“A construção da descanção de Tom Zé”
Altaila Maria Alves Lemos
Resumo
Este trabalho pretende discutir os modos do compositor baiano Tom Zé
se inserir no mundo através de suas canções1. A partir das maneiras do quê e
do como se diz ou se deixa dizer sua canção. Focalizamos alguns pontos,
como modos do compositor se posicionar diante da mídia fonográfica e do
mundo, valores estéticos musicais. Utilizamos como referencias teóricos
algumas categorias da Análise do Discurso, segundo Dominique Maingueneau
(códigos de linguagem, ethos, cenografia, paratopia), aos conceitos de
grotesco e carnavalização de Mikhail Bakhtin, além de outros autores.
Discutimos, portanto, efeitos de sentidos gerados na canção, os quais nos
levaram a pensar numa descanção.
1
Dos álbuns:
Zé, Tom. Estudando o Pagode. 2005.
Zé, Tom. Jogos de Armar- Faça você mesmo. Trama, 2002
Zé, Tom. Série dois Momentos Vol. 15 (Relançamento do Cd Estudando o Samba, 1975, e de O Correio
da Estação do Brás, 1978). Continental, 2000.
Zé, Tom. Série dois Momentos Vol. 14 (Relançamento em cd de Estudando o Samba, 1972, e de Todos
os olhos, 1973). Continental, 2000.
Zé, Tom. Com defeito de fabricação. Luaka Bop/WEA, 1998. Trama,
1999.
Zé, Tom. No Jardim da Política (ao vivo em 1984 no Teatro Lira Paulistana) – Independente, 1998.
Índice
INTRODUÇÃO----------------------------------------------------------------------------------10
CAPÍTULO l
O processo do trabalho --------------------------------------------------------------------17
Percurso teórico: trilhas e labirintos discursivos---------------------------------------21
Traços Constitutivos da Linguagem: do princípio dialógico ao Interdiscurso---23
A construção da Enunciação----------------------------------------------------------------25
Descanção e Deslinearização--------------------------------------------------------------30
A voz que alimenta a voz--------------------------------------------------------------------37
A performance na canção-------------------------------------------------------------------38
Movimento de Instabilidade na canção: uma condição paratópica---------------40
O ser grotesco e carnavalizante-----------------------------------------------------------42
O Caminho de chegar e não-chegar: percurso do como dialogar com as
canções-------------------------------------------------------------------------------------------45
CAPÍTULO ll
Apresentação e contextualização: Tom Zé----------------------------------------------48
CAPÍTULO III
Ressonâncias e desformas da canção: Descancionando por entre rasuras e
imagens grotescas-----------------------------------------------------------------------------54
Deslineariazação e defeitos verbais ------------------------------------------------------53
O defeito: problema e perfeição------------------------------------------------------------55
Ser estavelmente paratópico num lugar de entre lugares---------------------------64
A reinterpretação ou releitura: o inacabamento ou efeitos de descanção----66
Jogos para desmontar e armar------------------------------------------------------------68
Embates entre posicionamentos discursivos -----------------------------------------78
A construção de cenografias na canção, da cidade longínqua para uma grande
cidade---------------------------------------------------------------------------------------------83
Apenas uma tentativa de conclusão------------------------------------------------------92
Referências Bibliográficas-------------------------------------------------------------------94
Anexos--------------------------------------------------------------------------------------------97
INTRODUÇÃO
O que nos trouxe verdadeiramente aqui foram resquícios tocantes,
desses tão recentes e tão distantes que transformavam corpo em música. Dos
tão distantes, tratava-se de ondas inesperadas e oscilantes causadas por
Jimmy Page, guitarrista do grupo musical de rock Led Zeppelin, o primeiro
escutado por mim, por intermédio de um amigo chamado, guitarristicamente2,
Beto. No momento da escuta, as distorções de timbres sonoros se expandiam.
Isso foi o longo começo que me levou a um lugar, bateristicamente
falando, de transtornadas e distintas ondas musicais (compositores e ritmos),
ao lado de amigas (Ana Cláudia, Andréia e Denise). Reuníamo-nos
semanalmente para tocar e ouvir, no formato do grupo musical intitulado
Dress. A partir dele, nós nos movíamos em ondas, sendo cada uma delas de
diferentes timbres, tocados em uma nota só. Juntas, seguindo estrada e
estradas de palcos periféricos, chegamos num lugar comum, onde todos
tocavam e se tocavam, ao ponto de destocarmos e desenlaçarmos nossas
cordas.
Foi nesse fim e chegada que se iniciou novo caminho, descortinado pelo
outro: o caminho de nova vitalidade musical, de uma música com outros
significantes e significados, sugerindo-nos, até então, a novidade de um olhar
dedicado ao significar amplo. Não era só a descoberta do par instrumento e
voz, era muito mais complexo e triplo.
Foi quando escutei e vi com meus “próprios olhos” um corpo, uma voz
estranha, arranhada e familiar em “língua nordestina”, um tanto bem humorada
e
irônica
num
palco
pertencente
a
várias
línguas
que
falavam
simultaneamente. Foi nesse lugar que vi pela primeira vez Tom Zé cantando,
no ano de 2004, no festival Vida e Arte. Tardiamente ou em circunstâncias
ideais? Tomo as duas opções como verdadeiras.
2
Palavra incorporada por Rogério Duarte no livro Tropicaos. O qual é autor e artista múltiplo (design
gráfico, compositor, poeta, professor, compositor e um dos membros experienciador do evento
Tropicalista).
Foi esse o momento de transição: a mudança de um antigo objeto de
pesquisa de mestrado, a escrita de si no gênero textual virtual blog para uma
escrita de si e de vários outros, na linguagem do gênero musical canção.
Vi aí possibilidades de se ouvir música em outro lugar, além de ouvi-la
no palco. Senti a canção, em seu sentido amplo: modos de habitar o mundo,
através de uma língua e de línguas, de uma construção estética, contaminada
de valores culturais; e em seu sentido restrito: a música no gênero específico,
o cancional, letra e som, palavra e instrumentos em um só corpo.
Percebi palpavelmente a inquietude que sua canção me proporciona,
observando nela inquietações metamusicais e socioculturais.
A palavra cantada já se tornava precária frente a gestos e expressões
sem palavras verbais que deixavam pistas para construirmos teias de relações
entre seu discurso e outros. Foi aí que vi o não dizer sendo dito, de algum
modo, o verbo e in-verbo enlaçados.
O interesse em estudar música no ambiente acadêmico também foi
influenciado pela disciplina “Tópicos em Análise do Discurso”, cursada no
Mestrado em Lingüística da Universidade Federal do Ceará, no período de
2004-2. Essa foi ministrada pelo professor e doutor Nelson Barros da Costa,
amigo afetuoso, meu orientador. A partir desse período, discuti com ele
possibilidades de se estudar música, o que resultou no seu apoio e dedicação,
pacientemente, durante os processos de mudanças de ordens teórica, afetiva
e psicológica, ocorridas ao longo do curso de mestrado.
Foram esses aspectos que me levaram a investigar Tom Zé. Ao lado de
um amigo musical, singularmente tão presente em aula e em fora de aula, e
tão inquieto quanto Tom Zé, chamado um tom Talvanes.
Assim, logo surgiu a idéia de dialogar com o discurso literomusical de
Tom Zé, aliado às inquietações que percebi na sua música: o modo de se
posicionar diante do público, quanto às questões referentes ao fazer cancional,
ao diálogo com o outro, seu exterior; questões políticas, questões da
linguagem verbo-musical, as quais nos suscitavam efeitos de sentido.
A desconstrução musical, a problematização da vida, a apresentação e
representação realistas de um mundo conflituoso são tomadas em suas
canções, surgidas em
experimentações rítmicas e verbais num corpo
cancional. Foi através da percepção e da ruminação de tais elementos que
apontamos e refletimos sobre investimentos discursivo e interdiscursivo, ou
seja, maneiras de habitar e desenhar canção.
Inspiramo-nos na idéia de
descanção, que é um modo de se comportar e de se afirma a canção.
Segundo Zé (2003), a canção é sentida como um acontecimento
natural, no correr do tempo, num contratempo, é como um dia atravessando
uma vida, numa improvisação. A canção é experimentada a partir de um corpo
cancional, chamado de “útero cósmico”, de “montanha virgem” e “corpo de
pedra” (ZÉ, 2003, p.24), sendo encontradas lá possibilidades de construção, a
partir de pedaços de notas musicais gravadas, guardadas em gavetas.
Aliadas ao corpo cancional, tem-se a problematização ou “doenças” da
vida, compreendida por nós como as marcas que apontam para a condição
instável do indivíduo, de ser e não ser, de estar e não-estar. Estudar e divagar
um pouco, portanto, sobre a canção de Tom Zé é conversar com as entranhas,
brechas e fissuras que a vida gera.
Ao realizarmos um percurso sobre seu trabalho musical, encontramos
relatos documentais e biográfico em Campos (1993), em Calado (1997), em
Sanches (2002) e Zé (2003). Lemos o trabalho biográfico escrito pelo Tom Zé3,
no qual são relatados histórias de vida do músico e sua participação na
eclosão do movimento Tropicalista. O conteúdo do livro apresenta descrições
biográficas, uma longa entrevista com Luís Tatit4, seção do livro que mais nos
interessa, na qual
nos detemos, e mais as letras de canções até então
realizadas. Tom Zé relata os primeiros envolvimentos com a música, na sua
cidade natal Irará, Bahia5.
Tropicalista Lenta Luta.
Lingüista e estudioso da semiótica musical.
5
Apresentamos detalhes sobre esse assunto mais adiante, no capítulo III: apresentação de
Tom Zé.
3
4
Há também algumas críticas com relação à sua participação no
movimento tropicalista, segundo Tatit (in Zé, 2003). Através desse relato,
investigamos como se deu seu relacionamento com o tropicalismo, em que
Tom Zé se torna um tropicalista e um não tropicalista ou um outro tropicalista.
Campos (1993)6 realiza uma revisão da história da música popular
brasileira referente aos movimentos Bossa Nova e Tropicalismo. Discute as
origens e posturas política e musical de ambos os posicionamentos. Com
relação aos músicos e compositores do primeiro, cita João Gilberto; e do
segundo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, dentre outros, e no
posfácio cita Tom Zé. O autor atribui a ele o caráter de baiano esquecido ou o
“menos conversado” no contexto do tropicalismo. A partir de uma breve
observação sobre suas canções, compara o compositor a um “trovador que
sabe fustigar um bom tom e fundir palavra e som” (CAMPOS, 1993, p. 335).
Tal comentário pressupõe que Tom Zé, de certa forma, tem uma repercussão,
mesmo que aparentemente discreta. Embora toquemos nessa relação, não
desejamos, necessariamente, saber a intensidade de sua participação no
tropicalismo, mas as implicações de sua canção influenciadas por esse
movimento.
Calado (1997) narra sobre a infância e adolescência de Tom Zé e suas
influências musicais. Segundo o autor, o gênero baião de Luiz Gonzaga, os
xaxados de Jackson do Pandeiro, aliados aos cantores de rádio nacional mais
o folclore da região de Irará (BA) e as cantigas de violeiros e os sambas de
rodas das lavadeiras constituíram as inspirações do baiano. Percebemos aí
uma dada ausência de trabalho mais consistente com relação à música de
Tom Zé, a preocupação de Calado, portanto, não passa de uma curiosidade
biográfica e musical, um tanto discreta, talvez. Tal fato enfatizou a
necessidade de nós adentrarmos na sua canção.
Com relação à figura do compositor Tom Zé, não presenciamos um
estudo específico. Apenas o trabalho autobiográfico a que já nos referimos
acima (ZÉ, 2003).
Nos primeiros sinais de composição, ao ser bloqueado pela presença
da namorada, resolve se reconstruir como compositor, relendo seu processo
6
“Balanço da bossa e outras bossas”
de criação, impondo-se as seguintes metas para reinvenção de seu trabalho:
mudar o tempo do verbo (mudar o tempo das construções verbais da canção,
do pretérito passado para o presente do indicativo); trocar o lugar no espaço-o
lugar (mudar de lugar, sair da cidade natal, Irará, em busca do lugar que lhe
beneficiasse musicalmente); achar um novo acordo tácito(usar “assuntoespelho” na canção cujo personagem construído fosse uma representação da
vida e circunstância do ouvinte); limpar o campo(não usar um corpo–cancional,
o canônico, mas plasmar a cantiga com outra matéria)( ZÉ, 2003, p. 24).
Ao debruçarmos sobre a produção musical de Tom Zé, não podemos
deixar de lado sua participação no contexto do movimento estético ideológico
Tropicalista7. O movimento que questionou valores culturais, nacional
brasileiros e internacionais, revelou-se num episódio de subversão de
costumes, que pôs à mesa as contradições de uma sociedade burguesa e o
caos do mundo pós-moderno (o homem e o aglomerado de veículo de
informações). Expressou-se em vários âmbitos de manifestação artística, como
na literatura, no cinema, nas artes plásticas e principalmente na música.
Na música, por exemplo, a ideologia tropicalista é construída através da
integração dos movimentos e gestos do corpo ao canto e à fala, através da
multissemiose de elementos verbais, resultante da carnavalização ou da
inversão de hierarquias (morfológica, sintática e semântica), bem como nãoverbais (gestos, performances, a relação do corpo com objetos). Com relação
à inserção do corpo na música, Barthes (apud Favaretto 2000:37) observa:
A inscrição do corpo na substância viva do som tenciona a língua
cantada, levando ao ultrapassamento dos fenômenos decorrentes de
sua estrutura, como estilos de interpretação, idioletos dos compositores,
mudanças rítmicas, variações de timbres .
A música de caráter tropicalista reconstruiu, desse modo, a noção de
música, dialogando com as transformações cultural e industrial da época,
Termo idealizado pelo artista plástico Hélio Oiticica para designar um ambiente Tropicália ou
um penetrável, conjunto de cabines que o espectador explorava pisando em areia, pedra e
água, cruzando plantas e araras, lendo frases inscritas em paredes, assistindo a uma tv ligada
no fim do labirinto, caminho teleológico rumo ao pós-moderno. Depois, Gilberto e Caetano se
apropriaram do termo para traduzir as subversões de valores na música, literatura, dentre
outros ambientes.
7
relendo os costumes tradicionais, causando um curto-circuito na estrutura de
canções até então construídas.
Há outra visão relacionada ao seu envolvimento com o Tropicalismo, de
acordo com Tatit (apud Zé, 2003, p. 223-225). Trata-se da idéia de que o
projeto musical de Tom Zé, o da busca da imperfeição, da incompletude, da
descanção (plasmar a canção com outros elementos) foi movido pelas
angústias calcadas na necessidade de uma nova canção.
Postura diferente dos idealistas centrais tropicalistas, que visavam a
uma canção popular, nova, acabada, pronta para se tornar pop. Tatit (in ZÉ,
2003: p. 223-225) afirma que o aspecto em comum entre Tom Zé e o
Tropicalismo era a busca de uma música nova, mas com viés oposto.
Ao considerarmos tais posturas, não pretendíamos negá-las ou afirmálas, mas investigá-las, penetrando mais nas imagens, nas fendas que o som
das palavras cantadas e faladas de Tom Zé produz, construindo assim, uma
terceira visão do que venha ser ou não ser tropicalista.
Portanto, levando em consideração sua relação com o posicionamento
ideológico tropicalista e sua construção discursiva literomusical, partimos de
duas visões diferentes, uma que insere Tom Zé integralmente e outra que o
afasta desse posicionamento ideológico. A primeira refere-se à idéia de
Sanches (2002) que o considera, de certa forma, um tropicalista puro, de
esquerda, que se opõe à indústria cultural, deixando-se levar até as últimas
conseqüências. Mas, o que seria “tropicalista de esquerda”? É estar isolado da
mídia? Mesmo quando estava isolado (aproximadamente entre os anos 70-80),
ele produzia e estudava música. E hoje, início da primeira década de 2000,
podemos afirmar que ele é um tropicalista de esquerda?
Dentre tantas irregularidades, onde e como ver uma possível ordem do
caos na obra musical de Tom Zé, levando em consideração o posicionamento
Tropicalista que o gerou? E hoje que posicionamento ele assume?
Paralelamente ao nosso olhar contemplativo e de espanto diante da
música de Tom Zé, integrou-se a ele a visão teórica da Análise do Discurso, de
Dominique Maingueneau. Essa teoria observa no discurso o lugar de inúmeras
relações entre um discurso e outro, nos quais pressupõem-se posicionamentos
de caráter ideológico (como também estético, lingüístico e cultural)
do
enunciador. Um outro aspecto a se notar é como se dá a condição de
existência, social, institucional do artista músico, escritor, cineasta, artista
plástico? Como ele se encontra diante de normas e convenções impostas pelo
campo artístico? Como o artista convive com outros em espaços públicos?
Ao investigarmos tais questões, utilizamos do autor Dominique
Maingueneau o conceito de paratopia, que designa a ocupação de um lugar
instável do artista no campo artístico. E outros tais como ethos e cenografia.
Trazer para o palco
questões
estéticas
e sócio-culturais
que
colaboravam para uma incessante construção musical e para uma releitura do
lugar no qual nós estávamos e desconhecíamos é a própria revitalização de si,
da música e de nossas relações com as políticas cotidianas e com as mais
burocráticas. Desse modo, tornou-se relevante pensar sobre tais questões no
referido trabalho.
O trabalho se inicia com um breve pensar sobre o processo do caminhar
com a pesquisa acadêmica. Em seguida, há a apresentação de elementos
teóricos centrais referentes à idéia do signo dialógico da linguagem verbal, aos
conceitos grotesco e carnaval, na perspectiva de Bakhtin (1997,1999), à
Teoria da Análise do Discurso segundo Maingueneau (2001, 2004), à idéia de
código apriorístico da linguagem de acordo com Campos(1993), de
descanção segundo Tom Zé, de inacabamento e performance vocal segundo
Zumthor (1998, 2001), e deslinearização de acordo com Pingnatari (2004).
Ainda nesse primeiro capítulo, relatamos o processo de desenvolvimento do
trabalho ou o caminho de chegar e não chegar: percurso do como dialogar
com as canções.
No capítulo segundo, apresentamos um histórico sobre a vida e contexto
do qual emerge o músico Tom Zé.
No capítulo terceiro e último iniciamos a leitura e análise das canções,
seguido o mesmo das conclusões e referências bibliográficas.
CAPÍTULO 1
1. O PROCESSO DO TRABALHO
Iniciar uma pesquisa acadêmica, ao nosso olhar, é se permitir descobrirse no percurso do trabalho, é surpreender-se no processo de descoberta ou de
redescoberta, sentindo os objetos, espiritualmente e materialmente, para criar
sempre um novo objeto. Mas difícil mesmo para nós foi estar em processo de
alienação, como determinadas tendências científicas certamente desejam, no
qual o ser humano se afasta de sua real natureza, que é exterior à sua
dimensão espiritual, colocando-se como uma coisa, uma realidade material,
objeto da natureza. Nesse sentido, alienar-se é isolar-se da própria vida ou
ignorar o tumulto que a vida gera, cotidianamente, em nós. Apesar de
admitirmos o caráter de alienação no trabalho científico, não atribuímos a este
o mesmo. Interpretamos nesta pesquisa um trabalho que se move e cresce a
partir de uma entrega de si num diálogo que se constrói com olhares de uma
perspectiva teórica e o do pesquisador sobre o objeto.
Portanto, acreditamos que o trabalho, o presente, que se deixa levar
ou arejar-se por interferências cotidianas da vida, por formas disformes de
viver, não se torna
alienado, por vislumbrar a relação entre várias
possibilidades de olhar. O cruzamento do olhar científico com o filosófico talvez
seja o que se interessa pela vida? Talvez sim. Talvez não. Depende da
posição epistemológica que se assume. Por que a pesquisa científica numa
tendência positivista exige, ou tenta impor, de algum modo, um olhar que não
se deixa interagir com outros, mesmo sabendo nós que num olhar há um outro
e outros?
Portanto, a nosso ver, produzir um trabalho de pesquisa acadêmica,
tendo como eco a idéia de alienação, da submissão espiritual e vital em
prioridade ao objeto, foi difícil e delicado. Mesmo assim, acreditamos e
estamos construindo outros ecos.
Em resistência a essa angústia e à crença num novo fazer, tentamos e
insistimos em conversar, ouvir, ler e interpretar, sem deixar de apreciar, as
canções do compositor Tom Zé.
Pois, em nossa percepção, Tom Zé, ao assumir um lugar de compositor
musical, revela-nos através de sua fala musicada angústias tristes e felizes da
vida, ou seja, formas disformes e gelatinosas que, verdadeiramente,
compõem-nos. Traço esse que muito nos instiga e nos move a estabelecer
uma relação de proximidade entre o “interior” e o “exterior” de sua música.
Vendo como se dão os significados dessa aproximação e relação. Isso é o que
chamamos sem querer chamar, de análise discursiva de um texto, do verbal ao
não-verbal.
Mas como tentamos chegar até sua música? Existem inúmeras
maneiras de olhar para ela e de falar com ela: através da Historiografia,
Etnografia, Sociologia, Antropologia, Filosofia, Lingüística, Musicologia e de
outras maneiras. Dentre esses possíveis olhares, optamos por um que, talvez,
permita a integração de vários: o olhar discursivo da linguagem cancional.
Olhar discursivamente é levar em consideração contextos interiores e
exteriores a um texto, sendo esses lingüístico, histórico, social, filosófico,
cultural, ou a integração de todos num “pancontexto”, diríamos.
A idéia de discurso corresponde a várias acepções diferentes entre si,
das mais elementares às mais complexas. Optamos pela concepção de
discurso no sentido mais amplo, como uma dispersão de textos que se
encontram e dialogam a partir de marcas textuais explícitas ou não.
O olhar discursivo está em circunstâncias de comunicação verbal e não
verbal, desde que se perceba a rede de ligações que há entre uma fala e
outra, entre seu interior e seu exterior. Há na canção, como em outras
linguagens, musical e não-musical, um entrelaçamento de teias de significados
que se cruzam aleatoriamente, não sendo possível saber onde se inicia e
termina esse cruzamento.
O estudo da linguagem numa perspectiva discursiva diferencia-se da
perspectiva unicamente lingüística na medida em que a primeira dialoga com
seu exterior, permitindo aberturas à percepção de traços vertiginosamente
históricos, filosóficos, sociais, ideológicos entre um discurso e outros, para
além dos traços da materialidade da língua. Ou seja, uma análise discursiva
textual de linha francesa não separa o seu exterior (o social, o cultural,
histórico, dentre outros) do seu interior (o material lingüístico). Já na segunda
perspectiva, uma análise essencialmente estruturalista efetua cortes, rupturas,
preocupando-se
primordialmente
com
a
gramática
da
materialidade
lingüística.
A relação que se constrói nessa análise é interna, se dá entre seu
interior e seu “outro” interior vizinho, num sistema ou arquitetura fechada,
isolada da possibilidade de intervenções externas. Já a análise discursiva tenta
arejar a estrutura fechada.
Nesse sentindo, a Análise do Discurso de linha francesa visa
concretamente, debruçar-se sobre a arquitetura de prédios habitados, que
trazem à tona seus significados. Um olhar discursivo percebe a cidade em sua
dinâmica, ou seja, a pulsação ecológica que ela constrói com seus habitantes
em múltiplas cartografias.
Tomando como referência o sentido de discurso na arquitetura de
prédios, vemos na canção que o olhar discursivo se realiza através da
interação e dinâmica de ritmos, melodia, arranjos, vozes, tons, timbres e
silêncio. Onde aí também encontramos a pulsação ecológica e múltiplas
cartografias que nos levam a diferentes lugares sócio-culturais, desenhando
um corpo e corpos, que nos revelam maneiras da canção se fazer.
As maneiras ou modos de se construir uma canção podem comportar-se
ora como estratégias, ora como investimentos discursivos. Ao realizar
investimentos, o sujeito enunciador não planeja rigorosamente seu discurso,
ele se coloca sem necessariamente desejar “vencer” ou competir com outro,
enquanto que ao falarmos de estratégias8, há um sentindo militar,
conotativamente, há a idéia de uma ação voltada para um “ataque”.
Mas o que queremos com isso? Nem sabemos exatamente. Temos
certeza de que nos move aqui não é somente apontar investimentos
discursivos e estratégias nas experimentações orais, poéticas e musicais
construídas pelo compositor Tom Zé, mas significá-los, ou seja, discutir seus
efeitos de sentidos.
Ao iniciar o trabalho, foi possível, antecipadamente, relacionar nosso
motivo de pesquisa, ou canonicamente, nosso objeto, as canções de Tom Zé,
à teoria da Análise do Discurso de Maingueneau e elegê-la como apoio teórico.
Percebemos adiante que o referido apoio não nos instigou a utilizar
positivamente9 as categorias de análise discursivas, já que optamos por
dialogar também com outros pensadores e conseqüentemente com outras
categorias, que de certo modo se integram à perspectiva discursiva.
Os
pensadores referem-se a Bakhtin (1997,1999) que traz as idéias da refração,
do dialogismo, do caráter grotesco e carnavalizante do signo lingüístico; a Paul
Zumthor (1998, 2001), que nos apresenta um olhar antropológico sobre a
poética e performance vocal e a idéia de inacabamento; a Décio Pignatari, que
discute aspectos da não linearidade do signo, e Campos(1993) no que se trata
do código apriorístico da linguagem.
Arte militar de planejar e executar movimentos e operações de tropas, navios e/ou aviões,
visando a alcançar ou manter posições relativas e potenciais bélicos favoráveis a futuras ações
táticas sobre determinados objetivos. Definição transcrita do novo dicionário Aurélio de Língua
Portuguesa Aurélio (versão eletrônica).
9
O uso de pronomes que se dirigem a pessoas do discurso no decorrer desse trabalho não é
linear, ou seja, não conservamos do início ao fim uma única pessoa (1º pessoa, 3º pessoa).
Ora assumimos nosso discurso em primeira pessoa quando nos mostramos mais
sensivelmente envolvido por dado momento do trabalho (como se apresentou na Introdução),
ora nos colocamos em terceira pessoa do plural. E noutro momento não assumimos
pessoalidade. Esse uso “indisciplinado” da pessoa discursiva no nosso texto se deu de modo
inconsciente e imperceptível, foi um gesto que se percebeu no fim do percurso e que
atribuímos a ele um significado relevante: reflete espontaneidade e o não assujeitamento do
autor sobre convenções de ordem formal, gramatical. A pessoa do discurso manifestada aqui é
múltipla, heterogênea, é um eu que não se livra da interferência de outros eus. A multiplicidade
pessoal não é mascarada e nem omitida em nenhum momento, dada a vontade indomável do
eu se colocar diante da leitura do mundo: do percurso do trabalho científico, da interpretação
da canção com base numa fundamentação teórica.
8
Dá-se mérito a Maingueneau por expor uma metodologia sistematizada
sobre elementos discursivos voltada para a análise de textos como práticas
discursivas. Para ele, as unidades que compõem o discurso compreendem
sistemas de significantes, enunciados ligados a uma semiótica textual,
relacionados à história e à sociedade. Uma análise discursiva, portanto, parte
de uma análise simultânea, conjunta de textos provenientes de variados
ambientes históricos e sociais.
Partimos da idéia do signo lingüístico dialógico que fundou e influenciou
diretamente o pensamento sobre a noção de interdiscurso, segundo
Maingueneau. Em seguida, para uma discussão sobre a idéia de signo
redundante ou código apriorístico de acordo com Campos, para dialogarmos
com a idéia de descanção.
2. PERCURSO TEÓRICO: TRILHAS E LABIRINTOS DISCURSIVOS
Toda imagem artística, assim como um corpo físico, produtos e
instrumentos de uso funcional, podem ser revestidos de sentidos para além de
seus significados primeiros, particulares. Trata-se do que Bakhtin/Volochinov
(1997, p. 31) chama de sentido ideológico, um significado que remete a outro
fora de si mesmo. Quando há o revestimento de outros significados, atribuídos
a um objeto, que atravessem suas particularidades, deposita-se nele um
produto ideológico, a representação de uma ideologia.
De acordo com Bakhtin (1997), o signo tem caráter ideológico por
revelar uma multiplicidade de significados e sentidos possíveis expressos
numa interação social, de acordo com os interesses social, cultural,
econômico.
O
caráter
ideológico
estende-se
a
variadas
dimensões
fenomenais, do signo verbal ao não-verbal:
Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma
encarnação material, seja como som, como massa física, como cor,
como
movimento
do
corpo
ou
como
outra
coisa
qualquer.
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1997, p. 33).
A encarnação material do signo traduz o mundo exterior, um significado
que gera outro signo. O signo não corresponde apenas a duas partes:
significante e significado, como expressa uma das dicotomias saussureanas,
mas a inúmeros significados e significantes.
A infinidade de significantes e significados do signo lingüístico e não
lingüístico gera a refração do signo. Compreendemos, desse modo, que os
signos refratam e refletem o mundo material, carregando diversos e
inacabados feixes de pensamentos construídos na dinâmica da vida.
O efeito da coexistência de distintos valores sociais, culturais e
ideológicos confrontados e compartilhados entre os indivíduos ao longo de
sucessivos ciclos vitais é a configuração da refração do signo lingüístico, ou
seja, a multiplicidade de fendas semânticas que o signo constantemente gera,
evitando uma única verdade. Significar, portanto, é refratar; não é possível
significar sem refratar. A refração, assim, é o modo como se inscrevem nos
signos a diversidade e as contradições das experiências históricas dos grupos
humanos. Como nos mostra Faraco (2003), a partir da leitura do pensamento
bakhtiniano sobre a refração do signo:
Os signos são espaços de encontro e confronto de diferentes índices
sociais de valor, plurivalência que lhes dá vida e movimento
caracterizando o universo da criação ideológica como uma realidade
infinitamente móvel (FARACO, 2003, p. 53).
A refração sígnica é compreendida como um entrelaçamento de
inúmeras linhas de consciências e verdades explicitadas ou não em diferentes
discursos, no suporte de enunciação. Desse modo, o caráter refracionário do
signo revela várias direções de significados valorativos e mostra a diversidade
de percepções ideológicas de determinados grupos humanos, que foram e
são, naturalmente construídas ao longo da experiência do convívio social.
2.1 TRAÇOS CONSTITUTIVOS DA LINGUAGEM: DO PRINCÍPIO
DIALÓGICO AO INTERDISCURSIVO
Ao pensarmos em esfera comunicativa humana na perspectiva de
Bakhtin (1997), estamos nos referindo ao contexto, diríamos, da linguagem
estratificada socialmente, de caráter predominantemente heteroglossêmico ou
plurilingüístico, revelador de multiplicidade de línguas sociais. A estratificação
da linguagem é representada em enunciados verbais, os quais denunciam a
disposição paralela de estratos cristalizados ou camadas sociais, carregados
de dimensões avaliativa e opinativa, que expressam posicionamentos sócioideológicos diversos.
A comunicação verbal é marcada pela interação com o outro, pela
relação do eu com o outro, idéia que fundamenta a metáfora do diálogo infinito
de um discurso com o outro. A palavra ideologia aqui, em sentido amplo,
significa o universo de produtos do espírito humano ou da cultura imaterial,
cujas manifestações são de caráter filosófico, religioso, político, dentre outros.
Levando em consideração a estratificação da linguagem e a refração do
signo, qualquer enunciado é ideológico, já que toda palavra em uso está
sempre sujeita a ser avaliada, está a serviço de julgamentos e opiniões.
Para Bakhtin (2002), a linguagem é por natureza heterogênea e
dialógica em oposição ao caráter homogêneo e fechado da língua, tal como
sugeria Saussure.
Mas o que chamamos de caráter dialógico da linguagem, atributo que
remete a uma palavra tão habitual entre nós: ao diálogo?
Compreendemos por dialogismo uma tensão entre diálogos constantes
e infinitos. Trata-se de cruzamentos de fronteiras vocais, onde diferentes vozes
sociais se entrecruzam continuamente e multiformemente. Ele é construído
através de pressuposições de outros dizeres, sendo eles um diálogo com
outros, nem sempre simétrico e harmonioso, entre os diferentes discursos que
se configuram numa comunidade lingüística. Esse dizer é, portanto, de uma
reposta ao já dito, ao não dito, e refuta, confirma, prevê reflexões, dentre
outras ações.
O diálogo entre discursos a que nos referimos não se trata de um
consenso ou de um acordo entre interlocutores acerca de um pensamento,
mas de uma infinidade de relações ideológicas, de um espaço de confronto
entre vozes sociais.
Desse modo, o dialogismo é concebido como o princípio constitutivo da
linguagem e através desse princípio é gerado, de acordo com Mainguenau
(2004) o primado do interdiscurso.
Maingueneau (op. cit) defende que o discurso se firma a partir da
inserção e cruzamentos de outros discursos, o discurso existe a partir de uma
alteridade que sempre o atravessa. A construção interdiscursiva, por sua vez,
perpassa pela tríade: universo discursivo, campo discursivo,
espaço
discursivo.
O universo discursivo compreende a diversidade discursiva, ou seja, as
possibilidades múltiplas de valores e de posturas ideológicas tomadas pelo
homem ao longo de sua experiência social. E integra o conjunto de distintos
grupos ideológicos ou campos discursivos que entram em atrito, em confronto,
em afinidades.
Tais grupos são denominados campos discursivos. Cada campo
apresenta um conjunto de formações discursivas (que designa a construção
histórica, social, cultural, econômica de determinado campo discursivo ou de
um membro que pertença a esse campo).
Há os campos político, filosófico, cinematográfico, dentre outros, sendo
esses recortes de um universo discursivo. Isso não significa, portanto, que
cada campo seja isolado um do outro, ao contrário disso, um perpassa o outro
continuamente,
gerando
diálogos.
Dessa
maneira
há
a
visualização
panorâmica de diferentes campos, possibilitando a dinâmica de trocas e
relações entre eles.
E sua possível especificação, como nos referimos acima, ocorre em
favor de uma escolha. A partir da delimitação de um campo discursivo
constitui-se um discurso e nele se visualiza uma rede de operações
consideradas regulares e que moveu sua formação.
No campo discursivo há uma diversidade de espaços discursivos ou
planos
discursivos,
coexistentes
e
concorrentes
entre
si.
As diferentes formações social, política, ideológica, cultural, ou seja, as
distintas formaçôes discursivas, movidas por posições e objetivos outros,
podem conviver num mesmo campo discursivo.
Tendo em vista esta breve apresentação dos conceitos
dialogismo,
universo discursivo, campo discursivo, formação discursiva e espaço
discursivo, consideramo-los elementos que contribuíram de algum modo para
discutirmos polêmicas em volta de posicionamentos problematizados10 na
canção Tom Zé.
2.2 A CONSTRUÇÃO DA ENUNCIAÇÃO
Agora, explanaremos alguns conceitos referentes aos elementos que
constroem a enunciação, o evento que constitui o agente principal da inserção
do homem no mundo:
O pivô da relação
entre língua e o mundo: por um lado, permite
representar fatos no enunciado, mas por outro, constitui por si mesma
um fato,
um acontecimento único definido no tempo e no espaço
(MAINGUENEAU, 2005, p. 193).
Num dado enunciado, a realização de um produto verbal e não verbal,
através da interação é legitimada a partir da integração de vários elementos,
dos lingüísticos (código de linguagem) aos não lingüísticos (gestos, sons,
Diálogo entre os posicionamentos Bossanovista e Tropicalista, apresentado no capítulo 4,
pgs. 70-75
10
disposição de objetos). É através da interlíngua11, ou seja, das relações dadas
numa determinada conjuntura entre as variedades de uma mesma língua, que
se constitui um código de linguagem, atribuindo singularidade a uma obra.
Maingueneau (2001: 104) define o termo código como um sistema de regras
aliado a um conjunto de prescrições e de signos que geram uma comunicação.
A interlíngua, relação entre línguas diferentes e as variações de uma
mesma língua, dá-se através de uma pluralidade de línguas, externa e interna.
Sabemos que a legitimação de um discurso não se dá necessariamente
através de uma única língua. O autor empírico de uma obra pode, em dado
contexto, por alguma razão, romper com a homogeneidade lingüística através
do plurilingüismo externo, do uso de outras línguas externas à língua materna.
O efeito do uso de outras línguas num enunciado sugere várias
intenções, como a diluição de um conservadorismo lingüístico, do domínio ou
de uma suposta superioridade de uma língua sobre outra.
Um escritor, além de poder utilizar línguas externas no seu discurso,
pode usufruir também da variação lingüística no âmbito de uma mesma língua.
É o que chamamos de plurilingüismo interno. Essa variação se dá em função
de distintos contextos: geográfico (dialetos, regionalismos), social (popular,
aristocrática, etc.), situação de comunicação (médica, jurídica...), níveis de
língua (formal, familiar...).
O enunciado, ao se estabelecer através do código de linguagem,
constrói cenas de enunciação, o contexto imediato da enunciaçâo. O termo
“cena” refere-se à designação teatral por pressupor numa enunciação a
existência de bastidores, cenários, participantes com papeis definidos.
As cenas enunciativas tratam da cena englobante, cena genérica e da
cenografia. A cena englobante implica o tipo de discurso que é praticado
(político, religioso, publicitário etc.). Já a cena genérica se relaciona ao gênero
do discurso, que prática discursiva é designada, se é um artigo jornalístico,
uma propaganda televisiva. Essas duas cenas constituem o quadro cênico que
é definido como o espaço estável no interior do qual o enunciado adquire
A idéia de interlíngua se relaciona com a noção de heteroglossia ou de plurilingüismo, de
acordo com Bakhtin (1993).
11
sentido - o espaço instável do tipo e gênero de discurso (Maingueneau,
2001:87).
E por último, a cenografia designa a condição e o produto de uma
enunciação, constituindo um articulador da obra e do mundo. Ela é o processo
fundador de inscrição legitimada de um texto. Apresenta, canonicamente, um
foco de coordenadas estabilizado que se refere direta ou indiretamente à
enunciação construída a partir de protagonistas da interação da linguagem:
enunciador, co-enunciador, assim como as circunstâncias espacial e temporal
(eu e tu, aqui e agora).
Ela define as condições de enunciador e co-
enunciador. A cenografia ou situação de enunciação de uma obra é enunciada
através de uma instituição verbal, de um gênero discursivo (não sendo ele o
fator único e inteiramente condicionante da obra), que também traz suas
próprias condições de produção como participantes: o lugar, o momento para
sua manifestação, os circuitos por quais passa e a norma que presidem o seu
consumo.
De acordo com Maingueneau (2001), a cenografia de uma obra literária
é dominada pelo cenário literário, que é o contexto pragmático da obra, que
associa uma posição de autor e uma posição de público, cujas modalidades
variam de acordo com as épocas e as sociedades. Os elementos que integram
as condições de situação de um enunciado (posturas do enunciador, tempo,
espaço), no entanto, nem sempre estão explícitos.
Outro elemento que integra a cena enunciativa é o ethos no qual o
enunciador expressa uma “voz”, uma voz que marca posturas, formas de
habitação do sujeito interlocutor do enunciado e que são assimiladas pelo coenunciador frente a uma cena genérica. Estamos falando também de um
conceito originado na Retórica antiga, o ethé ou ethos, que diz respeito ao
modo como o enunciador orador fala seu discurso, que gestos, posturas
política e ética, revelam ao ouvinte. De acordo com Aristóteles, a concepção
de ethos, traduzida por Maingueneau, designa:
as propriedades que os oradores se conferiam implicitamente, através
de sua maneira de dizer: não o que diziam a propósito deles mesmos,
mas o que revelavam pelo próprio modo de se expressarem.
(ARISTÓTELES apud MAINGUENEAU, 1997, p. 45)
O ethos que antes era observado apenas em gêneros de discursos
recitados e orais (em textos literários, como na epopéia e em discursos
políticos, judiciários, respectivamente), torna-se visível também em textos
escritos. Sua manifestação pressupõe a veiculação de um gênero discursivo.
Portanto, o ethos (o modo de se mostrar do enunciador ao coenunciador) é expresso pela palavra oral e escrita, pelo gesto, aspecto físico e
entonação, constituindo num gênero discursivo, sendo tais elementos próprios
do sujeito encenado e não do sujeito real. Maingueneau (1995, 1997, 2001)
leva em conta três categorias para se analisar o etos: o tom, delineado numa
vocalidade, o caráter e a corporalidade.
Qualquer gênero do discurso carrega consigo uma vocalidade, ou seja,
uma voz do sujeito que é expressa através de um tom e que é conferida pelo
co-enunciador. Como coloca Maingueneau (1997, p. 45), “... a descrição dos
aparelhos não deve levar a esquecer que o discurso é inseparável daquilo que
poderíamos designar muito grosseiramente de uma ‘voz’”.
O tom é construído a partir de uma voz numa dada cenografia, é
empregado para todos os enunciados escritos. O tom está ligado ao caráter,
que designa um conjunto de propriedades psicológicas, estereotípicas
específicas de uma época e lugar, expressas pelo enunciador e sendo
atribuídas pelo leitor-ouvinte.
A corporalidade refere-se a uma representação do corpo que envolve a
maneira de se vestir e de se movimentar do enunciador. O corpo não é só
explicitado pelo enunciador, mas também induzido pelo co-enunciador. No
gênero discursivo de modalidade escrita a corporalidade pode ser percebida
em marcas lingüísticas, na iconografia do texto. Na verdade, o corpo ou
corporalidade de um discurso está em diversas linguagens, podendo ser
transmitido de várias maneiras, pois como explicita Maingueneau (2001, p.
140):
Através da iconografia, dos tratados de moral ou de devoção, através da
música,
da
estatuária,
do
cinema,
da
fotografia...,
circulam
esquematizações do corpo, valorizados, ou desvalorizados, que
encarnam vários modos de presença no mundo.
As categorias que denotam um tipo de etos (tom, caráter e
corporalidade) são integradas num discurso formando um corpo que será
incorporado por um co-enunciador. A incorporação é a ação que o etos exerce
no seu co-enunciador, levando-o a conferir um etos ao seu fiador, é a leitura
que nós fazemos do etos. De acordo com Maingueneau (2001, p. 140), a
incorporação é um processo que pressupõe três registros interligados:
-
A enunciação da obra confere uma corporalidade ao fiador, dá-lhe
corpo;
-
O co-enunciador incorpora, assimila desse modo um conjunto de
esquemas que correspondem a uma maneira específica de se
relacionar com o mundo habitando seu próprio corpo.
-
Essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um
corpo, o da comunidade que comungam no amor de uma mesma obra.
Diante da integração dos elementos que compõem uma enunciação:
interlíngua, ethos, as cenas englobante e genérica, montando uma cenografia
(o espaço definidor das condições contextuais ou pragmáticas do enunciador e
co-enunciador), têm-se como efeito dela um posicionamento ou uma tomada
de posição política, ideológica, assumida pelo sujeito enunciador. O
posicionamento, num sentido amplo, segundo Maingueneau (2001), diz
respeito às:
... doutrinas, escolas, movimentos estudados pelas escolas literárias...
Ao fazê-lo, exploramos a polissemia de posição em dois eixos
principais: o de uma tomada de posição, o de uma ancoragem num
espaço conflitual (“fala-se de uma posição militar”) (MAINGUENEAU,
2001, p. 69).
A canção, além de ser um diálogo entre a vida e as "técnicas" de
composição, é também resultante de uma prática discursiva, por nela estarem
atuando posturas e formações discursivas concorrentes, constituindo-se em
uma situação de enunciação onde há um sujeito ou sujeitos enunciadores
(cancionistas) que desvendam ao co-enunciador (ouvinte) uma certa atitude,
um posicionamento político, explícita ou implicitamente.
Diante da relação dos elementos: código de linguagem, cenografia,
etos, apresenta-se como efeito dessa imbricação um posicionamento social.
Portanto, discutimos efeitos de sentido gerados pelos investimentos
discursivos, ou seja, pelos elementos textuais ou não, que legitimam um
discurso, permitindo a inserção do homem no mundo, observados no discurso
literomusical de Tom Zé.
Chamamos a atenção para o termo investimento discursivo, o qual será
utilizado ao longo desse trabalho. O referido termo foi designado por Costa
(2001)12, ao se apropriar de umas das categorias discursivas sistematizada por
Maingueneau (2001),
a de investimento genérico. Essa define que o
enunciador ao tomar uma posição ideológica ou posicionamento parte de um
investimento, de uma aposta numa modalidade genérica ou num gênero
textual em defesa e em legitimação de seu discurso. Costa (op. cit.) expande
a noção desse investimento a todas as partes integrantes de uma enunciação,
argumentando que o investimento se dá em todos os momentos de inserções
enunciativas.
Portanto, o enunciador ao se pronunciar investe não só num gênero
discursivo, mas também num código de linguagem, num ethos, numa
cenografia.
12
Na tese A PRODUÇÃO DO DISCURSO LÍTERO-MUSICAL BRASILEIRO. O estudo pioneiro em
descrever a produção da Música Popular Brasileira com fundamentos da Teoria da Análise do Discurso
de linha francesa(AD).
3. DESCANÇÃO E DESLINEARIZAÇÃO
Apresentamos nesse ponto o que compreendemos sobre “descanção”
(palavra recorrente no nosso trabalho) e algumas considerações sobre a idéia
de deslinearização, partindo de reflexões de Wisnik (1989), Tom Zé (2003),
Pignatari (2004) e de Campos (1997).
A descanção como um modo de musicar. Um fazer errado ou um
desfazer fazendo? Como esse modo de fazer canção se constrói? Quais
percursos são trilhados? Que elementos se relacionam ao caráter tropicalista,
ao não tropicalista ou, quem sabe, a um outro ser tropicalista?
Tentaremos definir nesse momento algo quase indefinível, a descanção,
que, para nós, torna-se um incômodo necessário. Descrever o sentido de
descanção é dialogar com questões em torno de canção no sentido amplo.
A descanção é um modo de construir uma canção, diz respeito à
construção de arranjos musicais, a gestos enunciativos que envolvem as
manifestações verbal e não-verbal, que transgridem certa linearidade sonora.
A denominação descanção nega a palavra canção, não no seu sentido
“genérico amplo”, dado como uma música breve acompanhada de canto e
instrumento, mas no sentido canônico, apreendido pelo código apriorístico,
expressão que designa um modo predeterminado de fazer canção voltada para
fins comerciais.
Antes de
nos determos nesse assunto, voltemos um pouco a uma
breve história e origem da canção brasileira.
Foi através da interação entre as culturas indígena, africana (dos rituais
religiosos, magia acompanhado de instrumentos rítmicos, percussivos e de
sopros - gaitas, apitos) e a portuguesa (da manifestação musical mais
melódica que rítmica, em hinos católicos e cantos gregorianos) que a música
se expandiu em lugares maiores, aproximadamente no século XVII13.
O canto como voz põe em prática a vontade de dizer, de contar. Aliado
ao som e vozes de instrumentos musicais, materializa-se a canção.
Num sentindo sublime e vital da palavra, a canção é um modo de
compor a vida e seu cotidiano em ritmos e melodias, é o registro de práticas e
gestos experienciados que traduzem vivências e histórias do indivíduo no
mundo. A voz cantada é muito mais que cantar: é relatar. A característica
formal que a designa é a união do canto a uma melodia.
Partindo de uma reconstrução das raízes da canção brasileira, através
de uma leitura não tão profunda de Tatit (2005), vimos na canção um modo de
afirmação das misturas de representações vocais dos batuques africanos,
mestiços e brancos europeus de classes inferiores.
Tais dados históricos nos mostram uma visão da manifestação musical
naquele período e nos leva a relacionar, de algum modo, à idéia de
descanção, como um caminho de mistura de sons e culturas, sem se fixar
numa hierarquia de valores sonoros.
Como ouvir o som de uma descanção? Talvez seja necessário que
entremos numa onda, que nos movimente para vários lados e perspectivas.
Falo de ondas que nos tocam e tocam, de uma física e metafísica
sonora. A onda como corpos vibrantes transmitidos na atmosfera, num tempo
contínuo: impulso e repouso. A música é o som das ondas: “movimento em
sua complementariedade, inscrito na sua forma oscilatória, é pausa e silêncio
quando oscila em seu repouso. Há tantos ou mais silêncios quantos sons nos
sons”(WISNIK, 2004, p. 19).
A afirmação acima já nos diz um quase tudo sobre música, é uma
descrição complexa que nos relata muito mais, instigando-nos a percebê-la
intimamente. A oscilação sonora, ao mesmo instante que nos envolve num
tempo e num contratempo, por outro lado, leva-nos a um impulso, lança-nos
Para maiores esclarecimentos de fundamentação histórica da Música Popular Brasileira,
consultar o trabalho de Luiz Tatit, O século da canção (2005).
13
fora de uma linha cancional prevista. A voz, portanto, na canção descanção
pousa, arrisca outras vozes e palpita. Perceber que no silêncio há tanto som e
que no som há tanto silêncio é, de algum modo, conceber a música como uma
forma de descanção.
Romper com o tempo previsto da canção, escutar ruídos gerados pela
imprevisibilidade do cantar e de um dado arranjo é, de certa maneira, desfazerse de um código apriorístico musical, de um modelo linear de canção, que se
presta unicamente à demanda comercial. Discutir o fazer musical, pensar
outros discursos musicais (valores desconstrutores e reconstrutores musicais,
políticos, cultural, econômico) na canção, significa se introduzir no campo de
uma descanção.
Ao lermos Tom Zé em narrativa do seu processo de composição, a
canção parece ser apenas um meio para se chegar a uma outra canção,
chamada descanção: Minha quimera de fazer descanção não aludia à canção
em si, era só um artifício para eu poder cantar sem ser cantor (ZÉ, 2003, p.24).
Com esse depoimento Tom Zé assume na sua fala um etos de ruptura com a
canção no seu sentido canônico, música acompanhada de voz e instrumento.
Essas informações parecem apontar para um modo de compor a descobrir,
insento de predeterminações. Assim, antecipa-nos a construção do ethos de
uma descanção.
Mas não sabemos ainda qual seria essa canção que não é canção. Aos
nossos ouvidos, essa canção sempre está por vir, parece que ela não se fecha
nela mesma, e caso isso aconteça, dar-se-ia no desencontro com o modelo de
canção determinado.
Pensamos que a idéia de descanção significa romper com o tempo
previsível na canção, digamos, uma ruptura no código apriorístico musical.
Noção referente à redundância de conhecimento musical, ao conjunto de
características de natureza prevista, unidas num código construído de
elementos que independem da experiência do leitor ouvinte, sendo algo a
priori, apriorístico, que leva o ouvinte à absorção global de uma mensagem
musical condicionada sobre valores estéticos impostos arbitrariamente.
Então,
a
audição
possível
de
uma
canção
dar-se-ia
pelo
reconhecimento de elementos sonoros repetitivos, previsíveis, tornados
convencionais pela mídia. Tal afirmação nega a concepção segundo a qual o
artista
oscilaria
numa
dialética
banal-original,
previsível-imprevisível,
redundante-informativa, de acordo com A. Mole (apud CAMPOS, 1993, p.180).
O reconhecimento dessa repetição retroalimenta a digestão de mais um
produto industrial, em série, alimentando a máquina publicitária, comercial
fonográfica.
O ouvinte, portanto, é contaminado por valores estéticos musicais,
arbitrariamente: como dadas melodias, arranjos e letras, retroalimentados pela
mídia e indústria fonográficas. Percebemos uma ascensão quantitativa de um
produto finalizado que se opõe ao valor qualitativo da música popular.
A música que favorece o código apriorístico se faz numa redundância,
na repetição em série, tida como produto acabado. Quanto maior a
redundância e a previsibilidade, menor é o conhecimento, a informação e a
aprendizagem,
se
não
há
conhecimento
não
há
comunicação.
Ao
consultarmos Pignatari (1997), vimos que há dois casos extremos de nãocomunicação: o da imprevisibilidade total e o da total previsibilidade dos sinais.
Se há um total estranhamento na canção que não leva à interação de
um signo com outro, não é possível sua audição, podendo haver, que é o
menos significativo, uma compreensão precária que não traduz sentidos da
escuta. Possivelmente, como exemplo dessa “intradução” ou “incompreensão”
seria, hipoteticamente, uma canção tocada numa língua inédita, totalmente
nova, ao som de instrumentos também inusitados aos ouvidos de um público
que, culturalmente não usufrui desse tipo de sonoridade.
Caso haja uma total previsão do que se pronuncia, a informação tornase redundante, a compreensão é prolixa, uma prolixidade desnecessária,
impotente. A redundância, nesse caso, trata-se de uma canção que segue
praticamente um mesmo arranjo, uma mesma temática, “diferenciando-se”
apenas uma da outra o timbre de voz, embora muitas vezes há uma repetição
dela14.
14
Tais como as vozes das cantoras Ivete Zangalo, Daniela Mercury, dentre outras.
Como um locutor, então, pode emancipar-se, musicalmente, e ocupar
um lugar no mundo se não se comunica? Esse é um dos problemas presentes
na canção vinculada ao código apriorístico, que mostra sempre uma mesma
idéia de signo musical ou uma mesma configuração de arranjos verbal e não
verbal, os quais tendem a migrar para um não lugar, sendo este o da
repetição, o lugar fixo e pré-estabelecido.
O efeito desse hábito reduz a qualidade de recepção musical do ouvinte.
Ele, convivendo com esse modo de construção musical, em idade mais
avançada, só reconhece e não conhece outro modo de canção. Tal evento
ocorre devido a sua maior resistência em não aceitar a imprevisibilidade de
arranjos em função de uma convenção, de um código apriorístico musical, de
um conjunto de arranjos musicais cristalizados, imutáveis.
Já a música numa condição qualitativa, da não redundância, trata-se de
um processo em construção, que se propõe à abertura de reformulações e
recriações, à interrupção da linearidade. A descanção, nesse sentido,
atravessa o código apriorístico, abrindo possibilidades de outros códigos que
constroem imprevisibilidades e descobertas.
Ainda assim, a descanção pode gerar também uma previsibilidade, no
entanto, diferente da outra, a significativa: a previsão da imprevisibilidade.
Minuciosamente, a descanção ocorre no plano estético e não-verbal
(melódico, instrumental e com relação à mistura de gêneros cancionais), no
seu plano verbal, através de modos de desconstruções sintáticas, de
recriação, montagem e remontagens lingüísticas. Ela não se realiza numa total
imprevisão.
A imprevisão não significa um fazer aleatoriamente. Paradoxalmente, há
um planejamento da imprevisão, seria um acordo tácito, como Tom Zé
apresenta no seu livro autobiográfico:
...era o que eu queria fazer com a canção tradicional: limpar o campo.
Conclusão que me induziu a organizar as outras idéias que até então,
vinha praticando intuitivamente e desorganizadamente (ZÉ, 2003, p. 21).
As idéias desorientadas tomaram um corpo organizado e se revelaram
num plano compreendido em quatro pontos: mudar o tempo do verbo, trocar o
lugar no espaço - o lugar, achar um novo acordo tácito, limpar o campo.
Mudar o tempo do verbo (ZÉ, 2003, p. 21),
era sair do passado e
praticar o presente. Acordo contrário ao das canções tradicionais que
habitavam sempre um passado, o de contação de histórias.
A troca do lugar (ZÉ, 2003, p. 22), onde vivia, em Irará, já atraía um
passado de épocas. Então, mudar geograficamente era construir um novo
presente, que se refletisse na sua canção. O intuito aparente era expandir a
canção, arejá-la e desapegar-se do
passado tão presente e arraigado. A
mudança do lugar revelava a busca de novas fronteiras para a canção.
O terceiro ponto seria um acordo tácito (ZÉ, 2003, p. 22): um diálogo
entre cantor e ouvinte. Através do cantar o presente, Tom Zé introduziria um
assunto espelho na canção, na qual o ouvinte fosse o próprio personagem.
O último ponto, limpar o campo (ZÉ, 2003, p. 22), um novo passo para
se desfazer de uma canção insatisfeita. Segundo o relato do compositor, ele se
inspirou numa cena do curso de fotografia que havia realizado, descobriu mais
uma maneira de se chegar à almejada “canção”. A cena referida era a do
instante em que lhe foi sugerido a observação de duas fotografias de uma
mesma pessoa. Uma contaminada por objetos desordenados e a outra apenas
com a imagem da pessoa sem objetos. A fotografia mais preenchida de
objetos, que embaraçavam a imagem inferia a limpeza desse campo.
Encarregado de retirar os elementos que compunham a primeira foto,
surpreende-se com o processo da retirada. Ação que o levou a relacioná-la
com a canção, ao desejo de limpar seu campo cancional, livrar a canção da
contaminação do passado e da temática padrão: o amor infeliz.
No entanto, ao nos aproximarmos desse campo cancional, mais
presente cronologicamente15, compreendido nos álbuns Com defeito de
Fabricação, Jogos de Armar, Imprensa cantada torna-se mais coerente usar a
expressão “sujar ou poluir o campo”, não limpá-lo. Como significa a expressão
“épater la bourgeoisie”, ou seja, “desafinar o coro – monofônico – dos
contentes” etc.
A partir dessas inquietações foi se construindo o significado de
descanção. Além de se opor ao código apriorístico de música, é uma maneira
de se desapegar do passado cristalizado.
Portanto, consideramos a descanção um modo de composição que
gerou a canção de Tom Zé, desde o princípio de sua trajetória. Ao mesmo
instante que ela o fez existir, levou-o a uma condição de isolamento16, por ele,
talvez, não ter correspondido às expectativas de gravadoras e produtoras da
época, diferentemente do que ocorreu na década de 1990. A partir daí, vem
se lançando através de uma gravadora de porte “pequeno”, a Trama, mas com
dada ascensão no mercado fonográfico.
Ao nosso olhar, o sentido da descanção no processo de composição
estende-se também aos mais recentes trabalhos de Tom Zé17. E é assumida
como um posicionamento estético, ideológico e político.
Um posicionamento descancional que gera uma política musical, um
modo de se relacionar com a canção, sublinhando valores e incômodos de
ordem estética e ética gerados no campo musical. E que são influenciados por
fatores externos e internos ligados à canção, também no seu sentido formal.
Nesse contexto, ao incorporar a figura de cantor e compositor, Tom Zé
leva-nos a reconfigurar aspectos sobre música popular: quanto à distribuição
canônica de gêneros cancionais, da cultura nordestina, da mídia e indústria
fonográficas, de personagens e mitos.
Aproximadamente entre o período 1999-2005.
Estamos nos referindo ao período (1970-1980) de construção dos álbuns Estudando o
Samba, Todos os olhos, Correio da Estação do Brás, Nave Maria, Se o caso é chorar. Instante
em estado de ostracismo.
17
Jogos de Armar-Faça você mesmo (2000); Com defeito de Fabricação (1999); Imprensa
Cantada (2003).
15
16
4. A VOZ QUE ALIMENTA A VOZ
“A voz jaz no silêncio do corpo como o
corpo em sua matriz”
Zumthor
Mudando de um lugar para outro e habitando o mesmo, ouvimos com
mais ouvidos a construção de vozes que se cancionam e descancionam na
música de Tom Zé.
Não cabe à voz apenas um olhar fisiológico, lingüístico, fonético vocal. A
sua emissão cantada, interpretada marca um lugar ou lugares na canção. Para
além de um debruçar-se cientificamente sobre ela, a voz expressa sua
materialidade no seu próprio ato de manifestação. Delimita uma vontade de
dizer, de existir do indivíduo que nela perpassa:
(...) a voz é querer dizer a vontade de existência, lugar de uma ausência
que, nela, se transforma em presença; ela modula os influxos cósmicos
que nos atravessam e capta sinais: ressonâncias infinitas que faz cantar
toda matéria.... (ZUMTHOR, 1997 p. 11)
A voz constrói, em volta da palavra enunciada, simbologias: ... a voz e
suas vias, a garganta mais profunda... boca emblemática, passagem para além
do corpo... (p. 15). Assim, traduz-se o intraduzível. A voz mostra um corpo na
sua dinâmica cantada e não cantada.
Ouvimos a música captando sua voz ou vozes, não só a voz do músico
interpretador (que emite outras vozes, além da sua) como a voz do arranjo de
instrumentos não verbais, reveladoras do que há em nós. E se direciona ao
outro e a nós mesmos. Sentimos a música em seu sentido amplo, a música
das músicas, assim, entre a variedade de vozes, humanas e trans-humanas,
talvez.
Apesar da concretude vocal na canção referente aos seus traços
qualitativos palpáveis como o tom, timbre, alcance, altura, registro, há também
traços talvez inomináveis, na sua escuta, que nos sugerem uma hibridação e
dispersão de sons, tornando ainda mais viva sua materialidade.
4.1 A PERFORMANCE NA CANÇÃO
A diversidade de linguagem humana para expressar inúmeras idéias e
sensações é vasta e indomável. A música, assim como o teatro, dentre outras
vivências e experiências transcendentais traz corpo, voz e vozes. Possibilita a
desconstrução da linearidade da voz e do corpo previsivelmente modelado
socialmente, dentro de valores comportamentais canônicos, estereotipados.
A desconstrução, portanto, torna-se mais uma maneira de se posicionar
no mundo, mais um modo de vivenciar o corpo sem seguir, necessariamente,
valores pressupostos, institucionalizados.
É através da desconstrução do corpo e voz que adentraremos também
na idéia de uma performance na canção que, possivelmente, migra para uma
descanção ou para a desconstrução de canção. Traz à tona rasuras vocal e
instrumental.
Compreendemos o sentido de rasura como ato ou efeito de risco,
raspagem, feito na parte escrita de um texto ou documento etc. para tornar
inválidas ou ilegíveis palavras ali contidas18. O risco ou raspagem ocorre no
texto da canção, na voz e instrumento, mas que a possível invalidade ou
ilegibilidade constrói outra validade textual, musical.
Defendemos no contexto de nossa análise que o sentido do risco ou
raspagem característico da rasura torna um texto ilegível para assumi-lo em
sua legibilidade. É necessário encobrir, omitir ou errar o texto de uma canção,
potencialmente estereotipada com certos valores pré-estabelecidos, como
apresenta o código apriorístico19, para afirmar o seu contrário.
18
19
Definição apresentada no dicionário Houaiss, de Língua Portuguesa.
Páginas 19-21.
A rasura afirma a voz do corpo, dos instrumentos, dos arranjos
instrumentais, criadora de outro tempo e encenação na canção. Levando-nos à
dinâmica de uma descanção.
A rasura é percebida como um investimento discursivo, um acréscimo
de algo que perturba uma sonoridade canônica. Ela é desencadeada em
arranjos vocal e instrumental, possibilitando gerar atos performáticos20 vocais e
corporais (estereotipados ou não) que expressam outros modos de habitar a
música.
No contexto das artes plásticas, a performance pode ser um ato
transgressor e de ruptura. Foi influenciada pelo pensamento oriundo do
movimento de vanguarda - o futurismo, na Itália, século XX, que tinha como
foco radicalizar os conceitos vigentes de arte. Enfocaremos a performance
vocal na canção, lugar e manifestação musical de maior interesse nosso. A
performance musical em sentindo amplo
compositor Jonh Cage, que
teve significativa interferência do
incorporava nela
silêncio, ruídos, pausas
imprevisíveis, princípios zens, elementos influenciados pela cultura oriental.
Rasurar e performatizar a canção é dialogar com outros campos
discursivos da música. É possível através dela desfazer-se de “laços
familiares” e reconstruir histórias. É criar uma nova música, um novo percurso
sonoro, num sentido amplo, trilhar caminho que integra uma atmosfera sempre
em fertilização.
A rasurar a canção e assumir atos performáticos pode causar efeitos de
carnavalização e grotesco, no sentido de Bakhtin (1999).
5. MOVIMENTO DE INSTABILIDADE NA CANÇÃO: UMA CONDIÇÃO
PARATÓPICA
20
De acordo com Zumthor, ato performático é uma ação oral-auditiva complexa, pela qual uma
mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, aqui e agora. (ZUMTHOR,
2001, p.222).
Nesse instante cabe a apresentação do conceito paratopia, que
denomina uma condição instável do indivíduo.
Em outros termos, a condição paratópica expressa o estado inconstante
do indivíduo de estar e não estar em lugares institucionalizados ou não.
Refere-se a uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar, uma localização
parasitária,
que
vive
da
própria
impossibilidade
de
se
estabiliza
(MAINGUENEAU, 2001, p 28).
O termo paratopia designa para além do topos, do lugar, mas que lugar
é esse? Os lugares socialmente cristalizados (classe, papéis, cargos, etc.) e,
sobretudo, o da instituição, com a qual um indivíduo convive conservando
normas ou regras impostas explicitamente e implicitamente, sendo socialmente
reconhecidas e que lhe cobram fixação e permanência.
Desse modo, um indivíduo escritor ocupa um lugar para além do lugar
institucional, fato que torna conflituosa sua existência, pois, assim como um
músico, um dançarino, um cineasta, dentre outros, (...) alimentam sua obra
com o caráter radicalmente problemático de sua própria pertinência ao campo
literário (digamos o artístico) e à sociedade (MAINGUENEAU, 2001, p. 27).
A Literatura, assim como outras linguagens humanas e artísticas
(Música, Cinema, Teatro, Artes Plásticas)21, são percebidas, de modo amplo,
sociologicamente,
mas antes, também, em seus micro lugares ou campos
específicos: o literário, o musical, o cinematográfico, dentre outros.
São
nesses micros lugares que encontramos macro e rígidas regras que fazem o
escritor ou músico, dentre outros, existirem socialmente num campo menor.
Como produzir música sem corresponder às expectativas “contratuais”
desse micro campo? Que “normas” regem o campo musical? Então, como é
ser músico “sem ser músico”? Como essas questões se refletem na canção de
Tom Zé?
Maingueneau restringe-se em suas análises textuais ao campo literário: relação escritor,
sociedade, instituição. Em algumas obras, ele analisa textos religiosos, teatrais, jornalísticos e
publicitários. Estamos nesse contexto observando a relação músico, sociedade instituição. O
músico como escritor musical.
21
A verdade é que há vários campos na Música, um campo maior (o
dominante) e sub-campos (os marginalizados) em cada gênero cancional. O
campo maior seria o campo apriorístico musical ou código apriorístico, que
segundo Campos (1997), refere-se às leis sagradas e imutáveis de um código
de linguagem musical condicionado pelo veículo de massa, retroalimentador
de uma convenção de valores estéticos musicais, que cristaliza a música,
conforme já vimos.
O outro campo denominado subcampo se encontra em espaços sociais
mais isolados, são campos sem pré-determinações que, movidos por um
intenso desejo de existir, como os grupos nomeados “Rock de garagem”,
sobrevivem de qualquer modo. A música que se inscreve nesse campo toca
em lugares específicos, em estúdios anônimos, por opção própria ou em
outras circunstâncias, raramente tocam em algum lugar, por não cumprir com
dados arranjos e melodias “impostos” pela indústria fonográfica.
De certo modo, assim se fez a canção de Tom Zé22 e de muitos dos
quais nem sabemos pelas razões de optarem por se tornarem “inexistentes”,
sendo possível também uma outra, a de não corresponder às expectativas
fonográficas. E nesse subcampo, há ecos de canção sempre dispersos numa
atmosfera musical desinteressada.
5.1 O SER GROTESCO E CARNAVALIZANTE
A condição instável, parcialmente isolada ou paratópica do indivíduo ao
romper com determinada hierarquia institucional pode também integrar-se ao
estado de grotesco. Estado em que o indivíduo provoca e assume as
necessidades viscerais e vitais do corpo,
permitindo-se a vivência de
mutações que desintegram uma dada ordem, almejando uma vida distante da
normatividade pré-estabelecida. A seguir, apresentaremos algumas noções
Embora Tom Zé seja visto como marginalizado no momento tropicalista (anos 60-70),
recentemente, na década de 90 e início de 2000, é observado como um músico e cantor
popular, freqüentando programas televisivos(Programa do Jô Soares, Roda-Viva, Provocação),
dando entrevista em revistas de circulação nacional (Bravo).
22
referentes à idéia do carnaval, à derivação carnavalização, a qual nós
relacionamos à condição paratópica e à idéia de descanção.
O grotesco é a expressão da figura de linguagem hipérbole, da forma de
comunicação (seja ela corporal, gestual-visual, verbal) que foge a uma
convenção, apresentando alterações de formas, tamanhos, cores, fonéticas,
morfológicas, sintáticas, comportamentais. O caráter grotesco traz à tona a
abertura do corpo ao mundo, o corpo encarna o universo material, as
instabilidades cosmológicas: o mundo físico, ambientes e animais.
Tal característica foi revelada em rituais e eventos carnavalescos no
período da Idade Média.
A idéia de grotesco é refletida na obra de Bakhtin (1999) através da
manifestação da cultura cômica popular na Idade Média e no Renascimento,
no contexto da obra do escritor e pensador François Rabelais. Tal
manifestação é caracterizada como um evento do carnaval.
A idéia de carnaval, concebida por Bakhtin (1997:122), designa uma
forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que
sobe base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variações
dependendo da diferença de épocas, povos e festejos particulares.
Nesse sentido, o carnaval
permite
a fusão de elementos culturais
diferentes e antagônicos, em um só elemento. Tal evento se corporifica numa
linguagem de formas concretas-sensoriais e simbólicas.
Bakhtin (1999) nos apresenta a vivência das formas do carnaval da
cultura cômica popular omitida e marginalizada nos estudos literários e no
contar oficial da história humana.
Cuidadosamente, ele discute as modalidades de manifestação dessa
cultura, subdividida em três categorias: as formas dos ritos e espetáculos
(festejos carnavalescos, obras cômicas representadas na praça pública);
Obras cômicas verbais (orais e escritas em Latim ou em língua vulgar);
diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro (insultos,
juramentos) (BAKHTIN, 1999, p. 4). Tais manifestações em si carregam sua
singularidade marcada pela construção de um outro mundo, um mundo à
margem do mundo já existente.
O carnaval representava uma postura subversiva com relação a certos
hábitos e rituais institucionalizados. Os eventos ritualísticos apresentavam
uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente,
deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja, e ao Estado, pareciam ter
construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida
(...) (BAKHTIN, 1999, p. 4-5).
Formas ou “desformas” de alterações corporais como faces do baixo
ventre é a imagem de rebaixamento, da degradação que visa à comunhão da
vida com a terra. Erguer o baixo revela o estado de transformação, de
metamorfose ainda incompleta no estágio da morte e do renascimento, do
crescimento e da evolução.
Desse modo, a cultura carnavalesca constrói-se numa ambivalência. A
vida também é experienciada num processo de ambivalência, numa
contradição constante, a partir de dois pólos de mudança: a morte e o nascer;
o princípio e o fim; o antigo e o novo. Isso mostra a influência cosmológica na
vida, o fluxo de mudanças geradas no indivíduo que reflete a inconstância do
mundo. O carnaval faz o mundo se apresentar de modo imperfeito, inacabado.
A individualidade passa a ser um estágio de fusão.
Bakhtin (1997) ao tomar como princípio a idéia do carnaval
compreendida na linguagem dos rituais nomeou de carnavalização a
transposição dessa idéia para as linguagens de imagens artísticas, literária.
Com isso o autor delineia quatro categorias ou cosmovisões
carnavalescas que apontam para maneiras de vivenciar o carnaval, sendo
elas: o livre contato familiar entre os homens, a excentricidade; um modo de
relações mútuas do homem com o homem; a familiarização ou mésallinaces e
a profanação.
A primeira ou o livre contato familiar entre os homens contesta a
distribuição dos homens numa totalidade hierárquica, a qual dita leis,
proibições e restrições. Opõe-se à concepção hierárquica e inaugura o livre
contato familiar. Os diferentes planos nos quais o homem se encontra, ou
seja, os das desigualdades sociais de classe econômica, de nível intelectual
migram para outro lugar e fundem um só plano, o da praça pública.
A segunda categoria revela a libertação do comportamento e gestos do
homem
das
forças
impostas
ou
do
domínio
hierárquico
da
vida
extracarnavalesca. Os homens interagem e se comunicam não levando em
consideração classe social, títulos, idade e fortuna.
A terceira categoria trata da familiarização que designa a extensão da
livre relação familiar a tudo: a valores, a idéias, fenômenos e coisas. Há a
combinação do sagrado com o profano, do elevado com o baixo, do sábio com
o tolo.
A última, a profanação também vinculada à terceira é formada pelos
sacrilégios carnavalescos que expressam ações iconoclastas, a inversão de
valores bíblicos e dignos de respeito, através de paródias carnavalescas.
Essas categorias firmam o caráter contraditório da vida humana através
da inter-relação de todas as coisas. Elas são idéias concreto-sensoriais,
espetacular-rituais vivenciáveis e representáveis na forma da própria vida, que
se formaram e viveram ao longo de milênios entre as mais amplas massas
populares da sociedade européia (Bakhtin, 1999, p. 124).
Essas categorias exerceram intensas influências na Literatura no que
se refere à construção de formas e gêneros literários.
Partindo desse percurso, consideramos nesse trabalho que os traços
grotescos e carnavalizantes apresentados também se estendem aos modos
de se mostrar a canção, no seu corpo verbal, melódico, sonoro, instrumental. E
funcionam como investimentos discursivos, apontando também para o que
apresentamos sobre descanção.
6. O CAMINHO DE CHEGAR E NÃO CHEGAR: PERCURSO DO COMO
DIALOGAR COM AS CANÇÕES
Fomos
guiados
no
percurso
dessa
viagem
musical,
esse
verdadeiramente inacabado, pelo não saber, causa maior de nossa escuta. O
desconhecido fez-nos ouvir e ver, no escuro, o colorido de canções.
Falar sobre e com a música, de modo amplo, tentando traduzi-la
verbalmente, em seus efeitos e distorções, é quase um ato inalcançável, uma
vez que a linguagem musical não dá nomes a coisas visíveis e palpáveis, tal
como faz a linguagem verbal.
A linguagem musical expressa linhas sonoras e ruídos que se
encontram e se desencontram. Por mais que haja uma dedicação em explicála verbalmente, a música aponta com uma força toda sua para o nãoverbalizável, através de certas redes defensivas que a consciência e a
linguagem cristalizada opõem à sua ação e toca em pontos de ligação efetivas
do mental e do corporal, do intelectual e do afetivo (WISNIK, 2004, p 28).
A viagem foi movida por um olhar que apreciou a relação de existência
da música com o seu mundo exterior e, em parte, com o seu mundo interior,
levando em conta não a quantidade “x” e exata de canções, mas a intensidade
com que ela ou elas se manifestaram discursivamente.
Explicitamos, portanto, construções sígnicas de traços que perfuram e
integram o discurso literomusical do compositor Tom Zé, sem necessariamente
ou
unicamente
classificar,
categoricamente,
os
modos
de
inserções
discursivas.
Analisamos uma parcela relevante de canções23 dos álbuns: “Jogos de
Armar-Faça você mesmo”, “Com Defeito de Fabricação”, “Correio da Estação
do Brás”. E mais uma quantidade mínima significativa de canções dos álbuns
“Se o caso é chorar”, “The hips of Tradicion”, “Todos os olhos” e “Jardim da
política”. Outros álbuns como “Estudando o Pagode” e “Estudando o Samba”
Todas as canções dos álbuns a serem citados foram escutadas, sendo apenas algumas
transcritas para análise.
23
foram citados com intuitos argumentativos voltados para a construção de
sentido de posicionamentos musicais.
Levamos em consideração melodia24 e letra. Noutro momento, a análise
do álbum como um todo (encarte25, melodia e letra) de algumas canções
necessárias
para
discursivos.
E
discutirmos
outros
dados
elementos
efeitos
musicais:
de
alguns
ritmo,
investimentos
harmonia,
arranjo,
instrumentação, ruídos, silêncios etc.
A metodologia não seguiu um rigor canônico, quanto a métodos fixos
ou pré-estabelecidos à análise. Uma vez que no nosso processo de construção
do trabalho se fez refazendo-se continuamente.
Buscamos uma arquitetura que nos ceda espaço a ocupá-la, a nos
revelar o modo como o discurso literomusical da canção do músico baiano se
desdobra, ou seja, como os arranjos discursivos são desenhados e que efeitos
de significados gera a sua canção.
6.1 Discografia analisada
Os cds que compreendem nosso corpus não abrangem todos os
trabalhos de Tom Zé, pois a seleção realizada já aponta para uma marcante
representatividade temática.
Portanto, o critério de escolha foi com base em modos de construção e
desconstrução da canção. Considerando também algumas idéias sugeridas
numa quantidade relevante de canções: a relação de Tom Zé com o
tropicalismo, sua condição de existência no campo musical.
Segue a exposição dos CDs selecionados, em ordem cronológica
decrescente:
Zé, Tom. Estudando o Pagode. 2005.
Zé, Tom. Jogos de Armar- Faça você mesmo. Trama, 2002
Zé, Tom. Série dois Momentos Vol. 15 (Relançamento do Cd Estudando o
Samba, 1975, e de O Correio da Estação do Brás, 1978). Continental, 2000.
24
25
Canção “Brigitte Bardot”, “Jimi renda-se”, “Dor e Dor”, “Minha Carta”,
Referente ao encarte do álbum Jogos de Armar, faça você mesmo.
Zé, Tom. Série dois Momentos Vol. 14 (Relançamento em cd de Estudando o
Samba, 1972, e de Todos os olhos, 1973). Continental, 2000.
Zé, Tom. Com defeito de fabricação. Luaka Bop/WEA, 1998. Trama,
1999.
Zé, Tom. No Jardim da Política (ao vivo em 1984 no Teatro Lira Paulistana) –
Independente, 1998.
Agora, diante dos cenários sonoro e teórico apresentados, seguiremos
às paradas de nossa trilha.
CAPÍTULO 2
APRESENTAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO: TOM ZÉ
Tom Zé pousa sobre as irregularidades do campo seco e iluminado por
raios alaranjados do sol da cidade Irará, interior da Bahia. Foi nessa cidade
que iniciou seus primeiros diálogos com a música, no sentido amplo, e com a
canção, no sentido mais específico.
Durante seus primeiros sinais de composição, ao tentar cantar uma
canção para uma namorada, silencia26, é bloqueado por impulsos da timidez e
insegurança ao concretizar sua voz na canção. Traumatizado por tal evento,
desiste de cantar, por um instante. Passado algum tempo, resolve se
reconstruir como cantor, relendo seu processo de criação musical e almejando
viver na forma de som e palavra.
26
Evento relatado no seu livro “Tropicalista lenta luta”.
Ao ingressar no ano de 1962, na Escola de Música da Universidade
Federal da Bahia, no curso de nível superior, Tom Zé se aproxima de músicos
e professores, dentre eles, Hans-Joachim Koellreutter27 e Walter Smetak.
Autores representantes de uma tendência musical experimentalista e que
exerceram um papel significativo na cultural musical brasileira.
O primeiro foi um compositor, musicólogo, regente e flautista alemão
que se mudou para o Brasil, em 1937 e naturalizou-se brasileiro anos depois,
em 1948. Desenvolveu o modo de composição musical dodecafônico, técnica
que utiliza doze
notas da escala cromática, tratadas como equivalentes e
sujeitas a uma relação ordenada, porém, não hierárquica. O músico viveu no
país28 durante alguns anos, experiência que atribuiu um papel significativo e
transformador na música brasileira. Koellreutter, na década de 1940, auxiliou
na fundação da Orquestra Sinfônica Brasileira, participou também da fundação
da Escola Livre de Música de São Paulo(1952) e da Escola de Música da
Bahia em Salvador (1954). Em 1975, instala-se em São Paulo, exercendo as
funções de diretor do Conservatório Dramático e Musical de Tatuí-SP e de
professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP. Em 1981
recebeu o título de cidadão carioca.
O outro autor, Walter Smetak, foi um estudioso musical suíço, nascido
em
1913,
na
cidade
de
Zurique.
Apresentou
múltiplas
habilidades
instrumentais e artísticas: violoncelista, criador de música e de instrumentosesculturas, artista plástico, teatrólogo. Sua relevância para a música brasileira
está na participação como professor e pesquisador na Universidade Federal da
Bahia, na
criação e reinvenção de instrumentos musicais, “instrumentos-
esculturas”, sonoplásticos. Em 1957, ao lado de Koellreuter instalou-se na
Bahia e
realizou pesquisas sonoras. Construiu oficina de criação de
instrumentos musicais com tubos de PVC, cabaças, isopor e outros materiais
27
Nascido em 2 de setembro de 1915, Freiburg, Alemanha e falecido em 13 de setembro de 2005, São
Paulo, Brasil.
28
Dentre outros países como Itália e Índia, onde viveu entre 1965 e 1969. Esteve também em Sri-Lanka,
no Japão, Uruguai e Coréia do Sul.
pouco usuais. Sendo tais instrumentos não de utilidade puramente musical,
funcionando mais como esculturas.
Ao longo de sua permanência na UFBa, o músico criou cerca de 150
instrumentos, os quais eram nomeados "plásticas sonoras" e lecionou a
disciplina Som e Acústica. Além disso, atuou como violoncelista na Orquestra
Sinfônica da universidade.
A partir de um contato próximo com esses autores na escola de música
da Bahia, acreditamos que eles representaram para Tom Zé coloridas
imagens sonoras, influenciando, conseqüentemente na elaboração de suas
canções.
Dando continuidade a trajetória de Tom Zé, durante o curso de música
na Universidade Federal da Bahia na década de 60, ele se torna membro
fundador do Grupo de Compositores da Bahia de Música Erudita. No último
ano cursado, em 1967, leciona algumas disciplinas relacionadas à teoria
musical, como exercício do Magistério. A sua inserção no curso e na
participação em estudos musicais demonstram notável dedicação na sua
construção musical.
É a partir de 1968 que se estende a um público de maior abrangência
ao participar do Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, obtendo
os prêmios “Viola de Ouro” e “Sabiá de Prata”, um deles referente à canção
que venceu o festival, “São Paulo, Meu Amor”. No mesmo período se insere no
LP Tropicália ou panis et circenses ao lado de Gilberto Gil, Caetano Veloso,
Gal Costa, Mutantes, Torquato Neto, Rogério Duprat, Capinam e Nara Leão.
A canção “Parque Industrial” desse lp é representante da música de
caráter tropicalista com a qual Tom Zé se envolve, participando como cantor e
compositor. Os membros integrantes do LP Tropicália assumiam na música um
posicionamento estético e ideológico, movidos pelo ambiente social e político
ditatorial vigente, como também por outras questões, principalmente estéticas
e comportamentais, que extrapolam em muito a política estatal.
Assumir-se tropicalista, no sentido amplo, era o ponto de partida para a
ruptura da tradicional cultura brasileira e para a desmoralização da cultura
moderna. Definir o que seja o Tropicalismo é perceber em seus seguidores a
incorporação de propósitos desconstrutores e reconstrutores de valores
nacionais, a partir de um corpo não estereotipado.
O Tropicalismo foi tomado como um posicionamento ou uma identidade
enunciativa que se inseria e dialogava com o mundo ao assumir valores a favor
de uma ideologia: a da reinvenção da cultura tradicional brasileira, num
ambiente conflitante. Ser tropicalista, portanto, é posicionar-se socialmente, é
defender valores e crenças consciente e inconscientemente. Para isso, quem
enuncia para o mundo, utiliza-se de vários investimentos discursivos
(lingüísticos, não-lingüísticos, éticos, genéricos) e de estratégias discursivas
para atingir metas conscientemente na busca de firmar uma postura.
O movimento Tropicalista ocorre no fim da década de 60 e pontua
acontecimentos da política brasileira: o ato institucional AI-5, a desilusão com o
discurso de esquerda tradicional.
Paralelamente a esses acontecimentos,
questões referentes à postura musical vigente: a preocupação de um grupo
anterior aos tropicalistas (seguidores do posicionamento Bossa Nova) em
sintetizar um modo de tocar; e o temor ao domínio da estética do Rock
exterior,
que
influenciava
diretamente
nos
valores
material,
estético,
comportamental de jovens brasileiros, aflorados em 1968.
O caráter Tropicalista foi assumido por compositores musicais, artistas
plásticos e de teatro, cineastas e por escritores brasileiros que incorporavam
em suas criações pares de idéias opostas coexistentes: moderno x arcaico,
épico x lírico, o passado x presente, nacional x estrangeiro. No campo musical,
temos os idealizadores tropicalistas Gilberto Gil, Caetano Veloso, Mutantes,
Torquato Neto, Nara Leão, Gal Costa, Júlio Medaglia, Rogério Duprat.
Então, falar de Tropicalismo na música é levar em consideração seu
contexto exterior, é olhar para elementos impulsionadores, como a crise da
“alienação musical” devida à “singularidade” de se tocar “uma só nota”, como
se comportavam os bossanovistas29; a repercussão e efeitos opressores do ato
Embora os tropicalistas se posicionassem criticamente com relação a essa tendência, eles
nutriam por ela profundo respeito e reverência, principalmente pelas inovações estéticas e
éthicas do João Gilberto. Na verdade, a Bossa Nova foi o primeiro passo para o Tropicalismo.
29
Institucional AI-5, elementos condicionantes que moveram a produção da
manifestação tropicalista.
Partindo da exposição dessa cena musical, pensamos como a figura do
cantor e compositor se relacionou com esse ambiente, o que o fez ser
tropicalista ou não, a partir do olhar interdiscursivo sobre suas canções.
Além da questão levantada, pretendemos falar sobre e com a música de
Tom Zé: modo de análise textual que leva o pesquisador a observar e dialogar
com o objeto, discurso literomusical de Tom Zé, vendo possíveis relações com
o mundo.
O olhar discursivo permitiu-nos a visualizarmos em Tom Zé uma voz que
se posiciona e se faz presente, capaz de sugerir interpretações e leituras
significativas ao campo musical. Tal olhar considerou o objeto não totalmente
dominado pelo enfoque teórico e subjetivo do pesquisador.
Tal maneira de ver o objeto contraria o modo estruturalista de análise.
Que o aborda como algo paralisado, cristalizado, imóvel, caminho esse que
não se permite vida ao objeto, e conseqüentemente, a não construção de um
diálogo entre pesquisador e objeto, há o sufocamento da possibilidade de
integração entre eles.
Conceber idéias tropicalistas como elementos que também integram a
formação discursiva de Tom Zé, ou seja, sua postura social, ideológica e
histórica é falar com o objeto discurso. Partindo dessas referências como
Tom Zé tem se relacionado no campo musical, uma vez que há críticos que o
inserem e o excluem do posicionamento Tropicalista? E quanto a sua aparição,
desaparição e reaparição30? Após sua participação na gravação do LP
Tropicália, ele se afasta ou é afastado? O que sabemos, midiaticamente é que
ele ressurge no exterior, através do músico americano David Byrne.
30
Embora seja sempre desconfiável essa idéia de aparição, reaparição ou ressurgimento.
Talvez, porque Tom Zé esteve por aí fazendo suas descanções. O que o David Byrne fez com sua influência - foi tentar integrá-lo ao mercado e ao mundo da mídia. “Venha para o
meio”, diria a Campanha da Fraternidade da CNBB).
Ao investigarmos sua condição de existência no campo musical, foi
necessário observarmos seu relacionamento com o tropicalismo e a possível
congruência entre as idéias de ser paratópico31 (uma dada instabilidade do
indivíduo ao estar no meio artístico), de “ser marginal” e de ser tropicalista de
esquerda, como apresentaram a mídia, em especial, os jornalistas Calado
(1997) e Sanches (2001), levando-nos a questionar o que é ser marginal na
cultura musical: É estar isolado da mídia? É estar produzindo afastado de uma
indústria fonográfica? E hoje, podemos dizer que Tom Zé é um tropicalista de
esquerda num sentido marginal?
Se a idéia de ser marginal está associada ao não reconhecimento de
seu trabalho na mídia nacional, torna-se contraditória, pois ao mesmo instante
que a
mídia o cita como
marginal, torna-o distante e próximo dela,
simultaneamente, assim, é estar entre um lugar e um não-lugar.
É possível pensar que essa idéia está associada à idéia de postura
paratópica, de ser marginal? Entendemos sua canção como descanção ou
canção ferida32, uma forma de desconstrução de modelo padrão de canção,
uma forma de repensar ou ferir o tempo e arranjo da música, de negação da
reprodução do código apriorístico musical33. Tal maneira não está só no plano
rítmico, mas no plano verbal, assim como na hibridação dos dois planos.
Essa possibilidade de composição musical34, referida no título do
presente trabalho, leva-nos a questionar sobre a idéia de música, do ponto de
vista estrutural, ético e político, que Tom Zé constrói, tendo em vista as
condições que o geraram no campo musical.
Partindo dessas indagações, moveu-nos pensar o lugar ou lugares de
Tom Zé diante da cena artística musical a qual o gerou, a tropicalista.
Assumimos a hipótese de que a condição paratópica do autor compositor se
31
Conceito explicitado anteriormente, no capítulo 1, no ponto “Movimento de instabilidade na
canção: uma condição paratópica”, pgs. 40-42.
32
Ferida no sentido dessa canção ferir ou romper com o modo apriorístico de fazer canção.
33
Segundo Campos (1997), o código apriorístico musical refere-se à leis sagradas e imutáveis
de um código de linguagem musical, condicionadas pelo veículo de massa que retroalimentam
uma convenção de valores estéticos musicais.
34
A idéia de descanção é citada pelo compositor Tom Zé, no livro autobiográfico “Tropicalista Lenta
Luta”, 2003.
constrói a partir de uma retroalimentação descancional, ou seja, de um
posicionamento estético de decomposição cancional.
CAPÍTULO 3 - RESSONÂNCIAS E DESFORMAS DA CANÇÃO
1. DESCANCIONANDO POR ENTRE RASURAS E IMAGENS GROTESCAS
A musical que envolve arranjos verbais e não verbais não só se escuta
como se vê, sua execução nos faz construir uma imagem a partir de
interferências performáticas de ritmos, vozes e gestos corporais. Tais gestos
podem se vincular a dado posicionamento.
O cantor ao interpretar a canção incorpora fala ou falas diferentes que
ressoam em planos vocais, instrumentais e corporal físico.
A performance
vocal revela-nos a concretização de investimentos discursivos variados,
sinalizando-nos posicionamentos ideológicos.
A idéia de performance como expressão argumentativa está no corpo
como na fala. A exacerbação de atividade performática vocal na canção chega
a dar forma física, corpórea e visual à música através do som. Veremos, a
seguir, um modo de voz e corpo se rasurar. Na canção Minha carta, por
exemplo, o personagem enunciador incorpora a fala do indivíduo sofrido e
saciado de saudade de um amor. O efeito de rasura na voz constrói uma das
características de descanção. A voz representada e cantada imbrica-se no
corpo físico e o corpo físico no corpo da música, levando-nos à visualização de
imagens grotesca.
Minha carta35
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.
20.
21.
22.
23.
24.
25.
26.
27.
28.
29.
30.
31.
32.
33.
34.
35.
36.
37.
Eu preciso mandar notícias
Pro coração do meu amor me cunzinhar
Pro coração do meu amor me refazer, me sonhar, me ninar, me comer,
Me cunzinhar como um peru bem gordo
Como um garrote arrepiado
Um casal de pombas
Que saiu da sombra.
Me cunzinhar como um bezerro santo
Canário preso
Pra limpar o canto
Luxa no alpiste
Mas o trinado é triste
Eu escrevo minha carta no papel decente
Quem se sente com saudade não economiza
Martiriza
Martiriza o pensamento
Eu digo no papel
Que o anel
No anel do pensamento
Andei duzentas léguas
Minha égua
Minha égua esquipando
O peito me sacode,
Cada golpe.
Nesse golpe do galope que o envelope engole
Cada gole
Cada gole da lembrança vale um tesouro
É besouro
É besouro que se bate
Sempre na vidraça
Quando passa em pensamento
Volta na saudade
Toda tarde.
Eu preciso mandar
Mandar notícia.
Ai, ai, ai, ui, ui
Ai,... , ai, ai...
Diante de sua escuta, a canção se desdobra em um corpo que vai
crescendo, tecendo inicialmente uma imagem colossal, a palavra vai tornando-
35
Versão do Cd Jardim da Política, 1984.
se tão visceral quanto o sentimento expressado, sugerindo-nos a visualização
de imagem e corpo grotescos:
4. Me cunzinhar como um peru bem gordo
5. Como um garrote arrepiado
O sentido grotesco ao qual mencionamos aqui remete à idéia de
grotesco da Idade Média, discutido por Bakhtin (1999)36,
na obra sobre a
cultura popular da Idade Média no contexto de escritor François Rabelais.
A imagem grotesca na canção aqui é desenhada através de um
investimento no código lingüístico de expressão comparativa como um peru
bem gordo. O que enfatiza nessa circunstância não é necessariamente a idéia
de peru, mas sua configuração engrandecida, o “bem gordo”. Assim como a
outra expressão “como um garrote arrepiado”. O que dá corpo ao sentido
desses versos cancionais são os atributos visuais gordo e arrepiado.
Em outro momento constrói-se uma cenografia campestre, na qual o
personagem, metaforicamente, insere-se num campo, no campo de turbilhão
de pensamentos:
19. No anel do pensamento
20. Andei duzentas léguas (vs.38,39)
Que exalta o etos grotesco e visceral expressado, alimentando um tom carnal.
A voz aí traz a simbologia do diálogo inalcançável, a busca do
impossível. Escutamos e visualizamos nessa canção um corpo em conflito com
ele mesmo, que se fragmenta em vias sonoras. O corpo físico configurado na
canção revela a voz e suas vias, a garganta mais profunda; aberta ao ventre e
ao interior que é, ao mesmo tempo, expressão de idéia e descarga, em que e
pela qual toda articulação se faz metafórica (ZUMTHOR, 1997, p. 15).
34. Eu preciso mandar
35. Mandar notícia.
36. Ai, ai, ai, ui, ui
37. Ai,... , ai, ai...
36
Para retomar o assunto consultar página 39-40
Percebemos o movimento acelerado crescente do arranjo cancional,
gerando a velocidade e intensidade sonora, mostrando o entrelaçamento entre
nota musical e voz:
22.
23.
24.
25.
26.
27.
28.
Minha égua esquipando
O peito me sacode,
Cada golpe.
O peito me sacode,
Cada golpe.
Nesse golpe do galope que o envelope engole
Cada gole
2. Deslinearização e defeitos verbais
A construção dos enunciados falado e escrito segue, canonicamente,
uma ordenação de sujeito, predicado e circunstantes. Essa configuração
delimita uma estabilidade, impõe uma sistematização da ordenação de
palavras, dando-as certa imobilidade, devido à disposição de idéias
segmentadas, fragmentadas, ordenação que leva a uma especificação, a uma
verticalização de conceitos.
Essa rigidez sintática também configuração a lógica discursiva do
pensamento ocidental, que caminha para uma especificidade formal, tentando
omitir os desajustes ou deslinearidades significativas existentes. A lógica de
pensar a linguagem assim ... leva a ver o mundo em pedacinhos separados,
desligados uns dos outros (Pignatari, 2004: 47).
Deslinearizar a língua é um dos aspectos que apontam para um modo
de descanção das canções analisadas aqui. É através do investimento
lingüístico numa sintaxe verbal, visualmente e semanticamente, desarranjada
ou “quebrada” que se sai da linha ocidental e constrói-se uma outra sintaxe.
O investimento numa deslinearização verbal no ambiente musical de
Tom Zé, contribui também para a posição entre estar e não estar, digamos,
para um lugar paratópico.
Algumas canções trazem um aspecto desconstrutor ou deslinear na
sintaxe verbal, rompendo, assim, com a linearidade na canção, causando a
negação da ordem canônica e trazendo outra ordem: a dos efeitos de sentidos,
a ordem do tato, do ouvir e ver a canção.
2.1 O defeito: problema e perfeição
Diante de um momento
que expressa o super monitoramento de
máquinas sobre as diversas atividades humanas, a multifuncionalidade via
computadores, refletida no cotidiano do homem século XXI, tenta-se ajustar ou
operar homens e máquinas visando à ausência de erros em seu
funcionamento.
Dessa maneira, o trabalho impõe ao homem inúmeras restrições,
exigindo dele maior eficiência, rapidez e auto-controle, tornando-se cada vez
mais impensável sua possibilidade de falha.
E o defeito ou falha para “os grandes homens” (os singularmente
maquinados) seria o pensar nos efeitos desconstrutivos causados pela própria
máquina. É inegável também que o homem
se transforme
em máquina,
sendo favorável a ela por motivos de sobrevivência ou, contrariamente, moldese numa máquina que possa destruir aquela que o transformou.
Dialogando com a alteridade: a representação do homem infalível ou o
que não pensa nos efeitos das máquinas por já também estar maquinado,
aparece no álbum “Com defeito de fabricação”37. São quatorze canções para
pensar em defeitos inerentes ao homem e a criação de cada uma delas é
considerada um defeito.
1. Defeito1: O GENE
2. Defeito2: CURIOSIDADE
3. Defeito3: POLITICAR
4. Defeito4: EMERÊ
5. Defeito5: O OLHO DO LAGO
37
Luaka Bop/ WEA , Setembro 1998)
Edição Brasileira pela Gravadora TRAMA - 1999
6. Defeito6: ESTETICAR
7. Defeito7: DANÇAR
8. Defeito8: ONU, ARMA MORTAL
9. Defeito9: JUVENTUDE JAVALI
10. Defeito10: CEDOTARDAR
11. Defeito11: TANGOLOMANGO
12. Defeito12: VALSAR
13. Defeito13: BURRICE
14. Defeito14: XIQUEXIQUE
Atentemos que a iniciativa de criação da canção já é considerada um
defeito implícito em todas as canções. Lendo alguns
títulos das canções,
como: Curiosidade, Politicar, Cedo tardar, Dançar, ONU, arma mortal,
percebe-se que eles apontam para uma afirmação de caráter humano que é
omitido pelas forças maquinárias.
O compositor, ao assumir a idéia de nomear as canções como
“defeitos”, realiza um investimento estratégico, que torna a imagem do homem
potente e criador em oposição ao domínio e ao comportamento do homem,
homogeneamente técnico. Assim, desdobram-se as canções do álbum “Com
Defeito de fabricação”, sendo elas, ironicamente, numeradas como um
“problema de fabricação”38.
O simples ato de nomear “os defeitos” curiosidade, de dançar ou cedo
tardar, valsar demonstra o “descontrole” e o não ajustamento do homem. O
“defeito 8”: Onu, arma mortal expressa uma reação à máquina de controle
global.
O sentido de curiosidade nesse álbum é concebido como um defeito que
desestabiliza
o
homem
funcional,
operador
de
máquinas
de
várias
modalidades que o fazem sobreviver. O homem no ápice de sua
multifuncionalidade ainda pode transformar-se em ser curioso. E uma
curiosidade pode levar a outra:
As canções são numeradas de acordo com defeito nomeado. Defeito 1: O gene (Arrastão do
Santo Agostinho); Defeito 2: Curiosidade (Arrastão do Alfred Nobel e de sua dinamite).
38
Defeito2:CURIOSIDADE
(Tom Zé / Gilberto Assis)
Quem é que tá botando dinamite
Na cabeça do século ?
Quem é que tá botando tanto piolho
Na cabeça do século ?
Quem é que tá botando tanto grilo
Na cabeça do século ?
Quem é que arranja um travesseiro
Pra cabeça do século ?
Pra cabeça do século ?
Arrastão de Alfred Nobel e de sua dinamite.
A cena construída com o enunciado botar dinamite na cabeça do século
nos revela um ato de explosão, de atividade não operária, mas de revolução,
movido por um desejo de alguém movimentar-se e agir já em estado de
saturação. E essa seria uma natureza do homem cuja voz é omitida, silenciada
pelo barulho de imposições multifuncionais.
Lemos a pergunta recorrente Quem é que tá botando dinamite Na
cabeça do século? como a voz de um outro curioso (a voz manipuladora,
dominadora) que, contraditoriamente, quer omitir algo arraigado no homem, a
curiosidade. A dinamite ali, como o piolho, o grilo em Quem é que tá botando
tanto piolho Na cabeça do século?; Quem é que tá botando tanto grilo Na
cabeça do século? são símbolos que representam a dissipação, o
desconforto, o barulho que significam a expansão do homem, voltada para
modificar um lugar e interromper uma rotina desumana.
Olhando através de orifícios maiores, percebemos na idéia de defeito
uma postura de desajuste salutar, que expõe a canção e seu problema,
levando-nos a questionar que defeitos são esses. A não-linearidade está em
revelar incômodos, ou seja, de refletir sobre o considerado defeito.
O “defeito de fabricação” não está só na sintaxe verbal da canção, mas
também na idéia de ser defeituoso o ser humano, geneticamente falando:
Defeito 1: o Gene (arrastão do Santo agostinho):
A gente já mente no gene
A mente no gene da gente
Faça suas orações uma vez por dia
Depois mande a consciência Junto com lençóis
Pra lavanderia
O verso cancional A gente já mente no gene afirma a mentira como um
caráter natural e vital do ser humano por compor a mente e o gene. A palavra
mente, nos versos: “... já mente no gene (...), a mente no gene da gente”,
parece significar-nos a mente e a mentira no gene da gente como o próprio
defeito.
E o que há para além da mente e da mentira no gene: “orações” ou
“fazer orações uma vez por dia e lavar a consciência (...)”.
A melodia da
canção se dá no contra tempo, faz-se em arranjos quebrados, demonstrando
saltos de uma linha constante, apontando-nos “defeitos de tocar”.
Percebemos outros defeitos como o de si (de Tom Zé cantor), que
remete ao auto-rebaixamento, mostrados através de índices lingüísticos como
“um zero, um zé à esquerda”.
Defeito 6: ESTETICAR (Estética do Plágio)
(Tom Zé / Vicente Barreto / Carlos Rennó)
Pense que eu sou um caboclo tolo boboca
Um tipo de mico cabeça-oca
Raquítico típico jeca-tatu,
Um mero número zero um zé à esquerda
Pateta patético lesma lerda
Autômato pato panaca jacu
Penso dispenso a mula da sua ótica
Ora vá me lamber tradução inter-semiótica
Se segura milord aí que o mulato baião
(tá se blacktaiando)
Smoka-se todo na estética do arrastão
Ca esteti ca estetu
Ca esteti ca estetu
Ca esteti ca estetu
Ca esteti ca estetu
Ca estética do plágio-iê
Help, Suassuna
Help, Tinhorão
Pensa que eu sou um andróide candango doido
Algum mamulengo molenga mongo
Mero mameluco da cuca lelé
Trapo de tripa da tribo dos pele-e-osso
Fiapo de carne farrapo grosso
Da trupe da reles e rala ralé
(Arrastão dos baiões da roça. Espinha dorsal)
Através do investimento em expressões lingüísticas estereotipadas, de
raízes da cultura tradicional nordestina, o autor personagem, enunciador,
desenha um ethos que se aproxima do humano e desumano: “Raquítico típico
jeca-tatu..., Pateta patético lesma lerda, Pensa que eu sou um andróide candango doido”,
Algum mamulengo molenga mongo,
dentre outras nomeações de caráter análogo,
que remetem à imagem cômica e inferiorizada do nordestino.
A ação de esteticar sugerida no título da canção nos parece um ato do
enunciador se perceber inserido num mosaico de alteridades, uma absorvendo
outra, gerando continuamente uma nova estética. Esse seria um instante de
apropriação de várias linguagens, de possibilidades textuais pertencentes a
vários autores, designando o momento antropofágico que caracteriza o homem
do século XXI.
Interpretamos essa canção como também um auto-rebaixamento,
mostrando o rir de si mesmo. Aspecto que dialoga com os relatos que Bakhtin
(1999) apresenta sobre a manifestação da cultura popular na Idade Média e
no Renascimento.
A manifestação do riso fora omitida no período da Idade Média: o riso
pertencia às camadas de classe inferior e tinha uma avaliação negativa, o que
é essencial na vida não poderia ser cômico.
Bakhtin (op. cit.) explana sobre a literatura marginalizada no período da
Idade Média, a do baixo ventre e do riso, defendendo que o próprio riso não se
transforma ainda completamente em uma ridicularização pura e simples: seu
caráter está ainda suficientemente íntegro, ele diz respeito à totalidade do
processo vital, os dois pólos e as tonalidades triunfantes do nascimento e da
renovação aí ressoam. (BAKHTIN, 1999, p. 55).
Vemos, então que o riso aqui significa a afirmação da força vital do
homem. Nesse caso, revela-nos uma estética que mostra o desarranjo de um
indivíduo com raízes nordestinas. E que expressa um desfazimento de uma
negação dele para se chegar à afirmação de que ele é “Um mero número zero,
um zé à esquerda”. Visão essa que foi omitida e isolada no período
Tropicalista, e representa uma ironia auto-afirmativa.
A negação de si marca um lugar de origem, através de expressões
lingüísticas estereotipadas pertencentes à cultura nordestina:
um caboclo tolo boboca, Um tipo de mico cabeça-oca
Raquítico típico jeca-tatu.
Os atributos de sentido inferior: “cabeça-oca”, “lesma”, “lerda”, “boboca”
sugerem um discurso que nos diz a indolência e a passividade do indivíduo
nordestino. Essa seria afirmação de uma identidade nordestina, através da voz
do não nordestino, mas da voz que incorpora a voz de auto-rebaixamento, do
nordestino, nas primeiras duas estrofes:
Pense que eu sou um caboclo tolo boboca
Um tipo de mico cabeça-oca
Raquítico típico jeca-tatu,
Um mero número zero um zé à esquerda
Pateta patético lesma lerda
Autômato pato panaca jacu
Mais adiante, nas estrofes terceira e quarta, pousa uma voz que se
opõe
à voz do cientista, acadêmico, soando uma provocação aos nomes
Tinhorão e Suassuna. O enunciador reagindo, também em defesa aos valores
e atributos de caráter inferior da representação nordestina, que se mostra em
cabloco, tola, boboca, zé a esquerda:
Penso dispenso a mula da sua ótica
Ora vá me lamber tradução inter-semiótica.
Atribuindo ao olhar da voz primeira, de caráter avaliativo, teórico,
intelectualizado e que corrompe a imagem do indivíduo nordestino, uma
indiferença e invalidez.
Essa mesma voz volta a se pronunciar nas últimas duas estrofes, que
reforça mais qualidades estereotipadas do nordestino:
Pensa que eu sou um andróide candango doido
Algum mamulengo molenga mongo
Mero mameluco da cuca lelé
Trapo de tripa da tribo dos pele-e-osso
Fiapo de carne farrapo grosso
Da trupe da reles e rala ralé
Tais
versos
apresentam
um
ethos
da
identidade
nordestina
subestimada. E expressam o riso de si mesmo.
Os chamados a Suassuna (help,
Suassuna) e a Tinhorão (help,
Tinhorão), vêm a ser uma provocação a representantes da cultura nordestina e
de valores nacionalisatas. A presença desses dois nomes nesse contexto é
significativa por representarem forças que se opuseram a determinados
comportamentos tropicalistas: a permissão ao hibridismo cultural, a uma
atitude antropofágica diante da música e cultura estrangeira.
Ariano Suassuna, secretário de cultura de Recife (desde 1995), é
vinculado a projetos de conservação da cultura nordestina.
Foi mentor do
movimento Armorial, que propunha práticas de incentivo e
realizações da
produção musical de raízes nordestinas, de cultura popular tradicional. Opõese radicalmente às influências culturais estrangeiras. E integra-se, de certo
modo, à ideologia de José Ramos Tinhorão, paulista e estudioso da Música
Popular Brasileira, que adota uma postura repulsiva em
reação à
contaminação de elementos estrangeiros na cultura brasileira. O primeiro
tende a um regionalismo favorecido ao Nordeste e o segundo, a um
nacionalismo.
Tinhorão é contra o posicionamento Tropicalista no que se refere à
prática de antropofagizar influências musicais estrangeiras (rock, jazz) e Ariano
Suassuna é a favor da conservação da Música Popular Brasileira com base
nas raízes unicamente ibéricas.
3. Ser estavelmente paratópico num lugar entre lugares
Dialogamos nesse momento com fragmentos verbais e não-verbais que
apontam para uma série de instabilidades (afetiva, espacial, rítmico-musical,
dentre outras). Idéias que nos fazem pensar em outras duas, que de certo
modo, são afins: a condição paratópica, condição que marca o lugar de
isolamento parcial de um indivíduo, personagem ou autor; e a idéia de
grotesco, a exteriorização de corpos.
Ao nosso contaminado olhar é perceptível, em canções significativas,
inserções de elementos lingüísticos arranjados que nos sugerem a idéia de
instabilidade: um estar presente em movimento, entre um lugar e outro.
Consideramos instabilidades os desajustes ou “feridas” que a canção
toca. Esses são as fissuras geradas na dinâmica de realidades humanas,
política, cultural, histórica e econômica, que guarda em si a força do
pensamento patológico, como nos revela Lévi Strauss39:
extravasamento de interpretações e de ressonâncias afetivas, com as
quais está sempre pronto a sobrecarregar a realidade, que serve de
outro modo deficitária (STRAUSS apud WISNIK, 1980, p. 173).
O pensamento patológico está para além do pensamento “normal”, da
realidade convencionalmente estável que quer negar a instabilidade da vida: os
assistemáticos, as influências afetivas sobre as ações, o caos, aspectos que
transcendem os universos institucionalizados.
39
Claude Lévi-Strauss, “o feiticeiro e sua magia” in Antropologia estrutural, Rio, Tempo brasiliense,
1970, p. 199.
A canção ferida pode ser considerada também como um modo de
descanção, por descancionar a vida na canção, sendo incorporada nela
doenças ou enfermidades da vida com as quais o homem convive.
Designamos “feridas” às doenças, às enfermidades, paradoxalmente,
presentes na canção, o caráter de vitalidade por gerarem sempre uma nova
canção, e, conseqüentemente vidas nela, mesmo que seja uma vida
parasitária, uma condição de vida instável de um indivíduo.
Apegamo-nos à idéia de que as feridas, geradoras de instabilidades na
canção, constroem a imagem de um compositor que está entre um lugar e um
não lugar, diríamos, numa condição paratópica.
Ser paratópico diz respeito à própria condição de existência do autor
enquanto artista; o seu modo de pertinência no campo artístico é marcado por
uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar; de uma localização
parasitária,
que
vive
da
própria
impossibilidade
de
se
estabilizar.
(MAINGUENEAU, 2001, p.28)
Apresentamos, então, adiante, uma maneira da condição paratópica se
realizar na canção, o que caracterizamos também por movimento de
instabilidade.
Aqui apontamos traços que integram o discurso literomusical do
compositor e experienciador, sem necessariamente ou unicamente classificar
categoricamente os modos de inserções discursivas: os traços, estratégias ou
investimentos discursivos e interdiscursivos, que pressupõem as inserções
ética, cenográfica, genérica que estão configuradas na canção.
Percebemos que o movimento de instabilidade pode ser integrado à
dinâmica do corpo cancional, através do uso de investimentos discursivos na
entonação baixa da voz, na performance vocal, na sintaxe lingüística auto
afirmativa, no uso de antítese, que apresenta a justaposição de idéias e vozes
contrárias, coexistentes na canção. Tais investimentos geram um movimento
errante, causando uma impressão de instabilidade.
“Tô” 40
Tô bem de baixo pra poder subir
Tô bem de cima pra poder cair
Tô dividindo pra poder sobrar
Desperdiçando pra poder faltar
Devagarinho pra poder caber
Bem de leve pra não perdoar
Tô estudando pra poder ignorar
Eu tô aqui comendo pra vomitar
Tô te explicando
Pra te confundir
Tõ te confundindo pra te esclarecer
Tô iluminando
Pra poder cegar
Tô ficando cego, pra poder guiar
Devagarinho pra poder rasgar
Olho fechado pra te ver melhor
Com alegria pra poder chorar
Desesperado pra ter paciência
Carinhoso pra poder ferir
Lentamente pra não atrasar
Atrás da vida pra poder morrer
Eu tô me despedindo pra poder voltar
Diante de sua sonoridade, sentimos uma constância do movimento
oscilante, digamos, instável, entre um estar e não estar, um ficar e sair, como
se o personagem representado na canção estivesse numa corda bamba, na
qual o equilíbrio está na conscientização do desequilíbrio que essa corda gera.
A corda de que falamos acreditamos ser ela a dinâmica da vida.
A
visualização da “corda bamba” oscilante se dá a partir da oposição de idéias
coexistentes nesta canção. Imagem que demonstra o modo do indivíduo se
posicionar paratopicamente, diante da vida:
Tô bem de baixo pra poder subir, To bem de cima pra poder cair
Tô dividindo pra poder sobrar, Disperdiçando pra poder faltar
Tô te explicando, Pra te confundir, To te confundindo pra te esclarecer, Tô iluminando,
Pra poder cegar, To ficando cego, pra poder guiar.
A instabilidade de vida de que falamos é representada, desse modo,
como um percurso repleto de movimentos “de altos e baixos”, que sugerem
tremor, escorrego, levando o personagem incorporado a caminhar para
escorregar, a cair e se erguer, prestes a outro escorrego assim e sempre.
40
Zé, Tom. Estudando o samba. 1976.
O título da canção nos diz algo significativo, tô, abreviação do verbo
estar, conjugado em primeira pessoa do singular, que expressa o sentido de
“Eu estou”, no equilíbrio do desequilíbrio. Nessa circunstância, esse verbo
denota um estado, um momento da condição do indivíduo.
4. A REINTERPRETAÇÃO OU RELEITURA: O INACABAMENTO OU
EFEITOS DE DESCANÇÃO
A canção aqui se faz do início ao seu finito inacabamento. Queremos
dizer que a música se inicia e não se finaliza, desfaz-se, refaz-se, relê a si
mesma. Utilizamos o termo “finito” não como o significado de finalização, de
conclusão da música, mas como uma afirmação dela mesma em não
expressar um fim.
Esse é um dos modos de criação musical recorrente observado em Tom
Zé. As músicas são criadas e recriadas, apresentando uma inesgotável
produção ou reprodução de si, que nos revela um caráter incessante de
reinvenção cancional.
Em termos mais precisos, a reinvenção ou re-interpretação na canção
se dá quando o cantor utiliza uma mesma melodia em várias canções com
arranjos e letras diferentes (ora sim, ora não). Os aspectos que explicitam a
retomada de uma única melodia em “diferentes” canções podem localizar-se
em todos ou em alguns dos planos: do tratamento vocal, da projeção de
timbres, do ritmo, do andamento, da harmonia e da construção verbal.
Ouvindo assimilando mais essa maneira de musicar e de se inserir no
mundo, dialogamos com Zumthor (1998) sobre o mito da Torre de Babel e o
seu inacabamento.
O fazer inacabado na música dialoga com a linguagem de um tempo em
desordem, de excessos e de uma dada incompreensão. Relacionamos a tal
incompreensão ao mito Torre de Babel, que perpassa por várias significações:
bíblica, histórica, lingüística e antropológica e por outras que nem sabemos.
São inumeráveis as significações em torno do signo Babel. A primeira e
fonte, digamos assim, surge da interpretação bíblica, a qual designa a
construção de uma torre em Babilônia, lugar onde há confusão infindável de
línguas, onde o povo se fala sem se ouvir. Ètiemble (apud Zumthor, 1998, p
21), um dos estudiosos sobre a significação do atributo babel ou babeliano,
fala de uma mistura anárquica, de uma colonização lingüística. Abordar esse
assunto, segundo o autor, seria refletir sobre as relações entre poder e a
língua, os discursos e as mentiras, a comunicação e a opressão, a palavra e a
recusa do outro.
Num sentido mais literal, Chateaubriand (apud Zumthor,
1998, p 22) define babel como uma construção de dimensões desmedidas na
qual se previa vaidade e nocividade.
Conforme se percebe pelas afirmações acima, Zumthor (op.cit.)
concebe o sentido do lugar “Torre de Babel” como uma idéia de desordem, de
uma impossibilidade de uma língua encontrar a si mesma. De outro modo,
apresenta duas definições: uma incoerência ou mescla inorgânica, desordem
de objetos, de palavras, de idéias, ruídos; e, um edifício alto ou uma ambição
excessiva de projeto e de um plano” (ZUMTHOR, 1998, p.22).
Tomando uma dessas afirmações e configurando-a ao ambiente sonoro
e musical, vemos que se constrói um babelismo na canção de Tom Zé. A
canção vista como uma impossibilidade de se finalizar, por afirmar, em outras
palavras, a confusão da linguagem musical: arranjos infindáveis de uma
canção que gera
várias. A desconstrução de uma música em inúmeras
versões se multiplica em timbres e vozes.
O babelismo é compreendido aqui como uma confusão lingüística,
traduzida em um texto inacabado que se refaz ao longo de sua existência.
Qual a relação que podemos construir entre a confusão linguageira em torno
do mito Torre de Babel e a criação cancional, considerando a produção
musical uma obra? Que relação pode haver com o posicionamento
Tropicalista, no qual Tom Zé é incluído e excluído?
Antes de uma resposta, compartilhamos com Maingueneau (2001,
p.101) uma idéia sobre a relação do escritor com a língua e literatura para
apreendermos significados da(s) língua(s). Com ele vimos que o escritor41 não
é um ourives solitário que se confronta com uma língua compacta. Esclarecenos, desse modo, que a produção de uma obra literária, musical..., dentre
outras, não se constrói através de uma língua pura, intacta, ela se faz na
interação de múltiplos caminhos lingüísticos, exteriores à língua materna que a
integra. Nesse sentindo, o escritor interage no caos de línguas ao escrever sua
obra,
alimenta-se no plano da interlíngua, entre línguas: passadas,
contemporânea ou outra (s), num determinado espaço:
Quer se escreva numa única língua ou numa língua estrangeira, o
trabalho de escrita sempre consiste em transformar sua língua em
língua estrangeira, em convocar uma outra língua. Maneja-se sempre o
hiato, a não-coincidência, a clivagem (MAINGUENEAU, 2001, p. 105).
Escreve-se no hiato, numa abertura, que permite cruzamentos e
encontros de planos fragmentados. A língua na sua fragmentação assume um
caráter constitutivo.
E no campo musical, dentre tantas linguagens musicais, o escritor
cancionista constrói uma língua sobre os cruzamentos de muitas existentes.
Tenta ajustar-se num real desajuste lingüístico, construindo, mesmo assim, um
código de linguagem peculiar a ele.
Percebemos, então, certa afinidade entre Zumthor e Maingueneau, no
que diz respeito à natureza das interações entre as línguas. A confusão ou
anarquia lingüística injustificável, a mistura entre várias camadas de uma
língua e de línguas traduz uma das manifestações musicais de Tom Zé: a do
inacabamento da canção.
O efeito de inacabamento cancional contradiz uma das finalidades da
canção produzida na estética do posicionamento Tropicalista. Ao incorporar
influências estrangeiras
da música experimental e pop, de gêneros
estrangeiros (gêneros derivados do Rock´n´roll a partir dos anos 1960) e
41
O sentido de escritor que apresentamos aqui, refere-se àquele que produz uma obra literária, musical,
teatral, cinematográfica, dentre outras.
nacionais, servindo-se de elementos eletrônicos e movidos pela filosofia
antropofágica de Oswald de Andrade, os tropicalistas pretendiam tornar a
canção popular acabada, pronta para ser consumida.
Nas canções de Tom Zé, é inegável a afinidade com o Tropicalismo, no
modo de compor, que, no entanto, não omite a desafinação ou a relevante
diferença do seu trabalho em si: a da construção de um posicionamento
paralelo a esse, a canção como descanção ou a canção movida mais por uma
vontade de fazer do que por uma vontade de apresentar em moldes canônicos,
comercial e publicamente: não era música, era vida. Era a vida na música e
não a música na vida. O que faz a canção ser inacabada é o desejo de compôla, de criá-la, de unir vida e música numa só canção que se multiplica:
Toda canção quer se multiplicar. Na multidão única se tornar.
Simples prazer de ressoar no ar
O som da voz canta por nós: cordas vocais, sem cais, cordas ou nós42
A idéia da canção ser interminável sugere um desenho de muitos
quadros em um só plano, expressando o caráter de uma multiplicidade
singular. Característica comum e contrária à tendência tropicalista
Comum
porque
a
canção
de
caráter
tropicalista
almeja
uma
multiplicidade de gêneros musicais, coerente com a idéia de multiplicar uma
canção numa mesma melodia em diferentes gêneros. Contrária por que a
canção de Tom Zé não tinha metas de atingir ampla popularidade e sim de
fazer, de compor, mergulhar no campo da canção ainda por construir.
Como já apresentamos antes, Tom Zé utiliza vários recursos ao fazer
reinterpretação de si mesmo e de outros43, uma criação de outro arranjo a
partir de uma mesma melodia. Mas que efeitos, que sentidos uma
reinterpretação pode gerar, além da afirmação do desejo vital na canção que
se torna inacabada?
Canção Multiplicar-se única do álbum The hips of Tradicion (1992).
A canção Felicidade de Tom Jobim – Vinícius de Moraes do álbum Estudando o Samba
(1976)”. Aqui há uma reinterpretação dupla: da canção e do gênero musical Samba.
42
43
A reinterpretação pode levar à desconstrução, à deslinearização de um
corpo cancional que integra elementos lingüísticos e extralingüísticos,
inaugurando
novos
gêneros.
Veremos
que
modos
e
que
tipos
de
desconstrução são esses e quais efeitos geram na canção, observando como
eles apontam para uma afinação e/ou desafinação em relação ao
posicionamento tropicalista.
Ao admitirmos a noção de reinterpretação nas canções, partiremos mais
adiante para a análise discursiva dos álbuns Jogos de Armar- Faça você
mesmo e Com defeito de Fabricação, permitindo a fruição de efeitos de
sentidos que a interpretação e a reinterpretação geram.
5. JOGOS PARA DESMONTAR E ARMAR
Em detalhes, cabe nesse momento uma breve leitura do encarte do
álbum Jogos de Armar, para que seja possível reconstruir um sentido da idéia
do fazer sem delimitações.
Lembramos que uma leitura discursiva não se restringe à materialidade
lingüística verbal. Engloba também outro universo, o da materialidade visual, o
da imagem não-verbal que traz seu tema, cores, formas e desenhos
referenciando sentidos, atrelados a uma história, a uma sociedade.
É a partir de um olhar intersemiótico, o da integração de elementos
verbais e não verbais que também construimos sentidos, sendo possível
levantarmos pressuposições de valores históricos, culturais, filosóficos e
sociológicos. Elementos que integram uma prática discursiva: Assim como o
enunciado, também um quadro, o trecho de música... estão submetidos por
sua prática discursiva a um certo número de condições que definem sua
legitimidade (MAINGUENEAU, 2005, 148).
Em diálogo com tais considerações, lemos o encarte do álbum Jogos de
armar, faça você mesmo como elemento constitutivo de sentido. Como tal
materialidade significa o discurso do fazer sem delimitações ou do “faça você
mesmo”, que efeitos geram a configuração da capa do encarte do álbum, a
seguir?
(capa álbum Jogos de Armar- Faça você mesmo, 1999)
O título do álbum Jogos de armar-Faça você mesmo sugere-nos um
jogo e um convite ao ouvinte a participar de várias possibilidades de jogos. A
partir dos índices explicitados na capa do álbum, como a frase imperativa
“Faça você mesmo”, a figura do objeto “dado”, dentre outros elementos que
configuram a capa, veremos possíveis relações que se constroem com a idéia
de inacabamento e com outras que surgem no decorrer da análise.
Diante da
imagem apresentada, iniciamos nossa análise pelo título.
Inferimos a idéia de música como uma montagem musical em aberto, um jogo
que sugere ao hipotético ouvinte formar o seu, criar seu próprio jogo, que é
sua música, dando-lhe, assim, uma parcial autonomia de escolha. Essa
possibilidade de montagem musical sugerida através da expressão Faça você
mesmo traça uma relação interdiscursiva com o discurso do movimento PunK
“Do it yourself”, no período da década de 1970.
Só que a idéia de jogo pressupõe regras, mas nessa circunstância, não
existe uma regra universal a obedecer. Há várias possibilidades de construção
de regras, elas aqui se multiplicam, de acordo com a montagem de cada
ouvinte-jogador em potência.
Observando a capa em seu conjunto, uma simulação de jogo de damas
(ou de xadrez, que exige uma atitude lúdica altamente racional e cujos lances
são mais imprevisíveis), há em alguns espaços quadrados as imagens de Tom
Zé (compositor) e de alguns objetos, que funcionam como instrumentos
musicais. Isso nos leva a pensar que ao mesmo instante que se implicita a
capacidade de um (ouvinte) fazer seu jogo, sua música (por ele mesmo), há
uma retomada ou auto-afirmação da figura de Tom Zé como compositor e
criador.
A frase em um dos quadrados inferiores, não é um cd duplo44 , leva-nos
a perguntar o que se quer dizer com tal negação. Ao escutarmos, vimos que
sua inserção não significa integrar um álbum duplo, mas uma continuidade do
primeiro, um cd auxiliar que nos revela a desconstrução do cd primeiro (discomãe):
o embrião de células musicais que podem ser manejadas, remontadas:
um tipo de canção-módulo, aberta a inúmeras versões, receptiva à
interferência de amadores ou profissionais, proporcionando jogos de
armar nos quais qualquer interessado possa fazer si mesmo: Uma nova
versão da música, pela remontagem de suas unidades constituintes,
aproveitamenteo de partes do arranjo que foram abandonadas;(...) 45
O cd nos mostra trechos incompletos de músicas, trechos de letra e
arranjos aleatórios, ao ponto de tornar visível nuances do processo de
Não sabemos exatamente se a negação “não é um cd duplo” é uma mensagem da gravadora
ou da própria ideologia do álbum. No entanto, independente do que seja, a frase nos faz
questionar tal negação, sendo até um incentivo a instigar o ouvinte a se perguntar que tipo de
cd é esse. Desse modo, refletimos sobre a outra possibilidade de álbum composto por dois
cds.
45
Relatos de Tom Zé ao contextualizar o álbum Jogos de armar-Faça você mesmo, no próprio
encarte.
44
composição e gravação da canção. Esse comportamento não é comum nas
gravadoras.
O cd auxiliar e sua confirmação no relato exposto acima demonstram
aos nossos olhos certa idealização cultivada por Tom Zé: a de romper com o
sigilo do processo de gravação de músicos, que as gravadoras mantêm para
não haver vazamento ou plágio do “produto” de certos cantores. Acreditamos
que isso ocorra em função de um acordo entre empresários da indústria
fonográfica que visam apenas a fins lucrativos, sufocando possibilidades de
criação do próprio consumidor, seja ele qual for, ou de um músico em
potencial.
Retomando a idéia de jogo de armar, vimos, paradoxalmente, que o jogo
se faz
a partir do cd auxiliar, trazendo outras versões das músicas do
primeiro, só que “em pedaços”, sugerindo a possibilidade de cada canção ser
um refazimento, um “jogo” para se montar, desmontar e remontar. Essas e
outras seriam as possibilidades de “armar o jogo”, a canção com fins lúdicos,
uma bricadeira do criar interminável.
Dialogando ainda com Jogos de armar- Faça você mesmo, vimos dentre
outros elementos, que ele traz canções de canções pré-existentes, canções já
tocadas em outros álbuns, conservadas nelas a mesma melodia com a
inserção de outros arranjos: outras
canções abaixo.
nuances e tonalidades. Vejamos as
Jimi renda-se46
(Tom Zé/ Valdez)
Gênero: maracapoeira
ARRASTÃO DO FALAR SOFISTICADO
Ed. Sonata (Fermata) 70274620
Guta me look mi look love me
Tac sutaque destaque tac she
Tique butique que tique te gamou
Toque-se rock se rock rock me
Bob Dica, diga,
Jimi renda-se!
Cai cigano, cai, camóni bói
Jarrangil century fox
Galve me a cigarrete
Billy Halley Roleiflex
Jâni chope chope chope chope
Ô Jâni chope chope
Ie relê reiê relê
Dor e Dor47
Tom Zé Composição: (Tom Zé)
Te quero te quero querendo quero bem
quero te quero querendo quero bem.
Chiclete chiclete, mastigo dor e dor clete
chiclete,
mastigo dor e dor.
Te choro te choro,
chuvinha chuviscou.
Choro te choro,
chuvinha chuviscou.
Chamego chamego,
me deixa me deixou.
Mego chamego,
me deixa me deixou.
A dor a dor, a dor a dor
... ... ...
Mas eu te espero
porque o grito dos teus olhos
é mais
longo que o braço da floresta
e aparece atrás
dos montes, dos ventos
e dos edifícios
e o brilho do teu riso
é mais
quente que o sol do meio-dia
e mais e mais e oh oh oh oh oh
Mas eu te espero
na porta das manhãs porque
o grito dos teus olhos
é mais e mais e mais
e depois que você partiu
o mel da vida apodreceu na minha boca
apodreceu na minha boca
Oh, oh, oh, oh, oh
As canções acima têm uma mesma construção melódica, no entanto, um
arranjo verbal diferente. Consideramos a primeira, Jimi renda-se um caso de
imitação, uma auto-imitação com intuitos subversivos, da canção segunda, dor
e dor .
Apesar de estarmos considerando a primeira e a segunda numa ordem
cronológica (2000 e 1972), isso não significa exatamente dizer que uma surgiu
primeiro que a outra, pois não é possível sabermos qual a ordem de
surgimento de ambas canções. Talvez nem mesmo o autor saiba, devido às
misturas de arranjos e letras que tumultuam seu universo literomusical.
46
47
Do álbum Jogo de Armar, faça você mesmo (2000)
Do álbum Se o caso é chorar (1972)
Visualmente, um dos índices que nos mostra a desconstrução do arranjo
de uma na outra, de dor e dor em Jimi renda-se, é a encenação de um outro
código de linguagem estranho ao outro, um outro investimento lingüístico, o
qual apela para uma mistura de línguas: ora inglês, ora português, ora a
fusão das duas, ora uma ou outra língua a qual nem conhecemos.
Iniciando pelo nome da música, “Jimi renda-se” (gênero maracapoeiraarrastão do falar sofisticado), lemos como sendo um convite direcionado à
figura do cantor Jimi Hendrix, não à pessoa em si,
mas à notável
representação e relevância que ele tem para o Rock and Roll na década de 70,
além de outros aos quais ele cita: Bob Dylan (Bob Dica), Janis Joplin (Jâni
chope), Bill Halley (Billy Halley Roleiflex).
Parece tratar, na verdade, de um convite ao afastamento e,
paradoxalmente, a uma aproximação: Toque-se rock se rock rock me, Bob
Dica, diga, Jimi renda-se! Direcionado a figuras canônicas, a membros
representantes do universo do Rock Norte Americano, une, desse modo, uma
mistura de ritmos e estilos.
Inferimos que as condições de produção da referida canção, momento
histórico, circunstância política e musical, referem-se ao período da década de
60-70 (por fazer referência a cantores que tiveram ascensão entre essas
décadas). Com relação à postura musical, compreendia o momento recém
tropicalista, o qual trilhara uma reconfiguração de gêneros e modos de compor
a música brasileira.
A voz nos timbres arrastado e humorístico dá à canção um tom irônico
e brincante, e a melodia, emprestada de outra canção, dor e dor, expressa
bem o ritmo e tom de Rock and Roll.
O arranjo em acompanhamento instrumental sugere um arrastão,
nomeado maracapoeira, nome que designa uma mistura dos gêneros musicais
(maracatu e capoeira) de origem africana. Essa mistura contraria a formação
genérica do Rock, que geralmente não usufrui de uma mescla, sendo fiel a
suas características rítmica, harmônica e melódica predominantes, e
conservando o conjunto básico de instrumentos (guitarra e baixo elétricos,
bateria e eventualmente piano, orgão ou teclado elétrônico) .
Interpretamos essa canção como um modo de deslinearizar a linguagem
do gênero rock, de desconstruir a língua mãe do rock, a Inglesa, e trazer
também, a portuguesa ou a distorção das duas (o que gera outras línguas):
“Tac sutaque destaque tac she”; ferindo uma convenção lingüística do Rock
Norte Americano. O código de língua usado sugere a carnavalização, ou seja,
a quebra de uma hierarquia, no caso, a de ordenação e valores lingüísticos,
por trazer, libertariamente, a manifestação de várias línguas.
A canção “Jimi, Renda-se” incorpora também um caráter carnavalizante
por provocar uma quebra de hierarquia sintática e semântica da Língua
Portuguesa. E aponta para uma caractérista do posicionamento tropicalista,
problematizando o gênero musical Rock.
Na outra canção, a “dor e dor,” conserva-se parte de arranjo e melodia
enfocando o investimento num discurso amoroso. Observando-a, percebemos
o predomínio do investimento no plano lingüístico, o da repetição sonora de
várias palavras (te quero, chiclete, chuva) e fonemas:
Te quero te quero querendo quero bem
quero te quero querendo quero bem.
A repetição dos fonemas torna o desejo de querer, expresso pelo
enunciador, mais intenso, o desejo atinge a exaustão. O uso em série da
palavra chiclete nos faz inferir a ação de mastigar, a de degustar a “dor” do
querer, a de usufruir e sentir a dor vivenciada pelo eu que se constrói na
canção: Chiclete chiclete, mastigo dor e dor, clete chiclete, mastigo dor e dor.
Escutando a melodia, ritmo e batida, ouvimos um diálogo que se cria
entre a palavra, seu significado e melodia. Notamos uma imagem que se
constrói a partir da ação de “mastigar” um chiclete na canção: o ritmo se
fazendo em movimentos contínuos de subidas e descidas, de sim e de não,
relacionado analogicamente ao mastigar de chiclete.
Consideramos a redundânica dos fragmentos sonoros e fônicos um
investimento
discursivo que leva à legitimação do discurso amoroso na
canção: a exaustão da palavra “querer”, que leva à exaltação e afirmação do
afeto.
A redundância, dessa maneira, na canção é necessária e significativa,
ela amarra e intensifica a mensagem de dor e afeto.
Tendo em vista as duas canções paralelas, vemos que cada uma
delas é uma outra canção, apesar de partirem de um mesmo ponto melódico.
Enquanto “Jimi, Renda-se” se faz através do investimento em um discurso
carnavalizante, que dialoga com lugares e posicionamentos (tropicalismo,
reinvenção de um código de linguagem), a versão “dor e dor” dedica-se ao
plano fônico, à materialidade lingüística que ajuda a construir e a intensificar o
sentido da canção, problematizando e reconstruindo traços fônicos sonoros,
que de certo modo, também dialogam com o posicionamento tropicalista.
Visualizando “Jimi, Renda-se” em outro lugar, integrando o cd auxiliar de
“Jogos de armar”,
tem-se nele uma outra versão, uma terceira, numa
roupagem que traz a quebra de arranjos, podendo ser usados numa nova
remontagem ou quarta versão. Com isso e através de outros índices, como o
próprio encarte, nomes e “sobrenomes” das canções, esse álbum nos sinaliza
uma fonte, a abertura do fazer sem delimitações.
Além disso, pontuamos aqui um dos efeitos das releituras de uma mesma
melodia em várias canções, que diz respetiro à idéia do inacabado, por ser
mais
uma
remontagem
de
uma
outra,
que
está
se
repetindo
diferenciadamente.
Daremos continuidade, a seguir, no investimento da reinterpretação de si.
Há, além dessas duas canções discutidas acima (Jimi renda-se, Dor e Dor),
canção que ao contrário dessas, é conservada em parte a materialidade verbal
e é recriada a melodia, como:
2. Defeito2: CURIOSIDADE (Álbum
Com defeito de fabricação-1998)
Tom Zé / Gilberto Assis
Quem é que tá botando dinamite
Na cabeça do século ?
Quem é que tá botando tanto piolho
Na cabeça do século ?
Quem é que tá botando tanto grilo
Na cabeça do século ?
Quem é que arranja um travesseiro
Pra cabeça do século ?
Pra cabeça do século ?
Apesar
A Babá (Se o caso é chorar - 1972) composição Tom
Zé
O Rockefeller acusou Branca de Neve,
os anões se dividiram,
três de sim e três de não,
mas um morreu de susto
e perguntava, perguntava, perguntava:
Mas quem é, quem é, quem é?
quem é que agora
está cantando um acalanto
pra cabeça do século?
Ô de marré, de-marré-de-ci
Quem é que está fazendo
pesadelos na cabeça do século?
Ô de marré, de-marré-de-ci
Quem é que está passando
dinamite na cabeça do século?
Ô de marré, de-marré-de-ci
Quem é, quem é, quem é?
me diga você que sabe datilografia
quem é, quem é, quem é?
me diga você que estudou filosofia
Quem é que agora está
fazendo tanto medo na cabeça do século?
Ô de marré, de-marré-de-ci
E quem é que tá
botando piolho na cabeça do século?
Ô de marré, de-marré-de-ci
Quem é que está passando
pimenta na cabeça do século?
Ô de marré, de marré de si
Quem é, quem é, quem é?
Me diga você que sabe datilografia
quem é, quem é, quem é
me diga você que estudou filosofia
Quem é que agora está
botando tanto grilo na cabeça do século?
Ô de marré, de-marré-de-ci
Quem é que empresta
um travesseiro pra cabeça do século?
Ô de marré, de-marré-de-ci.
da extensão verbal de uma ser diferente doutra, as duas
conservam um mesmo ponto sensível, com relação à temática: a da
curiosidade. As melodias são bem distintas, a auto-reinterpretação aqui marca
e constrói um ethos do indivíduo curioso. Uma característica inerente ao
homem e, ao mesmo instante, sufocada por certas imposições sociais.
Para as perguntas recorrentes “Quem é que tá botando dinamite
Na cabeça do século?48”; Quem é que está passando49
dinamite na cabeça do século?”,
não há respostas, permanece o incômodo em se
saber quem está movendo o século, quem está criando, quem está pensando
ou “curiando” numa sociedade que tende a gerar múltiplas circunstâncias que
imobilizam o homem, levando-o ao abismo e a abismos banais.
O traço da curiosidade se relaciona, em outra instância, à própria
imagem e carreira de Tom Zé, representada nas década de 70, 80, 90 e no
início do ano 2000, em virtude de sua incessante e explícita vontade de criar
uma música, movida por inquietações que visavam traduzir uma verdadeira
canção, mesmo sendo esta uma descanção.
Nota-se a curiosidade, essa em recriar e discutir a partir de uma
desconstrução de valores estéticos e culturais, expressa nos álbuns
Estudando o Samba (1976) e Estudando o Pagode (2005). O primeiro trata do
pensar no gênero musical Samba e o segundo, no pagode, nesse último há o
enfoque no discurso feminino,
enfocando como a sociedade ocidental, do
ponto de vista masculino, atribui à mulher posturas e valores que se refletem
no gênero pagode50.
Os dois álbuns, além do segundo ser uma reapropriação do primeiro
quanto à idéia de estudar um gênero cancional, há a problematização e
reconstrução dos gêneros samba e pagode.
Podemos inferir que uma característica predominante no seu trabalho
é a de criar e recriar incessantemente. O efeito da reinterpretação de uma
canção não mostra, unicamente um novo verso, uma nova melodia, propicia
uma recriação que desordena o ouvido, reinventando ritmos, no intuito de
Canção “curiosidade”
Canção “A Babá”
50
À respeito desses álbuns seria pertinente estender-se mais e mais em discussões quanto à
História da Música Brasileira (sobre a formação dos gêneros Samba e Pagode). Mas aqui,
infelizmente não foi possível esse debruçar, devido à escolha do corpus. Mas fica uma
pendência e algumas sugestões de trabalhos sobre o assunto: A produção do Discurso líteromusical brasileiro de Nelon Barro da Costa(2001); Manguebit: uma dicurividade literomuical
guerrilheira, de Francico Talvane Rocha(2006).
48
49
ordenar uma desordem de pensamento sonoro, inaugurando posicionamentos
estéticos na canção, tornando-a mais significativa e emancipadora.
6. EMBATES ENTRE POSICIONAMENTOS DISCURSIVOS
Partiremos nesse momento para o campo discursivo musical, no qual
visualizamos um espaço discursivo ou um ponto de embate entre dois
posicionamentos: Bossa Novista e Tropicalista.
No campo discursivo há possibilidades de captar espaços discursivos,
pontos que podem sinalizar uma relação de confronto, proximidade,
neutralidade entre no mínimo dois discursos.
As diferentes formações social, política, ideológica e cultural, ou seja, as
diferentes formaçôes discursivas do enunciador são movidas por objetivos
específicos e podem conviver num mesmo
campo discursivo, embora
assumam posicionamentos divergentes já que um discurso existe em oposição
a outro.
A especificação desse espaço ocorreu em virtude de um caminho, de
hipóteses que propiciaram nosso mergulho. A hipótese, nesse caso, é a de
que o sujeito Tom Zé no lugar de compositor configura uma cenografia que
subverte o posicionamento Bossanovista.
Conforme a percepção desse espaço revelado através de uma
construção musical de uma canção que se aproxima do modo de composição
do posicionamento bossanovista, notamos uma semelhança sonora que tende
a
problematizar
a
própria
concepção
desse
posicionamento,
e
simultaneamente, um dos seus ideais, por exemplo, a contemplação da
imagem feminina.
Antes de analisarmos a canção, cabe, nesse instante, um breve relato
sobre o surgimento da Bossa Nova como movimento musical e, em seguida, a
exposição das letras das canções que se conectam, para que visualizemos
determinadas e significativas relações.
Diante de uma multiplicidade e mistura de ritmos e gêneros cancionais
como bolero, tango, samba–canção, o movimento musical Bossa Nova surge
no fim da década de 50, visando uma estética do mínimo e do detalhe de
arranjo. Uma das características é a redução da batida percussiva de
marcação do samba, uma batida de violão mais silenciosa e sutil, retratando a
delicadeza e intimidade sonora.
Esses traços dialogam com o sentido da palavra “bossa”, quer dizer,
onda, voga, jeito. Liderada pelos músicos Tom Jobim, João Gilberto e pelo
letrista Vinícius de Moraes a Bossa Nova é um movimento intenso para a
época do seu surgimento e que teve forte influência do gênero cool Jazz norte
americano. É considerado um gênero elitista emergido da classe média
carioca.
De modo amplo, a composição bossanovista almejou amenizar a
polifonia sonora e musical existente naquele período, priorizando o caráter
mais intimista e metamusical. Buscando também clarear o ambiente que, até
então, convivia com uma mistura de gêneros e ritmos cancionais. Ela propôs
uma nova relação éthica com o samba. Lançando o paradoxo bastante
interessante: o mínimo na interpretação e o máximo na harmonia.
O culto à contemplação da beleza feminina integrava um dos temas
bossanovistas. Tomando essa característica temática da Bossa Nova e uma
das características do Tropicalismo, a da desconstrução de mitos e imagens
consideradas pops, apontamos uma relação entre eles em duas canções,
uma de Tom Zé (Brigitte Bardot) e
outra, bossanovista, de Tom Jobim e
Vinícius de Moraes (Garota de Ipanema).
Garota De Ipanema
Brigitte Bardort (álbum Todos os olhos)
Tom Jobim Composição: Antônio Carlos
Jobim e Vinícius de Moraes-1962
A Brigitte Bardot está ficando velha,
envelheceu antes dos nossos sonhos.
Coitada da Brigitte Bardot,
que era uma moça bonita,
mas ela mesma não podia ser um sonho
para nunca envelhecer.
A Brigitte Bardot está se desmanchando
e os nossos sonhos querem pedir divórcio.
Pelo mundo inteiro
milhões e milhões de sonhos
querem também pedir divórcio
e a Brigitte Bardot agora
está ficando triste e sozinha.
Será que algum rapaz de vinte anos
vai telefonar
na hora exata em que ela estiver
com vontade de se suicidar?
Quando a gente era pequeno,
pensava que quando crescesse
ia ser namorado da Brigitte Bardot,
mas a Brigitte Bardot
está ficando triste e sozinha
A Brigitte Bardot está ficando velha, triste,
sozinha, velha e sozinha, ... sozinha,
só............ zinha..... ah
Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela menina
Que vem e que passa
Num doce balanço, a caminho do mar
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar
Ah, porque estou tão sozinho
Ah, porque tudo é tão triste
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha
Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo sorrindo se enche de graça
E fica mais lindoPor causa do amor
Através de apropriação de um símbolo pop feminino, a atriz francesa Brigitte
Bardot, que representou na década de 60 a exuberância da beleza
cinematográfica feminina, sendo considerada pela mídia a mulher mais
sedutora para a época, Tom Zé, delicadamente, desmistifica sua imagem
intocável, questionando sobre a idealização de sua imagem.
Os índices referentes ao plano não-verbal quanto ao modo de arranjo e
ritmo explicitam a aproximação existente entre as canções Brigitte Bardot51 e
Garota de Ipanema, informação que funda uma relação interdiscursiva entre
essas canções. A estética bossanovista revela o tom baixo de voz
contemplativa que soa algo intimista, ocasionado pela batida de violão contida.
A relação divergente quanto à temática beleza feminina pontuada entre
essas canções está na diferença que há no modo de conceber o gênero
feminino. Em Brigitte Bardot há o “culto” ao que não é considerado,
51
Tom Zé, Álbum “Todos os olhos”, 1973.
classicamente, belo, a velhice: A Brigitte Bardot está ficando velha, envelheceu
antes dos nossos sonhos. Coitada da Brigitte Bardot, que era uma moça
bonita. Esse aspecto contradiz a imagem que Tom Jobim idealiza em Olha que
coisa mais linda, Mais cheia de graça... .
Há na canção Brigitte Bardot a subversão de valores, que também
remete ao caráter carnavalizante profano: a desconsagração da imagem da
atriz Brigitte Bardot. Aí, ela não é mais o símbolo de mulher intocável e dotada
de beleza singular como a mídia mostrara na época de sua eclosão. O símbolo
feminino aí é desconstruído ou descristalizado. Passa a se contemplar através
de ritmo, melodia e harmonia sutis e delicadas a imagem de uma pessoa que
passa, naturalmente, por um processo de envelhecimento. Constrói-se nesse
espaço a imagem do rebaixamento, da apresentação do “baixo”, o aspecto
que, geralmente é omitido pela mídia, a beleza do não belo, do “velho”, do
desfazer-se:
A Brigitte Bardot está ficando velha,
envelheceu antes dos nossos sonhos(...)
A Brigitte Bardot está se desmanchando...
Essa cena estabelecida pelo enunciador
opõe-se à cena veiculada
pela mídia e publicidade, a da beleza jovial feminina, através de mecanismos
que cristalizam ou retardam o envelhecimento da mulher (produtos cosméticos,
cirurgias plásticas).
Contrariamente à Brigitte Bardot, em Garota de Ipanema há o olhar de
observador e contemplador sobre uma mulher sempre em idade nova e jovial,
que representa o símbolo da beleza carioca da praia de Ipanema: Moça do
corpo dourado, Do sol de Ipanema, O seu balançado é mais que um poema,
É a coisa mais linda que eu já vi passar.
Embora
haja a oposição entre as canções no que se refere à
idealização da mulher, há um certo grau de semelhança, como vimos, entre a
batida de instrumentos e gênero musical nas duas canções.
Essa semelhança instaura uma diferença: a da iconoclastia do arranjo
de Brigitte Bardort (enganosamente bossanovista) não em oposição ao arranjo
da outra, Garota de Ipanema, mas uma iconoclastia em confronto com o
posicionamento Bossa Nova. Esse momento se dá com o rompimento do
arranjo num instante da canção Brigitte Bardot, no qual é perceptível um
crescimento da massa sonora com relação ao plano melódico: o aumento de
volume, intensidade na harmonia e mais a chegada de outros instrumentos
que dão mais corpo à canção:
Será que algum rapaz de vinte anos vai telefonar na hora exata em que ela
estiver
com vontade de se suicidar? //////////52
A inclusão desses instrumentos e a intensificação de alguns timbres e
volumes nessa passagem rompem com a estética bossanovista, a da canção
canônica: a canção no seu “silêncio” sonoro de voz, corda e de percussão, a
decantação ou depuração de voz e cordas que visava a consisão e economia
estética. O efeito da “imprevisão” na passagem dos versos acima é a
reverberação e a exaltação de uma descanção.
A canção na sua economia de oscilações vocais, rítmica, melódica e
harmônica torna a audição
“pura” com ampliação emotiva e lírica.
A
eliminação de execessos de instrumentos e volumes vocais era uma ação
básicas para a composição cancional, no intuito de se ouvir minuciosamente
uma essência musical. A maneira “bossanovista” cantada por Tom Zé em
Brigitte Bardot provoca, de certo modo,
o rompimento com
o formato
canônico bossanovista.
A “Garota de Ipanema” torna-se o ápice da canção por obedecer ao
cânone do posicionamento Bossanovista, enquanto que a canção “Brigitte
Bardot” torna-se a ascensão da descanção por subverter esse cânone.
A cenografia configurada na canção “Briggite Bardot” é validada pela
retomada do posicionamento bossanovista, sendo, simultaneamente o mesmo
desqualificado. Essa cenografia se legitima através do seu antiespelho, do seu
contraste, ou seja, da incorporação do seu opositor para afirmar sua oposição
a ele.
52
Esses traços significam o aumento do volume de massa sonora ocorrido na canção.
Então, nota-se que o modo do compositor discordar de uma linha de
pensamento cancional, reveladora de um posicionamento, é perfurando-a,
desfazendo-se de uma estética através da apropriação dela mesma. Nessas
condições é necessário afirmar-se bossanosvista para também negar-se
bossanovista ou, quem sabe, refazer-se bossanovista.
7. A CONSTRUÇÃO DE CENOGRAFIAS NA CANÇÃO: DA CIDADE
LONGÍNQUA PARA UMA GRANDE CIDADE
Movimentos de ida e vinda: do campo para a cidade, da cidade para o
campo.
Vamos
nos
ocupar nesse
momento
em
discutir
configurações
cenográficas características em uma quantidade significativa de canções.
Introduziremos a idéia de cidade, para discutirmos a cenografia do caminhar
em e entre espaços citadinos traçados nas canções.
O caminhar insere-se na cidade, como a cidade no caminhar. A ação e
o espaço se interpenetram ao olhar do homem viajante.
Mas qual ou quais cidade (s) se configura (m) na canção? Que relação
pode haver entre a cidade, a vida e posições literodiscursivas? Que referências
traz o sujeito ou o personagem construído na canção ao lê e caminhar pela (s)
cidade (s), que sentidos traz a cidade? São essas e possíveis outras
indagações aqui presentes.
A inscrição da letra num dado suporte desenha uma topografia e uma
cronografia. Ou seja, a palavra no espaço e no tempo se integra na
enunciação.
Assim como alguém lê um livro, um filme e constrói determinados
sentidos a respeito,
também se pode ler a cidade, que traz, mostra
possibilidades de sentir, de dizer e de não dizer.
As vias são inúmeras e
seguem caminhos singulares.
A cidade em transe é o constante movimento. A cidade incorpora
corpos, o corpo incorpora a cidade. A cidade e o corpo num só corpo. Ela se
define por suas porções diferenciadas com relação às pessoas, lugares,
atividades de trabalho, de cultura, história e economia. Olhar para a cidade é
habitar várias possibilidades de lugares nela existentes. É estar em contínua
alteração de natureza geográfica, física e humana. É se permitir a entrar em
vias desconhecidas.
Essa cidade tende a uma diluição de uma tradição já esquecida, vive da
tradição da não tradição. Um dos fatores que levam à não tradição é a
tecnologia, a modernização geográfica, dentre outros aspectos que omitem e
apagam lugares pré-existentes. Mas que efeitos e sentidos a cidade traz, além
de sua visão arquitetônica em constante transformação? Como a cenografia da
cidade se constrói na canção de Tom Zé? Como o sujeito enunciador,
personagem desenha a idéia de cidade na canção?
As formas da cidade são as topografias, nas quais diversos grupos se
divergem
e se convergem
nelas, considerando as heterogeneidades
econômica e cultural, referenciadas em diversas linguagens (televisiva,
cinematográfica, literária e literomusical).
Retratar a cidade no ambiente literomusical de Tom Zé é voltar ao lugar
da não cidade, ao campo, é observar modos de migração do campo para a
cidade. Os sentimentos de dor, sacrifício e emancipação convivem juntos
quando se busca a cidade. O sujeito da canção une angústia e alegria ao
migrar do campo para a cidade. É o que se percebe na canção abaixo:
Menina Jesus53
Valei-me minha menina Jesus, minha menina Jesus,
minha menina Jesus, valei-me.
Só volto lá a passeio, no gozo do meu recreio
53
Álbum Estação do Brás (1978)
tocar.
renda,
Só volto lá quando puder comprar uns óculos escuros.
Com um relógio de pulso
Que marque hora e segundo, um rádio de pilha novo, cantando coisas do mundo - pra
Lá no jardim da cidade, zombando dos acanhados, dando inveja nos barbados e
suspiros nas mocinhas....
Porque pra plantar feijão, eu não volto mais pra lá, eu quero é ser Cinderela, cantar na
televisão....
Botar filho no colégio, dar picolé na merenda, viver bem civilizado, pagar imposto de
Ser eleitor registrado, ter geladeira e TV, carteira do Ministério, ter cic, ter rg.
Bença, mãe. Deus te faça feliz, minha menina Jesus e te leve pra casa em paz.
Eu fico aqui carregando o peso da minha cruz no meio dos automóveis, mas
Vai, viaja, foge daqui que a felicidade vai atacar pela televisão
E vai felicitar, felicitar, felicitar, felicitar até ninguém mais respirar.
Acode minha menina Jesus, minha menina Jesus, minha menina Jesus, acode.
Nessa canção o compositor se apropria de uma representação bíblica
ao nomear a canção de “Menina Jesus”, opção que vai desenhando o caráter
de sacrifício revelado ao longo dos primeiros versos, através da expressão
“valei-me”: Valei-me minha menina Jesus, minha menina Jesus, minha menina
Jesus, valei-me.
O uso do código lingüístico “valei-me” mostra-nos a invocação, um
pedido de proteção divina a um acontecimento, a alguém que está prestes a
sofrer. Esse pedido é explicitamente direcionado à menina que migra de sua
cidade natal (possivelmente do nordeste por ser mostrar um código lingüístico
que apresenta expressões como valei-me, acode, bença, plantar feijão) para
uma cidade, economicamente mais desenvolvida.
Vários elementos compõem uma cenografia ou situação de enunciação
e apontam para cenários diversos, validados (já afirmados no universo de
saber e de valores concebidos social e culturalmente): índices de códigos
lingüísticos, indicativos paratextuais (um título, um comentário)54, que apontam
para espaços e lugares.
Tateando o álbum ao qual pertence à canção em análise, vimos um
índice que nos revela um lugar através do título: “Correio da Estação do Brás”.
Sendo Brás um bairro situado na região central de São Paulo, considerado o
No caso de canções os índices paratextuais podem ser: o nome da canção, o título do álbum
ao qual pertence à canção, comentários que antecedem alguma canção.
54
lugar de imigrantes italianos e migrantes nordestinos. Lá é o lugar de operários
e comerciantes, ditos “sacoleiros”. Lugar onde se instaura o comércio diário.
Através desses índices, é pertinente haver uma relação entre
São Paulo
interior do Nordeste.
Observando a representação dos objetos de consumo enunciados:
“óculos escuros”, “relógio de pulso”, “rádio de pilha novo”, nos os consideramos
elementos que inferem o lugar de movimento e urbanidade, de modernidade,
característicos da cidade que usufruem do comércio, informações que,
hipoteticamente, retomam o lugar “Estação do Brás” que é explicitado já no
título do álbum.
Só volto lá a passeio, no gozo do meu recreio
Só volto lá quando puder comprar uns óculos escuros.
Com um relógio de pulso
Que marque hora e segundo, um rádio de pilha novo, cantando coisas
do mundo - pra tocar.
Lá no jardim da cidade, zombando dos acanhados, dando inveja nos
barbados e suspiros nas mocinhas (...)
A cenografia constituída denota o lugar da cidade grande, de comércio.
A personagem “menina Jesus” representa o indivíduo nordestino e
revela-nos seu desejo de sair do campo: em busca da cidade: Porque pra
plantar feijão, eu não volto mais pra lá, eu quero é ser Cinderela, cantar na
televisão (...).
A cidade como promessa de vida, de encontro com a civilização, na
conquista de ser um cidadão:
Botar filho no colégio, dar picolé na merenda, viver bem civilizado, pagar
imposto de renda’.....
Ser eleitor registrado, ter geladeira e TV, carteira do Ministério, ter cic,
ter rg.
O movimento se faz do campo para a cidade, realizando-se numa
viagem que promete mudança de vida em vários sentidos: material, geográfico,
cultural.
Em circunstâncias outras é possível também pensarmos o porquê do
protagonista gênero feminino, informação que nos remete à condição da
criança desamparada e prostituída que, ao fugir de casa, vislumbra melhores
condições ambientes para viver, submetendo-se à anulação de sua infância e
à comercialização do próprio corpo. Essa atitude é tomada devido às
condições insuficientes oferecidas pelos governos.
Há mais cenografias de cidade constituída em outras canções, ainda
compartilhadas no álbum Correio da Estação do Brás, índice que mostra o
quanto a cidade São Paulo assume
uma centralidade para o nordestino.
Como observaremos, a seguir, nas canções intituladas “Correio da Estação
do Brás”, “Amor de estrada”, “Carta” e “Augusta, Angélica e Consolação”:
I. CORREIO DA ESTAÇÃO DO BRÁS
(TomZé) (Revisada como "Feira de Santana")
Eu viajo segunda-feira, Feira de Santana, quem quiser mandar recado
remeter pacote , uma carta cativante, a rua numerada, o nome maiusculoso, pra evitar engano
ou então que o destino, se destrave longe.Meticuloso, meu prazer não tem medida,
chegue aqui na quinta-feira antes da partida.Me dê seu nome pra no caso de o destinatário
ter morrido ou se mudado, eu não ficar avexado, e possa trazer de volta o que lá fica sem dono.
nem chegando nem voltando ficando sem ter pousada
como uma alma penada. De forma que não achando
o seu prezado parente eu volto em cima do rastro
na semana reticente, devolvo seu envelope
intacto, certo e fechado. odeio disse-me-disse
condeno a bisbilhotice. Se se der o sucedido
me aguarde aqui no piso, pois voltando com a resposta,
notícia, carta ou pacote , -- ou até lhe devolvendo
o desencontro choroso da missão desincumprida
estarei aqui na certa sete domingos seguidos
a partir do mês em frente. Palavra de homem racha
mas não volta diferente.
A canção “Correio da Estação do Brás” nos apresenta uma marca
que explicita a topografia, o espaço ao qual remete a canção, mais uma vez ao
bairro comercial paulistano, o Brás, onde se instaura grande parcela de
migrantes nordestinos.
Aqui há o diálogo entre a feira que ocorre na cidade “Feira de
Santana”55, região norte da Bahia, e entre outra, provavelmente a que se
destina alguns baianos, ao centro comercial Estação do Brás.
O sujeito
enunciador representado na canção é um viajante comerciante que envia
encomendas e recados a parentes que estão fora da cidade baiana e parti de
uma feira para outra:
Eu viajo segunda-feira, Feira de Santana, quem quiser mandar recado.
remeter pacote , uma carta cativante, a rua numerada (...)
7.1 A CENOGRAFIA DA CIDADE INTERIOR: A ESTRADA DA LONGA IDA
A idéia de cidade que concebemos aqui não é a cidade no seu sentido
urbano, econômico e habitacional, tal como apresentamos no item anterior.
Notamos que cenografia aqui configura a cidade de interiores.
Os interiores de que falamos representam através do enunciador e das
possibilidades semânticas embutidas na materialidade lingüística a cidade
das sensações, das perturbações e do caos. Como nos suscitam as canções
Amor de estrada.
Essa cidade concentra fronteiras que facilitam o acesso de quem vem do sul, Centro-oeste.
De acordo com dados históricos ela se encontra num dos principais entroncamentos de
rodovias do Nordeste brasileiro, funcionando como ponto de passagem para o tráfego que vem
do Sul e do Centro Oeste e se dirige para Salvador (Bahia) e outras cidades nordestinas, sendo
considerada a "porta de entrada" para o Sertão do estado.
55
II. AMOR DE ESTRADA
(Tom Zé - Washington Oliveto)
Vou dirigindo solitário pela estrada
mas te levo na lembrança meu amor
o caminhão amigo chora na subida
fiel a minha dor
coro - Voy dirigiendo solitario pur la ruta
pero llevando mio recuerdo a mi amor
mi camion amigo llora en la subida
fiel a mi dolor
solo - Encontrar-te foi bom
o teu corpo é tão perfeito
que para descrevê-lo
um poema não daria
coro - Então é uma carroceria
solo - Com outras não te trairei
e na estrada não darei
carona pra mulher vadia ,
coro -Isto até ao meio-dia
solo - Seu guarda me desculpe
ultrapassei oitenta beijos
se multar os lábios dela
vai multar os meus desejos
coro - Ela te quebrou dois eixos
solo - Vou pra perto de ti
se de noite estou cansado
clareando minha estrada
teu olhar iluminado
coro - É um farol desregulado
solo - Vou dirigindo...
coro - Voy dirigiendo...
solo - Vou caminhando
meu caminho,
meu longo caminho:
meu caminhão.
coro - Voy caminando,
mi camino
mi gran camino,
III. CARTA
(Tom Zé)
Eu preciso mandar notícia
pro coração de meu amor me cozinhar
pro coração de meu amor me refazer
me sonhar
me ninar
me comer
me cozinhar como um peru bem gordo
me cozinhar como um anum-tesoura
um bezerro santo
uma nota triste.
Me cozinhar como um canário morto
me cozinhar como um garrote arrepiado
um pato den´d´água
um saqué polaca.
Eu escrevo minha carta num papel decente
quem se sente
quem se sente com saudade não economiza
nem à guisa
nem dor nem sentimento que dirá papel
o anel
o anel do pensamento vale um tesouro
é besouro
é besouro renitente cuja serventia
já batia
já batia na gaiola e no envelope
e no golpe
e no golpe da distância andei 200 léguas
minha égua
minha égua esquipava, o peito me doía
quando ia
quando ia na lembrança vinha na saudade.
A
canção “Amor de estrada” constrói a cenografia do deserto
habitado por vários eus,
no percurso do ir. Visualiza-se a topografia de
estrada, do caminhar em passos longos, usando pés de caminhão.
Percebemos a construção de uma cenografia campestre, um lugar de deserto:
Vou dirigindo solitário pela estrada (...); o caminhão amigo chora na subida. O
enunciador parece trilhar um caminho desconhecido, priorizando vivenciar o
processo de viagem, atribuindo relevância ao movimento de ida, da subida e
de, simplesmente, ir, livremente, para um lugar não identificado, em direção da
cidade desconhecida:
Vou caminhando
meu caminho,
meu longo caminho:
meu caminhão.
É através do caminhar sem a previsão de um caminho, a não ser do
caminho meu caminho, que há possibilidades quase infinitas de experiências
que
podem ocorrer durante o percurso dessa viagem. Aí é desenhada a
cenografia da cidade da solidão que, ao mesmo instante é habitada pelas
impressões que a estrada causa. O apego ao signo caminho leva a exaustão
do caminho, que sustenta outros sentidos: o do caminho longo, do caminhão
automóvel.
A outra canção ao lado direito da Amor de estrada, a carta56 constrói
a cidade da saudade e solidão, a relação afetuosa entre duas pessoas e cujo
contato próximo foi interrompido por uma hipotética viagem. Quem enuncia,
fala de um lugar longínquo, há uma distância entre os interlocutores, que é
explicitada pelos versos: Eu preciso mandar notícia pro coração de meu amor
me cozinhar.
Notamos a configuração da cenografia de solidão e da auto-tortura
amorosa gerada por uma saída, um afastamento entre os personagens. Há a
construção da cidade solidão tumultuada pela urbanização do caos interior,
das lembranças, do desejo, do sentir e não ter.
Essa canção foi analisada em momento anterior numa outra versão com ênfase em traços
de performance vocal e grotesca, nas páginas 46-48
56
7.2 A CIDADE DA GRANDE CIDADE: CENOGRAFIA SÃO PAULO
Ao analisarmos a próxima canção “Augusta, Angélica e Consolação”,
utilizamos referências de dados históricos e geográficos para uma significativa
construção cenográfica.
Através dos dados biográficos, da história de sua carreira musical
apresentados ao longo desse trabalho e dos índices lingüísticos da canção,
interpretamos os três nomes próprios dessa canção como cada um sendo uma
via da cidade de São Paulo.
IV. AUGUSTA, ANGÉLICA E CONSOLAÇÃO
Augusta, graças a Deus,
graças a Deus,
entre você e a Angélica
eu encontrei a Consolação
que veio olhar por mim
e me deu a mão.
Augusta, que saudade,
você era vaidosa,
que saudade,
e gastava o meu dinheiro,
que saudade,
com roupas importadas
e outras bobagens.
Angélica, que maldade,
você sempre me deu bolo,
que maldade,
e até andava com a roupa,
que maldade,
cheirando a consultório médico,
Angélica.
Quando eu vi
que o Largo dos Aflitos
não era bastante largo
ora caber minha aflição,
eu fui morar na Estação da Luz,
porque estava tudo escuro
dentro do meu coração
A Rua Augusta retrata o ambiente de glamour e de diversão no período
da década de 60, ápice da ditadura militar. Mas já na década de 70 aos pouco
foi decaindo a harmonia festiva desse lugar, em virtude do intenso tráfego de
automóveis, ônibus e do surgimento de galerias comerciais. Agora restou a
saudade e o silêncio frente aos ruídos comerciais e automobilísticos que
existem. Recordação e saudade desse tempo são o que há em versos
cantados:
Augusta, que saudade,
você era vaidosa,
que saudade,
e gastava o meu dinheiro,
que saudade,
com roupas importadas
e outras bobagens.
Entre as vias Angélica e Augusta, há a Rua Consolação. Mais uma via
paulistana que ligava a cidade à estrada do Interior de Sorocaba, uma das
estradas mais transitadas, a partir do séc. XVI, havia sido um dos caminhos do
sertão, por onde passavam viajantes, sertanejos e colonizadores. Lá se
concentrava a grande feira de Sorocaba e onde foi construída a Igreja Nossa
Senhora da Consolação, no séc. XIX. Na igreja havia uma capela que abrigava
e acolhia viajantes, sertanejos.
Esse breve relato histórico nos faz observar o valor humano que
possui a Rua Consolação, um lugar de acolhimento, que confortava pessoas
humildes do sertão e viajantes em busca do trabalho e da sobrevivência.
Tais informações nos levam a reafirmar São Paulo, em especial a Rua
Consolação, como o lugar no qual Tom Zé encontra a si mesmo, os versos a
seguir nos infere esse encontro: Augusta, graças a Deus, graças a Deus, entre
você e a Angélica eu encontrei a Consolação que veio olhar por mim e me deu
a mão.
8. APENAS UMA TENTATIVA DE CONCLUSÃO
Nosso trabalho teve o intuito de caracterizar uma parcela significativa da
produção literomusical do compositor baiano Tom Zé. Apropriamos-nos de
alguns fundamentos da Análise do Discurso de linha
francesa de
Maingueneau e de idéias de outros pensadores (Bakhtin, Wisnik, Pignatari,
Zumthor), que de certo modo, contribuíram para a expansão de significados
literodiscursivos.
Enfocamos como seu discurso é construído, que investimentos
discursivos se fazem na canção, ou seja, que gestos, códigos de linguagem,
etos (maneiras de habitar o mundo) e cenas geradas, posicionamentos.
Apontamos efeitos de sentidos propiciados por esses investimentos.
Ao longo do trabalho podemos concluir que a canção de Tom Zé se
constitui de extremos, parte de ações iconoclasta, desconstrutora, subversiva à
ação construtiva, paradoxalmente, falando. Parte significativa de sua produção
musical realiza-se através da desconstrução de gêneros musicais (bossa nova,
samba, pagode, dentre outros), ação que cria outras versões de construção e
uma re-construção genérica cancional de si e do outro. Questionando, dessa
maneira e implicitamente, valores e convenções introduzidos e retroalimentados pela indústria fonográfica, referente a um código apriorístico da
linguagem musical.
Tom Zé, ocupando o lugar de compositor, assume um ethos de
“militante” musical. Um ethos subversivo, descancional por promover o
desfazimento de imagens consagradas pela mídia e pela sociedade: o
estereótipo do homem “maquinado” e de indivíduos moldados, midiaticamente,
numa falsa beleza inatingível. Investimento que nos demonstra ainda intensa
ligação com o posicionamento tropicalista, e para além disso, mantém vivo o
pensar no indivíduo como um ser que está sujeito aos acidentes e
irregularidade necessárias. Visão essa que se refere à irregularidade ou à
instabilidade comportamental humana discutida na canção “Tô” e que traduz e
afirma o caráter heterogêneo, não-linear e flexível de se criar uma canção,
insenta de imposições promovidas pela indústria fonográfica.
O traço do modo de fazer “descanção” nos revela uma dicotomia: de
um lado, a aliança entre distintos posicionamentos estéticos musicais (Rock,
Samba, Pagode, Bossa Nova) e de outro, a uma idiossincrasia dos mesmos,
conforme percebemos na canção Jime renda-se.
O investimento no código lingüístico que aponta para a tradição e cultura
nordestinas marca o lugar da individualidade e coletividade dessa cultura,
como uma resposta às vozes que a submestimam. Outros investimentos, tais
como o uso da “deformação”, a ruptura de hierarquia lingüística (sintática,
morfológica e semântica) e genérica cancional contribuem para a condição
paratópica e instável do compositor.
Os investimentos discursivos observados geraram significados como a
idéia de canção inacabada, a canção como um processo infinito de releituras
construtoras, a partir da autotextualidade e de heterogeneidades. Ao contrário
do que nos impõe a indústria fonográfica, a da canção como um produto
intacto, cristalizado.
A cenografia desenhada remete em vários momentos à cidade São
Paulo, à migração do nordestino do campo para a cidade como um lugar de
vivência, de sobrevivência e de táticas de composição. Sugerindo-nos
questões em torno da condição da mulher e da cultura nordestina em contraste
com a cultura sulista. A outra cenografia percebida remete à cidade do interior
de si, que leva a construção de vários lugares interior ao homem, gerando a
saída do homem para dentro de si.
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Hans-Joachim_Koellreutter em 10 do 9, 2 006
http://old.gilbertogil.com.br/smetak/takaug.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Anton_Walter_Smetak
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“A construção da descanção de Tom Zé” Altaila Maria Alves Lemos