MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MARÍLIA (SP) EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA ___ª VARA DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA EM MARÍLIA (SP) “Água fonte de vida Água esperança Água que mata a sede Água que molha a planta Água que brota da terra Água que sai do chão Água que molha o trigo Trigo que faz o pão” (“Água nossa de cada dia” de Maria da Conceição do Amparo) O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador da República signatário, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, vem, perante Vossa Excelência, com fundamento no art. 129, incisos II e III, da Constituição Federal, no art. 6º, inciso VII, alínea “b”, da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, e nos arts. 4º e 5º, ambos da da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA, com pedido de tutela antecipada em face da UNIÃO, pessoa jurídica de direito público, com sede na Avenida Euclides da Cunha, nº 650, B. Bassan, em Marília (SP); INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA - INCRA, autarquia federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, com sede na Rua Brasílio Machado, nº 203, 5º andar, bairro Santa Cecília, São Paulo (SP). pelos fatos e fundamentos a seguir aduzidos. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MARÍLIA (SP) 2 DO OBJETO DA AÇÃO A presente ação tem por escopo obter a condenação do INCRA em obrigação de fazer consistente em realizar a perfuração de poços artesianos nos assentamentos Antônio Lafaiete de Oliveira e Margarida Maria Alves, localizados em Gália/SP, bem como a condenação da União a prestar a devida assistência financeira para as obras, visando assegurar uma vida plena e digna aos seus moradores. DOS FATOS No dia 28 de setembro de 2009 foi instaurado nesta Procuradoria o Inquérito Civil Público nº 1.34.007.000062/2009-64 visando acompanhar os projetos de reforma agrária nas fazendas do Município de Gália/SP. Durante a tramitação do aludido Inquérito Civil foi solucionada a maioria dos problemas existentes, dentre eles, a instalação de energia elétrica, a regularização dos contratos e a estruturação dos acessos aos assentamentos, restando sem resolução apenas o problema de abastecimento de água nos assentamentos Antônio Lafaiete de Oliveira e Margarida Maria Alves. Assim, por melhor estratégia processual, o procedimento acima mencionado foi arquivado, com a imediata instauração do Procedimento Administrativo nº 1.34.007.000242/2011-61, que segue anexo, instaurado especificamente para acompanhar a situação do abastecimento de água nos assentamentos Antônio Lafaiete de Oliveira e Margarida Maria Alves. Segundo restou apurado, no Assentamento Antônio Lafaiete de Oliveira foram perfurados dois poços artesianos, mas em razão da baixa vasão de água nos aludidos poços, os moradores não conseguem obter água suficiente para atender suas necessidades básicas. Além disso, em relação ao Assentamento Margarida Maria Alves, os moradores estão sem qualquer abastecimento de água, pois não foi perfurado sequer um poço artesiano no local. O abastecimento de água é essencial ao ser humano e imprescindível para a produção agrícola, mas mesmo assim, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, em resposta a ofício, informou que estava impossibilitado de realizar a perfuração dos poços artesianos por não haver provisão de recursos financeiros e orçamentários disponíveis (fl. 13). A Reforma Agrária visa aumentar o desenvolvimento econômico e social do país por meio de políticas públicas de redistribuição de terras, desapropriando imóveis improdutivos e mal aproveitados e concedendo-os aos beneficiários dos Projetos de Reforma Agrária. No entanto, apesar de todo o esforço da sociedade no sentido de promover a efetivação da Reforma Agrária, visando distribuir a riqueza do país e diminuir a desigualdade social, o Poder Público se abstém de cumprir seu dever legal ao não realizar obras de infraestrutura básica, no sentido de promover o abastecimento de água nos referidos assentamentos, justificando sua omissão na ausência de recursos públicos disponíveis. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MARÍLIA (SP) 3 Ocorre que, sem água, os moradores dos referidos assentamentos não podem exercer uma condição plena e digna de vida, restando violados seus direitos fundamentais essenciais à condição de pessoa humana. Cumpre salientar, ainda, que as propriedades rurais foram desapropriadas para fins de reforma agrária por não cumprirem a sua função social, ou seja, não eram produtivas nem bem aproveitadas, e os réus, ao não concederem água aos moradores dos assentamentos, continuam mantendo a improdutividade dos imóveis. Desta forma, não resta outra forma de garantir a aplicação da lei e o respeito aos princípios constitucionais que não a busca da tutela do Poder Judiciário. DA “MAROLINHA” AOS DIREITOS HUMANOS MEGA-EVENTOS, VIOLANDO “- Lá (nos EUA), ela é um tsunami; aqui, se ela chegar, vai chegar uma marolinha que não dá nem para esquiar” (Declaração do Presidente Lula, em 04/10/2008, sobre a crise econômica internacional) “Governo anuncia corte de gastos de R$ 50 bi no Orçamento 2011” (manchete na página eletrônica - www.cartacapital.com.br) “Brasil não sabe quanto custará a Copa” (manchete na página eletrônica - www.estadao.com.br, em 16/10/2011) O Brasil foi eleito como país-sede da Copa do Mundo, em 2014, e o Rio de Janeiro, como sede dos Jogos Olímpicos de 2016. No entanto, até o momento, o Governo Federal não tem precisão do quanto de recursos públicos serão destinados a tais eventos esportivos. Nesse sentido, segue trecho da mencionada reportagem do Jornal “Estadão”: “No último balanço divulgado pelo governo federal, em setembro, o custo da Copa, considerando-se o dinheiro a ser investido em estádios, portos e aeroportos e em mobilidade urbana, foi estimado em R$ 27,1 bilhões. Aumento de cerca de 14% em relação aos R$ 23,1 bilhões do balanço de janeiro e de 26% sobre os R$ 21,5 bilhões de previsão feita em 13 de janeiro de 2010, quando o ex-presidente Lula assinou a Matriz de Responsabilidade. Esses R$ 27,1 bilhões estão a anos-luz de uma estimativa feita pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), que calculou em R$ 112 bilhões o custo com a Copa. O estudo da associação, que tem parceria técnica com a CBF e o Ministério do Esporte, inclui também gastos com hotelaria, segurança, tecnologia e saúde, entre outros. Mesmo assim, a diferença é grande, pois o balanço do governo acrescenta apenas R$ 10,3 bilhões para esses itens.” MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MARÍLIA (SP) 4 Apesar da falta de limites nas verbas públicas destinadas aos megaeventos esportivos, o Governo Federal faz cortes orçamentários em setores de essencial relevância para a sociedade (saúde, educação, segurança pública, reforma agrária, etc). A imprevisibilidade econômico-financeira do Governo, aliada à falta de comprometimento com políticas públicas essenciais, acaba por criar o disparate mencionado nos noticiários transcritos e descritos nesses autos. Enquanto se prevê que serão gastos até R$ 112 bilhões apenas na Copa do Mundo, o INCRA diz que não tem recursos suficientes para garantir o fornecimento de água para os assentados. Em resumo, enquanto sobram recursos públicos para os “jogos”, direitos fundamentais e sociais relevantes são suprimidos sob o argumento da falta de verbas (reserva do possível). Essa situação fica evidenciada no presente caso em que a Administração Pública deixa de propiciar abastecimento de água aos assentados, alegando, para tanto, falta de recursos públicos disponíveis. DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO O Ministério Público, elevado à categoria de Instituição permanente com a Constituição Federal de 1988, tem como funções precípuas a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, bem como dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da CF/88). A Carta Magna, em seu art. 129, incisos II e III, prevê o seguinte: “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...) II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;” - destaque nosso (...) Por sua vez, a Lei Complementar nº 75/93, dispõe serem funções institucionais do Ministério Público da União a defesa do patrimônio público social (art. 5º, inciso III, alínea “b”). Determina, ainda, que compete ao Ministério Público da União promover a ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social (art. 6o, inciso VII, alínea “b”). E, no art. 37, incisos I e II, da referida Lei Complementar, está expresso que o Ministério Público Federal exercerá as suas funções nas causas de competência, dentre outros, dos Juízes Federais. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MARÍLIA (SP) 5 Assim, por objetivar a presente ação civil pública proteger o patrimônio público e social, resta evidente a legitimidade do Ministério Público Federal para o feito, diante dos textos legais e constitucionais supra-referidos. DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL Trata-se de processo que deverá tramitar na Justiça Federal, pois é nítido o interesse federal, evidenciado, não apenas pela presença do Ministério Público Federal no polo ativo, mas, também, por figurar no polo passivo a União e autarquia federal (INCRA), conforme previsão do art. 109, I, da Constituição Federal: “Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;” - destaque nosso. De tal forma, resta comprovada a competência da Justiça Federal para processar e julgar a presente ação civil pública. DO DIREITO Do direito à vida A Declaração Universal dos Direitos Humanos, ideal comum a ser alcançado por todos os povos e nações, proclama em seu art. III o direito à vida como um dos direitos fundamentais da pessoa humana: “Art. III. Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.” - destaque nosso. Seguindo os passos traçados na Declaração Universal, a Constituição Federal do Brasil em seu art. 5º, “caput”, alocado no Título nominado “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, tutela entre outros o direito à vida, declarando a sua inviolabilidade. “Art. 5º. Todos são iguais perante à lei, sem qualquer distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” destaque nosso. O direito à vida digna é o mais fundamental entre todos os direitos, pois nenhuma valia teriam estes se aquele não fosse garantido ao ser humano. Além do mais, toda a gama de normas jurídicas constitucionais têm como finalidade máxima a realização plena do direito à vida. Acerca do direito constitucional à vida, leciona André Ramos Tavares (in Curso de Direito Constitucional – São Paulo: Ed. Saraiva, 2006, pág. 491): “É o mais básico de todos os direitos, no sentido de que surge como verdadeiro pré-requisito da existência dos demais direitos consagrados MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MARÍLIA (SP) 6 constitucionalmente. É, por isto, o direito humano mais sagrado. O conteúdo do direito à vida assume duas vertentes. Traduz-se, em primeiro lugar, no direito de permanecer existente, e, em segundo lugar, no direito a um adequado nível de vida.” O direito à vida deve ser interpretado de forma ampla, não apenas como garantia de existência orgânica do ser humano, mas acima de tudo como garantia de uma vida plena e digna. O art. 1º da Constituição Cidadã consagra o princípio da dignidade da pessoa humana entre um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, sendo que o Estado Brasileiro tem o dever de assegurar ao seu povo os direitos sociais e individuais que possibilitem uma existência digna de um ser humano. Infelizmente, a ausência de investimentos por parte dos réus para dirimir a questão da falta d´água, vem ferindo o princípio constitucional do direito à vida, pelo risco à sobrevivência digna por que passam os moradores dos referidos assentamentos por não poderem satisfazer necessidades básicas devido à insuficiência de água. Do direito à saúde A saúde, por determinação constitucional, é direito de todos, cabendo ao Estado a execução de medidas que culminem em sua real efetivação, conforme o art. 196 da Constituição Federal de 1988, com a seguinte redação: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Acerca do direito constitucional à saúde, leciona Júlio César de Sá Rocha (in Direito da Saúde: Direito Sanitário na Perspectiva Dos Direitos Difusos e Coletivos – São Paulo: Ed. LTr, 2004, pág. 43): “A conceituação da saúde deve ser entendida como algo presente: a concretização da sadia qualidade de vida. Uma vida com dignidade. Algo a ser continuamente afirmado diante da profunda miséria por que atravessa a maioria da nossa população. Consequentemente a discussão e compreensão da saúde passa pela afirmação da cidadania plena e pela aplicabilidade dos dispositivos garantidores dos direitos sociais da Constituição Federal.” Assim, além do direito à vida, a postura dos réus em não garantir o fornecimento de água tem violado, também, o direito à saúde das pessoas que residem nos referidos assentamentos. Do direito à água Em razão da proteção constitucional ao direito à vida e à saúde, todos os direitos indispensáveis à sua consecução devem ser também garantidos pelo Estado, e não há nada mais essencial à existência de qualquer ser vivo e à sua saúde do que a ÁGUA. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MARÍLIA (SP) 7 Um simples composto químico, com moléculas triatômicas formadas pela união de apenas dois elementos, o hidrogênio e o oxigênio, mas com uma infinidade de funções químicas essenciais à manutenção e desenvolvimento de qualquer organismo vivo. O caráter indispensável da água para a vida, saúde, alimentação e desenvolvimento humano foi reafirmado em diversas conferências e declarações, dentre elas a “Conferência das Nações Unidas sobre as Águas”, celebrada em Mar Del Plata em 1977; a “Conferência Internacional sobre Água e o Meio Ambiente”, celebrada em Dublin em 1992; a “Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92)”; a “Conferência Internacional sobre Água e Desenvolvimento Sustentável”, celebrada em Paris em 1998; a “Declaração de Nova Deli” de 1990; “Conferência Internacional sobre a Água Doce”, celebrada em Bonn em 2001. No ano de 2002, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, em sua 29ª Sessão realizada em Genebra, aprovou a Observação Geral nº 15 referente aos arts. 11 e 12 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do qual o Brasil é consectário, com o título o “direito à água”, nos termos do qual este direito “consiste no fornecimento suficiente, fisicamente acessível e a um custo acessível, de uma água salubre e de qualidade aceitável para as utilizações pessoais e domésticas de cada um.”: “Art. 11 – Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para a sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia . Art. 12 – Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar do mais elevado nível de saúde física e mental.” Além do mais, o fornecimento de água é considerado serviço de natureza essencial conforme redação do art. 10 da Lei nº 7.853/89: “Art. 10. São considerados serviços ou atividades essenciais: I – tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;” - destaque nosso. Essa linha de entendimento vem sendo adotada pelos Tribunais pátrios, conforme se extrai dos seguintes julgados: “FORNECIMENTO DE ÁGUA. SUSPENSÃO. INADIMPLÊNCIA DO USUÁRIO. ATO REPROVÁVEL, DESUMANO E ILEGAL. EXPOSIÇÃO AO RÍDICULO E AO CONSTRANGIMENTO. A Companhia Catarinense de Água e Saneamento negou-se a parcelar o débito do usuário e cortou-lhe o fornecimento de água, cometendo ato reprovável, desumano e ilegal. Ela é obrigada a fornecer água à população de maneira adequada, eficiente, segura e contínua, não expondo o consumidor ao ridículo e ao constrangimento. Recurso improvido.” (STJ - Primeira Turma, RESP 201112/SC, Min. Garcia Vieira, Data do Julgamento: 10/05/1999. Data da Publicação: 27/09/1999) – destaque nosso. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MARÍLIA (SP) 8 “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CORTE DE FORNVECIMENTO DE ÁGUA. ABUSIVIDADE. DANOS MORAIS VERIFICADOS. A interrupção arbitrária de água, serviço essencial à realização da dignidade humana, não se trata de mero dissabor da vida em sociedade, que pode ser absorvida pelo cidadão, caracterizando danos morais ao consumidor, os quais independem de demonstração objetiva. Valor da indenização mantido nos termos da sentença. APELO DESPROVIDO.” (TJ/RS - Nona Câmara Cível, AP. 70028118503, Marilene Bernardi, Data do Julgamento: 25/03/2009) - destaque nosso. Além do acima exposto, em razão da ausência de abastecimento de água os moradores dos assentamentos não podem sequer promover a produção agrícola, restando violado, por consequência, o direito social ao trabalho. Portanto, para a defesa de todos os direitos acima expostos, a procedência da presente ação se faz necessária. Da função social da propriedade Além de violar os direitos acima mencionados, a conduta dos réus viola, ainda, a lei, os Planos Nacional e Regional de Reforma Agrária, e impede o desenvolvimento econômico e social da região (função social da propriedade). A Constituição Federal estabelece que: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” (...) XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;” (...) “Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente: (..) MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MARÍLIA (SP) 9 IV - a assistência técnica e extensão rural; (...) VII - a eletrificação rural e irrigação; VIII - a habitação para o trabalhador rural. § 1º - Incluem-se no planejamento agrícola as atividades agroindustriais, agropecuárias, pesqueiras e florestais. § 2º - Serão compatibilizadas as ações de política agrícola e de reforma agrária.” Sobre o assunto, também, a Lei nº 4.504/64 (Estatuto da Terra), que estabelece: “Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei. § 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente: a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.” - grifo nosso Passemos a analisar o presente caso. O Poder Público desapropriou imóveis improdutivos e os destinou aos beneficiários da Reforma Agrária, dando origem aos Assentamentos Antônio Lafaiete de Oliveira e Margarida Maria Alves, visando dar efetividade aos Projetos de Reforma Agrária e aos princípios de justiça social. No entanto, não há abastecimento de água nos referidos assentamentos e o INCRA, oficiado a prestar esclarecimentos, informou que estava impossibilitado de perfurar poços artesianos nos imóveis em razão de não haver recursos públicos disponíveis. Importante relembrar que as investigações, no presente caso, começaram em 2009, tempo mais do que suficiente para que fossem alocados recursos no orçamento para garantir o fornecimento de água aos assentados. Acontece que, sem água, os moradores, além de não poderem exercer uma condição plena e digna de vida, não podem promover a produção agrícola ou pecuária, ou seja, os imóveis, que foram desapropriados justamente por serem improdutivos e mal aproveitados, continuam nessa condição. Na verdade, a União e o INCRA possuem o dever de zelar para que a propriedade da terra desempenhe sua função social1. Mas, no presente caso, ocorre justamente o contrário, pois eles estão impedindo o desempenho da função social e o desenvolvimento econômico e social da região, ao não realizar a implementação de infraestrutura básica (abastecimento de água) nos aludidos assentamentos. 1 Art. 2º, §2º, alínea “b”, da Lei nº 4.504/64: “§ 2° É dever do Poder Público: b) zelar para que a propriedade da terra desempenhe sua função social, estimulando planos para a sua racional utilização, promovendo a justa remuneração e o acesso do trabalhador aos benefícios do aumento da produtividade e ao bem-estar coletivo.” MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MARÍLIA (SP) 10 Além disso, o art. 89 da Lei nº 4.504/64 (Estatuto da Terra) estabelece que: “Art. 89. Os planos nacional e regional de Reforma Agrária incluirão, obrigatoriamente, as providências de valorização, relativas a eletrificação rural e outras obras de melhoria de infra-estrutura, tais como reflorestamento, regularização dos deflúvios dos cursos d'água, açudagem, barragens submersas, drenagem, irrigação, abertura de poços, saneamento, obras de conservação do solo, além do sistema viário indispensável à realização do projeto.” - destaque nosso Ou seja, por força de lei, nos próprios planos nacional e regional de Reforma Agrária devem estar previstas, obrigatoriamente, providências relativas a obras de infraestrutura, principalmente as de irrigação e de abertura de poços. Assim, depreende-se que, os réus, além de descumprirem a Constituição Federal e a Lei nº 4.504/64, descumprem, ainda, os Planos Nacional e Regional de Reforma Agrária. Além disso, ao impedir a produtividade dos imóveis, os réus impedem também o desenvolvimento econômico e social da região, situação que representa um regresso em relação a todos os esforços no sentido de promover uma melhor distribuição de renda e a aplicação dos princípios de justiça social. Portanto, para evitar que direitos fundamentais continuem sendo violados pelos réus e assegurar o desenvolvimento econômico e social da região (função social da propriedade), a procedência da presente ação faz-se necessária. DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA O objeto da presente ação é obter a condenação dos réus em obrigação de fazer consistente em garantir o fornecimento de água aos moradores dos Assentamentos Antônio Lafaiete de Oliveira e Margarida Maria Alves, localizados em Gália (SP), visando garantir o respeito aos direitos fundamentais dos moradores e efetivar a função social da propriedade em referidos locais. Porém, para que o provimento jurisdicional possua utilidade e efetividade, presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora, além da verossimilhança da alegação e o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, necessária a concessão de tutela antecipada, nos termos do que dispõe o art. 273 do Código de Processo Civil. O instituto da tutela antecipada trata-se da realização imediata do direito, já que dá ao autor o bem por ele pleiteado. Dessa forma, desde que presentes a prova inequívoca e a verossimilhança da alegação, a prestação jurisdicional será adiantada sempre que haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. No caso em tela, os requisitos exigidos pelo diploma processual para o deferimento da tutela antecipada encontram-se devidamente preenchidos. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA DA REPÚBLICA EM MARÍLIA (SP) 11 Além disto, a existência do fumus boni iuris mostra-se clara, patenteado na fundamentação supra, em que se demonstra o descumprimento de normas constitucionais e legais reitoras da Reforma Agrária. A urgência, ou periculum in mora, salta aos olhos. Primeiro porque verificamos que os direitos à vida, à saúde e à água dos moradores dos assentamentos vêm sendo diariamente violados. Assim, presentes os requisitos necessários à concessão da tutela antecipada, requer o Ministério Público Federal, com espeque no art. 12 da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, o seu deferimento, inaudita altera parte, para o fim de determinar que o INCRA, apresente e execute, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, projeto para garantir o fornecimento de água aos moradores dos Assentamentos Antônio Lafaiete de Oliveira e Margarida Maria Alves, determinando, ainda, que a União preste assistência financeira à realização do referido projeto. Requer-se ainda, com supedâneo no art. 461, § 4º, do Código de Processo Civil, para o caso de descumprimento da ordem judicial, a cominação de multa em valor a ser estipulado por Vossa Excelência, mas não inferior a R$ 1.000,00 (mil reais) por dia de descumprimento, sem prejuízo da responsabilização do agente público por improbidade administrativa e por crime de desobediência. DO PEDIDO Após apreciada e se espera concedida a tutela antecipada requerida, ao final, requer o Ministério Público Federal seja julgado procedente o pedido da presente ação, para o fim de confirmar e manter a tutela antecipada concedida. Requer ainda: a) a citação dos réus, na forma da lei, para, querendo, contestarem a presente ação, com as advertências de praxe, inclusive quanto à confissão da matéria de fato, em caso de revelia, e para produzirem a prova que quiserem, e se verem processados até a condenação final; b) seja deferida a produção de provas por quaisquer meios juridicamente admitidos. Dá-se à causa o valor de R$ 1.000,00 (mil reais). Termos em que, pede deferimento. Marília, 03 de novembro de 2011. JEFFERSON APARECIDO DIAS Procurador da República