A EDUCAÇÃO SOB O OLHAR SEMIÓTICO MÁRCIA REGINA FORTI BARBIERI Núcleo de Estudos e Pesquisas: História e Filosofia da Educação – Doutoranda Orientador: Prof. Dr. Cesar Romero Amaral Vieira A genialidade do método lógico desenvolvido por um homem deve ser por ele amada e reverenciada como uma companheira que ele houvesse escolhido dentre todas as coisas do mundo. Não é necessário que ele despreze o que não seja ela; pelo contrário, ele pode prestar homenagem profunda a tudo o mais, pois que ao fazê-lo, honra maior lhe estará concedendo. Foi o que ele escolheu e ele sabe que fez a escolha correta. Tendo-a feito, ele trabalhará e lutará por ela, não se queixará dos golpes que deva suportar, esperando que possa devolvê-los em número e em força, e se empenhará por fazer-se o cavaleiro e campeão digno da chama de cujos esplendores retira sua inspiração e sua coragem. Charles Sanders Peirce Sobre o nosso desejo A educação é um fenômeno que se não entendido de forma contextualizada não poderá ser visto na complexidade que o abarca. Com esta pesquisa desejamos refletir sobre a educação, em seu contexto contemporâneo, pelo prisma da semiótica. Nosso esforço se põe acerca da tentativa de entender quais são as demandas que o saber científico contemporâneo impõe à educação e como a semiótica – ao abarcar não somente a linguagem verbal, mas também a linguagem não verbal – coopera para entendermos o acesso ao conhecimento, de forma a refletirmos em como conceber uma educação que contribua para a descoberta de saberes mais sensíveis, que se revelam para a compreensão de mundo de forma criadora. Um contexto para a educação contemporânea A ciência existe e não pode ser negada e nem tão pouco pode ser negado que ela gere conhecimento, defina também paradigmas e reporte-nos à razão. O ser humano se moveu em sua evolução, e ainda se move, em busca de mais conhecimento, mesmo que essa ocorrência se dê como um fim em si mesmo. Isso nos move a pensar a educação pensando ciência. Como seres humanos que somos podemos conhecer e fazer ciência, pois esta não cabe somente aos cientistas, mas àqueles que desejam conhecimento. Isso porque “[...] a ciência é feita por cientistas que também são seres humanos, com todos os defeitos dos seres humanos.” (MORIN, 2005, p.78), o que abarca os conflitos pessoais, as ambições, as obsessões, as paixões e a imaginação entre outros. Vivemos, em nosso cotidiano, num viver concreto, como um ser biológico, social, psíquico, cultural, que conhece como conhece por ser assim constituído. Agimos e experimentamos, no mundo em que fazemos nossas vidas. É preciso buscar incorporar o conhecimento à vida, para geração de elementos de reflexão ou sabedoria. Pois a cientificidade se constrói, se desconstrói e se reconstrói sem cessar, indicativo para Morin (2005), de um movimento ininterrupto de autoprodução, de ciência como um fenômeno autônomo na sociedade, cuja ecologia é a cultura, é a sociedade, é o mundo. Tal se opõe a uma situação – resultante da ignorância pela ausência da partilha do conhecimento – de impedimento de nos conhecermos a nós mesmos. Tendo em vista que o viver traz um aprendizado por meio da experiência e ao viver, agimos na criação do mundo, fortalece-se sobremaneira o impulso de ir em busca de uma possibilidade de leitura desses indicativos para a educação. Muito comumente olhamos para o mundo com um olhar naturalizado. Sobre isso Adélia Prado (1991, p.201) já poetizava: “De vez em quando Deus me tira a poesia./ Olho pedra, vejo pedra mesmo.” A naturalização do olhar em relação aos fenômenos nos limita a entrada ao mundo das interrogações, das explanações, da imaginação e das possibilidades, no qual podemos nos expor à interrogação, a levantar hipóteses, não só sobre a pedra de Adélia Prado, mas também sobre a inesquecível pedra do poeta Carlos Drumond de Andrade (1983, p.15), que revela: “[...] no meio do caminho tinha uma pedra./ Nunca me esquecerei desse acontecimento/ na vida de minhas retinas tão fatigadas.” Ser negligente na interrogação de um fenômeno é para Bachelard (2000) o que o torna insignificante e abre domínio ao espírito de simplificação. Perdemos a oportunidade de descobertas porque tendemos a conceber as coisas de modo natural. Habituamo-nos a não ver além da matéria, ou possibilidade de classificação. Tolhemo-nos a capacidade imaginativa, o que dificulta a elaboração e também, a inserção do fenômeno num contexto mais amplo, que geraria outras possibilidades de conhecimento e o tornaria mais interessante, aguçando nossa curiosidade e desejo de conhecer, pelo quanto seria provocativo a nós. O observador entra em cena a partir do momento que consideramos que a reflexão nasce do modo como observamos, sobre o que: Husserl, há quase cinqüenta anos, tinha diagnosticado a tarefa cega: a eliminação por princípio do sujeito observador, experimentador e concebedor da observação, da experimentação e da concepção eliminou ao ator real, o cientista, homem, intelectual, universitário, espírito incluído numa cultura, numa sociedade, numa história. Podemos dizer até que o retorno reflexivo do sujeito científico sobre si mesmo é científicamente impossível, porque o método científico se baseou na disjunção do sujeito e do objeto, e o sujeito foi remetido à filosofia e à moral (MORIN, 2005, p.20) Mostra-se inegável o papel do observador – como aquele que vive, envolve-se e conhece – no reconhecimento e interpretação dos fenômenos, que se mostram a nós por meio de múltiplas linguagens num mundo que a nós se revela por elas. Há no mundo uma variedade imensurável de coisas caracterizadas por variadas composições de formas, cores, odores, texturas, sabores, que se revela numa variação incontrolável de modos. A linguagem então, permeia e se faz constitutiva de nosso viver e comporta o objetivo e o subjetivo – tal qual a Ciência –, que traduz o racional e o afetivo o que a faz ultrapassar o uso da palavra. Isso requer de nós criticidade acerca de nossas interpretações e abertura em confrontálas com outras interpretações, uma vez que devemos estar abertos para não absolutizar uma verdade – ainda que tenhamos uma. A reflexão sobre a educação implica considerar que isso se refira a todos. Bachelard (2000) nos provoca ainda quando indica que um pensamento não realista, que caracteriza um momento de descoberta e o dinamismo do espírito científico, encontra lugar num intervalo que separa o desaparecimento de um objeto científico e a constituição de uma nova realidade, o que oportuniza contradições experimentais, as dúvidas sobre as evidências já aceitas. Se entendermos que a experiência produz também o momento de criatividade, vale considerar nesse contexto a proposição de Morin (2005) sobre o aspecto criativo, que ele coloca como ao mesmo tempo conhecido e totalmente recalcado, totalmente imerso, porque o ato da descoberta se caracteriza como um problema por escapar à análise lógica, o que acaba levando a eliminação do problema da imaginação científica por não saber-se como explicá-lo cientificamente. Não se pode programar a invenção – isso a descaracterizaria como tal –, tão pouco se pode tornar o inventor previsível uma vez que autônomo. Entendemos que o contexto no qual a educação se insere, que se mostra de uma realidade complexa, solicita uma reflexão por um ponto de vista que dê conta de pensá-la dentro da realidade científica contemporânea, que se revela pelos apontamentos teóricos. É o que buscamos. A opção para refletir sobre a educação: a semiótica As considerações teóricas que cooperam para formarmos o contexto no qual educamos e nos educamos, para nós se mostram muito caras à educação. Impulsionam-nos a buscar na semiótica – mais particularmente a doutrina semiótica de Charles Sanders Peirce – o apoio para sobre elas exercer reflexão. A Semiótica não despreza as dimensões do humano, antes o reconhece biológico, social, cultural, psíquico. Tem o mundo como um signo aberto a ser interpretado, o que se aplica também ao ser humano, e tal, bem nos parece atender ao desejo de conhecimento, que suscita interrogações e solicita o observador. A interpretação não se dá somente por aquilo que nos chega pela linguagem verbal, mas por tudo o mais, que se mostra por meio de linguagens não verbais – que devem ser valorizadas. Conhecemos pelo que ouvimos, vimos e sentimos, o verbal não se faz limite. A Semiótica de Peirce, sem que se despreze a importância do signo verbal, dá abertura de maiores possibilidades de leitura para “[...] tudo aquilo que, na natureza, fala ao homem e é sentido como linguagem. Haverá, assim, a linguagem das flores, dos ventos, dos ruídos, dos sinais de energia vital emitidos pelo corpo e, até mesmo, a linguagem do silêncio.” (SANTAELLA, 2007, p.13). Encontramos o objetivo e o subjetivo. A tradução do racional e do afetivo. A realidade, que a nós se impõe, contribui com o conhecimento, pois aquilo que tem realidade num mundo fora da consciência, num mundo real que independe de nós, por meio da percepção é apreendido pela consciência, o que possibilita a compreensão de um fenômeno. Temos um sujeito em constante tentativa de interpretação – modo reflexivo –, no meio de uma teia de relações sígnicas. O signo é um padrão do entrelaçamento das coisas e objetos – a experiência. O movimento gerado permite significar, de-significar, ou re-significar. Pensemos que a pedra, a partir do momento que se força aos poetas, pode ser resignificada, significada ou até de-significada. Alguma coisa pode ser pedra e pedra pode ser alguma coisa. Por isso encontramos em Deely (1990, p.22) a assertiva de que: “Na verdade, o que está no cerne da semiótica é a constatação de que a totalidade da experiência humana, sem exceção, é uma estrutura interpretativa mediada e sustentada por signos.” Experiências, pensamentos e linguagens não verbais passam pelo que Santaella (2007) indica ter sido denominada por Peirce de “semiosis” – envolve interações dinâmicas, que gera existência e alimenta a mente. A “semiosis” é indicativo de que nunca há um interpretante final: há o conhecimento maior de uma verdade que pode ser modificada ou alterada por um outro interpretante. Este indicativo nos oferece elementos para reflexão sobre a existência de verdades absolutas. Ao pensarmos em verdades absolutas, entram outros elementos na questão, que para Peirce (2008) implicam diretamente na concepção de uma verdade, e que devem ser trazidos a iluminar nossas reflexões: o acaso e o falibilismo. Almejar a verdade é característica daquele que se envolve com a ciência, pois seu desejo é conhecer. Para tal deverá ser um observador atento a tudo quanto a vida lhe apresentar. Essas proposições semióticas, entre várias outras, têm alimentado nossas reflexões acerca de uma educação que privilegia o conhecimento pela experiência criativa. O que acreditamos que poderemos refletir a partir da inferência que Peirce denomina abdução: “[...] altamente falível, mas o único tipo de operação mental responsável por todos as nossos insights e descobertas. Sem ele o homem perderia a capacidade de descobrir [...]” (SANTAELLA, 1998, p.66). Este tipo de inferência nasce na ludicidade e é destituída de certeza, o que solicita submissão à crítica. Percurso para reflexão Temos optado por caminhar da seguinte maneira para usufruir da riqueza que a Semiótica comporta e da possibilidade que ela abre para refletirmos sobre a educação: Num primeiro momento nos debruçaremos sobre como as sensações se envolvem na percepção do mundo, na leitura dos fenômenos e a contribuição da semiótica para uma possível re-configuração da concepção que temos da relação entre as sensações e a construção do conhecimento de mundo. Em seguida nossa reflexão se dirigirá ao observador num campo semiótico, que o atrai em meio às múltiplas linguagens pelas quais a ele se manifesta para entender os indicativos disso para a educação. Finalmente nos voltaremos para a problemática do elemento criador que o conhecimento de mundo comporta, em meio às manifestações dos fenômenos, e refletiremos em como isso pode afetar a educação e o quanto é desejável. Referências bibliográficas ANDRADE, C. D. No Meio do Caminho. In: Obra Poética – 19 livros de Poesia. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1983, p.15. BACHELARD, G. O novo espírito científico. 3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. DEELY, J. Semiótica Básica. São paulo: Editora Ática, 1990. MORIN, E. Ciência com consciência. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. PEIRCE, C. S. Ilustrações da lógica da ciência. SP: Idéias & Letras: 2008. PRADO, A. Paixão; in: Poesia Reunida. São Paulo: Arx, 1991, p.201. SANTAELLA, L. O que é semiótica. São paulo: Brasiliense, 2007. ________. A percepção: uma teoria semiótica. 2ª ed. São Paulo: Experimento, 1998.