Cidades inteligentes para quem? Estudo do urbanismo high-tech no Rio
de Janeiro
Smart cities for whom? High-Tech Urbanism in Rio de Janeiro
Ciudades inteligentes para quien? El urbanismo high-tech en Rio de Janeiro
FELIPE VILLELA DE MIRANDA1
RESUMO
IBM, Cisco e prefeitura do Rio de Janeiro, endossados pelo Banco Mundial, concordam: equipar a cidade
com tecnologias de informação e comunicação a torna melhor para viver e produzir. Este discurso, que
privilegia soluções técnicas e científicas para os problemas urbanos, legitima investimentos para tornar
uma cidade inteligente. No caso do Rio de Janeiro, por meio do levantamento de políticas da prefeitura
identifica-se que o discurso sobre as cidades inteligentes é parte de estratégia para expansão do
mercado de tecnologia da informação. Os gastos da prefeitura com a IBM, por exemplo, cresceram
1.400% desde que a campanha IBM Smarter Cities foi lançada. O urbanismo high-tech é fruto desta
convergência de interesses entre governo e iniciativa privada. Mas, afinal, como atuam as empresas de
tecnologia da informação com o objetivo de ampliar a reprodução do seu capital por meio da
urbanização? Em que medida influenciam o planejamento e a gestão de suas cidades clientes? As
cidades inteligentes são inteligentes para quem?
cidades inteligentes, planejamento urbano, políticas públicas.
ABSTRACT
IBM, Cisco and the municipality of Rio de Janeiro, endorsed by the World Bank, agree: cities equipped
with information and communication technologies are better to live in and to produce. This discourse
that legitimates public investments to build a smart city emphasizes technical and scientific solutions for
urban problems. In Rio de Janeiro, a collection of public policies with the “smart” tag reveals that this
discourse is part of a strategy to expand information technology market. For example, municipality
expenses with IBM services have grown 1,400% since the IBM Smarter Cities campaign came out. Hightech urbanism is, therefore, a symptom of the complicity between state and private initiative. In order
to make this phenomenon clear this article intends to answer the following questions: how information
technology companies work to expand the reproduction of its capital through urbanization? How much
do they influence planning and management of their client cities? Smart cities are smart for whom?
smart cities, urban planning, public policies.
RESUMEN
IBM, Cisco, Banco Mundial y el ayuntamiento de Rio de Janeiro están de acuerdo: equipar la ciudad con
tecnologías de información y comunicación las hace mejor para vivir y producir. El discurso que privilegia
soluciones técnicas y científicas para los problemas urbanos legitima inversiones para hacer una ciudad
inteligente. En Rio de Janeiro, la investigación de una serie de políticas publicas que reproducen el
discurso sobre las ciudades inteligentes expone una estrategia para expandir el mercado de tecnología
de la información. Por ejemplo, las expensas publicas con servicios de IBM crecieran un 1.400% desde
que se lanzó la campaña IBM Smarter Cities. El urbanismo high-tech surge de esta convergencia de
intereses entre gobierno e iniciativa privada. ¿Pero, cómo las empresas de tecnología de la información
actúan para ampliar la reproducción de su capital por intermedio de la urbanización? ¿Cuánto
influencian el planeamiento y la gestión de sus ciudades clientes? ¿Las ciudades inteligentes son
inteligentes para quien?
ciudades inteligentes, planeamiento urbano, políticas publicas.
1
Arquiteto e urbanista, faz especialização em Política e Planejamento Urbano no Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano IPPUR/UFRJ. [email protected]
1
INTRODUÇÃO
Existe uma cidade dentro do Centro de Operações Rio (COR). IBM e outras empresas
de tecnologia da informação (TI) criaram, a pedido da prefeitura do Rio de Janeiro,
uma representação digital baseada em dados extraídos de sensores espalhados pela
cidade material. Nas telas do COR se observa, com olhar prospectivo, um Rio
transparente onde o espaço real serve apenas como georreferência.
Paul Virílio espantou-se, na década de 1980, com o surgimento de tecnologias de
comunicação que inauguravam um novo modo de observar o mundo, um novo modo de
estar no mundo. A popularização da televisão, por exemplo, representaria a superação
das janelas que se abrem para o espaço vizinho. Da mesma forma, pedágios eletrônicos,
câmeras, radares e detectores em locais de passagem obrigatória em aeroportos
substituiriam as portas das cidades. Em O Espaço Crítico (1993), o autor identifica que
um novo “espaço-tempo tecnológico”, estruturado em torno das capacidades dos meios
de comunicação de massa, entrava em choque com uma faculdade essencial da
arquitetura e do urbanismo: organizar o espaço e o tempo das sociedades. Para este
autor, a generalização de tecnologias de comunicação produziria uma nova ordem
invisível e insensível, oposta à arquitetura, que opera uma organização sensível e visível
do cotidiano por meio do espaço construído.
Àquela época, Virílio já identificava que o urbanismo estava em processo de renovação
para considerar o papel estruturador das redes imateriais de informações, por meio de
“sistemas de transferência, de trânsito e de transmissão (...) cuja configuração
imaterial renova a da organização cadastral” (Virílio, 1993, pág. 16).
Em 2014, quando mais da metade da humanidade vive em centros urbanos, as
tecnologias de informação e comunicação (TICs) são consideradas indispensáveis. Estas
tecnologias tendem à ubiquidade no ambiente humano com o surgimento de objetos
capazes de operar coordenados com outros produtos, transferir dados de uso para
servidores em nuvem e até funcionar de maneira autônoma (Porter & Heppelmann,
2014). Estas novas capacidades abrem a possibilidade de organização de grandes
sistemas de objetos. O que se conhece atualmente como casa inteligente, edifício
2
inteligente e até cidade inteligente são, justamente, sistemas de produtos operando
de maneira coordenada.
A diversidade de aplicações das tecnologias inteligentes, que podem ser pulverizadas
por toda a cidade, representa um grande negócio. Por isso, espera-se uma
transformação na indústria com a introdução de sensores, processadores, software,
portas de comunicação e antenas em diferentes mercadorias2. Conforme Porter &
Heppelmann (2014), os produtos inteligentes promovem uma reorganização da cadeia
de valor, tanto porque a TIC agregará mais valor do que os componentes físicos
tradicionais, quanto porque a produção exigirá um maior investimento inicial para o
desenvolvimento de software, de projetos mais complexos de produtos e para a
instalação de toda a infraestrutura de comunicação e informação necessária para a
operação dos servidores. Esta perspectiva fortalece grandes empresas como IBM, Cisco e
Microsoft, capazes de fornecer a tecnologia necessária para valorizar diversos produtos.
A profusão de dados provenientes destes novos produtos representa uma
oportunidade também para as empresas que os utilizam como matéria prima. Quando
uma prefeitura decide equipar a cidade com sensores e centralizar informações
dispersas em diferentes órgãos públicos, como acontece no Rio de Janeiro, o volume
de dados cresce ainda mais. Se estes dados concentrados pela prefeitura também
forem disponibilizados gratuitamente, as grandes empresas de TI, que acumulam
suficiente investimento em tecnologia para processar estes dados e torná-los úteis,
serão ainda mais beneficiadas.
O Centro de Operações Rio (COR) centraliza informações dispersas em diferentes
órgãos públicos e sensores de monitoramento (como câmeras de trânsito e
pluviômetros espalhados pela cidade) para possibilitar a visualização integrada de
dados em tempo real e, assim, agilizar a resposta da prefeitura a problemas como
enchentes, deslizamentos, bloqueios no tráfego e outras situações de crise. Conforme
discurso da própria empresa que projetou o sistema (IBM, 2012a).
2
Por exemplo, um pijama de bebê equipado com sensores que monitoram seus sinais vitais durante a noite. As
informações são transmitidas do Mimo Smart Baby Monitor para o smartphone dos pais.
3
Mas as ferramentas do COR não monitoram apenas o espaço construído: com a
suposta intenção de aperfeiçoar os serviços públicos, a prefeitura monitora também os
cidadãos. A cidade digital que existe dentro do COR é formada pelo cruzamento de
informações como as citadas acima com dados de localização de smartphones, por
exemplo para avaliar o trânsito, monitoramento de redes sociais, supostamente para
captar o “sentimento do cidadão”, e captura de tweets georreferenciados, para
identificar o que as pessoas estão falando em determinada região da cidade. Assim, os
usuários do Rio de Janeiro se tornam “cidadãos sensores”, enredados em um discurso
que relaciona smart cities, smartphones e smart citizens.
Equipamentos como o COR, para monitoramento e controle da cidade, representam a
consolidação de um novo urbanismo que hoje recebe o aposto high-tech e que, conforme
Virílio (1993), começou a surgir na década de 1980. Esta é uma ideia de gestão e
planejamento da cidade que, por um lado, pretende melhorar a gestão de serviços públicos
e oferecer novas ferramentas para o seu planejamento, e por outro, promove a expansão
do mercado de tecnologia da informação.
De olho no mercado carioca, IBM e Cisco estão cada vez mais próximas da prefeitura: a
primeira elaborou o sistema do Centro de Operações Rio (COR) e promove globalmente
a campanha Smarter Cities (IBM, 2012c); a segunda forneceu a infraestrutura de rede
para as Naves e Praças do Conhecimento, e tem linha de produtos para cidades
inteligentes chamada Smart+Connected Communities, antes chamada Connected Urban
Development Program (Ponting, 2013).
O esforço carioca em atrair o capital global de TI foi reconhecido, em 2013, por
importantes agentes deste mercado. A cidade recebeu o prêmio Best Smart City,
durante o evento Smart City World Congress, realizado em Barcelona após a conferência
Citisense, promovida pelo Banco Mundial (2013). Não por acaso, alguns dos principais
patrocinadores do prêmio, como IBM, Cisco e Microsoft3, têm contratos com governos
no Brasil. Também não por acaso, a construção do COR foi exigência do Comitê Olímpico
Internacional para a cidade sediar os jogos de 2016, o que faz com que esta entidade se
assemelhe ao Banco Mundial como promotora do mercado de tecnologias inteligentes.
3
Presta serviço ao governo do Estado de São Paulo para implementar o Detecta, um sistema de monitoramento de
ocorrências policiais. Mundialmente, a empresa oferece aos governos o pacote de produtos CityNext.
4
À medida que tecnologias de informação e comunicação se tornam parte integral da
cidade, o Rio de Janeiro tenta se transformar em uma cidade inteligente. Nada
surpreendente para a primeira cidade do hemisfério sul a elaborar um Plano
Estratégico (PE), em 1995, conforme afirmou Carlos Vainer (2011). A intenção de
reproduzir localmente estratégias consideradas bem sucedidas em outras partes do
mundo pode ser considerada característica histórica da prefeitura carioca, já que o
atual prefeito Eduardo Paes, no governo desde 2009 e responsável pela adesão do Rio
de Janeiro ao discurso sobre as cidades inteligentes, foi subprefeito de Cesar Maia, que
governou a cidade de 1993 a 1996 (quando elaborou o primeiro PE) e de 2001 a 2008.
O empresariamento (ou empreendedorismo) urbano praticado pelos governantes do Rio de
Janeiro, assim como a articulação direta do capital internacional com o governo local,
sinaliza que o discurso sobre as cidades inteligentes pode representar a consolidação de
ideais neoliberais.
Para Paul Virílio (1993) era imperativo questionar a “face oculta das novas tecnologias”,
revelando conflitos e consequências da generalização destas tecnologias. Neste artigo
pretende-se, de maneira semelhante, estudar o caso do Rio de Janeiro para revelar quais
são e como agem as principais empresas fornecedoras de tecnologias inteligentes, que
influenciam cada vez mais a gestão das suas cidades clientes, e relacionar o discurso
global com ações governamentais locais criadas para beneficiá-las, destacando as
negociações necessárias para engendrar tais parcerias.
O DISCURSO GLOBAL SOBRE CIDADES INTELIGENTES
Existe um aparente consenso no discurso das empresas e instituições que incentivam o
uso de TICs para aprimorar a gestão das cidades e melhorar a vida dos cidadãos. Banco
Mundial, Cisco, IBM e políticos empreendedores em diferentes lugares do mundo
concordam tão plenamente que a impressão é que cidades inteligentes são o que
“todos nós queremos e simplesmente ainda não sabíamos”. Foi dessa forma que
Carlos Vainer (2011, p. 118) descreveu o primeiro Plano Estratégico da Cidade do Rio
de Janeiro. Os diagnósticos e diretrizes foram construídos desde o princípio como
5
consensos. Coube ao Conselho da Cidade, um grupo de representantes da sociedade,
apenas a ratificação do plano, conforme afirma Vainer.
Aquele plano foi elaborado por consultores catalães da Tubsa (Tecnologies Urbanas
Barcelona S.A.), capitaneados por Jordi Borja e conforme teoria urbana proposta por
ele e Manuel Castells, que assumia o planejamento essencialmente econômico das
cidades como uma tendência inescapável em um contexto mundial de acirrada
competição por capital. Atualmente, na “era da informação”, Castells e Barcelona
continuam sendo referências, embora a grande diferença seja que as empresas que
prestam consultorias para os municípios não precisam mais ser especializadas apenas
em planejamento urbano.
Mayors of the world, may we kindly have 540 words with you? É dessa forma que a
IBM (2012b) aborda líderes locais ao redor do mundo para oferecer suas ferramentas
digitais para cidades. A empresa oferece consultoria para sugerir as ações mais
“valiosas” para tornar uma cidade inteligente. O resultado é um plano de
investimentos que, naturalmente, inclui softwares da empresa.
O Banco Mundial, que também oferece consultorias para municípios, lançou em 2013
a cartilha Citisense durante um ciclo de debates em Barcelona, com a participação de
representantes de prefeituras de diversos países. O documento parte de uma
constatação de crise: as cidades ganham complexidade na medida em que concentram
a maior parte da população da Terra, o que aumenta os “desafios urbanos”. As cidades
teriam, então, que resolver o “enigma” do crescimento da demanda por serviços
públicos frente à escassez de recursos. A solução seria aumentar a eficiência desses
serviços através da incorporação de TICs na infraestrutura urbana.
E como investir em tecnologias inéditas para muitos governantes? O próprio Banco
Mundial (2013) lista quatro etapas para uma cidade tornar-se inteligente:
1. Elaboração inicial: Primeiro o Banco Mundial promove workshops com os
gestores da cidade para identificar tecnologias úteis, apresentando soluções já
adotadas em outros lugares, privilegiando softwares com código aberto ou
6
baseados em open data4 e adaptando as soluções ao orçamento da cidade. Ao
fim desta etapa, tem-se uma lista de “tecnologias-chave” para melhorar
serviços públicos.
2. Plano de ação (Roadmap): Cria-se um plano de investimentos em longo prazo
em infraestrutura para comunicação e plataformas para a abertura dos dados
da cidade, que viabilizarão a implantação das “tecnologias-chave” e também o
surgimento de outras inovações inesperadas.
3. Colaboração: Uma vez que a infraestrutura esteja instalada e os dados abertos,
todas as ferramentas para a criação de soluções digitais para os “desafios” da
cidade estarão disponíveis. A partir de então caberá ao governo não só
contratar empresas privadas para prover esses serviços digitais, mas também
estimular a “colaboração” da sociedade. Para tanto, o Banco Mundial indica
ações como as “apps challenges”, que consistem em chamadas públicas para a
criação de aplicativos (apps), com premiação em dinheiro oferecida pelo
governo. Em Nova York, a BigApps Competition acontece anualmente desde
2010. Em Barcelona, o Open Cities Apps Challenge teve uma edição em 2012.
No Rio de Janeiro, o evento chamou-se RioApps, teve a primeira edição em
2013 e distribuiu R$ 90 mil em prêmios5.
4. Urban city lab: Por fim, indica-se a criação de uma incubadora pública de
startups (novas empresas de tecnologia).
Todas estas iniciativas são apresentas como etapas para a criação de uma
“comunidade inovadora”, ou seja, aquela capaz de desenvolver novos produtos,
processos e serviços. Estas inovações surgiriam a partir da interação entre diferentes
agentes do desenvolvimento tecnológico, como centros de pesquisa, empresas e
governo. Isto é o que Manuel Castells (1999) chama de “meio de inovação”, com a
característica de que esses ambientes costumam surgir em lugares específicos, onde
haja proximidade espacial entre os colaboradores. Este autor e o Banco Mundial
concordam, portanto, que “os meios de inovação são as fontes fundamentais de
4
Dados do governo disponibilizados de maneira gratuita.
5
Conforme divulgado pela prefeitura no site do evento: http://rioapps.com.br/#premios.
7
inovação e geração de valor agregado no processo de produção industrial da era da
informação” (Castells, 1999, pág. 478).
Veremos adiante como a prefeitura do Rio de Janeiro adere a este discurso.
AS POLÍTICAS DA PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO
“Desde moleque economizava meu dinheiro para comprar o computador de última
geração. Não tem mulher que é tarada por sapato? A minha tara é a tecnologia”, disse
Eduardo Paes em entrevista6 recente. Não por acaso, no seu primeiro mandato como
prefeito (2009-2012) criou o programa Rio – Capital da Ciência, Tecnologia e Inovação,
vinculado à também nova Secretaria Especial de Ciência e Tecnologia (SECT).
As Naves do Conhecimento são realizações desta pasta e já consumiram mais de R$30
milhões do orçamento público desde 20127. As Naves são espaços para acesso gratuito
à internet e “experimentação com ferramentas digitais”. Segundo a prefeitura, servem
como complemento à educação formal dos estudantes da rede pública, mas também
como mecanismo para inclusão digital e capacitação de mão de obra8. A intenção seria
transformar os bairros beneficiados em comunidades inteligentes. Soa familiar? A
Cisco foi contratada pela prefeitura para instalar os sistemas de rede destes centros.
Atualmente a empresa usa as Naves em seu material publicitário para divulgar pelo
mundo o seu programa Smart+Connected Communities.
A IBM também lucra alto com a prefeitura do Rio de Janeiro. Em consulta ao
orçamento municipal através do Portal Rio Transparente, esta pesquisa registrou que a
multinacional recebeu mais de R$ 14 milhões, entre 2010 e 2012, para desenvolver
ferramentas digitais para o Centro de Operações Rio (COR). Este valor representa um
aumento de aproximadamente 1.400% nos gastos públicos com serviços da IBM desde
6
“O prefeito digital”, Revista Info Exame - Inovação, nº 337, São Paulo, jan/2014.
7
A pesquisa identificou o investimento nas Naves do Conhecimento a partir dos pagamentos feitos à Idaco, ONG
que venceu o edital lançado em setembro de 2011 para a gestão do projeto. Orçamento municipal consultado no
Portal Rio Transparente.
8
A Cisco oferece treinamento gratuito, nas Naves, sobre conceitos básicos de redes para capacitar interessados em
trabalhar no mercado de TI.
8
que Paes foi eleito, se comparados com os contratos dessa empresa com a prefeitura
em gestões passadas9, e antes da campanha IBM Smarter Cities ser lançada, em 2008.
Recentemente, o prefeito inaugurou um Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D)
de produtos e serviços de alta tecnologia. A EMC Corporation e a prefeitura firmaram
“Acordo de Cooperação Técnica e Científica para a viabilização de uma ‘Plataforma
Inteligente para a Integração de Bases de Dados’ de serviço em nuvem para cidades
inteligentes”, conforme divulgado no blog da SECT10. Para viabilizar a construção do
Centro de P&D, que custou R$ 4 milhões à multinacional, foi oferecida isenção fiscal ao
Processo Produtivo Básico (PPB) da empresa, via Lei de Informática.
Outra política que beneficia empresas de TI é a disponibilização gratuita de dados pela
prefeitura. Com ferramentas para análise de bases de dados heterogêneas (o big data
analytics), os dados reunidos pelo governo passam a ser lucrativos. Um empreendedor
pode trabalhar com estas informações para dar-lhes utilidade e, depois, oferecer
serviços. Por exemplo, por meio de um aplicativo.
Por isso, empresas de tecnologia aderem ao movimento mundial que pressiona
governos a disponibilizarem os dados que reúnem de maneira gratuita. Esta estratégia
para reduzir o custo de produção configura o que Harvey (2004, p. 124) chama de
acumulação via espoliação. “O que a acumulação por espoliação faz é liberar um
conjunto de ativos (...) a custo muito baixo (em alguns casos, zero). O capital
sobreacumulado pode apossar-se desses ativos e dar-lhes (...) um uso lucrativo.”
Para atender a essa demanda a prefeitura criou o portal Riodatamine. Por meio dele é
possível acessar gratuitamente dados brutos da cidade, com a condição de que quem
acessa disponha de suficiente investimento em tecnologia para interpretá-los de
maneira útil.
Sinteticamente, o Rio de Janeiro promove o mercado de TI por meio das seguintes
estratégias: a) grandes contratos com empresas globais de TI; b) estímulo à inovação para
9
Registramos apenas outros dois contratos com a IBM, um em 2002 e outro em 2008, referentes ao fornecimento e
manutenção de hardware. Esses contratos somam pouco mais de R$ 1 milhão.
10
“Maior laboratório de Big Data da América Latina será inaugurado no Parque Tecnológico da UFRJ”, publicado em
maio de 2014.
9
o surgimento de novos produtos e serviços; c) isenções fiscais; d) disponibilização gratuita
de dados da cidade; e) qualificação de mão de obra; f) marketing como cidade inteligente.
Com estes estímulos, a prefeitura pretende criar um “meio de inovação” carioca,
aquele considerado essencial por Manuel Castells (1999) para o crescimento
econômico na “era da informação”.
Diante da perpespectiva fortemente empreendedora das políticas cariocas que se
apoiam no discurso sobre cidades inteligentes, resta a pergunta: as cidades
inteligentes são inteligentes para quem?
CRÍTICA À CIDADE INTELIGENTE
As empresas de tecnologia da informação têm a oportunidade de ampliar seu mercado.
Agora, podem investir na produção de tecnologias inteligentes e prestar serviços para
clientes tão diversos quanto uma confecção de roupas ou uma prefeitura. No entanto, para
que estes novos produtos equipados com sensores circulem pela cidade e funcionem
coordenados em rede é preciso que o espaço urbano esteja equipado com tecnologias de
informação e comunicação (TICs). Os governos municipais precisam assumir, então, o
papel de agenciadores deste mercado na medida em que possuem a atribuição de
gerir o espaço urbano. Este é o contexto em que surge o urbanismo high-tech nas
cidades inteligentes.
No que se refere às intervenções materiais na cidade, pode-se entender urbanismo
como o conjunto de técnicas para a manipulação do espaço urbano conforme a
intenção das forças econômicas dominantes (Alvarez, 2013). No caso do Rio de
Janeiro, isto aparece com a instalação de câmeras de vigilância, sensores de tráfego,
pluviômetros, entre outros dispositivos conectados ao COR. Mas urbanismo também
pode significar um saber sobre a cidade, o campo de pesquisa de uma disciplina com
olhar científico e transformador (Ribeiro, 1994).
Neste sentido, urbanismo pode ser associado a planejamento urbano. Para Flávio
Villaça (2010), a ideologia dominante que legitima esta disciplina em nossa sociedade
confere grande respeito à ciência e à técnica. Este autor sugere que o planejamento
10
urbano aceito como legítimo é aquele baseado na análise científica da situação atual
(dignóstico) e futura (prognóstico) da cidade, para subsidiar a elaboração de técnicas
de organização do espaço formatadas em um plano. Este planejamento técnico e
científico seria a “chave” para a solução dos “problemas urbanos”. De maneira
semelhante, o Banco Mundial (2013) sugere “tecnologias-chave” para tornar uma
cidade inteligente recorrendo à ideia de que apenas ferramentas tecnológicas seriam
suficientes para contornar os “desafios urbanos”.
No caso carioca, as políticas de fomento ao mercado de TI, como vimos, vão desde a
concessão de isenções fiscais até a intervenção material na cidade.
O projeto de transformação do Rio de Janeiro em cidade inteligente é, portanto, fruto
de uma convergência de interesses entre Estado e empresas privadas. O caso carioca
mostra que o entendimento de governo urbano deve ser expandido para “governança
urbana”, que inclui o conjunto de agentes sociais (públicos e privados) que de fato
organizam o espaço urbano (Harvey, 2005).
Mas esta convergência de interesses não é apenas econômica. A principal ferramenta
do COR, por exemplo, é um mapa georreferenciado com diversas camadas. Nele é
possível selecionar uma região da cidade e consultar informações tão diversas quanto
perfil da população residente (número de idosos e crianças), incidência de obras,
eventos públicos cadastrados (por exemplo, um bloco de carnaval), além de acessar
imagens de câmeras de vigilância. Segundo Alexandre Cardeman, assessor especial do
COR, por meio das câmeras a prefeitura pode calcular o número de pessoas por metro
quadrado e ainda identificar estas pessoas. Além disso, também é possível filtrar todos
os tweets originados daquele local para saber do que as pessoas ali reunidas estão
falando. “Fundamental para fazer uma operação, dentro de um evento [protesto?], por
exemplo”, diz Cardeman11.
O COR também dispõe, desde 2013, de ferramenta para o monitoramento de redes
sociais desenvolvida pela SAP – outra multinacional de TI. A intenção, segundo os
fornecedores do serviço, é que a prefeitura acompanhe o “sentimento do cidadão”.
11
Palestra Alexandre Cardeman, publicada em 23/04/2013 por Google Atmosphere Maps. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=Du3GhKEbNL8
11
Como as análises feitas com estas ferramentas não são divulgadas, pergunta-se: quais
seriam as implicações deste monitoramento na privacidade dos cidadãos?
Ao contrário do que anunciam multinacionais de TI, a cidade inteligente não traz
apenas benefícios, na medida em que reproduz formas de gestão e planejamento que
privilegiam interesses privados sobre públicos. Além disso, o discurso sobre cidades
inteligentes prefere a perspectiva técnica do planejamento urbano em detrimento da
política. No entanto, para a contrução de cidades mais justas e igualitárias é preciso
que o planejamento ultrapasse os limites da concepção tecnocrática e incorpore visão
política da questão urbana12 (Ribeiro & Cardoso, 1990).
A tecnologia é apenas instrumento, portanto, sem capacidade para abordar graves
problemas urbanos como exclusão social e desigualdade espacial. Ao contrário, tudo
indica que a instalação de TICs no espaço urbano acentua a concentração de capital e
poder político dos grupos dominantes.
12
O texto em referência indica que o embate entre a perspectiva ténica e a política no campo do planejamento
urbano era uma discussão na década de 1970.
12
REFERÊNCIAS
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http://siteresources.worldbank.org/EXTINFORMATIONANDCOMMUNICATIONANDTECHN
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governança urbana no capitalismo tardio. In A produção capitalista do espaço. São
Paulo: Annablume.
IBM (2012a). IBM Intelligent Operations Center for Smarter Cities. Disponível em:
http://public.dhe.ibm.com/common/ssi/ecm/gv/en/gvs03044usen/GVS03044USEN.PDF
IBM (2012b). Mayors of the world, may we kindly have 540 words with you?
Disponível em:
http://www.ibm.com/smarterplanet/global/files/us__en_us__cities__city_leaders_wsj.pdf
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innovation. Disponível em:
http://www.ibm.com/smarterplanet/global/files/in__none__smarter_citeies__Smarte
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13
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Virílio, P. (1993). O espaço crítico. Rio de Janeiro: Ed. 34.
14
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