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Santos populares piauienses e Folkcomunicação
(Os casos do motorista Gregório, Maria Alves e Arte Santeira)
Denise dos Anjos Mascarenha1
Maria Dione Carvalho de Moraes2
1. Introdução
O Piauí, estado do Nordeste do Brasil, é considerado o mais católico do país segundo dados
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2000). Essa religiosidade é observada no dia-a-dia
das comunidades, nos altares domésticos, muitos dos quais com imagens da arte santeira praticada
no estado no estado3, nas multidões de fiéis que se aglomeram nas festas religiosas de cada
cidade, inclusive, de Teresina, capital do Estado, e das peregrinações que acontecem em todo o
Estado.
Essa devoção popular, desperta curiosidade pela semelhança entre alguns lugares de
peregrinação: eles foram cenário de mortes marcadas pelo sofrimento. Neste artigo, abordamos
dois eventos envolvendo os chamados santos populares4, tomando essa prática devocional como
uma dimensão da cultura piauiense. Na perspectiva da folkcomunicação, pauta-se o debate das
interpretações e significados desse fenômeno de instituição de santuários5.
O artigo está limitado a uma pesquisa documental (MAY, 2004) tendo a intenção de
compartilhar alguns aspectos que envolvem a religiosidade piauiense, em algumas sua forma de
comunicação, lembrando com Bourdieu (1996), que as relações de comunicação implicam relações
de poder simbólico.
1
Bacharel em Administração e mestranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí - UFPI. E-mail:
[email protected]
2
Socióloga, doutora em Ciências Sociais pelo IFCH/UNICAMP, professora no DCS/CCHL/UFPI; no Mestrado de
Antropologia e Arqueologia CCHAL/UFPI; no Mestrado de Políticas Públicas/CCHL/UFPI. Professora-colaboradora no
Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente/PRODEMA/TROPEN/UFPI. E-mail: [email protected]
3
Este artigo se insere nos estudos realizados no processo de elaboração de dissertação de Mestrado sobre a arte
santeira, no Piauí, (MASCARENHA, 2009 ) em curso no Mestrado em Políticas Públicas da UFPI.
4Trata-se do chamado catolicismo popular lembrando, com Carlos Rodrigues Brandão, as fricções entre o catolicismo
oficial e as manifestações religiosas do catolicismo leigo. È sabido que o primeiro nega valores de conhecimento do
sagrado do segundo, cuja origem é predominantemente rural. A Igreja católica considera rezadores como rivais
ilegítimos dos seus padres, não lhes reconhecendo práticas, crenças, cultos e/ou capacidade de cura. Assim se
estabelece um confronto religioso pelo qual a Igreja não admite perder fiéis para o catolicismo popular. È comum que
o catolicismo popular se organize em pequenas unidades mais autônomas, em estruturas comunitárias onde não
existe a separação do corpo religioso com a comunidade (BRANDÃO, 1986). Maria Isaura Pereira de Queiroz aborda
sete tipos de catolicismo no Brasil: oficial, cultural, popular, misturado com magias e crenças indígenas, associado aos
cultos africanos, reunido ao espiritismo e em sincretismo com o espiritismo e os cultos africanos (QUEIROZ, 1965).
Para Alba Zaluar, “o catolicismo popular deriva tanto de uma matriz erudita, não totalmente conhecida e absorvida,
quanto de uma tradição coletiva e anônima” (ZALUAR, 1983: 32).
5 Desde o século XVIII, os santuários tornam-se grandes centros de devoção e romarias, exercendo destacado papel na
conservação da fé e da religiosidade através de variadas manifestações e expressões da devoção popular: romarias,
festas, missas, altares, promessas, santinhos, consagrações nacionais e regionais, fosse com a presença e até com o
protagonismo da Igreja, fosse independemente da presença ordinária das paróquias. Nesse processo, o milagre é a
principal peça envolvendo culto a religiosos, mortos ou não, imagens e lugares com fama de realizar prodígios, e a
peregrinação a locais considerados sagrados e transformados em santuários, muitos, ignorados pelo Vaticano e
dioceses.
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2. Buscando alguma graça: criação de santos na religiosidade popular
O Piauí foi colonizado no século XVII e sua formação se deu, como de resto, em todo Brasil,
com a presença da Igreja Católica e do catolicismo como religião oficial. Tal presença deixaria suas
marcas, respeitando as alterações que o tempo traz, nas práticas da religiosidade popular
(PINHEIRO, 2009)6.
Existem, hoje, no Piauí, 28 locais identificados como sendo destinados à devoção popular,
no âmbito do catolicismo seja oficial, seja popular, espalhados em 20 cidades7 do estado. Em
alguns cultuam-se santos bastantes conhecidos no mundo católico como Nossa Senhora do
Perpétuo de Socorro, no município de Valença, localizado na região centro-sul piauiense, Nossa
Senhora de Lourdes, no município de Demerval Lobão. Em outros a devoção volta-se para
“santo/as” não reconhecidos/as pela Igreja católica, porém, cultuados pela população. São santos
populares8, a exemplo do Motorista Gregório, em Teresina, e de Maria Alves, em Pedro II, município
localizado na região norte piauiense.
Esses dois últimos fenômenos devocionais abordados neste artigo apresentam
similaridades e chamam a atenção de forma particular.
O primeiro deles é o do motorista Gregório. A propósito, em Teresina, ao se percorrer a
margem do rio Poty, pela avenida Marechal Castelo Branco, na confluência das regiões norte e
leste da cidade, vê-se uma enorme cruz de cimento, pintada de azul-claro (fig. 1), imagem que, na
representação católica, se encontrada fora de igrejas, geralmente em beiras-de-estradas, comunica
a transeuntes que alguma morte, ali, ocorreu.
6
7
8
Convém lembrar que o Piauí nasce do processo de interiorização pelos sertões, nos “caminhos do gado”. Nesse
sentido, não se pode ignorar o processo histórico de instituição de uma cultura sertaneja, como referido por Abreu
(1982), em cujo âmbito se inserem as práticas de uma religiosidade forjadas em grande medida, longe do alcance da
igreja oficial. Sobre imaginário de sertão, no Piauí, ver MORAES (2007).
Esse dado é informado pelo grupo de pesquisa “Caçadores de Milagre” do Centro de Ensino Unificado de TeresinaCEUT (DOURADO, 2006).
Lembramos com Cuche (2000) que o que se denomina cultura popular, levando a concepções minimalistas ou
maximalistas desse fenômeno, nada pode dever, em termos antropológicos, a alguma suposta hierarquia cultural mas,
sim, a hierarquias sociais, muitas vezes confundidas com uma hierarquização do plano da cultura. Nesse sentido, a
noção de popular que, em meados do século XIX referia o que fosse considerado supersticioso, vulgar, grosseiro, ou
seja, como produção cultural de baixa qualidade é, de fato, um fenômeno presente na arena da diferenciação social
instituidora de sentidos mais concretos para um conhecimento do que seja o popular. Assim, esse é um objeto cuja
definição não é simples, notadamente, quando se penetra no campo do catolicismo popular. É, então, numa
variedade de relações culturais que, especificamente as religiosas, se instituem como produtos e subprodutos de uma
sociedade caracterizada tanto como estratificada, quanto com características sincréticas no processo de influências
recíprocas entre tradições culturais diversas como o Brasil.
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Fig. 1- Fotografia do túmulo do motorista Gregório. Por Denise Mascarenha
A história da morte do motorista Gregório é assim contada, oralmente: em 13 de outubro de
1927. Gregório Pereira Santos, então com 18 anos de idade, motorista do vigário de Barras do
Marataoan9, atropela involuntariamente o filho do tenente e delegado da cidade, Florentino Cardoso,
que o prende, torturando-o durante os três dias que separavam o dia do acidente do dia da morte
de seu filho. Em 16 de outubro de 1927, Gregório é levado junto com o corpo da criança, a mãe, o
pai e dois soldados para Teresina, onde é executado, com três tiros no ouvido, pelo pai da criança,
que depois do ato se dirige ao quartel para assumi-lo e, assim, ficar detido (NUNES, 1995).
Com a notícia do ocorrido percorrendo a cidade, populares fincam uma cruz no local e, com
a atribuição de graças alcançadas à devoção a Gregório, este é alçado ao panteão de santos do
catolicismo popular. Em que pese a expansão urbana da cidade de Teresina, nessas oito décadas
transcorridas da morte aos dias atuais, com as decorrentes mudanças na paisagem da cidade –
dentre as quais, o fato de o sítio desse túmulo estar, hoje, em uma avenida de intensa circulação –,
o local de sua morte é diariamente visitado por fiéis a rezarem pedindo graças, em busca de
intercessão para findar seu sofrimento, como forma de conseguir alívio, ou agradecendo as já
alcançadas;
O segundo fenômeno, também narrado oralmente, refere a história de Maria Alves,
adolescente de 14 anos de idade que, fugindo da seca (em 1915 ou 1929)10 que assolava o Estado
do Ceará, tenta chegar à cidade de Pedro II, onde curiosamente se encontra com o destino do qual
fugia.
Como informa Oliveira (2006)11, apesar da imprecisão do ano, a essência da história é que
Maria Alves e sua família caminharam por vários dias, fugindo da seca, até avistarem uma
localidade. No entanto, antes de chegarem a Pedro II, já muito maltratada pelo sofrimento causado
pela falta de comida e água, falece. Seus pais, não encontrando outra saída, deixam seu corpo ali
mesmo, onde, três dias depois, é encontrado pelos habitantes da cidade.
Segundo o autor algum tempo depois, um vaqueiro, andando pelo local vê, ali, uma luz em
forma de criança como que subindo ao céu. Ali, como para marcar o local, ele deixa uns galhos
secos e segue viagem. A história se espalha entre a vizinhança que ali coloca uma cruz, passando
a freqüentar o local onde se passam a realizar romarias nas quais se acendem velas e se levam
garrafas com água em oferenda a quem passou sede. Surge, assim mais uma das expressões da
devoção popular, no Piauí. Hoje, no lugar, existe uma capela erigida em devoção a Santa Maria
Alves (fig.2).
Ambas narrativas remetem ao catolicismo primitivo, quando
os primeiros Santos reconhecidos como tais eram os mártires, os quais haviam
dado a vida por Cristo ante os olhos de todos, em razão do que, apenas mortos
e enterrados, já eram objeto de veneração. Normalmente, os martírios ocorriam
publicamente, em praças, em circos como o Coliseu em Roma, de forma
diferente dos martírios atuais, como os causados pela perseguição a religiosos e
religiosas, líderes leigos de comunidades que estão empenhados no serviço do
9
Cidade localizada no norte do Piauí, atualmente chamada apenas de Barras.
uma dúvida em relação a esse ano entre os próprios moradores da cidade, se foi realmente em 1915 ou 1929.
11 Em trabalho apresentado para a disciplina Teoria Antropológica I, do curso de Ciências Sociais da Universidade
Federal do Piauí em 2006.
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evangelho e incomodam classes, sistemas de governos, etc... Nos primeiros
tempos, sem nenhum processo propriamente dito, a veneração popular
proclamava Santos os mártires (RIGGIO, s/d, p.1)
Figura 2. Fotografia da Capela da Santa Maria Alves.
Fonte: www.sead.pi.gov.br
As ressalvas que observamos na relação estabelecida entre o catolicismo primitivo e as
duas histórias aqui apresentadas não apresentam Gregório e Maria Alves como mártires religiosos.
O que se destaca é o martírio embora relacionado a outros motivos: a Gregório não foi dada a
oportunidade de defesa, sendo torturado por três dias, em um ato motivado por vingança, sendo
alvo de ódio e sofrendo tortura física e psicológica, sem dispor de qualquer tipo de alimentação.
Quanto a Maria Alves, não lhe foram permitidas, socialmente, as condições mínimas de
sobrevivência, vindo a falecer pela falta de água e de comida que também atingia a tantos outros
nordestinos.
Nos dois casos não se trata de vida religiosa, mas sim um fim trágico de duas pessoas que
sofreram um martírio, ou seja, um sofrimento intenso, nos últimos dias de vida. A história desses
santos populares não está distante em relação a muitos de seus devotos. Assim, sofrimentos de
morte parecem comportar identificações com a própria vida na qual pode, qualquer um, ter o mesmo
fado:
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte Severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia (MELO NETO, 2000, p. 46)
Essa devoção pode ser vista, assim como expressão de angústias frente a uma realidade e,
ao mesmo tempo, um refúgio contra essa realidade. Nesse sentido, a religião se torna “o suspiro da
criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o espírito de uma situação
sem espiritualidade” (MARX, 1844, apud LOWY, 1991, p. 11).
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São tristezas que buscam descanso para não resultar em desespero e assim se agarram a
alguma possibilidade de esperança. Essa perspectiva é a de libertação construída com a ajuda do/a
santo/a. Nesse caso somos impotentes e assim esperamos pelo impossível, numa demonstração de
confiança em Deus, alicerçada na crença de seu poder de fazer existir o que inexiste (ALVES,
1988), e no poder de mediação do/as santo/as protetores/as. Este/as, sofredores/as de idêntico
calvário na Terra, portanto, legítimo/as porta-vozes dos fiéis e capazes de abrandar esse calvário.
Como lembra Alba Zaluar, “o catolicismo popular é uma religião voltada para a vida aqui na Terra.
Nesse sentido, é uma religião prática e é sua prática (...) baseada, principalmente na execução de
promessas (...)” (ZALUAR, 1983: 13-4). Disso fala o grupo Cordel do Fogo Encantado na música em
que a população sertaneja recorre à sua crença nos moradores do céu, implorando por chuva:
Chover chover
Valei-me Ciço o que posso fazer
Chover chover
Um terço pesado pra chuva descer12
2.1- Devoção popular e folkcomunicação
Considerando o pensamento de Geertz (1978) de que estamos amarrados a uma rede de
significados que construímos e produzimos, e que a isso chamamos cultura, podemos dizer que a
peregrinação religiosa faz parte da cultura do povo piauiense. E são resultados de histórias que se
propagaram:
Das conversas de boca de noite, nas pequenas cidades interioranas, na
farmácia ou na barbearia (...). Daí é que surgem, vão tomando forma,
cristalizando as idéias-motrizes, capazes de, em dado instante e sob certo
estímulo, levar aquela massa aparentemente dissociada e apática a uma ação
uniforme e eficaz (BELTRÃO, 1965, p. 09)
Assim, a teoria da comunicação de Luis Beltrão nomeada de folkcomunicação, concebe a
comunicação como criadora ou mantenedora de costumes e formação de opinião não sendo feita
apenas pelas grandes mídias e de forma institucional. Nesse sentido, comunidades com
sociabilidades que contam, ainda, com conversas no portão de casa, na “roça”, nas escolas, nas
praças, possuem grande eficiência na divulgação de fatos e crenças. Suas práticas e expressões
seriam uma forma de linguagem sobre sua realidade.
No campo da religiosidade popular um exemplo que caracteriza bem essa forma de
linguagem é o ex-voto, materialização do pagamento de promessas. Segundo Luis Câmera
Cascudo, o termo vem do latim votum que significa coisa prometida. No caso, é a promessa feita a
um/a santo/a para alcançar alguma graça ou o que se oferece por tê-la recebido. É prática antiga e
não é exclusiva do mundo católico (CASCUDO, 2006). São partes do corpo humano, quadros,
imagens, fotografias, desenhos, fitas, peças de roupa, etc, e podem ser produzidas em madeira,
cerâmica, metal, pano, cera, papel, dentre outros materiais.
O ex-voto é uma prática comum dos devotos (fig 3). Parece ser ele também o certificado de
garantia do poder do santo, pois alguns comunicam os pedidos atendidos. Segundo Jaqueline
12
BARROS, C.; LIRA, J. P. de. [compositores]. “Chover”. In: Cordel do Fogo Encantado, Recife, TRAMA, 2001. 1 CD.
Faixa 6.
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Dourado13, a folkcomunicação também o vê como forma de conhecer a comunidade local, pois sua
leitura pode informar quais as doenças mais comuns da comunidade, necessidades mais
recorrentes, tipos de acidente mais habituais. Acreditamos que até mesmo, o padrão de devoção,
ou seja, o quanto o santo ou santa é visitado/a e popular.
Fig 3- Fotografia de ex-votos no Monumento do Motorista Gregório em
24/06/2009. Por Denise Mascarenha
Figura 4- Fotografia de ex-votos no interior da Capela da Santa Maria Alves
Fonte: www.sead.pi.gov.br
13
Em comunicação oral, durante palestra no XXXIII Encontro Nacional de Folguedos, ocorrida no auditório do Centro de
Ciências da Educação - CCE da Universidade Federal do Piauí, em 23 de junho de 2009.
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2.1- Arte santeira: religiosidade e patrimônio
É nesse contexto de fé e devoção popular que o ex-voto se encontra intimamente
relacionado aos inícios da chamada Arte Santeira no Piauí, que produz objetos feitos em madeira
com significado sagrado. São imagens de anjos e santos, individualmente, ou nos mais diversos
cenários. Nesse sentido, evocamos Clifford Geertz que diz ser o processo de atribuir aos objetos de
arte um significado cultural, um processo local. Assim, os meios pelos quais a arte se expressa e os
sentimentos que os estimulam são inseparáveis.
[...] a compreensão desta realidade, ou seja, de que estudar arte é explorar uma
sensibilidade; de que esta sensibilidade é essencialmente uma formação
coletiva; e de que as bases de tal formação são tão amplas e tão profundas
como a própria vida social nos afasta daquela visão que considera a força
estética como uma expressão grandiloqüente dos prazeres do artesanato.
(GEERTZ,1997, p. 149).
Essa relação é bem externada por Mestre Guilherme, quando refere seu ofício de “santeiro”:
O povo que esses anjos ta representando aqui eu creio que seja o pessoal
sofrido da região nordeste. Então a gente tem que mostrar não só pro Brasil
como para o mundo como é a realidade do nosso povo, ver se nós muda a
história de nosso país (ANJOS, 2007).
Nessa direção, podemos pensar certas expressões da religiosidade piauiense, seja dos
santuários populares, seja da arte santeira, como expressão e lembrança da sua realidade, para
que não se esqueçam os sofrimentos nem as graças vindas do céu. Assim. São símbolos que
perpetuam memórias e sustentam vínculos de sociabilidade.
Mas se a lembrança é limitada, ela é também renovada na recriação de sentidos, pois, a
memória não só transmite conhecimento e significação como cria significados (MENESES, 2007).
Como poeticamente externa Eduardo Galeano “Esse homem, ou mulher, esta grávido de muita
gente [...] o narrador, o que conta a memória coletiva, está todo brotado de pessoinhas”
(GALEANO, 2002, p. 13).
A arte santeira praticada no Piauí destaca-se não só pelo talento de seus mestres como
também pela expressão da religiosidade piauiense, tendo sua origem na fabricação de ex-votos,
como referido. Em 2008, a Arte Santeira do Piauí, tem solicitado o seu registro como Patrimônio
Cultural Imaterial Brasileiro. O registro, resguardadas as suas especificidades e alcances, equivale
ao tombamento. Em síntese: tombam-se objetos, edificações e sítios físicos (patrimônio material);
registram-se saberes, celebrações, rituais, formas de expressão e os espaços onde essas práticas
se desenvolvem (patrimônio imaterial), buscando a valorização desses bens.
Destarte, estariam adequadamente possibilitados a compor o Patrimônio Cultural Imaterial
Brasileiro:
[...] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto
com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são
associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos
reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Esse patrimônio
cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente
recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua
interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de
identidade e de continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à
diversidade cultural e à criatividade humana (DECRETO 5.753, 2006).
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Ao registrar um bem, é realizado um Plano de Salvaguarda que envolve as condições
econômicas, políticas e sociais da prática desse bem cultural e dos detentores do seu saber-fazer.
Dessa forma, a religiosidade é vista como uma prática de muitas dimensões e de diversos alcances.
Com o Registro da Arte Santeira começa-se a dar passos para a ratificação dessa expressão de
devoção popular como elemento significativo na identidade piauiense abrindo caminhos, quem
sabe, para o reconhecimento de lugares culturais como os de devoção popular referidos nesse
trabalho.
3. Considerações Finais
Como exposto na introdução desse artigo, abordamos alguns elementos da religiosidade
popular, no Piauí. Estes apontam para objetos de estudo em campos disciplinares diversos, acerca
de expressões culturais piauienses.
Os fenômenos abordados apresentam estreita relação com princípios da folkcomunicação,
esse importante elemento no processo de difusão e reprodução de saberes, artes, ofícios e,
sobretudo, de crenças de piauienses em seres santificados e portadores do poder de mediação
entre humanos e os céus, seja em lugares culturais de devoção popular, como os santuários do
motorista Gregório, e de Maria Alves, seja na arte santeira cujas origens se encontram ligadas à
confecção de ex-votos.
Vêem-se, assim, expressões religiosas entrelaçadas a realidades materiais humanas como
símbolos com enorme poder de instituição de práticas sociais. Como diria Claude Levi-Satraus, “os
símbolos são mais reais que aquilo que simbolizam” (apud OLIVEIRA, 2007, p.10).
Referências
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Santos populares piauienses e Folkcomunicação