tido doença pulmonar até essa data, e não teve depois, mas em contrapartida nesse momento apareceram numerosas bradicardias. As diminuições do ritmo cardíaco podiam levar a apnéias mais ou menos prolongadas. 68 DA PULSÃO DE MORTE AO DESEJO DE VIDA Logo que Anne caía num sono profundo demais, o monitor tocava sem parar até desenhar uma linha reta sobre a tela. Rapidamente ela compreendeu que arriscava sua vida dormindo; ligada aos nossos dedos horas inteiras, ela lutava contra o sono. O simples fato de estar perto dela e falar com ela, sem nenhuma manobra de reanimação, fazia aumentar sua freqüência cardíaca, restabelecia sua oxigenação. Anne mobilizou permanentemente alguém do lado dela “É curioso, parece que ela substitui o oxigênio pelas palavras que ela pede para dizermos”, me diz um dia uma interna. Durante esse período a mãe perde o chão de novo. Ela vinha todos os dias regularmente mas aterrorizava as enfermeiras pela violência em relação a sua filha. “Ela não aguenta mais, deixem-na morrer”. Mas no momento de partir ela sussurava na orelha de Anne: “Fique boa esta noite, eu estarei aqui amanhã”. Novas entrevistas com a mãe e a diminuição das bradicardias trouxeram uma calma progressiva na equipe e em Lila, que diz um dia à plantonista: “Minha filha e eu devemos-lhes a vida”. Anne tinha dois meses e meio quando seu pai se apresentou no serviço e pediu para vê-la. A mãe, que jamais parou de solicitálo, conseguiu que ele enfim se incomodasse. Ele pediu um encontro com o médico e depois comigo. Durante essa entrevista ele me diz que não tinha intenção de mudar nada em sua vida atual, mas que o encontro com Anne o havia transtornado, ela agora fazia parte do seu universo. Ele passou a vir regularmente. Anne deixa sua incubadora com três meses de vida; pesava dois quilos, e desde esse dia não deixa mais os braços da mãe. Seu pai vinha todas as semanas, e seu primeiro grande sorriso foi para ele. Lila estava encantada: “Se ela é tão sedutora quanto ele, saberá certamente mantê-lo”, dizia ela. Algumas semanas mais tarde, o pai pede para reconhecer Anne e se organiza com Lila para assegurar financeiramente sua educação, e para procurar uma casa para as duas. Quando Anne, com 140 dias, deixa o serviço, ela estava acompanhada por sua mãe e por seu pai. As visitas regulares, para acompanhar sua evolução, se 69 AGORA EU ERA O REI deram normalmente. Ela sempre parecia contente de voltar, e sorria para as enfermeiras que reconhecia todas as vezes. Hoje, um ano e meio depois, Anne é uma menininha alegre e maravilhosa, anda e começa a falar. Uma nota precisa no seu prontuário que ela chorou pela primeira vez na sua última visita de revisão. Não reconhecia mais ninguém, e recusava os braços estendidos para ela das enfermeiras de uniforme branco. Havia realmente nos deixado, esquecido, estava agora totalmente voltada para seus pais, e pudemos considerar nosso trabalho com ela terminado. * Ao mesmo tempo em que Anne, havia crescido no serviço uma outra garotinha que se chamava Anna, com 820 gramas, 27 semanas de gestação. Apresentava mais ou menos o mesmo desenvolvimento que Anne e não tinha maiores problemas. Seu peso mais baixo foi 760 gramas e, como Anne, foi entubada, ventilada e para sua alimentação foi utilizada sonda. Sua mãe, Lise, tinha chegado de urgência na maternidade devido a uma hemorragia importante. O parto havia se iniciado, não se cogitava tentar mais nada e Anna nascera de parto natural depois de um trabalho de 1 hora e meia, sem problemas. Essas duas meninas de nomes quase idênticos, história médica similar, tomaram rapidamente na unidade um lugar à parte. Primeiro porque eram as menores, o que mobilizava muito a equipe, mas também porque a evolução delas era quase paralela no plano somático, o que quase não acontece em neonatologia. Mas a comparação não pára aí. Com efeito, se suas histórias médicas e suas curvas de peso eram paralelas, totalmente diferentes eram suas histórias enquanto meninas e seus modos de ser no mundo. A mãe de Anna esteve na nossa secretaria no dia seguinte ao nascimento, pedindo para falar com o médico responsável pela hospitalização. Depois de ter falado com ele foi ver sua filha, mas 70 DA PULSÃO DE MORTE AO DESEJO DE VIDA tanto o médico quanto as enfermeiras havim ficado espantados com a pouca reação dessa mãe. Submissa, ela tocou o bebê tal como havia sido proposto. Bem educada, tinha agradecido ao médico por todo o trabalho que ele tinha tido, sem perguntar nada sobre sua filha. Ela parecia longe. Talvez estivesse muito angustiada ou deprimida. Foi o que pensou a equipe, que esperava com impaciência o encontro que ela teria comigo no dia seguinte, para que eu os ajudasse a melhor compreender esta mãe. O primeiro encontro foi estranho e me deixou muito preocupada com Anna. Depois de ter explicado a Lise o trabalho da unidade e de ter-lhe falado longamente sobre o seu bebê, ela continuava silenciosa, como se tudo isso não lhe dissesse respeito. Sentada e resignada, parecia calma e disse não ter nenhuma pergunta para fazer. Como pergunto se estava preocupada, ela responde: “Vamos ver, ela não é muito vigorosa, não se sabe o que vai acontecer.” Em seguida, deixa minha sala como na véspera, sem nada perguntar, e esquecendo a foto polaróide de Anna que eu acabara de lhe dar. Este esquecimento, que só vai fazer sentido mais tarde, já nos tinha dado o que pensar desde este momento. Um dos hábitos que instauramos no serviço é o de dar a cada mãe uma foto do seu bebê, para que ela possa levar consigo para o quarto da maternidade. Da mesma forma, pedimos a cada mãe para trazer para o bebê um objeto pessoal ou um brinquedo, ou então uma roupa que nós deixamos ao lado da incubadora ou do berço da criança. As mães se dizem muito apegadas a esse ritual de entrada, assim como ao outro ritual que consiste em propor-lhe, durante a primeira visita ao bebê, de explicar-lhe que ele não está abandonado, que ela o deixa para que ele seja tratado pelas enfermeiras, cujos nomes ela diz. Ela o pegará de volta quando ele estiver bom, para que viva em sua casa com seus pais, irmãos e irmãs. Se esse ritual é importante para a criança, ele o é também para a mãe, que nele reencontra um certo bom senso e simbolização. A mãe de Anna tinha se recusado a falar nestes termos à criança: “Não adianta falar nada, ela não nos escuta, é melhor não 71 AGORA EU ERA O REI dizer nada.” E em seguida saiu de novo, doce e sorridente, deixando as enfermeiras desamparadas, como eu mesma tinha ficado, constatando que havia esquecido a foto, depois de tê-la olhado com um olhar distraído, sobre o canto da mesa. Na semana seguinte, o estado de Anna era mais satisfatório, mas Lise preocupava muito a equipe. Por que essa mulher era tão distante? “É melhor não falar” dizia ainda a propósito de sua filha — “Ela não escuta”. Mas quem não escutava? Que dificuldades teria ela, ou que resistências não pudemos vencer, que nos mantinham nesse ponto, na surdez? Contrariando então a regra estabelecida eu mesma proponho um encontro com a mãe, explicando-lhe que gostaria de falar-lhe. Ela aceita sem problemas. Desta vez ainda, sou eu que falo da dificuldade que temos para compreendê-la. Anna segue uma evolução normal, e no momento não estamos preocupados com sua filha, mas ela, sim, nos preocupa, ela nos parece triste, distante, e tentar trabalhar com ela para favorecer o progresso de Anna nos parece muito complicado: É talvez por alguma falha nossa? Ela sorri: “Não, não, vocês não têm nada a ver com tudo isso, toda a equipe é muito gentil, eu percebo que vocês fazem tudo o que podem por esta criança”. Eu a questiono ainda: “É engraçado dizer ‘esta criança’, a senhora fala como se não fosse a sua?” — “Sim”, me responde ela, “é verdade que eu não consigo dar conta. Eu acabo de deixar a maternidade, tenho muito trabalho em casa e, por sinal, acho que não vou poder vir mais, a senhora acha isso ruim?” Como eu lhe digo que nós não estamos na posição de julgar nada do seu comportamento mas somente tentar ajudá-las, as duas, a melhor se compreenderem e se conhecerem, ela faz o seguinte relato: mãe de duas meninas, Lise é casada há quatro anos. Seu marido tem um salário suficiente, e ela não trabalha, cuida da casa, de Marie, de três anos, e Sophie, de nove meses. É muito trabalho, e agora uma criança, é realmente pedir-lhe demais, ela não queria isso. Se ao menos fosse um menino, mas uma terceira filha, não lhe parece possível, ela não podia nem pensar num 72 DA PULSÃO DE MORTE AO DESEJO DE VIDA nome. “Anna” foi idéia da enfermeira que durante o parto, dizia o tempo todo, “É bom uma grande família”, e ela não ousava dizer até que ponto não partilhava da mesma opinião. Havia tomado consciência da gravidez no mês anterior, numa visita a um clínico, pois ela se espantava por não haver recuperado sua forma depois do parto de Sophie, e foi pedir uma prescrição de sessões especializadas para eliminar a barriga redonda. A idéia de que poderia estar grávida não havia lhe ocorrido nem de longe, sempre tinha ouvido dizer que não se podia jamais engravidar enquanto se amamentava, e ainda amamentava Sophie. O clínico prescreveu uma ultrassonografia, e aí ela soube que esperava uma terceira filha. Algum tempo depois, decidiu com seu marido se dirigir a uma mulher que fazia abortos tardios. Foi o pânico da hemorragia desencadeada pelas manobras dessa “fazedora de anjos” que a conduziu ao hospital, onde ela não pensava parir uma criança viva. Quando a enfermeira lhe disse que ela era pequena mas bem viva, ela compreendeu que era uma fatalidade. “Agora ela está aqui, é assim, não há nada a fazer, vamos ver.” Durante todo o tempo do seu relato ela tinha ficado calma e consolada, como se nenhum afeto pudesse atingí-la. Depois, antes que eu pudesse falar-lhe, levanta-se toda sorridente e se vai. Quando tento retê-la, se justifica com o trabalho em casa, dizendo que virá outra vez. Anna, nas semanas que se seguiram, teve alguns problemas de alimentação. Nós a alimentamos por via venosa até o 45º dia de vida; apesar de tudo, a curva de peso é regular. Ela é muito calma, dorme bastante, parece também consolada e resignada. Lise vem vê-la mais ou menos duas vezes por semana, mas não fica mais que dez minutos. É sorridente mas continua sem perguntar nada e não fala com Anna. Durante esse tempo, a mãe de Anne, devido à sua cólera e suas angústias, mobiliza todo o serviço. Lise, por sua vez, se mostra apagada, não cria nenhum problema e não pergunta nada a ninguém. Ela não diz jamais, como Lila, que desejaria a morte de sua filha, não solicita um encontro comigo e a equipe não me fala mais dela. 73 AGORA EU ERA O REI Como ela não vem muito, as dificuldades de contato que elas tiveram com Lise no início da hospitalização de Anna são por isso melhor suportadas. Se Lise cruza comigo no serviço, escapa antes que eu possa lhe falar. Depois de ter me contado sua história, a culpa era sem dúvida muito forte e ela não queria mais me reencontrar. Anna, por sua vez, é um bebê tão calmo quanto Anne é exigente. Ela se deixa examinar sem problema, fixa o olhar, mas continua discreta e parece, como sua mãe, não exigir nossa presença. “É quase um descanso”, me confia um dia sua enfermeira. Em torno do 50º dia de vida, os médicos pensam que Anna, assim como Anne, é capaz de respirar por si só. Nessa época a mãe só vem uma vez por semana, é portanto sem a sua presença que interrompemos a máquina. Mas Anna é incapaz de respirar só e a cada vez é preciso reconectar. Quando, numa manhã, eu chego no serviço, me anunciam que enfim Anna desmamou! Encontraram uma solução: ela aguenta sem oxigênio com a condição de deixar o barulho da máquina em funcionamento ao lado dela. Anna está ligada a essa máquina, como Anne está ao mesmo tempo ligada à nossa presença, às nossas palavras e àquelas pronunciadas por sua mãe. Esta solução “milagre” me preocupa enormemente, e eu proponho ao pessoal da equipe uma reunião de síntese para falar de Anna. Peço-lhes um esforço suplementar para tentar ver essa mãe de outra forma, para falar-lhe, para humanizar Anna e dar-lhe vontade de viver de outra forma, que não pela interposição da máquina. Após essa reunião, a equipe, muito motivada, se mobiliza ainda um pouco mais em torno de Anna, mas fracassa uma vez mais com a mãe. Quanto mais Anna, bela e fácil, gratifica a equipe, tanto mais a mãe a desencoraja, dá-lhes o gosto do fracasso. Aos poucos compreendo que eles renunciaram a trabalhar com ela. Mais uma vez proponho um encontro com Lise, a qual não vem. Ela não vem tampouco aos três outros encontros que se sucederam. O médicochefe, também preocupado, pede para ver o pai. 74 DA PULSÃO DE MORTE AO DESEJO DE VIDA Ele só tinha vindo uma vez, quando Anna tinha duas semanas, mas não tinha entrado no serviço. Tinha ficado no corredor, atrás do vidro. “Não tinha tempo”, dizia, “suas duas filhas o esperavam”. Tinha vindo ao encontro com o chefe do serviço. Também tinha se mostrado resignado e cortês como sua mulher. Não tinha nada a dizer, ele agradecia a todo mundo pelo interesse por Anna e confirmava que tudo ia bem, que a família estava pronta para receber o bebê em casa. Ao encontro comigo não veio. Rapidamente Anna tinha se tornado o bebê xodó do serviço. Bem comportada e equilibrada, muito menos “mimada” que Anne, segundo a expressão das auxiliares, ela tornava a vida mais fácil. Quando ela passou para o berço com dois quilos e cem gramas, na ausência da mãe, as enfermeiras disputaram entre si a vez de colocá-la no colo. Adora que se brinque com ela, mas se a colocamos no berço ela adormece logo; é tranquila e cativante. Rapidamente o “bom temperamento”de Anna permite-lhe ir para a sala do café da equipe no bebê conforto. “Nós não hesitamos em levá-la, porque ela não diz nada se de repente temos trabalho e somos obrigados a colocá-la no berço de novo”, dizem as auxiliares. O médico-chefe, que desaprova esses sinais de “preferência”, pede que não se faça diferença entre Anna e os outros. Mas é em vão, “Anna está sempre só”, dizem as auxiliares, “ela precisa de companhia”. Quando eu tento explicar à equipe que essa companhia ela vai perder, que seria preciso que o laço com sua família não fosse anulado com nosso zelo, não me escutam; Anna é investida demais e a mãe esquecida demais para que nossas injunções ou alertas modifiquem a transferência da equipe com este bebê. Antes da saída de Anna, preocupados, fazemos um chamado à PMI2 a fim de que uma “puericultora” atenda a domicílio quando ela voltar para casa. Que mais fazer? PMI ou Proteção Materna Infantil são os centros de saúde materno-infantil na França, situados em cada bairro, que atuam em estrita conexão com as maternidades, creches e hospitais através das assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras infantis (N. da T.). 2 75 AGORA EU ERA O REI Ela está com 120 dias quando volta para casa. É sua mãe sozinha que vem buscá-la. Também nesse momento um ritual de saída é tradicionalmente feito, as enfermeiras vêm cada uma dar tchau ao bebê, outras fotos são tiradas, o médico recebe uma última vez os pais, outras referências simbólicas que permitem à criança e à sua família não apagar esta passagem da vida, mas, a partir daí, construir, integrando-a à sua história. Mas desta vez também a mãe recusa, ela não tem tempo, não é possível, assim como não tinha sido possível o ritual de entrada. Lise está apressada demais, suas duas filhas a esperam. Uma interna me faz notar que ela não dizia jamais minhas três filhas, mas sempre minhas duas filhas. Qual seria então o lugar desta terceira? O último relatório médico antes da saída estipula, como para Anne, que a criança está em perfeita saúde, sem nenhuma seqüela visível da reanimação: — Ultrassonografia e EEG normais. — Resultados sanguíneos e digestivos normais. — Resultado respiratório bom. — Teste auditivo e ocular perfeito. O exame clínico é satisfatório, Anna é uma menina tônica e vigorosa, que fixa o olhar e reconhece claramente as pessoas do seu ambiente. Como para Anne, a unidade de neonatologia pôde ficar satisfeita com o trabalho realizado. Dez dias mais tarde, o Samu3 do 93 retorna ao hospital para trazer o corpo de Anna, falecida por morte súbita durante a noite. A autópsia confirma que trata-se de uma morte inexplicada. Inexplicada para quem? Sem dúvida para a medicina, mas não para nós. A terapia intensiva tinha sido um sucesso, porém, mais uma vez, vemos bem que reanimar um corpo não é suficiente. Não havia suficiente desejo Serviço de saúde pública na França. O 93 refere-se ao departamento, ou seja à região em que ele atua, já que a assistência é regionalizada (N. da T.). 3 76 DA PULSÃO DE MORTE AO DESEJO DE VIDA de vida em Anna, nem possibilidade suficiente de dar um sentido que lhe teria permitido existir. Seis dias após a saída do serviço, a puericultora da PMI fez uma visita a domicílio. Ela notou que tudo ia bem, um detalhe entretanto chamou sua atenção: Anna dormia o tempo todo. Ela não acordava para suas mamadeiras e tinha perdido um pouco de peso. Ela não se deixava invadir pelas pulsões de morte? Sem seus substitutos maternos, aos quais tinha se apegado, ela não se defendia da vida? Em “Au jeu du désir”4, Françoise Dolto coloca que: “O bebê ou a criança pequena (quando seus pais não podem manter um clima de segurança) é habitado pelas pulsões libidinais de morte... Nos casos habituais em que as crianças são assistidas por seus pais, após algumas horas de problemas regressivos, a mutação se faz sem deixar marcas, ao contrário, uma criança entregue a si mesma na solidão, sem o socorro de uma presença humana, atenta, compassiva, não pode nem aceder a uma simbolização das suas pulsões nem abandonar os modos arcaicos de satisfação pertencentes à fase precedente do desenvolvimento”. Para o bebê, a fase precedente do desenvolvimento é a época na qual, feto no ventre materno, ele não tinha necessidade de respirar. A morte inexplicada do bebê é a parada respiratória. Anna teria querido reencontrar o conforto de sua máquina que respirava por ela? Ou o ventre de sua mãe? Ou ainda o barulho do serviço? Reanimar, e depois? Sem dúvida seria necessário trabalhar mantendo a ligação tão frágil entre mãe e criança, evitando assim a desumanização, e por isso jamais deixar os pais à distância. O serviço não pode se tornar uma Mãe substituta. Ele não pode “querer fazer viver” a qualquer preço. Eis aí a armadilha para a medicina e o mais tentador. Curar, estar ao lado da vida. Mas nós sabemos bem, quando trabalhamos num tal serviço, que a vida é Françoise Dolto, Au jeu du désir, 1981, coll Le Champ Freudien, le Seuil (N. da T.). 4 77 AGORA EU ERA O REI justamente ligada indissociavelmente a este “apetite da morte” de que fala Jacques Lacan no seu artigo de 1938 sobre a família. Reanimar as crianças é também aceitar levar em consideração este gozo, que para uma equipe médica funciona como um tampão. Como aceitar essa força violenta que luta contra o saber e a boa vontade dos médicos? Os votos de morte já são inaceitáveis nesse tipo de serviço e, todavia, sabemos bem que eles não têm nada a ver com essa aspiração. Os votos de morte se situam mais do lado vivo, jamais mataram pessoa alguma, felizmente, é outra coisa bem diferente deste apetite que puxa o sujeito a retornar à segurança do todo, a se abandonar à morte para reencontrar a imago materna. Este apetite, certamente, é insuportável para um reanimador. A questão se coloca então nestes termos: como uma estadia numa UTI neonatal pode impedir ou favorecer a sublimação do complexo de desmame? A obsessão do paraíso perdido antes do nascimento, nos diz Lacan, é a mais obscura aspiração à morte. A imago materna, salutar na origem, torna-se fator de morte, mas paralelamente a realização desta imago na consciência assegura à mãe uma “satisfação psíquica privilegiada”. Neste sentido, não haveriam casos onde um acompanhamento atento da criança e da mãe, durante a estadia em UTI neonatal, pudesse permitir que o complexo do desmame fosse ultrapassado pela mãe e pela criança? Como uma função paterna que o serviço asseguraria... Tantas questões para as quais não temos evidentemente resposta. Para concluir, eis a observação de um garoto, antigo prematuro hospitalizado até os três meses, que recebi em análise quando tinha 7 anos, que fala bem do seu modo do que permite ultrapassar o complexo de desmame: “No hospital, quando eu estava morto, era bom porque ninguém vinha me chatear, mas eu era pequeno demais, depois eu entendi que se ninguém vinha me chatear, eu me chateava demais todo o tempo”. 78