Cidades inteligentes para quem? Estudo do urbanismo high-tech no Rio de Janeiro Smart cities for whom? High-Tech Urbanism in Rio de Janeiro Ciudades inteligentes para quien? El urbanismo high-tech en Rio de Janeiro FELIPE VILLELA DE MIRANDA1 RESUMO IBM, Cisco e prefeitura do Rio de Janeiro, endossados pelo Banco Mundial, concordam: equipar a cidade com tecnologias de informação e comunicação a torna melhor para viver e produzir. Este discurso, que privilegia soluções técnicas e científicas para os problemas urbanos, legitima investimentos para tornar uma cidade inteligente. No caso do Rio de Janeiro, por meio do levantamento de políticas da prefeitura identifica-se que o discurso sobre as cidades inteligentes é parte de estratégia para expansão do mercado de tecnologia da informação. Os gastos da prefeitura com a IBM, por exemplo, cresceram 1.400% desde que a campanha IBM Smarter Cities foi lançada. O urbanismo high-tech é fruto desta convergência de interesses entre governo e iniciativa privada. Mas, afinal, como atuam as empresas de tecnologia da informação com o objetivo de ampliar a reprodução do seu capital por meio da urbanização? Em que medida influenciam o planejamento e a gestão de suas cidades clientes? As cidades inteligentes são inteligentes para quem? cidades inteligentes, planejamento urbano, políticas públicas. ABSTRACT IBM, Cisco and the municipality of Rio de Janeiro, endorsed by the World Bank, agree: cities equipped with information and communication technologies are better to live in and to produce. This discourse that legitimates public investments to build a smart city emphasizes technical and scientific solutions for urban problems. In Rio de Janeiro, a collection of public policies with the “smart” tag reveals that this discourse is part of a strategy to expand information technology market. For example, municipality expenses with IBM services have grown 1,400% since the IBM Smarter Cities campaign came out. Hightech urbanism is, therefore, a symptom of the complicity between state and private initiative. In order to make this phenomenon clear this article intends to answer the following questions: how information technology companies work to expand the reproduction of its capital through urbanization? How much do they influence planning and management of their client cities? Smart cities are smart for whom? smart cities, urban planning, public policies. RESUMEN IBM, Cisco, Banco Mundial y el ayuntamiento de Rio de Janeiro están de acuerdo: equipar la ciudad con tecnologías de información y comunicación las hace mejor para vivir y producir. El discurso que privilegia soluciones técnicas y científicas para los problemas urbanos legitima inversiones para hacer una ciudad inteligente. En Rio de Janeiro, la investigación de una serie de políticas publicas que reproducen el discurso sobre las ciudades inteligentes expone una estrategia para expandir el mercado de tecnología de la información. Por ejemplo, las expensas publicas con servicios de IBM crecieran un 1.400% desde que se lanzó la campaña IBM Smarter Cities. El urbanismo high-tech surge de esta convergencia de intereses entre gobierno e iniciativa privada. ¿Pero, cómo las empresas de tecnología de la información actúan para ampliar la reproducción de su capital por intermedio de la urbanización? ¿Cuánto influencian el planeamiento y la gestión de sus ciudades clientes? ¿Las ciudades inteligentes son inteligentes para quien? ciudades inteligentes, planeamiento urbano, políticas publicas. 1 Arquiteto e urbanista, faz especialização em Política e Planejamento Urbano no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano IPPUR/UFRJ. [email protected] 1 INTRODUÇÃO Existe uma cidade dentro do Centro de Operações Rio (COR). IBM e outras empresas de tecnologia da informação (TI) criaram, a pedido da prefeitura do Rio de Janeiro, uma representação digital baseada em dados extraídos de sensores espalhados pela cidade material. Nas telas do COR se observa, com olhar prospectivo, um Rio transparente onde o espaço real serve apenas como georreferência. Paul Virílio espantou-se, na década de 1980, com o surgimento de tecnologias de comunicação que inauguravam um novo modo de observar o mundo, um novo modo de estar no mundo. A popularização da televisão, por exemplo, representaria a superação das janelas que se abrem para o espaço vizinho. Da mesma forma, pedágios eletrônicos, câmeras, radares e detectores em locais de passagem obrigatória em aeroportos substituiriam as portas das cidades. Em O Espaço Crítico (1993), o autor identifica que um novo “espaço-tempo tecnológico”, estruturado em torno das capacidades dos meios de comunicação de massa, entrava em choque com uma faculdade essencial da arquitetura e do urbanismo: organizar o espaço e o tempo das sociedades. Para este autor, a generalização de tecnologias de comunicação produziria uma nova ordem invisível e insensível, oposta à arquitetura, que opera uma organização sensível e visível do cotidiano por meio do espaço construído. Àquela época, Virílio já identificava que o urbanismo estava em processo de renovação para considerar o papel estruturador das redes imateriais de informações, por meio de “sistemas de transferência, de trânsito e de transmissão (...) cuja configuração imaterial renova a da organização cadastral” (Virílio, 1993, pág. 16). Em 2014, quando mais da metade da humanidade vive em centros urbanos, as tecnologias de informação e comunicação (TICs) são consideradas indispensáveis. Estas tecnologias tendem à ubiquidade no ambiente humano com o surgimento de objetos capazes de operar coordenados com outros produtos, transferir dados de uso para servidores em nuvem e até funcionar de maneira autônoma (Porter & Heppelmann, 2014). Estas novas capacidades abrem a possibilidade de organização de grandes sistemas de objetos. O que se conhece atualmente como casa inteligente, edifício 2 inteligente e até cidade inteligente são, justamente, sistemas de produtos operando de maneira coordenada. A diversidade de aplicações das tecnologias inteligentes, que podem ser pulverizadas por toda a cidade, representa um grande negócio. Por isso, espera-se uma transformação na indústria com a introdução de sensores, processadores, software, portas de comunicação e antenas em diferentes mercadorias2. Conforme Porter & Heppelmann (2014), os produtos inteligentes promovem uma reorganização da cadeia de valor, tanto porque a TIC agregará mais valor do que os componentes físicos tradicionais, quanto porque a produção exigirá um maior investimento inicial para o desenvolvimento de software, de projetos mais complexos de produtos e para a instalação de toda a infraestrutura de comunicação e informação necessária para a operação dos servidores. Esta perspectiva fortalece grandes empresas como IBM, Cisco e Microsoft, capazes de fornecer a tecnologia necessária para valorizar diversos produtos. A profusão de dados provenientes destes novos produtos representa uma oportunidade também para as empresas que os utilizam como matéria prima. Quando uma prefeitura decide equipar a cidade com sensores e centralizar informações dispersas em diferentes órgãos públicos, como acontece no Rio de Janeiro, o volume de dados cresce ainda mais. Se estes dados concentrados pela prefeitura também forem disponibilizados gratuitamente, as grandes empresas de TI, que acumulam suficiente investimento em tecnologia para processar estes dados e torná-los úteis, serão ainda mais beneficiadas. O Centro de Operações Rio (COR) centraliza informações dispersas em diferentes órgãos públicos e sensores de monitoramento (como câmeras de trânsito e pluviômetros espalhados pela cidade) para possibilitar a visualização integrada de dados em tempo real e, assim, agilizar a resposta da prefeitura a problemas como enchentes, deslizamentos, bloqueios no tráfego e outras situações de crise. Conforme discurso da própria empresa que projetou o sistema (IBM, 2012a). 2 Por exemplo, um pijama de bebê equipado com sensores que monitoram seus sinais vitais durante a noite. As informações são transmitidas do Mimo Smart Baby Monitor para o smartphone dos pais. 3 Mas as ferramentas do COR não monitoram apenas o espaço construído: com a suposta intenção de aperfeiçoar os serviços públicos, a prefeitura monitora também os cidadãos. A cidade digital que existe dentro do COR é formada pelo cruzamento de informações como as citadas acima com dados de localização de smartphones, por exemplo para avaliar o trânsito, monitoramento de redes sociais, supostamente para captar o “sentimento do cidadão”, e captura de tweets georreferenciados, para identificar o que as pessoas estão falando em determinada região da cidade. Assim, os usuários do Rio de Janeiro se tornam “cidadãos sensores”, enredados em um discurso que relaciona smart cities, smartphones e smart citizens. Equipamentos como o COR, para monitoramento e controle da cidade, representam a consolidação de um novo urbanismo que hoje recebe o aposto high-tech e que, conforme Virílio (1993), começou a surgir na década de 1980. Esta é uma ideia de gestão e planejamento da cidade que, por um lado, pretende melhorar a gestão de serviços públicos e oferecer novas ferramentas para o seu planejamento, e por outro, promove a expansão do mercado de tecnologia da informação. De olho no mercado carioca, IBM e Cisco estão cada vez mais próximas da prefeitura: a primeira elaborou o sistema do Centro de Operações Rio (COR) e promove globalmente a campanha Smarter Cities (IBM, 2012c); a segunda forneceu a infraestrutura de rede para as Naves e Praças do Conhecimento, e tem linha de produtos para cidades inteligentes chamada Smart+Connected Communities, antes chamada Connected Urban Development Program (Ponting, 2013). O esforço carioca em atrair o capital global de TI foi reconhecido, em 2013, por importantes agentes deste mercado. A cidade recebeu o prêmio Best Smart City, durante o evento Smart City World Congress, realizado em Barcelona após a conferência Citisense, promovida pelo Banco Mundial (2013). Não por acaso, alguns dos principais patrocinadores do prêmio, como IBM, Cisco e Microsoft3, têm contratos com governos no Brasil. Também não por acaso, a construção do COR foi exigência do Comitê Olímpico Internacional para a cidade sediar os jogos de 2016, o que faz com que esta entidade se assemelhe ao Banco Mundial como promotora do mercado de tecnologias inteligentes. 3 Presta serviço ao governo do Estado de São Paulo para implementar o Detecta, um sistema de monitoramento de ocorrências policiais. Mundialmente, a empresa oferece aos governos o pacote de produtos CityNext. 4 À medida que tecnologias de informação e comunicação se tornam parte integral da cidade, o Rio de Janeiro tenta se transformar em uma cidade inteligente. Nada surpreendente para a primeira cidade do hemisfério sul a elaborar um Plano Estratégico (PE), em 1995, conforme afirmou Carlos Vainer (2011). A intenção de reproduzir localmente estratégias consideradas bem sucedidas em outras partes do mundo pode ser considerada característica histórica da prefeitura carioca, já que o atual prefeito Eduardo Paes, no governo desde 2009 e responsável pela adesão do Rio de Janeiro ao discurso sobre as cidades inteligentes, foi subprefeito de Cesar Maia, que governou a cidade de 1993 a 1996 (quando elaborou o primeiro PE) e de 2001 a 2008. O empresariamento (ou empreendedorismo) urbano praticado pelos governantes do Rio de Janeiro, assim como a articulação direta do capital internacional com o governo local, sinaliza que o discurso sobre as cidades inteligentes pode representar a consolidação de ideais neoliberais. Para Paul Virílio (1993) era imperativo questionar a “face oculta das novas tecnologias”, revelando conflitos e consequências da generalização destas tecnologias. Neste artigo pretende-se, de maneira semelhante, estudar o caso do Rio de Janeiro para revelar quais são e como agem as principais empresas fornecedoras de tecnologias inteligentes, que influenciam cada vez mais a gestão das suas cidades clientes, e relacionar o discurso global com ações governamentais locais criadas para beneficiá-las, destacando as negociações necessárias para engendrar tais parcerias. O DISCURSO GLOBAL SOBRE CIDADES INTELIGENTES Existe um aparente consenso no discurso das empresas e instituições que incentivam o uso de TICs para aprimorar a gestão das cidades e melhorar a vida dos cidadãos. Banco Mundial, Cisco, IBM e políticos empreendedores em diferentes lugares do mundo concordam tão plenamente que a impressão é que cidades inteligentes são o que “todos nós queremos e simplesmente ainda não sabíamos”. Foi dessa forma que Carlos Vainer (2011, p. 118) descreveu o primeiro Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro. Os diagnósticos e diretrizes foram construídos desde o princípio como 5 consensos. Coube ao Conselho da Cidade, um grupo de representantes da sociedade, apenas a ratificação do plano, conforme afirma Vainer. Aquele plano foi elaborado por consultores catalães da Tubsa (Tecnologies Urbanas Barcelona S.A.), capitaneados por Jordi Borja e conforme teoria urbana proposta por ele e Manuel Castells, que assumia o planejamento essencialmente econômico das cidades como uma tendência inescapável em um contexto mundial de acirrada competição por capital. Atualmente, na “era da informação”, Castells e Barcelona continuam sendo referências, embora a grande diferença seja que as empresas que prestam consultorias para os municípios não precisam mais ser especializadas apenas em planejamento urbano. Mayors of the world, may we kindly have 540 words with you? É dessa forma que a IBM (2012b) aborda líderes locais ao redor do mundo para oferecer suas ferramentas digitais para cidades. A empresa oferece consultoria para sugerir as ações mais “valiosas” para tornar uma cidade inteligente. O resultado é um plano de investimentos que, naturalmente, inclui softwares da empresa. O Banco Mundial, que também oferece consultorias para municípios, lançou em 2013 a cartilha Citisense durante um ciclo de debates em Barcelona, com a participação de representantes de prefeituras de diversos países. O documento parte de uma constatação de crise: as cidades ganham complexidade na medida em que concentram a maior parte da população da Terra, o que aumenta os “desafios urbanos”. As cidades teriam, então, que resolver o “enigma” do crescimento da demanda por serviços públicos frente à escassez de recursos. A solução seria aumentar a eficiência desses serviços através da incorporação de TICs na infraestrutura urbana. E como investir em tecnologias inéditas para muitos governantes? O próprio Banco Mundial (2013) lista quatro etapas para uma cidade tornar-se inteligente: 1. Elaboração inicial: Primeiro o Banco Mundial promove workshops com os gestores da cidade para identificar tecnologias úteis, apresentando soluções já adotadas em outros lugares, privilegiando softwares com código aberto ou 6 baseados em open data4 e adaptando as soluções ao orçamento da cidade. Ao fim desta etapa, tem-se uma lista de “tecnologias-chave” para melhorar serviços públicos. 2. Plano de ação (Roadmap): Cria-se um plano de investimentos em longo prazo em infraestrutura para comunicação e plataformas para a abertura dos dados da cidade, que viabilizarão a implantação das “tecnologias-chave” e também o surgimento de outras inovações inesperadas. 3. Colaboração: Uma vez que a infraestrutura esteja instalada e os dados abertos, todas as ferramentas para a criação de soluções digitais para os “desafios” da cidade estarão disponíveis. A partir de então caberá ao governo não só contratar empresas privadas para prover esses serviços digitais, mas também estimular a “colaboração” da sociedade. Para tanto, o Banco Mundial indica ações como as “apps challenges”, que consistem em chamadas públicas para a criação de aplicativos (apps), com premiação em dinheiro oferecida pelo governo. Em Nova York, a BigApps Competition acontece anualmente desde 2010. Em Barcelona, o Open Cities Apps Challenge teve uma edição em 2012. No Rio de Janeiro, o evento chamou-se RioApps, teve a primeira edição em 2013 e distribuiu R$ 90 mil em prêmios5. 4. Urban city lab: Por fim, indica-se a criação de uma incubadora pública de startups (novas empresas de tecnologia). Todas estas iniciativas são apresentas como etapas para a criação de uma “comunidade inovadora”, ou seja, aquela capaz de desenvolver novos produtos, processos e serviços. Estas inovações surgiriam a partir da interação entre diferentes agentes do desenvolvimento tecnológico, como centros de pesquisa, empresas e governo. Isto é o que Manuel Castells (1999) chama de “meio de inovação”, com a característica de que esses ambientes costumam surgir em lugares específicos, onde haja proximidade espacial entre os colaboradores. Este autor e o Banco Mundial concordam, portanto, que “os meios de inovação são as fontes fundamentais de 4 Dados do governo disponibilizados de maneira gratuita. 5 Conforme divulgado pela prefeitura no site do evento: http://rioapps.com.br/#premios. 7 inovação e geração de valor agregado no processo de produção industrial da era da informação” (Castells, 1999, pág. 478). Veremos adiante como a prefeitura do Rio de Janeiro adere a este discurso. AS POLÍTICAS DA PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO “Desde moleque economizava meu dinheiro para comprar o computador de última geração. Não tem mulher que é tarada por sapato? A minha tara é a tecnologia”, disse Eduardo Paes em entrevista6 recente. Não por acaso, no seu primeiro mandato como prefeito (2009-2012) criou o programa Rio – Capital da Ciência, Tecnologia e Inovação, vinculado à também nova Secretaria Especial de Ciência e Tecnologia (SECT). As Naves do Conhecimento são realizações desta pasta e já consumiram mais de R$30 milhões do orçamento público desde 20127. As Naves são espaços para acesso gratuito à internet e “experimentação com ferramentas digitais”. Segundo a prefeitura, servem como complemento à educação formal dos estudantes da rede pública, mas também como mecanismo para inclusão digital e capacitação de mão de obra8. A intenção seria transformar os bairros beneficiados em comunidades inteligentes. Soa familiar? A Cisco foi contratada pela prefeitura para instalar os sistemas de rede destes centros. Atualmente a empresa usa as Naves em seu material publicitário para divulgar pelo mundo o seu programa Smart+Connected Communities. A IBM também lucra alto com a prefeitura do Rio de Janeiro. Em consulta ao orçamento municipal através do Portal Rio Transparente, esta pesquisa registrou que a multinacional recebeu mais de R$ 14 milhões, entre 2010 e 2012, para desenvolver ferramentas digitais para o Centro de Operações Rio (COR). Este valor representa um aumento de aproximadamente 1.400% nos gastos públicos com serviços da IBM desde 6 “O prefeito digital”, Revista Info Exame - Inovação, nº 337, São Paulo, jan/2014. 7 A pesquisa identificou o investimento nas Naves do Conhecimento a partir dos pagamentos feitos à Idaco, ONG que venceu o edital lançado em setembro de 2011 para a gestão do projeto. Orçamento municipal consultado no Portal Rio Transparente. 8 A Cisco oferece treinamento gratuito, nas Naves, sobre conceitos básicos de redes para capacitar interessados em trabalhar no mercado de TI. 8 que Paes foi eleito, se comparados com os contratos dessa empresa com a prefeitura em gestões passadas9, e antes da campanha IBM Smarter Cities ser lançada, em 2008. Recentemente, o prefeito inaugurou um Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) de produtos e serviços de alta tecnologia. A EMC Corporation e a prefeitura firmaram “Acordo de Cooperação Técnica e Científica para a viabilização de uma ‘Plataforma Inteligente para a Integração de Bases de Dados’ de serviço em nuvem para cidades inteligentes”, conforme divulgado no blog da SECT10. Para viabilizar a construção do Centro de P&D, que custou R$ 4 milhões à multinacional, foi oferecida isenção fiscal ao Processo Produtivo Básico (PPB) da empresa, via Lei de Informática. Outra política que beneficia empresas de TI é a disponibilização gratuita de dados pela prefeitura. Com ferramentas para análise de bases de dados heterogêneas (o big data analytics), os dados reunidos pelo governo passam a ser lucrativos. Um empreendedor pode trabalhar com estas informações para dar-lhes utilidade e, depois, oferecer serviços. Por exemplo, por meio de um aplicativo. Por isso, empresas de tecnologia aderem ao movimento mundial que pressiona governos a disponibilizarem os dados que reúnem de maneira gratuita. Esta estratégia para reduzir o custo de produção configura o que Harvey (2004, p. 124) chama de acumulação via espoliação. “O que a acumulação por espoliação faz é liberar um conjunto de ativos (...) a custo muito baixo (em alguns casos, zero). O capital sobreacumulado pode apossar-se desses ativos e dar-lhes (...) um uso lucrativo.” Para atender a essa demanda a prefeitura criou o portal Riodatamine. Por meio dele é possível acessar gratuitamente dados brutos da cidade, com a condição de que quem acessa disponha de suficiente investimento em tecnologia para interpretá-los de maneira útil. Sinteticamente, o Rio de Janeiro promove o mercado de TI por meio das seguintes estratégias: a) grandes contratos com empresas globais de TI; b) estímulo à inovação para 9 Registramos apenas outros dois contratos com a IBM, um em 2002 e outro em 2008, referentes ao fornecimento e manutenção de hardware. Esses contratos somam pouco mais de R$ 1 milhão. 10 “Maior laboratório de Big Data da América Latina será inaugurado no Parque Tecnológico da UFRJ”, publicado em maio de 2014. 9 o surgimento de novos produtos e serviços; c) isenções fiscais; d) disponibilização gratuita de dados da cidade; e) qualificação de mão de obra; f) marketing como cidade inteligente. Com estes estímulos, a prefeitura pretende criar um “meio de inovação” carioca, aquele considerado essencial por Manuel Castells (1999) para o crescimento econômico na “era da informação”. Diante da perpespectiva fortemente empreendedora das políticas cariocas que se apoiam no discurso sobre cidades inteligentes, resta a pergunta: as cidades inteligentes são inteligentes para quem? CRÍTICA À CIDADE INTELIGENTE As empresas de tecnologia da informação têm a oportunidade de ampliar seu mercado. Agora, podem investir na produção de tecnologias inteligentes e prestar serviços para clientes tão diversos quanto uma confecção de roupas ou uma prefeitura. No entanto, para que estes novos produtos equipados com sensores circulem pela cidade e funcionem coordenados em rede é preciso que o espaço urbano esteja equipado com tecnologias de informação e comunicação (TICs). Os governos municipais precisam assumir, então, o papel de agenciadores deste mercado na medida em que possuem a atribuição de gerir o espaço urbano. Este é o contexto em que surge o urbanismo high-tech nas cidades inteligentes. No que se refere às intervenções materiais na cidade, pode-se entender urbanismo como o conjunto de técnicas para a manipulação do espaço urbano conforme a intenção das forças econômicas dominantes (Alvarez, 2013). No caso do Rio de Janeiro, isto aparece com a instalação de câmeras de vigilância, sensores de tráfego, pluviômetros, entre outros dispositivos conectados ao COR. Mas urbanismo também pode significar um saber sobre a cidade, o campo de pesquisa de uma disciplina com olhar científico e transformador (Ribeiro, 1994). Neste sentido, urbanismo pode ser associado a planejamento urbano. Para Flávio Villaça (2010), a ideologia dominante que legitima esta disciplina em nossa sociedade confere grande respeito à ciência e à técnica. Este autor sugere que o planejamento 10 urbano aceito como legítimo é aquele baseado na análise científica da situação atual (dignóstico) e futura (prognóstico) da cidade, para subsidiar a elaboração de técnicas de organização do espaço formatadas em um plano. Este planejamento técnico e científico seria a “chave” para a solução dos “problemas urbanos”. De maneira semelhante, o Banco Mundial (2013) sugere “tecnologias-chave” para tornar uma cidade inteligente recorrendo à ideia de que apenas ferramentas tecnológicas seriam suficientes para contornar os “desafios urbanos”. No caso carioca, as políticas de fomento ao mercado de TI, como vimos, vão desde a concessão de isenções fiscais até a intervenção material na cidade. O projeto de transformação do Rio de Janeiro em cidade inteligente é, portanto, fruto de uma convergência de interesses entre Estado e empresas privadas. O caso carioca mostra que o entendimento de governo urbano deve ser expandido para “governança urbana”, que inclui o conjunto de agentes sociais (públicos e privados) que de fato organizam o espaço urbano (Harvey, 2005). Mas esta convergência de interesses não é apenas econômica. A principal ferramenta do COR, por exemplo, é um mapa georreferenciado com diversas camadas. Nele é possível selecionar uma região da cidade e consultar informações tão diversas quanto perfil da população residente (número de idosos e crianças), incidência de obras, eventos públicos cadastrados (por exemplo, um bloco de carnaval), além de acessar imagens de câmeras de vigilância. Segundo Alexandre Cardeman, assessor especial do COR, por meio das câmeras a prefeitura pode calcular o número de pessoas por metro quadrado e ainda identificar estas pessoas. Além disso, também é possível filtrar todos os tweets originados daquele local para saber do que as pessoas ali reunidas estão falando. “Fundamental para fazer uma operação, dentro de um evento [protesto?], por exemplo”, diz Cardeman11. O COR também dispõe, desde 2013, de ferramenta para o monitoramento de redes sociais desenvolvida pela SAP – outra multinacional de TI. A intenção, segundo os fornecedores do serviço, é que a prefeitura acompanhe o “sentimento do cidadão”. 11 Palestra Alexandre Cardeman, publicada em 23/04/2013 por Google Atmosphere Maps. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=Du3GhKEbNL8 11 Como as análises feitas com estas ferramentas não são divulgadas, pergunta-se: quais seriam as implicações deste monitoramento na privacidade dos cidadãos? Ao contrário do que anunciam multinacionais de TI, a cidade inteligente não traz apenas benefícios, na medida em que reproduz formas de gestão e planejamento que privilegiam interesses privados sobre públicos. Além disso, o discurso sobre cidades inteligentes prefere a perspectiva técnica do planejamento urbano em detrimento da política. No entanto, para a contrução de cidades mais justas e igualitárias é preciso que o planejamento ultrapasse os limites da concepção tecnocrática e incorpore visão política da questão urbana12 (Ribeiro & Cardoso, 1990). A tecnologia é apenas instrumento, portanto, sem capacidade para abordar graves problemas urbanos como exclusão social e desigualdade espacial. Ao contrário, tudo indica que a instalação de TICs no espaço urbano acentua a concentração de capital e poder político dos grupos dominantes. 12 O texto em referência indica que o embate entre a perspectiva ténica e a política no campo do planejamento urbano era uma discussão na década de 1970. 12 REFERÊNCIAS Alvarez, I. (2013): A segregação como conteúdo da produção do espaço urbano. In A cidade contemporânea. São Paulo: Contexto. Banco Mundial (2013). Citisense: innovation from within. Barcelona. 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