PARA UMA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS NO BRASIL: FORMAS PRONOMINAIS E NOMINAIS DE TRATAMENTO EM CARTAS SETECENTISTAS E OITOCENTISTAS. por Márcia Cristina de Brito Rumeu Volume I Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras 2004 EXAME DE DISSERTAÇÃO RUMEU, Márcia Cristina de Brito. Para uma História do Português no Brasil: Formas Pronominais e Nominais de Tratamento em Cartas Setecentistas e Oitocentistas. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa – Curso de Pós-graduação em Letras Vernáculas, Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2004, 286 fl. Mimeo. BANCA EXAMINADORA: _________________________________________________________________ Professora Doutora Célia Regina dos Santos Lopes (Departamento de Letras Vernáculas/UFRJ) Orientador _________________________________________________________________ Professor Doutor Afranio Gonçalves Barbosa (Departamento de Letras Vernáculas/UFRJ) Co-orientador _________________________________________________________________ Professora Doutora Tânia Conceição Freire Lobo (Departamento de Letras Vernáculas/ UFBA) _________________________________________________________________ Professora Doutora Maria Eugênia Lamoglia Duarte (Departamento de Letras Vernáculas/UFRJ) _________________________________________________________________ Professora Doutora Sílvia Rodrigues Vieira (Departamento de Letras Vernáculas/UFRJ) Suplente _________________________________________________________________ Professora Doutora Maria Luíza Braga (Departamento de Lingüística/UFRJ) Suplente Examinada a Dissertação: Conceito: __________ . Em: ___ / ___ / 2004. PARA UMA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS NO BRASIL: FORMAS PRONOMINAIS E NOMINAIS DE TRATAMENTO EM CARTAS SETECENTISTAS E OITOCENTISTAS. por MÁRCIA CRISTINA DE BRITO RUMEU Departamento de Letras Vernáculas Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa apresentada à Coordenação dos Cursos de PósGraduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Professora Doutora Célia Regina dos Santos Lopes. Co-orientador: Professor Doutor Afranio Gonçalves Barbosa. UFRJ/Faculdade de Letras Rio de Janeiro, 1o semestre de 2004. Aos meus pais, personalidades indispensáveis na minha vida. AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus orientadores Célia Lopes, Afranio Barbosa e Dinah Callou. À primeira, pela orientação séria, competente e comprometida com a coerência de uma investigação científica. Manifesto a minha gratidão pela paciência e dedicação da minha orientadora não só em relação à leitura atenta dos meus textos desde a época em que também norteava os meus trabalhos na Iniciação Científica, mas também no que se refere à discussão teórica por nós travada no decorrer da confecção desta dissertação. Ao segundo, por ter viabilizado o meu ingresso nos Projetos NURC-RJ e PHPB-RJ, conduzindo-me, em arquivos e bibliotecas, no levantamento de fontes inéditas para o estudo do processo de formação do português brasileiro e orientando-me na instigante tarefa de leitura de textos manuscritos em sincronias passadas. À terceira, por muito ter contribuído para a minha formação acadêmica como bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq), impulsionando, com a sua competência, disciplina, e profissionalismo, o meu despertar para a seriedade do trabalho com a pesquisa lingüística. Apesar de a professora Dinah Callou não estar formalmente inscrita como minha orientadora, devo lembrar que, na realidade, nunca deixou de assumir tal função na minha vida profissional e acadêmica. A esses três exímios profissionais do ensino e da ciência lingüística deixo registrada a minha sincera gratidão pela confiança que em mim sempre demonstraram depositar, desde a época da Iniciação Científica, incentivando assim o meu ingresso no Mestrado. Devo agradecer ainda à Professora Doutora Maria Emília Barcellos da Silva por muito ter me estimulado a prosseguir na carreira acadêmica, mostrando-se solícita a me ajudar na difícil tarefa de organizar a palavra escrita. Desejo apresentrar-me sinceramente grata à professora Rosa Virgínia Mattos e Silva pela leitura atenta de um texto por mim produzido sobre a gramaticalização de Vossa Mercê a partir da aplicação de princípios teóricos funcionalistas, o que resultou na discussão estabelecida nesta dissertação. Aos Professores Doutores Anthony Julius Naro, Christina Abreu Gomes, Edwaldo Cafezeiro, João Moraes, Maria Carlota Rosa, Maria da Conceição de Paiva, Maria Eugênia Lamoglia Duarte, Maria Luíza Braga, Mário Eduardo Matelota, Sílvia Rodrigues Vieira, Violeta Virgínia Rodrigues e Yonne Leite deixo expressos o meu reconhecimento e admiração, pois apresentam-se como profissionais seriamente comprometidos com a qualidade do ensino e da pesquisa lingüística que promovem na UFRJ. Exprimo minha gratidão aos professores Ana Catarina Nobre Mello, Eliaine de Moraes Belford, Fátima Maria Campos Simões, Filomena Varejão, Kate Lúcia Portela e Kátia Carlos da Silva pelo companheirismo acadêmico. Desejo agradecer, especialmente, aos meus pais, Alfredo e Antônia Rumeu, pela responsabilidade com que me apresentaram à vida em sociedade, incitando-me desde sempre a entender o valor do saber. Manifesto-me também sinceramente grata a minha irmã Cristiane Rumeu e a todos os meus familiares pelo carinho e atenção a mim dispensados durante todo este percurso de intenso estudo. Agradeço aos meus alunos por também contribuírem para o meu amadurecimento profissional. Enfim, mostro-me extremamente agradecida a todos que me impulsionaram a concluir este trabalho e torceram por mim ... SINOPSE Descrição e análise das formas pronominais e nominais de tratamento e suas estruturas sociais. O processo de pronominalização de Vossa Mercê com base na confecção de uma edição fac-similar diplomático-interpretativa de cartas manuscritas no Rio de Janeiro da segunda metade do século XVIII e do XIX. “Terreno vasto, árido e difícil de lavrar é a perspectiva que se oferece a quem se lembra de estudar o desenvolvimento de um idioma como o português desde a remota fase dos primeiros documentos escritos até os nossos dias. Consciente das dificuldades, senti-me todavia atraído pelo assunto.” (M. Said Ali, 1921.) NA CASA DOS PRONOMES “(...) – Chega de Adjetivos – gritou a menina. – Eu não sei por que tenho grande simpatia pelos Pronomes, e queria visitá-los já. – Muito fácil – respondeu o rinoceronte. – eles moram naquelas casinhas aqui defronte. A primeira, e menor, é a dos Pronomes Pessoais. – Ela é tão pequena ... – admirou-se Emília. – Eles são só um punhadinho, e vivem lá como em república de estudantes. E todos se dirigiram para a casa dos Pronomes Pessoais enquanto Quindim ia explicando que os Pronomes são palavras que também não possuem pernas e só se movimentam amarradas aos Verbos. Emília bateu na porta – toque, toque, toque. Veio abrir o Pronome Eu. – Entrem, não façam cerimônia. Narizinho fez as apresentações. – Tenho muito gosto em conhecê-los – disse amavelmente o Pronome Eu. – Aqui na nossa cidade o assunto do dia é justamente a presença dos meninos e deste famoso gramático africano. Vão entrando. Nada de cerimônias. E em seguida: – Pois é isso, meus caros. Nesta república vivemos a nossa vidinha, que é bem importante. Sem nós os homens não conseguiriam entender-se na terra. – Todas as outras palavras dizem o mesmo – lembrou Emília. – E nenhuma está exagerando – advertiu o Pronome Eu. – Todos somos por igual importantes, porque somos por igual indispensáveis à expressão do pensamento dos homens. – E os seus companheiros, os outros Pronomes Pessoais? – perguntou Emília. – Estão lá dentro, jantando. À mesa do refeitório achavam-se os Pronomes Tu, Ele, Nós, Vós, Eles, Ela e Elas. Esses figurões eram servidos pelos Pronomes Oblíquos, que tinham o pescoço torto e lembravam corcundinhas. Os meninos viram lá o Me, o Mim, o Migo, o Nos, o Nosco, o Te, o Ti, o Tigo, o Vos, o Vosco, o O, o A, o Lhe, o Se, o Si e o Sigo – dezesseis Pronomes Oblíquos. – Sim senhor ! Que luxo de criadagem ! – admirou-se Emília. – Cada Pronome tem a seu serviço vários criadinhos oblíquos ... – E ainda há outros serviçais, os Pronomes de Tratamento – disse Eu. – Lá no quintal estão tomando sol os Pronomes Fulano, Sicrano, Você, Vossa Senhoria, Vossa Excelência, Vossa Majestade e outros. – E para que servem os senhores Pronomes Pesosoais? – perguntou a menina. – Nós – respondeu Eu – servimos para substituir os Nomes das pessoas. Quando a Senhorita Narizinho diz Tu, referindo-se aqui a esta senhora boneca, está substituindo o Nome Emília pelo Pronome Tu. Os meninos notaram um fato muito interessante – a rivalidade entre o Tu e o Você. O Pronome Você havia entrado no quintal e sentara-se à mesa com toda a brutalidade, empurrando o pobre Pronome Tu do lugarzinho onde ele se achava. Via-se que era um Pronome muito mais moço que Tu, e bastante cheio de si. Tinha ares de dono da casa. – Que há entre aqueles dois? – perguntou Narizinho. – Parece que são inimigos ... – Sim – explicou o Pronome Eu. – O meu velho irmão Tu anda muito aborrecido porque o tal Você apareceu e anda a atropelá-lo para lhe tomar o lugar. – Apareceu como? Donde veio? – Veio vindo ... No começo, havia o tratamento Vossa Mercê dado aos reis unicamente. Depois passou a ser dado aos fidalgos e foi mudando de forma. Ficou uns tempos Vossemecê e depois passou a Vosmecê e finalmente como está hoje – Você, entrando a ser aplicado em vez do Tu, no tratamento familiar ou caseiro. No andar em que vai, creio que acabará expulsando o Tu para o bairro das palavras arcaicas, porque já no Brasil muito pouca gente emprega o Tu. Na língua inglesa, aconteceu uma coisa assim. O Tu lá se chamava Thou e foi vencido pelo You, que é uma espécie de Você empregada para todo mundo, seja grande ou pequeno, pobre ou rico, rei ou vagabundo. – Estou vendo – disse a menina – que não tirava os olhos de Você. Ele é moço e petulante, ao passo que o pobre Tu parece estar sofrendo de reumatismo. Veja que cara triste o coitado tem ... – Pois o tal Tu – disse Emília – o que deve fazer é ir arrumando a trouxa e pondo-se ao fresco. Nós lá no sítio conversamos o dia inteiro e nunca temos ocasião de empregar um só Tu, salvo na palavra Tatu. Para nós o Tu já está velho coroca (...).” (LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. 39a ed., São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, p. 22 24.) Sumário VOLUME I Índice de quadros e tabelas .............................................................................................. xvi Abreviaturas e convenções ............................................................................................ xvii 1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 01 2. REVISÃO HISTÓRICO-DESCRITIVA ........................................................................ 05 2.1 As Formas Pronominais e Nominais de Tratamento sob a Perspectiva Tradicional. ............................................................................................................... 05 2.2 Forma de Tratamento ou Pronome Pessoal? A perspectiva das gramáticas históricas. .................................................................................................................. 11 2.3 A História de Formação das Estratégias Nominais de Tratamento em ........................................................................................... Português. ...................... 15 3. OS CORPORA ................................................................................................................. 32 3.1 Sobre as cartas de circulação pública no Rio de Janeiro setecentista e oitocentista. ................................................................................................................... 38 3.2 Sobre as cartas de circulação privada no Rio de Janeiro setecentista e oitocentista. ................................................................................................................... 43 4. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS ....................................................... 48 4.1 A teoria da mudança lingüística e suas questões teóricas. .......................... 48 4.2 As formas de tratamento e a Teoria do Poder e da Solidariedade .................. 51 4.3 De Vossa Mercê a Você: discussão da gramaticalização de formas nominais de tratamento na língua portuguesa. ..................................................................... 62 4.4 Para a análise da Gramaticalização de Vossa Mercê > Você no português: a discussão dos traços formais e semântico-discursivos ....................................... 71 4.4.1 Aplicação do sistema de traços às formas pronominais em português. ........................................................................................................ 72 4.4.2 Os traços de gênero de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em português: a legitimidade de Você. .............................................................. 74 4.4.3 Os traços de número de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em português: a ilegitimidade de Você. ............................................................. 76 4.4.4 Os traços de pessoa de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em português: a dupla face do pronome Você. ............................................... 79 5. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS ............................................................. 84 5.1 Distribuição dos dados das formas nominais de tratamento e das formas pronominais nas cartas setecentistas e oitocentistas. .................................................. 84 5.2 As relações de Poder e de Solidariedade na sociedade carioca dos séculos XVIII e XIX. ........................................................................................................... 99 5.3 Reflexos da mudança categorial ‘Vossa Mercê’ > ‘Você’ no português à luz dos princípios de gramaticalização propostos por Hopper. ............................ 106 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 123 7. BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 128 RESUMO ............................................................................................................................ 138 ABSTRACT ......................................................................................................................... 139 VOLUME II Índice da Edição Fac-similar Diplomático-Interpretativa das Cartas Setecentistas e Oitocentistas ....................................................................................... xvi 1. APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO DIPLOMÁTICO-INTERPRETATIVA .................... 01 1.1 O uso de Reclames em cartas setecentistas e oitocentistas. ..................................... 02 1.2 Os Sistemas de Pontuação das cartas setecentistas e oitocentistas. ..................... 05 1.3 Normas para transcrição de manuscritos dos séculos XVIII e XIX. ........ 12 2. CARTAS DE CIRCULAÇÃO PÚBLICA (SÉCULO XVIII) ........................................ 15 3. CARTAS DE CIRCULAÇÃO PRIVADA (SÉCULO XVIII) ........................................ 53 4. CARTAS DE CIRCULAÇÃO PÚBLICA (SÉCULO XIX) ........................................... 86 5. CARTAS DE CIRCULAÇÃO PRIVADA (SÉCULO XIX) ....................................... 117 RESUMO ............................................................................................................................ 146 ABSTRACT ......................................................................................................................... 147 Índice de quadros e tabelas: Quadro 1: Os Corpora. ..................................................................................................... 36 Tabela 1: Cartas de circulação pública produzidas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX. ...................................................................................................................... 39 Tabela 2: Cartas de circulação privada produzidas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX. ...................................................................................................................... 44 Quadro 2: O Continuum da Solidariedade, segundo Uber (1985) .................................. 57 Quadro 3: Matriz morfo-semântica dos pronomes pessoais do português com base em Lopes (1999), (2003). ......................................................................................................... 81 Quadro 4: Proposta de aplicação do sistema de traços na confecção de Matriz morfosemântica de Mercê, de Vossa Mercê e de Você. ....................................................... 81 Tabela 3: Formas pronominais e nominais de tratamento em cartas oficiais e não-oficiais dos Séculos XVIII e XIX. ................................................................................... 85 Tabela 4: Tipos de relações sociais perceptíveis em cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial. ............................................................................................. 100 Tabela 5: Distribuição dos dados de Vossa Mercê, Você, Tu e Vós em cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial. ..................................................... 107 Tabela 6: Distribuição dos dados de Vossa Mercê e Você em relação às suas funções sintáticas nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial. ............................................................................................................................................. 111 Tabela 7: Distribuição dos dados de Vossa Mercê, Você e Tu quanto à expressão do sujeito de 2a pessoa do discurso nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial. ............................................................................................................................. 113 Tabela 8: A co-referencialidade de Vossa Mercê, Você e Tu nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial. ................................................................................. 115 Tabela 9: Distribuição dos dados de Vossa Mercê e Você como sujeitos de 2a pessoa do discurso em relação à variável posição do sujeito nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial. ........................................................................................ 118 Quadro 5: Proposta de Estágios da Pronominalização de Vossa Mercê > Você no português. .......................................................................................................................... 121 Abreviaturas e convenções: AN → Arquivo Nacional BN-RJ → Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro IHGB → Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro NURC → Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta PHPB-RJ → Projeto Para uma História do Português Brasileiro (Equipe do Rio de Janeiro) PE → Português Europeu PB → Português do Brasil PnB → Português no Brasil P1 → Primeira pessoa do singular P2 → Segunda pessoa do singular P3 → Terceira pessoa do singular P4 → Primeira pessoa do plural P5 → Segunda pessoa do plural P6 → Terceira pessoa do plural S.r → Senhor V. Ex.a → Vossa Excelência V. M.ce → Vossa Mercê V. S.a → Vossa Senhoria V. Maj.e → Vossa Majestade [+ fem] → Feminino [- fem] → Masculino [+ pl] → Plural [- pl] → Singular [+eu] → Primeira pessoa [- eu] → Segunda pessoa [Ø eu] → Terceira pessoa 1. INTRODUÇÃO A questão da constituição histórica das variantes nacionais lusitana e brasileira do português tem suscitado investigações lingüísticas (Roberts e Kato, 1996; Mattos e Silva, 2001; Alkmin, 2002; Duarte e Callou, 2002.) acerca dos traços caracterizadores dessas variedades da língua portuguesa. Para que se desvele o processo de formação da norma brasileira do português, faz-se necessária a composição de um corpus que seja reflexo transparente do estado da língua portuguesa no Brasil em sincronias passadas. Assim sendo, o interesse pela representatividade da amostra sobre a qual incidirão análises lingüísticas torna-se condição sine qua non para que se efetivem estudos acerca da face assumida pelo português na América Portuguesa. Nesse sentido, esta investigação estrutura-se a partir de dois objetivos principais: 1o) a organização de corpora para estudo do português no Brasil a partir da confecção de uma edição fac-similar diplomático-interpretativa de cartas manuscritas no Rio de Janeiro, durante a segunda metade do século XVIII e no decorrer do século XIX e 2 o) a descrição e a análise das formas nominais e pronominais de tratamento, atentando-se para o processo de pronominalização de Vossa Mercê em português, com base na amostra criteriosamente editada. A tese laboviana de que os estudos em lingüística histórica constituem “A arte de fazer o melhor uso de maus dados” (1994:11) funciona como o princípio norteador desta investigação, ratificando a necessária preocupação do lingüista pesquisador com a transparência do corpus em relação à realidade lingüística que representa. Admite-se, como ponto de partida para a descrição e análise proposta, uma certa inquietação com a confiabilidade dos dados utilizados no estudo lingüístico. Julga-se, pois, que a edição fac-similar diplomático-interpretativa de sessenta cartas manuscritas, confeccionadas no Rio de Janeiro setecentista e oitocentista, favoreça a comunidade acadêmica, disponibilizando-lhe um conjunto de textos editados e organizados com o rigor filológico necessário aos estudos lingüísticos de sincronias passadas. A edição dessa amostra de cartas apresenta-se assim distribuída: trinta cartas produzidas na segunda metade do século XVIII – quinze cartas de circulação pública e quinze cartas de circulação privada – e trinta cartas elaboradas no decorrer do século XIX – quinze cartas de circulação pública e quinze cartas de circulação privada. Com relação, ainda, à organização dos corpora pretende-se, num nível mais específico, atentar para os seguintes aspectos filológicos: (1o) A composição de uma amostra diversificada de cartas manuscritas distribuídas entre dois tipos de textos, conforme a tipologia de classificação de textos não-literários proposta por Barbosa (1999): cartas da administração pública (textos oficiais), cartas da administração privada (textos não-oficiais) e cartas pessoais. Privilegia-se, pois, a partir da organização do conjunto de cartas, na 1a e 2a categorias, a contraposição de textos com diferentes graus de cerimônia, além da constituição de um material que forneça subsídios para a confecção de estudos sobre a realidade lingüística do Brasil durante o período colonial e imperial; (2o) A busca por documentos autógrafos ou cópias de época, a fim de garantir o controle da originalidade da fonte em relação ao período em análise; (3o) A depreensão de aspectos gerais relativos aos(s) sistema(s) de pontuação transparente(s) em algumas cartas de circulação pública e privada produzidas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX, para chamar a atenção a certos problemas de decodificação enfrentados por um leitor contemporâneo face aos textos de sincronias passadas. No que diz respeito à análise lingüística, pretende-se responder às seguintes questões: (1o) Que formas nominais e pronominais de tratamento se apresentam em cartas setecentistas e oitocentistas? Que tipos de relações sociais condicionam a freqüência de uso das fórmulas nominais de tratamento em manuscritos coloniais e imperiais à luz da Teoria do Poder e da Solidariedade idealizada por Brown e Gilman (1960) ? (2o) Que propriedades formais e semânticas da expressão nominal Vossa Mercê foram conservadas e perdidas no seu processo evolutivo até originar a forma pronominal Você na língua portuguesa ? (3o) Que estágios do processo de pronominalização foram trilhados pela forma nominal de tratamento Vossa Mercê até originar a forma pronominal Você na língua portuguesa (transition problem, cf. Weinreich et alii, 1968) ? (4o) Como é possível entender o encaixamento da mudança categorial de Vossa Mercê para Você na matriz lingüística e social (embbeding problem) sob a perspectiva de análise de Weinreich et alii (1968) ? Com o intuito de dar conta dos objetivos do presente trabalho, organizou-se esta dissertação em dois volumes. O primeiro volume apresenta-se estruturado em cinco capítulos. Inicialmente, expõe-se o problema a ser discutido nesta investigação. No segundo capítulo, compôs-se um panorama dos estudos lingüísticos acerca das formas de tratamento no português, a fim de resgatar os trabalhos que versem sobre a sua origem e suas estruturas sociais e sobre a evolução de Vossa Mercê para Você. No terceiro capítulo, descrevem-se os corpora, caracterizando as cartas de circulação pública e as de circulação privada produzidas no Rio de Janeiro colonial e imperial. No quarto capítulo, divulgam-se os pressupostos teóricometodológicos que fundamentam a análise. Explicita-se em que consiste a Teoria do Poder e da Solidariedade e a metodologia utilizada para depreender os tipos de relações sociais que se deixaram explicitar nas cartas. O quinto capítulo está dividido em três partes. Na primeira, descrevem-se e analisam-se os dados, apresentando a distribuição assumida pelas formas de tratamento levantadas nos corpora. Na segunda, discutem-se as relações de Poder e de Solidariedade que se entremostram nas cartas setecentistas e oitocentistas produzidas no Rio de Janeiro. Na terceira, aborda-se o processo de gramaticalização de Vossa Mercê, a partir da quantificação dos dados, buscando-se depreender as etapas do seu processo de pronominalização e o encaixamento da mudança categorial nas matrizes lingüística e social. No segundo volume desta investigação, apresentam-se, inicialmente, alguns apontamentos sobre questões de ordem filológica que podem dificultar a decodificação de textos de sincronias passadas. Divulgam-se ainda os critérios de edição que nortearam a edição das missivas que compõem os corpora em análise. Esses parâmetros de transcrição de manuscritos foram discutidos no IV Encontro Nacional do Projeto Para a História do Português Brasileiro, a que se vincula esta dissertação. Após a exposição dos critérios de edição, editam-se, com fac-símile, as sessenta cartas produzidas na realidade histórica do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XVIII e no curso do século XIX. 2. REVISÃO HISTÓRICO-DESCRITIVA. 2.1 As Formas Pronominais e Nominais de Tratamento sob a Perspectiva Tradicional. Renomados gramáticos da língua portuguesa são unânimes na apresentação das formas pronominais como estratégias gramaticais para fazer referência à 1a pessoa do discurso – ao próprio falante (eu – singular, nós – plural.), à 2a pessoa do discurso – ao interlocutor (tu – singular, vós – plural) – e à 3a pessoa do discurso – a quem ou aquilo de que se fala (ele(s) masculino singular/plural, ela(s) feminino singular/plural). Estudiosos da língua portuguesa sob a perspectiva tradicional –Almeida (1957), Cuesta & Luz (1971), Rocha Lima (1972), Lapa (1973), Cunha & Cintra (1985), Bechara (2001) e Leitão et alii (2001) – se eximem da tarefa de explicitar a norma objetiva em relação ao quadro de pronomes pessoais e de tratamento do português brasileiro, limitando-se, por vezes, a registrar, a título de observação, comentários mais atuais desse sistema pronominal principalmente em relação às formas você e a gente. Almeida (1957) define os pronomes substantivos ou pronomes pessoais como formas pronominais que, além de substituírem o nome de um ser, os relacionam com a pessoa gramatical. Posteriormente à exposição do quadro dos pronomes pessoais da língua portuguesa com a contemplação das seis pessoas do discurso, o autor apresenta locuções nominais do tipo fulano, beltrano, A gente, Vossa Mercê, Vossa Excelência, Vossa Senhoria, Sua Senhoria, Sua Majestade como formas de 3a pessoa gramatical além das consagradas formas pronominais ele e ela. Em nota de rodapé, o autor não estabelece nítida diferença entre pronome de tratamento e pronome pessoal, conforme se observa no trecho transcrito a seguir. Alguns desses pronomes são suscetíveis de plural: vossas majestades, vossas senhorias, vossas senhorias, vocês etc. Observe-se que o plural de você (Este pronome não é usado em Portugal) costumam pronunciar ‘voceis’, antepondo um ‘i’ ao ‘s’ do plural, pronúncia que devemos condenar e evitar. (ALMEIDA, 1957:163). Almeida ainda prescreve que para a manifestação de um português escorreito há de se atentar para a relação de concordância entre a forma de tratamento de 3a pessoa gramatical e os pronomes adjetivos possessivos. É de regra, num discurso, em cartas ou em escritos de qualquer natureza, a uniformidade de tratamento, isto é, do pronome escolhido para a pessoa a que nos dirigimos. Se tratamos o interlocutor por vós, os pronomes oblíquos devem ser os que correspondem a essa pessoa, e o mesmo se deve dizer dos adjetivos possessivos. Se o tratarmos por ‘tu’, usaremos os oblíquos ‘te’, ‘ti’, ‘contigo’ e os possessivos ‘teu’, ‘tua’, ‘teus’, ‘tuas’ (jamais ‘seu’, ‘sua’). Se o tratarmos por Vossa Senhoria, Senhor, Você diremos o ‘lhe’, ‘seu’, ‘sua’ etc. (ALMEIDA, 1957:130). Cuesta & Luz (1971), ao descreverem as fórmulas de cortesia usuais no Brasil, afirmam que, no português d’aquém mar, as estratégias de tratamento reduzem-se basicamente a dois tipos: Você – tratamento de intimidade equivalente ao uso de Tú do espanhol – e O Senhor, A Senhora – tratamento cortês semelhante ao Usted do espanhol. As autoras tecem um comentário impressionístico acerca do uso do pronome Tu em regiões específicas do Brasil, mas mostram a possibilidade de co-referência com formas de 2a pessoa. O tu, que soa muito mal ao ouvido brasileiro, conserva-se apenas na sua forma de sujeito no Rio Grande do Sul e no Maranhão, embora as formas te, ti, contigo, apareçam na fala familiar de todo o país juntamente com você. Assim, podem ouvirse frases como esta: Você esteve na praia? Eu também estive, mas não te vi lá. (CUESTA & LUZ, 1971:488.) Cuesta e Luz apresentam a forma Você como uma estratégia de tratamento peculiar ao português brasileiro em relações sociais de intimidade. O tratamento de intimidade Você está muito divulgado, sendo normal entre pessoas da mesma idade e categoria social que acabam de se conhecer, ainda que pertençam a sexos diferentes. Dentro da família, Você é utilizado não só pelos indivíduos mais velhos para se dirigirem aos mais novos, mas também por estes, embora os papais, mamães, vovôs, vovós, titios, titias, dindinhos ou dindinhas tradicionais prefiram que os seus filhos, netos, sobrinhos ou afilhados os tratem por o senhor, a senhora. (CUESTA & LUZ, 1971:489.) Segundo Cuesta e Luz, o tratamento cerimonioso se dá no português do Brasil pelas formas Vossa Senhoria para os documentos oficiais e comerciais e por Vossa Excelência para o tratamento de autoridades governamentais. Já o tratamento cerimonioso por Vós persiste apenas em contextos de escrita cujo grau de formalismo é alto. As autoras ressaltam ainda o fato de a forma resultante do processo de gramaticalização de Vossa(s) Mercê(s) em sua forma pluralizada – Vocês – ter preenchido a lacuna deixada no sistema de pronomes do português com o desuso do Vós. A segunda pessoa do plural, vós, persiste apenas na linguagem solene dos oradores sagrados, nos discursos de ingresso na Academia Brasileira de Letras e em alguns discursos. Tal como em Portugal, quando tem o valor do ‘vosotros’ espanhol, foi substituída por vocês. (CUESTA & LUZ, 1971:490.) Rocha Lima (1972), após a apresentação dos pronomes pessoais do português, faz referência ao Você como pronome de 2a pessoa do discurso, mas o acolhe como uma forma de tratamento. Há alguns pronomes de segunda pessoa que requerem para o verbo as terminações da terceira. Tais são: Você, Vocês (tratamento familiar) o Senhor, a Senhora (tratamento cerimonioso), e, acompanhados de seus plurais, os chamados “pronomes de reverência”: Vossa Senhoria, Vossa Excelência, Vossa Alteza, Vossa Majestade, Vossa Santidade, Vossa Eminência, Vossa Reverendíssima, Vossa Magnificência... (ROCHA LIMA, 1972:112.) A descrição das formas de tratamento de 3a pessoa gramatical feita por Lapa (1973) contempla Você como estratégia de tratamento familiar usual no Brasil, contrapondo-a ao Tu que, por sua vez, é de uso restrito a algumas regiões do país. O autor ainda comenta que, no Brasil, a forma Você se fixou como estratégia de tratamento informal, ao passo que, em Portugal, apresenta-se como forma de tratamento desrespeitoso. Lapa (1973) relaciona o uso generalizado das formas nominais de tratamento com a estrutura social da comunidade lingüística, apontando Portugal como uma sociedade decadente, pois ainda se apresenta como uma estrutura hierarquizada. Nota o professor Carlos Góis que a expressão Vossa Excelência é rara no Brasil, por se opor aos sentimentos democráticos do povo. Donde se poderia talvez concluir que a sua manutenção entre nós, portugueses, indica uma certa sobrevivência dos costumes antigos, próprios duma sociedade decadente. (LAPA, 1973:121.) Ao comentar o desuso da legítima forma pronominal Vós e sua conseqüente substituição pelas estratégias nominais de tratamento, Lapa condena a mistura de pronomes no português, entendendo a forma Senhor como uma forma pronominal de 3a pessoa. O que importa relevar é o desaparecimento do pronome vós e a sua substituição por formas da 3a pessoa. Sendo assim, é conveniente não misturar as formas pronominais do singular com o verbo no plural, como fazem certos principiantes. Um exemplo: ‘Peço ao Sr. a fineza de me enviardes a 5a lição e corrigirdes os exercícios da 4a.’ Quem assim escreveu esqueceu-se de que Sr. é forma pronominal da 3a pessoa e confundiu-a com o cerimonioso e antiquado vós. Deu-se um cruzamento entre a forma antiga e a moderna, o que se deverá sempre evitar. (LAPA, 1973:121.) Cunha & Cintra (1985) apresentam Você, no tópico Pronomes de Tratamento, como uma forma de tratamento que funciona como um legítimo pronome pessoal. Denominam-se PRONOMES DE TRATAMENTO certas palavras e locuções que valem por verdadeiros pronomes pessoais, como: você, o senhor, Vossa Excelência. Embora designem a pessoa a quem se fala (isto é, a 2a), esses pronomes levam o verbo para a 3a pessoa. (CUNHA & CINTRA, 1985:282.) Apesar de Cunha & Cintra (1985) assumirem o mesmo comportamento que Rocha Lima (1972), isto é, o de acrescentarem Você ao quadro das formas de tratamento do português, os autores redigem um subtópico destinado ao Emprego dos pronomes de tratamento da 2a pessoa em que tecem os seguintes comentários em relação ao emprego do Tu e do Você no português brasileiro. No português do Brasil, o uso do tu restringe-se ao extremo sul do País e a alguns pontos da região Norte, ainda não suficientemente delimitados. Em quase todo o território brasileiro, foi ele substituído por você como forma de intimidade. Você também se emprega, fora do campo da intimidade, como tratamento de igual para igual ou de superior para inferior. (CUNHA & CINTRA, 1985:284.) Seguindo a tradição gramatical, Bechara (2001) expõe Você, no tópico Formas de tratamento, como uma forma pronominal de tratamento. Existem ainda formas substantivas de tratamento indireto de 2a pessoa que levam o verbo para a 3a pessoa. São as chamadas formas substantivas de tratamento ou formas pronominais de tratamento: Você, Vocês (no tratamento familiar) o Senhor, a Senhora (no tratamento cerimonioso). (BECHARA, 2001:135.) Ao tecer a seguinte observação, em relação ao uso das formas Você e Tu no português brasileiro, Bechara (2001) faz menção à forma nominal de tratamento Vossa Mercê (forma originadora de Você), ao desuso do pronome Vós e à sua conseqüente substituição por Vocês como estratégia de referência à 2a pessoa do discurso, em sua forma pluralizada, ao lado do Tu. Você, hoje usado familiarmente, é a redução da forma de reverência Vossa Mercê. Caindo, entre brasileiros, o pronome Vós em desuso, só presente nas orações e estilo solene, emprega-se vocês como o plural de tu. (BECHARA, 2001:136.) Leitão et alii (2001), em sua Gramática Crítica, após a exposição das formas pessoais pronominais vigentes na língua portuguesa, apresentam em destaque a informação de que os pronomes de tratamento no português apresentam-se como estratégias formais de referência à 2a pessoa do discurso. Ainda no subtópico formas de tratamento, Leitão et alii afirmam ser a forma Você um pronome que funciona no lugar da forma pronominal Tu em relação de concordância com a 3a pessoa gramatical. Apesar de Leitão et alii apresentarem Você no espaço destinado à exposição das formas de tratamento do português, os autores denominam-no pronome, parecendo equipará-lo ao pronome pessoal Tu. Observa-se, pois, que não há clareza na exposição das idéias no que se refere à forma Você, uma vez que não se explicitou, com a devida rigidez de critérios, se tal forma se constitui no português como pronome pessoal ou como forma de tratamento. Pronomes de tratamento: a língua dispõe ainda de formas cerimoniosas destinadas ao tratamento com um ouvinte revestido de maior solenidade: são os chamados pronomes de tratamento, cujo emprego requer a enunciação do verbo e dos pronomes possessivos na 3a pessoa, visto que, em princípio, a 2a pessoa fica reservada a um tratamento mais íntimo e direto. Adotando, porém, o pronome você em lugar do tu (próprio da 2ap.), a linguagem coloquial brasileira, sobretudo a carioca, desfez tal distinção e consagrou a 3 a pessoa como forma preferencial para qualquer interlocutor, independentemente do grau de formalidade da situação comunicacional existente: Você vai ? (informal) x Vossa Excelência irá ? (formal). (LEITÃO et alii, 2001:81.) A partir dos estudos gramaticais expostos em análise, constata-se que os gramáticos da língua portuguesa não descrevem, coerentemente, o que é funcional em relação ao quadro pronominal do português do Brasil, apresentando uma diferenciação pouco nítida entre forma de tratamento e pronome pessoal. No que diz respeito à forma Você, os autores, partindo de uma classificação gramatical pouco clara e, às vezes, incoerente, acabam por entendê-la ora como uma forma de tratamento de 3a pessoa, ora como estratégia de 2a pessoa. Outro ponto ainda não esclarecido e controvertido refere-se à mistura de tratamento (concordância entre as supostas formas de 3a pessoa com os pronomes possessivos de 2a pessoa). 2.2 Forma de Tratamento ou Pronome Pessoal? A perspectiva das gramáticas históricas. Como os corpora desta investigação lingüística são formados por textos dos séculos XVIII e XIX, pesquisou-se, em gramáticas da língua portuguesa setecentistas e oitocentistas, o enfoque concedido à forma pronominal de referência à 2a pessoa do discurso – Você. Para tal, selecionou-se, em relação ao século XVIII, a gramática de Joanne de Moraes Madureyra Feijó – Explicações de algumas partes da arte do Reverendo Padre Manuel Álvares (1729). No que diz respeito ao século XIX, consultaram-se os seguintes compêndios gramaticais: a gramática de Júlio Ribeiro – Gramática Portuguesa (1881), a de Jerônimo Soares Barbosa – Gramática Filosófica da Língua Portuguesa (1875), a de Francisco Julio Caldas Aulete (1868) – Gramática Nocional –, a de Francisco Solano Constâncio (1831) – Gramática analítica da língua portuguesa – e a de Cândido Figueiredo (1900) – Lições Práticas da língua portuguesa. Tanto a gramática do português no século XVIII, quanto os compêndios gramaticais editados no século XIX não fizeram referência às formas nominais de tratamento que vigiam no português daquelas sincronias passadas. Reviram-se ainda as abordagens das gramáticas históricas quanto às formas nominais de tratamento em português. Em análise estão a Gramática Histórica da Língua Portuguesa (2001) de Said Ali, a Grammatica Historica (1932) de Eduardo Carlos Pereira, a Gramática Histórica de Ismael de Lima Coutinho (1954) e o Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa de José Joaquim Nunes (1989). Said Ali, em sua Gramática histórica da língua portuguesa (2001), dedica um capítulo à descrição dos pronomes, explicitando-os em relação a sua espécie, forma e significado. Inicialmente, o autor se envolve com uma discussão acerca da definição da categoria dos pronomes em língua portuguesa, mostrando-se insatisfeito com o conceito de “pronome como palavra supridora do nome substantivo”. Posiciona-se, pois, a favor da definição concebida por Henry Sweet (apud Said Ali 2001:74) acerca dos “pronomes como nomes e adjetivos gerais, em oposição aos ordinários nomes e adjetivos especiais, devendo-se advertir que alguns nomes e adjetivos são mais gerais em sua significação do que outros. Assim, um nome de significação geral é, muitas vezes, quase equivalente a um pronome”. Senhor com sentido especial é nome, mas o Senhor, referido geralmente a qualquer pessoa a quem dirigimos a palavra, é pronome. (...) Todo o pronome é ou um substantivo (pronomesubstantivo), ou um adjetivo (pronome-adjetivo). Alguns se usam ora como substantivos, ora como adjetivos. Para não confundir a categoria dos pronomes com a dos nomes, diremos que são pronomes absolutos os que fazem vezes de substantivos, e pronomes adjuntos os que se empregam como adjetivo. (SAID ALI, 2001:74.) No que diz respeito aos pronomes pessoais, o autor os apresenta em relação às 1a, 2a e 3a pessoas do discurso do singular e do plural, expondo duas maneiras de fazer referência à 2a pessoa do discurso na interação lingüística face a face. A primeira consiste em usar o plural Vós como indício de polidez e a segunda diz respeito à evocação de atributo ou a qualidade da pessoa a que se faz referência como um procedimento lingüístico para enaltecê-la. É interessante observar que, apesar de Said Ali (2001) se mostrar preocupado com a noção de pronome em língua portuguesa, não evidenciou sua posição quanto à categorização a ser assumida pela forma Você. O autor parece entender Você como pronome, pois o apresenta em confronto com a legítima forma pronominal Tu, mas o expõe como forma variante da forma nominal de tratamento Vossa Mercê, o que, numa segunda leitura, poderia levar a interpretá-lo como reflexo da sua forma originária – Vossa Mercê. Do uso e abuso da fórmula vossa mercê nasceu em boca do povo a variante você, a qual não só perdeu todo o antigo brilho, mas acabou por aplicar-se a indivíduos de condição igual, ou inferior, à da pessoa que fala; e dirigindo-nos a mais de uma indivíduo, servimo-nos hoje de vocês como plural semântico de tu. Outra forma alterada de vossa mercê é vossancê (...) (SAID ALI, 2001:75.) Pereira (1932) menciona o fato de a expressão pronominal de tratamento Vossa Mercê ter originado Você que, por sua vez, se apresenta como forma equivalente a Tu. Embora o autor afirme que Você advém da estratégia pronominal de tratamento – Vossa Mercê –, o equipara à legítima forma pronominal Tu no português brasileiro. Vossa Mercê deu-nos, contrahido, você (V.), com mudança de sentido, pois você equivale a tu, uso actual, e se refere a eguaes ou inferiores, indicando, ás vezes, no circulo domestico, carinho e confiança de filhos para com seus paes. (PEREIRA, 1932:461.) Coutinho (1954), ao apresentar o processo de formação dos pronomes pessoais da língua portuguesa, faz menção à origem de Você, anunciando-o como um pronome de 2a pessoa do discurso. O fato de Coutinho expor Você como um pronome de segunda pessoa, isto é, como um pronome pessoal do português evidencia a sua aguçada percepção em relação à categoria gramatical a que tal forma pertence no português atual – forma pronominal pessoal. O pronome da 2a pessoa você era antigamente tratamento de respeito Vossa Mercê. A evolução deve ter sido a seguinte: Vossa Mercê > Vossemecê > Você. (COUTINHO, 1954:266.) Nunes (1989) apresenta a evolução histórica dos pronomes possessivos, fazendo menção ao desgaste fonético sofrido pela forma nominal de tratamento Vossa Mercê na língua portuguesa. No entanto, o autor não explicita claramente a categoria gramatical a que pertence a forma Você em língua portuguesa, uma vez que faz referência à tal forma como uma expressão que, por sua vez, se originou da forma de tratamento Vossa Mercê. Também na forma feminina do pronome vosso, influiu a próclise de tal maneira, que fez que ela perdesse a sílaba final da expressão você, que ocorre a par de vossemecê, e esta, como é sabido, por vossa mercê; contribuiu decerto para tamanha redução no pronome e no substantivo o seu uso constante no tratamento: cf. também o espanhol usted que corresponde à fórmula portuguesa, e o galego misia que está por mia senhoria. (NUNES, 1989:245.) Acrescente-se ainda o estudo descritivista tecido por Paul Teyssier acerca do processo de formação da língua portuguesa. Teyssier (2001), ao reconstituir a história da língua portuguesa, apresenta a forma Você como estratégia de tratamento informal que surgiu a partir do desgaste fonético e semântico sofrido pela forma nominal de tratamento Vossa Mercê. No que diz respeito ao tratamento no Brasil, o autor expõe Você como forma de tratamento familiar em contraposição ao tratamento reverente estabelecido pelas formas o senhor, a senhora. O português do Brasil simplificou, igualmente, o código de tratamento. Como em Portugal, o vós desapareceu, mas o tu sobrevive apenas no extremo sul e em áreas não suficientemente delimitadas do Norte. Em circunstâncias normais, existem apenas duas fórmulas: o tratamento por você, que é familiar, e o tratamento por o senhor, a senhora, que é mais reverente. (TEYSSIER, 2001:107.) Uma vez constatada a indefinição das gramáticas descritivas no que se refere a uma explicitação criteriosa acerca do que efetivamente distingue um pronome pessoal de um pronome de tratamento, passa-se, na próxima seção, a rever estudos descritivistas acerca da história do surgimento das formas nominais de tratamento no português. 2.3 A História de Formação das Estratégias Nominais de Tratamento em Português. Cintra (1972) analisa as formas de tratamento em português a partir do contexto histórico-social que as licencia na sociedade portuguesa. Ao iniciar a reconstrução das origens das formas de tratamento, admite que o português herdou do latim tardio um sistema bifurcado de referência à 2a pessoa do discurso – Tu e Vós. Entre o final do século XIII e a primeira metade do século XIV, dava-se preferência aos pronomes Tu, no plano da intimidade, e Vós, no plano da cortesia. O sistema de formas de tratamento da língua portuguesa assemelhava-se ao do francês, que continua, até hoje, assumindo as formas pronominais Tu e Vous na expressão do tratamento informal e formal, respectivamente. Até princípios do século XV, o pronome de tratamento Vós representou a forma de tratamento cerimonioso preferida pela realeza portuguesa. Domingos (2001) volta-se para os pronomes de tratamento usuais no português do século XVI, entendendo-os como estratégias de tratamento a partir das quais são percebidas as relações sociais entre os interlocutores na interação comunicativa. Trata-se de pronomes com os quais se estabelece uma relação direta entre falantes e ouvintes expressando distanciamento ou não entre eles. (...) Ocupamo-nos, principalmente, daqueles que caracterizam a relação entre uma pessoa e seu ouvinte no tratamento direto. O valor de tratamento igualitário ou de superior para inferior ou de inferior para superior, ou mesmo de [+ intimidade], de insulto, de [+afetividade], de modéstia, de ordem, (...) faz-nos afirmar que pronome de tratamento é a representação no discurso do ser-social. Somente o uso determina a regra. As normas são sociais. TU e VÓS (...) não são nomes, mas representações sociais ou psicológicas.” (DOMINGOS, 2001:21.) O corpus sobre o qual incide a análise de Domingos (2001) é representado pelos Autos de Gil Vicente e das Escolas Vicentinas do século XVI. A autora defende a hipótese de que o teatro português deixa evidenciar resquícios da linguagem falada em Portugal desse período, entendendo-se que essa foi a versão da língua portuguesa que aportou em terras ameríndias por ocasião da descoberta e colonização do Brasil pelos portugueses. A análise dos pronomes de tratamento usuais pelos personagens do teatro de cordel português do século XVI possibilita a descrição das suas regras de uso em relação à 2a pessoa gramatical. Segundo a autora, a função da 2a pessoa gramatical – Tu e Vós – apresenta-se em sintonia com as relações de superioridade, inferioridade, igualdade, [+ intimidade], [+ afetividade], insulto e ordem. No que se refere ao uso do pronome Tu, a regra geral é a de marcar a relação interpessoal de superior para inferior. Apresentam-se, ainda, os seguintes contextos em que se evidencia a aplicabilidade do pronome Tu: nas relações de [+ intimidade] entre desiguais, entre iguais, e entre namorados; nas relações de [+ afetividade] e também nas relações de insulto. O pronome Vós apresenta como regra geral a sua aplicação em relações interpessoais de inferior para superior. No entanto, constatou-se ainda a sua aplicabilidade nas relações de modéstia, de ordem, de igualdade social; de [- intimidade] movidas por igualdade social; de [+ intimidade] com igualdade social, entre casados; em casos de pluralização de pessoas (uma personagem falando por várias), nas situações de reverência a Deus ou entes religiosos e nos chamamentos. Com relação às outras estratégias nominais de tratamento, Cintra (1972) consegue detectar, ainda que esporadicamente nas Crônicas de Fernão Lopes dos séculos XIV e XV, ocorrências de Vossa Mercê, em 1394, de Vossa Alteza, em 1455, e de Vossa Senhoria, em 1442. Consoante o pensamento de Santos Luz (1958), acredita-se que o surgimento dessas fórmulas indiretas de tratamento – Vossa Mercê, Vossa Alteza, Vossa Senhoria, Vossa Excelência – conduziu a uma revolução no sistema de tratamento da língua portuguesa, uma vez que surgem, para evocar a 2a pessoa do discurso, como formas específicas que se manifestam em relação de concordância gramatical com a 3a pessoa do singular. Os motivos para o abandono do pronome de tratamento Vós como uma demonstração de polidez para com a realeza portuguesa devem ser entendidos, pois, conforme Cintra (1972), a partir do contexto histórico-social de Portugal nos séculos XV e XVI. Em termos sociais, há de se admitir que a corte e a nobreza foram as responsáveis pela adoção e posterior degradação das polidas formas nominais de tratamento cortês na sociedade portuguesa, visto que desejavam estabelecer, lingüisticamente, uma diferenciação hierárquica entre as diferentes camadas da pirâmide social. Essa tentativa de consolidação de uma sociedade hierarquizada expressa o desejo de manutenção das relações sociais de poder entre a realeza portuguesa e seus súditos a partir da efetiva instauração de um relacionamento interpessoal assimétrico. Em termos lingüísticos, observa-se que, em virtude do desuso do pronome Vós para o tratamento cerimonioso de interlocutor, surgiram formas nominais de tratamento e, entre elas, está a forma nominal de tratamento Vossa Mercê que, lenta e gradualmente, evoluiu até constituir a forma pronominal Você em português. Em relação à semântica da forma de tratamento Vossa Mercê, evidencia-se uma clara referência à benignidade do rei como traço inerente à pessoa humana que detém o Poder no regime monárquico português. Segundo Said Ali (1937:139), “os súbditos, dependentes sempre da mercê ou da graça do príncipe, apresentavam as suas queixas e requerimentos dando-lhe o habitual vós. Sabiamente pediam por mercê e punham freqüentemente vossa mercê por vós, referindo-se não à pessoa do soberano, e sim à graça e o favor que dele dimanava.” Quando se empregava Vossa Mercê, objetivavase, através de uma associação metonímica, evocar, sobretudo, a justiça e a benevolência do monarca soberano para com seus servos. A fim de corroborar o pensamento de Said Ali no que se refere à questão dessa associação metonímica, resgatou-se a etimologia do vocábulo mercê em português. O substantivo mercê originou-se do substantivo latino mercēs, -ēdis com o sentido de salário, prêmio, assumindo, em língua portuguesa, conforme Moraes Silva (1813), Nascentes (1955) e Cunha (1982), o sentido de graça, benefício, proteção, mercadoria. Tais acepções comprovam a interpretação de Said Ali (1937, 2001) em relação ao fato de a forma nominal de tratamento Vossa Mercê constituir-se como uma estratégia para invocar apenas indiretamente a segunda pessoa, pois, evocava, em primeira instância, a proteção e a graça disseminadas pelo representante da autoridade imperial. Determinado pelo pronome possessivo de cerimônia Vossa, o substantivo Mercê propagou-se como Vossa Mercê, forma de tratamento cerimonioso para com o rei na sociedade portuguesa, em 1460 – século XV (cf. Cintra:1972). O autor afirma que, a partir de 1490, a forma de tratamento de caráter nominal deixa de ser empregada para se dirigir, única e exclusivamente, ao monarca português, passando a figurar como uma forma de tratamento compartilhada também por duques e infantes, em seguida, por fidalgos e, no século XVI, por componentes da burguesia. A sociedade portuguesa de origem feudal reorganizou-se em virtude do surgimento de uma nova classe social – a burguesia – que estava voltada para o comércio citadino. Em fins do século XV e início do XVI, além do clero e da nobreza, também essa nova classe social passou a compor a pirâmide social portuguesa. O fato de o monarca português ter tido que dividir o glamour do cenário social com a burguesia conduziu à reestruturação das relações interpessoais de modo que as fórmulas de tratamento deveriam enaltecer, preferencialmente, a soberania do rei em relação às demais camadas sociais. A preocupação em evidenciar a hierarquização social por formas de tratamento era tão relevante que foram instituídas, na segunda metade do século XV, expressões substantivas especificamente direcionadas ao tratamento da realeza portuguesa, tais como Vossa Majestade, Vossa Alteza, Vossa Excelência, Vossa Senhoria, Vossa Mercê, por meio das leis de cortesia estabelecidas, em 1586, por Felipe II, na Espanha e, em 1597, por Felipe I, em Portugal. Conforme a legislação imperial, Felipe I estabelece, em Portugal, as formas nominais de tratamento Vossa Majestade para o Rei e para a Rainha, Vossa Alteza para Príncipes e seus sucessores, Vossa Excelência para sucessores dos Infantes e para o Duque de Bragança e Vossa Senhoria para o Clero e autoridades do Império Português. A forma nominal de tratamento Vossa Mercê não tinha seu contexto de aplicação especificada através das leis de cortesia, mas tal forma nominal de tratamento já havia se disseminado pela nobreza e também pela burguesia portuguesa, comportando-se como uma estratégia de tratamento formal que se opunha ao informal Tu. No século XVIII, o autor afirma que o Vós como forma empregada para fazer referência a um único interlocutor, àquela altura do processo de reorganização do sistema de tratamento do português, já se constituía como um traço arcaizante da língua, condenada, pois, ao desuso. Wilhelm (1979) admite que o Vós foi o pronome de distância recorrente como forma de tratamento cortês para com o rei português no período de 1331 até 1490. Vossa Mercê tem provável proveniência espanhola, vigorando, na sociedade lusitana, desde 1455 até 1580. Às formas nominais de tratamento Vossa Alteza e Vossa Senhoria são atribuídas a origem italiana, manifestando-se na comunidade lingüística do português europeu a partir de 1442 e 1453, respectivamente. Com relação a Vossa Excelência e a Vossa Majestade, acredita-se que as suas primeiras manifestações tenham se dado a partir de 1455 e 1597, respectivamente, na comunidade lingüística do português europeu. No que diz respeito à origem espanhola atribuída por Wilhelm à forma Vossa Mercê, acrescentem-se as contribuições de José Pla Cárceles (1923) acerca da inserção de Vuestra Merced no sistema lingüístico do espanhol. O autor admite que o pronome Vos, forma de tratamento cortês, mostrou-se funcional na Espanha do século XV, começando a cair em desuso no século XVI. Para o lugar que o pronome Vos deixou vago no sistema da língua, surge a forma nominal de tratamento Vuestra Merced que, por sua vez, não se destina à nobreza, porque para os nobres da sociedade hispânica, tem-se Vuestra-Señoria, Vuestra-Excelencia, mas se constitui como estratégia cortês de tratamento em relações sociais de inferior para superior. Como resultado do desgaste fonético-fonológico sofrido pela forma nominal de tratamento Vuestra Merced originou-se Usted, forma de tratamento cortês ainda usual na língua espanhola. Constatase, pois, que é coerente a hipótese de que Vossa Mercê, ou melhor, Vuestra Merced tenha se implementado primeiramente na comunidade lingüística espanhola uma vez que, segundo Cintra (1972), as leis de Cortesia foram estabelecidas por Felipe II para fixar o uso de Vossa Majestade, Vossa Alteza, Vossa Excelência e Vossa Senhoria, inicialmente, na Espanha, em 1586, e, quinze anos depois foram instauradas por Felipe I, em Portugal. Cintra ainda afirma que Vossa Mercê aparece no teatro português de Gil Vicente principalmente na boca de personagens castelhanos. A evolução assumida por Vossa Mercê até originar Você no português foi investigada, em relação ao século XVIII, por Lopes (2001) e, no que se refere aos séculos XVIII e XIX, tal processo de mudança categorial foi analisado por Lopes e Duarte (2003a) e (2003b). No que toca aos séculos XIX e XX, apresentam-se os estudos acerca das estratégias de tratamento nominais e pronominais do português produzidos por Salles (2001), Soto (2001), Nascentes (1950, 1953, 1956), Luft (1957), Said Ali (1937), Basto (1932), Amaral, (1920), Marroquim (1996). O estudo de Lopes (2001), intitulado O Processo evolutivo de Vossa Mercê > Você (Português) e Vuestra Merced > Usted (Espanhol), tem por objetivo comparar o processo evolutivo da forma Você (s) com o da forma Usted (s), considerando que, apesar de terem uma base comum, como defende Cintra (1972), as formas nominais de tratamento Vossa Mercê e Vuestra Merced assumiram comportamentos distintos nas línguas em análise. Os corpora utilizados para a análise são compostos por peças teatrais, entremezes produzidos em castelhano e em português entre os séculos XVI e XIX. Em espanhol, a forma Usted resguarda o valor de cortesia em oposição ao tratamento por Tú que, por sua vez, se constitui como uma estratégia de tratamento mantida em relações sociais marcadas pela informalidade e pela familiaridade. No que diz respeito à língua portuguesa, a forma Você, que proveio da estratégia cortês de tratamento Vossa Mercê, perdeu o seu caráter de cortesia. Assim sendo, funciona como estratégia para fazer referência à segunda pessoa do discurso em situações comunicativas movidas pela informalidade, estando, pois, em concorrência com o pronome de segunda pessoa – Tu. Além disso, acrescente-se o fato de a forma Você já se apresentar, no português brasileiro, como estratégia de indeterminação em construções pessoais (Nos grandes centros urbanos, você vive momentos de violência social.) e com um valor expletivo em construções existenciais (Você não tem comércio no centro da cidade.), como evidenciam as análises de Duarte (1995, 1999, 2003) e de Avelar (2003). Ao comparar o processo de pronominalização de Vossa Mercê com o de Vuestra Merced, Lopes (2001) constata que a mudança categorial se dá de forma mais rápida no espanhol, séculos XVI – XVII, do que no português, séculos XVIII – XIX. Considerando o lento, gradual e paulatino processo de mudança categorial sofrido por Você, observa a autora que, a partir do século XIX, tal forma começa a ocupar posições mais fixas na sentença, funcionando, preferencialmente, na função sintática de sujeito em posição pré-verbal, em oposição a Vossa Mercê, que, por sua vez, se deixa evidenciar com maior variabilidade sintagmática. Com base nos corpora formados por cartas pessoais e por peças populares produzidas em Portugal e no Brasil dos séculos XVIII e XIX, Lopes e Duarte (2003b) se propuseram a refletir sobre a gramaticalização de nominais em português, atentando para a evolução histórica de Vossa(s) Mercê(s) > Você – Vocês em alternância com as formas pronominais Tu – Vós. A partir de uma análise quantitativa, as autoras constatam que, nos textos literários representativos da variedade brasileira do português, Você, em fins do século XIX, invade paulatinamente o sistema pronominal, mostrando-se em concorrência com Tu. Na variedade lusitana do português, em contrapartida, a forma pronominal Tu começa a se sobrepor em relação às outras estratégias de tratamento apresentadas, tornando-se mais produtiva na passagem do século XVIII para o século XIX. Nas cartas pessoais produzidas no Brasil, tem-se uma baixa freqüência de uso de Vossa Mercê no século XVIII, seguida da sua ausência significativa no século XIX. As formas pronominais Tu e Você iniciam, no século XVIII, uma tímida concorrência que é ratificada no século XIX. A baixa freqüência de uso de Vós, nas peças brasileiras do século XIX, aliada ao desuso dessa forma pronominal nas cartas pessoais cariocas, apresentam-se como indícios da dessemantização de Vossa Mercê em favor do aumento da freqüência de uso de Você. Fundamentando sua análise nos corpora compartilhados do projeto Para a História do Português Brasileiro – PHPB –, Lopes e Duarte (2003a), a partir de uma amostra de cartas nãooficiais brasileiras setecentistas e oitocentistas, produzidas no Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia, procuram identificar as formas nominais de tratamento e pronominais usuais nos corpora em análise. Na tentativa de integrar a perspectiva variacionista discutida por Weinreich et alii (1968) e Labov (1994) aos princípios funcionais discutidos por Hopper (1991), as autoras chegaram às seguintes conclusões: 1a) nas relações simétricas, prevalecem, nas cartas setecentistas e oitocentistas, o uso mútuo do pronome Tu (T/T) – 72% –, contrapondo-se às relações sociais [íntimas], nas quais se detecta maior freqüência de Vossa Mercê – 61% – em relação às outras formas de tratamento – Vossa Senhoria, Vossa Excelência – 39%; 2a) em virtude do processo de dessemantização sofrido por Vossa Mercê, a sua contraparte gramaticalizada, Você, mostrou-se produtiva nas relações sociais assimétricas de superior para inferior, principalmente nas cartas pessoais; 3a) a forma nominal de tratamento Vossa Mercê mostrou-se freqüente nos séculos XVIII e XIX nas relações sociais assimétricas de inferior para superior; 4a) a rigidificação da ordem SV, a mistura de formas tratamentais nas cartas pessoais e a presença de co-referentes de 2 a pessoa fornecem indícios de que a gramaticalização de Vossa Mercê se inicia, ainda que lentamente, no século XVIII, implementando-se de forma mais acelerada no final do século XIX, principalmente em relação ao pronome pessoal Vós. Miguel Salles (2001) se propõe a descrever a evolução da mudança no sistema de pronomes do português a partir de uma única peça teatral e de cartas pessoais produzidas no Brasil do século XIX. Pretende explicitar, ainda, os estágios da mudança, detectando as formas de tratamento em variação e mudança no português brasileiro. As estratégias de tratamento inventariadas por Salles podem ser divididas em dois grupos: (1 o) formas de tratamento – Você, Senhor, (em relação de concordância com a 3a pessoa gramatical) Tu, Vós (em relação de concordância com a 2a pessoa gramatical) – e (2o) formas de tratamento reverente – Vossa Senhoria, Vossa Senhoria Reverendíssima, Vossa Excelência, Vossa Excelência Reverendíssima, Vossa Paternidade, Vossa Paternidade Reverendíssima e Vossa Majestade Imperial. O autor constata que a introdução de novas formas de tratamento do interlocutor no Brasil do século XIX conduziu à reformulação do sistema de tratamento da 2a pessoa do discurso a partir de rearranjos gramaticais e de simplificações na conjugação verbal. A reorganização do quadro pronominal do português brasileiro dá-se com o desaparecimento da 2a pessoa do plural – Vós – e com o uso da 2a pessoa do singular – Tu – em relação de concordância com a 3a pessoa gramatical. A partir da análise de cartas brasileiras, Soto (2001) constrói seu estudo acerca das expressões de tratamento pronominal alocutivo no Brasil dos séculos XIX e XX. A autora assume, como ponto de partida para a sua análise, a instabilidade do sistema de tratamentos do português em relação à marcação do lugar do outro – interlocutor – detectada na Carta de Caminha. Constata-se que Você se insere como forma de referência à 2a pessoa do discurso no sistema de pronomes da língua portuguesa, dividindo o seu espaço de atuação com vestígios da forma nominal de tratamento Vossa Mercê – Mecê – e com a forma pronominal Tu. A investigação lingüística das cartas brasileiras novecentistas conduziu Soto (2001) a constatar que o século XX representa o momento de ruptura com um quadro pronominal que previa o Tu como forma licenciada, conforme os preceitos da norma padrão para língua escrita para evocar a segunda pessoa do discurso. Além disso, a autora comprova que o século XX se apresenta como o período em que se dá a configuração do Você como forma de referência ao interlocutor totalmente desligada do sentido de polidez atribuído à sua forma nominal de tratamento originária, Vossa Mercê. A forma Você se apresenta completamente desvinculada da semântica do Poder, compartilhando o seu campo de manifestação no domínio da informalidade em concorrência com a forma pronominal – Tu. Ao descrever os tipos de expressões nominais de tratamento usuais no Brasil dos séculos XIX e XX, Nascentes (1950) inicialmente divide as fórmulas de tratamento em três tipos: (1) tratamentos oficiais e respeitosos, (2) tratamentos a pessoas da classe eclesiástica e (3) tratamentos da vida comum. Tendo em vista os corpora propostos e os períodos históricos em análise, faz-se necessário expor apenas a descrição dos tratamentos oficiais e respeitosos (primeiro tipo) e dos tratamentos da vida comum (terceiro tipo), pois os comentários do autor servem como hipóteses básicas para a composição deste estudo em cartas oficiais e não-oficiais. No que se refere aos tratamentos oficiais e respeitosos, o autor afirma que as formas nominais de tratamento Vossa Excelência e Vossa Alteza se aplicavam aos membros da Corte Portuguesa, constituindo-se, assim, como formas usadas para manifestar, através do discurso, a soberania da Coroa Portuguesa em relação a seus súditos. A fórmula de tratamento Vossa Excelência, segundo Nascentes (1950), foi destinada à realeza portuguesa a partir da lei instituída em 16 de setembro de 1597. Em terras brasileiras, tal expressão nominal de tratamento foi substituída por Majestade Imperial, conforme decreto imperial de 13 de outubro de 1822, manifestando-se como estratégia de tratamento indicada aos imperadores D. Pedro I e D. Pedro II desde o período imperial até a data da proclamação da república brasileira. Ainda em relação às formas de tratamento respeitoso que vigoravam na língua portuguesa do século XIX, apresenta-se a expressão de tratamento Vossa Alteza que, por sua vez, a partir de lei portuguesa instituída em 1597, destinava-se aos príncipes e princesas da Casa Real Portuguesa além de aplicar-se a filhos, genros, noras e cunhados do rei. A forma nominal Vossa Senhoria, instituída através de Alvará de 17 de maio de 1797, conforme a descrição de Nascentes (1950), constituía expressão cerimoniosa de tratamento a pessoas ilustres da sociedade, tais como desembargadores, barões, brigadeiros. A expressão de tratamento em análise prestava-se a fazer referência aos cabidos das igrejas arquiepiscopais e episcopais do governo imperial. Por um decreto, em 1861, tem-se a determinação de uso de Vossa Senhoria como forma de tratamento cortês entre generais oficiais do Exército e da Armada. Generalizou-se, assim, com a República Brasileira, o uso de Vossa Senhoria para o tratamento de cortesia entre cidadãos da sociedade. A forma Vossa Mercê é apresentada por Nascentes (1950) como uma forma de tratamento respeitoso em vigor no Brasil dos séculos XIX e XX. Segundo o autor, trata-se de uma expressão destinada ao tratamento de coronéis, tenentes-coronéis, majores, capitães, tenentes e alferes, conforme autorização legal estabelecida em 02 de agosto de 1842. O pronome Vós somente sobrevive na língua escrita, o que aponta para o seu desuso como forma de tratamento cortês na dinâmica das relações interpessoais travadas no Brasil dos séculos XIX e XX. Dentre as estratégias de tratamento da vida comum descritas por Nascentes (1950), temse o Você como forma de tratamento entre iguais, disseminada por todo o Brasil do século XIX e XX, à exceção da Região Sul em que predomina o uso do pronome Tu. Acrescente-se que, nas relações de superior para inferior, as formas Você, Tu e Senhor apresentam-se como estratégias usuais no Brasil do período em estudo. O autor faz referência à mistura de tratamentos que ocorre no português do Brasil dos séculos XIX e XX. É comum a mistura da forma de tratamento Vossa Excelência com a forma pronominal Vós – “Peço que Vossa Excelência vos digneis ...”. No que diz respeito à confusão entre as formas Você e Tu, é interessante observar que, apesar de o autor mostrar-se atento às transformações sofridas pela língua portuguesa, produz uma análise impressionística acerca de uma possível motivação para a mistura de pronomes em português e para o não preenchimento da posição do clítico de 3a pessoa com os pronomes oblíquos átonos o, a. O tratamento de você se mistura com o de tu. Eu disse que o brasileiro julga bruto o tratamento por tu. Julga bruto, porém, no pronome recto. No pronome oblíquo, emprega-o sem sentir brutalidade. Comummente ouvem-se frases deste teor: “Você esteve na praia? Eu tambem estive, mas não te vi lá.” Explica-se facilmente. Como pronome objectivo te é mais leve do que você. Se se empregasse você, a frase ficaria: “Eu também estive, mas não vi você lá. Frase pesada. O brasileiro não usa o, a, com caso objectivo de você. Usa o mesmo você do caso sujeito. Há certa repulsa por estas formas átonas. Parecem-nos vazias. (NASCENTES, 1950:21.) Ao estudar o valor da depreciação nas formas de tratamento no português, Luft (1957) considera que a depreciação se dá por desvio da norma que estabelece o uso de uma dada expressão de tratamento a depender da posição social ocupada pelo falante na sociedade, o que pode ocorrer não só por excesso de cerimônia (ironia), mas também por excesso de familiaridade. Caso se admita que a forma pronominal Vós, usual em Portugal entre os séculos XIV e XVI, mostra-se em desuso na sociedade portuguesa do século XX, depreendem-se os tons de ironia ou de depreciação assumidos pelo locutor em relação ao seu interlocutor. Ao tratar por Tu a quem se deve dirigir por expressões de tratamento cerimonioso como, por exemplo, Senhor, Vossa Excelência, Vossa Senhoria, observa-se, pois, a depreciação com que se dirige à 2a pessoa do discurso por excesso de informalidade. Luft (1957:204) afirma ainda que “(...) Vossa Mercê e Vosmecê são tratamentos em recuo, que tendem a desaparecer. Eram dirigidos a pessoas de condição mediana ou inferior, pessoas as quais não se queria tutear. No Brasil, era também com essa fórmula que filhos se dirigiam aos pais, e os netos, aos avós. Hoje, pode-se dizer que está caindo em desuso, e soa verdadeiramente arcaica. E é talvez esta a explicação para o seu sabor depreciativo.(...)” Criou-se, em algumas regiões de Portugal, uma rejeição à forma de tratamento resultante do processo de gramaticalização de Vossa Mercê – Você –, entendendo-a como expressão de tratamento desrespeitosa. No Brasil, Você apresenta-se como forma de tratamento entre iguais e de superior para inferior. Contudo, ainda é possível empregá-la com quem não se pode relacionar-se informalmente. Assim sendo, é possível detectar o tom depreciativo assumido por Você tanto em terras brasileiras quanto em terras lusitanas, espaços geográficos em que a língua portuguesa é a língua oficial. Com relação à forma pronominal Tu, observa-se que, apesar de essa forma se apresentar, preferencialmente, no Brasil como fórmula de tratamento íntimo, também pode assumir um tom depreciativo, se usada em contextos que somente admitem formas de tratamento cerimonioso. Conforme a análise de Sá Nunes (apud Luft, 1957:204), Tu assume manifestações completamente díspares: “na linguagem afetiva, íntima e de igual para igual, ou então no falar enfático, energético e, por vezes, escarninho ou irônico.” Basto (1932) descreve as formas nominais de tratamento funcionais no português europeu do século XX, fazendo referência, inclusive, às fórmulas de tratamento usadas no Brasil. O autor constata que Vossa Excelência constitui a fórmula de tratamento cerimonioso mais disseminada pela sociedade lusitana na primeira metade do século XX. Segundo Rodrigo de Sá (apud Basto, 1932), Vossa Excelência é de caráter respeitoso e formal, usada entre os componentes da milícia militar da sociedade portuguesa, mais especificamente, para o tratamento desde major até instâncias superiores do poderio militar. Ainda em relação às formas respeitosas de tratamento, tem-se Vossa Senhoria, cujo emprego é recorrente, na primeira metade do século XX, entre os comerciantes da sociedade portuguesa e entre os componentes das tropas militares que, conforme Rodrigo de Sá, se dá desde capitão a alferes (subalternos). Basto afirma ainda que, no século XX, Vossa Mercê já não mais é usual entre os portugueses que preferem Você ou ainda as manifestações de tal forma desgastadas foneticamente: vossemecê, voss’mecê, vosmecê, vosmicê e você. Acrescente-se o fato de a forma voncê se manifestar com maior freqüência no Algarve, Alentejo e Trás-os-Montes. No que diz respeito às relações sociais que embasam as ocorrências da fórmula de tratamento Vossa Mercê, afirma o autor que, nas relações entre pais e filhos, os pais, na região da Beira, são tratados por Vossemecê, o que permite entender que, em relações sociais de inferior para superior, ainda persiste a fórmula de tratamento mais respeitoso, ao menos, em uma região (Beira) da sociedade lusitana do século XX. Em relação ao Brasil, as fórmulas vossuncê, vancê e vacê funcionam como estratégias de tratamento preferidas na região do Amazonas e a forma mecê apresenta-se como uma forma usual no Rio Grande, Paraná e São Paulo. Para Basto (1932), a forma Você e variantes (vossemecê) foram evitadas como forma de tratamento cerimonioso. No entanto, na primeira metade do século XX, o tratamento por Você apresenta-se como uma forma de bom tom. Assim sendo, o autor se coloca a favor do que denomina o favoristimo da moda, pois a adoção do Você nas relações interpessoais acarretaria o desaparecimento da multiplicidade de tratamentos que vigoraram na sociedade portuguesa, constituindo-se, portanto, numa tentativa de simplificação do complexo sistema de tratamento do português. No que diz respeito ao Vós, o autor afirma que essa fórmula de tratamento se apresenta em desuso na sociedade lusitana do século XX. Considerando o desuso do pronome Vós, que foi tão usual como forma de tratamento respeitoso no passado lingüístico da língua portuguesa, o autor apresenta algumas regiões, no norte de Portugal e nos Açores, como regiões específicas em que o povo ainda conserva seu uso. Interessante observar que, em contextos de rezas e nas cantigas populares portuguesas, se verifica a mistura entre as formas Tu e Vós. Ainda em relação à forma de tratamento Vós, Basto (1932) põe em evidência o fato de trocar-se Vós por Vocês no português europeu do século XX, o que, segundo o autor, se dá porque o falante português ao fazer uso da forma Vocês ainda resguarda, na sua memória lingüística, a forma de tratamento Vós – “Vocês vindes ou não vindes ?” As relações sociais que contextualizam o uso de Tu na sociedade portuguesa do século XX, segundo Basto, são movidas pela informalidade. Dessa forma, mostra-se recorrente o tratamento por Tu nas relações sociais solidárias estabelecidas entre marido e mulher, irmãos, primos e condiscípulos. Nas relações sociais de superior para inferior, por sua vez, há evidências do Tu no tratamento dos pais aos filhos, dos tios aos sobrinhos e aos criados quando são jovens. O olhar de Said Ali (1937) sobre as formas de tratamento da língua portuguesa resulta em um artigo intitulado De eu e tu a familiaridade. Trata-se de um estudo descritivo que atenta para as fórmulas de tratamento usuais no português europeu do século XX, observando as suas manifestações em séculos passados. Em português, a referência à segunda pessoa do discurso dá-se, preferencialmente, por Tu, Você, O Senhor em relação de concordância gramatical com a 3a pessoa gramatical – Tu acha, Você sabe, O Senhor pode. Enquanto Tu e Você, no português brasileiro, funcionam como estratégias informais para evocar o interlocutor, as formas respeitosas Senhor e Senhora funcionam, na primeira metade do século XX, como estratégias de cortesia tanto na modalidade falada, quanto na modalidade escrita da língua portuguesa. Os glossários regionais em análise, nesta revisão histórico-descritiva, estão representados pelos estudos descritivistas do português brasileiro realizados por Amadeu Amaral – O Dialeto Caipira – em 1920, por Antenor Nascentes – O Linguajar Carioca – em 1953, e por Mário Marroquim – A Língua do Nordeste –, em 1996. Trata-se de investigações lingüísticas que se comprometeram com a descrição do falar caipira, do falar carioca e do falar popular de Alagoas e de Pernambuco, respectivamente, apesar de também tecerem considerações acerca da modalidade brasileira do português, distinguindo-a do português europeu a partir da sua descrição nos níveis fonético-fonológico, morfossintático e semântico-lexical. Esses estudos representam o início da sistematização de observações acerca da realidade lingüística multifacetada do português brasileiro, embora ainda se apresentem vinculados à tradição filológica clássica. Em o Dialeto Caipira, Amadeu Amaral apresenta, como seu objeto de estudo, a norma de uso de falantes paulistas não cultos, entendendo-a como “um aspecto da dialectação portuguesa em São Paulo”. (AMARAL, A. 1920:14). No que diz respeito aos pronomes, Amaral descreve o emprego do Tu como essencialmente enfático, mantendo-se em relação de concordância com a 3a pessoa do singular – “tu bem sabia, tu vai, tu disse”. Em relação à 2a pessoa do plural, o autor apresenta o pronome Vós como uma forma em desuso que, por sua vez, esporadicamente, pode vir a ser detectada no dialeto caipira. O Vós, conforme a descrição do autor, tem sido substituído por vacê na realidade lingüística do interior de São Paulo. As formas a gente e uma pessoa – ambas equivalentes ao francês on – e Você aliada às suas variações – vacê, vancê, vossuncê, vassuncê, mecê, ocê – se deixam evidenciar na fala dos não cultos. Antenor Nascentes, em o Linguajar Carioca, submete a língua das classes não cultas à apreciação crítica, descrevendo-as e analisando-as sob a justificativa de que é através do falar dos não cultos que se torna possível a descrição da língua portuguesa em sua espontaneidade. Ao descrever a norma de uso em relação aos Pronomes no Rio de Janeiro, o autor afirma que a forma pronominal de 2a pessoa do discurso se explicita através do Você – passível de assumir as formas – vancê, ocê –, do pronome Tu, que é usado de forma enfática com o caráter de depreciação – “Tu vais ver quem eu sou!” – e do pronome Vós – Vóis – que é de uso restrito ao tom retórico do discurso entre os falantes cultos. Para o lugar que o Vós deixou vago no sistema lingüístico surgem as formas vocês e senhores. Com o caráter de indefinição, a forma A gente é usada em substituição ao Nós, conforme a descrição de Nascentes (1953). Em estudo intitulado A Língua do Nordeste, Mário Marroquim se dispõe a estudar o português popular de Alagoas e Pernambuco através da literatura e da sua experiência de vida como falante nativo do nordeste. Ao abordar os Pronomes, o autor afirma serem Tu, Você e Vós, em ordem decrescente, os preferidos pela comunidade lingüística nordestina. A referência à 2 a pessoa do discurso com o Tu dá-se de forma recorrente entre os nordestinos como estratégia informal de conduzir o diálogo. O Você se dá entre as classes cultas como estratégia familiar para fazer referência ao interlocutor. Em relação ao plural, a forma Vocês mostrou-se freqüente entre os nordestinos, embora Marroquim ressalte a persistência do pronome Vós como forma de tratamento entre o povo dessa região do Brasil. Segundo o autor, os falantes alagoanos e pernambucanos empregam o Vós como forma tratamental usada no cotidiano, mantendo-se em relação de concordância com a forma verbal na 3a pessoa do singular, conforme é possível detectar na poesia popular – “Quando vós chega zangado, ella progunta o que é”. Menon (1995) discute a introdução do par Você/Vocês para o tratamento da 2a pessoa em coocorrência com o par Tu/Vós. A autora admite que Vocês se incorporou ao paradigma pronominal do português, refletindo a expressão da noção de plural em relação à 2 a pessoa do discurso – Você/Vocês – a partir da aplicação da regra de flexão de número em português. A pluralização pelo processo flexional já não se dava com relação às legítimas formas pronominais – Tu/Vós –, uma vez que estas se constituem a partir de vocábulos completamente diferentes entre si. No entanto, a autora reconhece que persiste no português o uso do plural respeitoso em relação à forma Vocês, mesmo que não tenha sobrevivido com o mesmo grau de formalismo característico do uso da forma pronominal Vós no português do século XIV. Na forma Vocês, ainda sobrevivem resquícios semânticos da estratégia respeitosa que a originou (Vossa Mercê), que, por sua vez, entrou no sistema do português para substituir o plural majestático assumido por Vós. A autora confirma sua perspectiva tecendo a seguinte indagação: Quem ainda não se sentiu levemente embaraçado em se decidir entre o uso de você e o de o (a) senhor (a), ao telefonar a uma empresa ou a chegar numa loja ou escritório e perguntar à pessoa: ‘vocês fazem isso?’ ou ‘vocês fornecem o produto x?’ ou ‘vocês dão desconto?’ embora se dirigindo a uma única pessoa ? (MENON, 1995:96.) Nesta revisão histórico-descritiva, partiu-se da indefinição da gramática normativa em relação às propriedades que diferenciam um pronome pessoal de um pronome de tratamento em português, perpassando por estudos que resgatam a complexa história de formação das estratégias nominais de tratamento e do valor que assumiram na sociedade portuguesa e brasileira ao longo do seu período de formação. Objetiva-se, pois, com base na análise proposta, contribuir para a discussão dos traços peculiares à forma de tratamento Vossa Mercê e à forma pronominal Você em língua portuguesa, identificando também se os valores assumidos pelas diversas estratégias de tratamento levantadas em cartas setecentistas e oitocentistas escritas no Rio de Janeiro ratificam, ou não, as conclusões dos trabalhos revisitados. 3. OS CORPORA. O objetivo da edição de corpora confiáveis ao estudo da configuração da norma brasileira do português, atentando-se para o resgate da história da língua portuguesa no Brasil dos séculos XVIII e XIX, constitui o fator motivador da presente investigação lingüística. Segundo Barbosa (1999:14), “ao estudo da sociedade americana falante do Português enquadra-se a questão do Português do Brasil, ao passo que, ao estudo da língua da comunidade européia, corresponde a questão do Português no Brasil.” A discussão acerca do Português no Brasil pode se dar tanto em stricto sensu quanto em lato sensu. Em lato sensu, a noção de Português no Brasil é determinada pelo aspecto geográfico, ou seja, privilegia-se a busca por textos produzidos no território brasileiro sem distinção da origem do redator, em virtude de não se ter informações precisas acerca da nacionalidade dos autores dos textos. Em stricto sensu, a língua portuguesa no Brasil é reflexo da produção escrita de portugueses que residiam no Brasil em convivência com lusófonos (brasileiros) na América Portuguesa. Como não foi possível se obter informações sobre a nacionalidade de todos os autores das cartas setecentistas e oitocentistas que representam os corpora em discussão, admite-se apenas o critério geográfico como fator determinante para se entender que tais cartas parecem refletir o Português no Brasil. Para cumprirem-se às diretrizes de trabalho propostas pelo Projeto Para uma História do Português Brasileiro (PHPB-RJ), voltaram-se os esforços para a organização de corpora fidedignos à expressão do processo de gestação do português brasileiro na América Portuguesa. Visitas constantes à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN-RJ), ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e ao Arquivo Nacional (AN) resultaram no levantamento e transcrição de cartas manuscritas no Rio de Janeiro durante a segunda metade do século XVIII e ao longo do século XIX. Segundo Barbosa (1999:106), para a construção de corpora confiáveis ao estudo lingüístico do português no Brasil, faz-se necessário tanto explicitar o contexto sóciohistórico, quanto o contexto de escritura dos textos a serem editados a fim de expor à comunidade acadêmica uma amostra que seja reflexo expressivo de um dado momento histórico-social. Nessa altura em que se debruçam por sobre os diversos escritos produzidos na América Portuguesa pesquisadores tanto de linhas empiricistas, quanto de mentalistas tornou-se imprescindível editarem-se textos em prosa não literária que não apresentem semelhantes limitações às diversas abordagens possíveis com os dados deles oriundos. Mais que isso, edições que avancem ao máximo na descrição, portanto, não só do contexto sócio-histórico do texto, mas na das condições de produção, relação entre emissor e receptor, modalidade, estilo etc, tornam-se imperativas para estabelecer confiabilidade e fidedignidade ao material posto à disposição da comunidade acadêmica dedicada às questões acerca da mudança lingüística. (BARBOSA, 1999:106.) A busca por textos não-literários, com base na proposta de tipologia textual idealizada por Barbosa (1999), resultou na organização das cartas manuscritas em análise a partir de textos de circulação pública – cartas da administração pública – e de textos de circulação privada – cartas da administração privada e cartas particulares. Dada a dificuldade ou, em muitos casos, a impossibilidade de identificação da nacionalidade e/ou naturalidade de todos os autores das cartas manuscritas no Brasil setecentista e oitocentista, consideraram-se as cartas produzidas no Rio de Janeiro como fontes para o estudo do português no Brasil. Acredita-se que seja possível retomar as palavras de Barbosa (1999:15), ao expor a aplicabilidade da sua perspectiva aos estudos lingüísticos acerca do português brasileiro: (...) esta pesquisa contribui também, indiretamente, para os estudos diacrônicos do Português do Brasil: só se pode saber o que seria o Português do Brasil naquela época se se souber o que viria a ser o Português no Brasil. (BARBOSA, 1999:15) Admite-se que, segundo Cambraia e Lobo (apud Lobo 1998:179), “editar um texto consiste em escolher-se, do ponto de vista formal, uma maneira particular de o divulgar, a qual será basicamente determinada a partir do público leitor que se queira atingir.” Assim sendo, acredita-se que uma edição fac-similar diplomático-interpretativa de textos produzidos no Brasil dos séculos XVIII e XIX corresponda aos anseios do lingüista-pesquisador ávido por fontes confiáveis ao estudo da formação da norma brasileira do português. Barbosa (1999: 110) se propõe a assumir uma tipologia de textos do Brasil colônia no lugar de uma taxonomia, uma vez que a abordagem taxonômica dos textos provocaria alguns problemas: “(1) o problema das contradições e superposições de critérios do fazer tipológico comparativo; (2) o do comprometimento e confusão criados pelo uso consagrado de algumas terminologias, (3) o da imprecisão das ‘tipologias’ arquivísticas; (4) o de saber-se de que maneira as variedades lingüísticas estão retratadas, naquela época, pela modalidade escrita, distinguindo-se, pelos dados, que fatos poderiam dizer respeito às normas de uso e, que outros, ao estilo; (5) o de estar-se em descoberta da sociedade colonial brasileira, graças à grande massa de documentação inédita que tem vindo à luz.” Considerando o desgaste das nomenclaturas dos textos literários já consagradas – textos narrativos, descritivos, argumentativos e dissertativos – o autor admite o modo de circulação do documento como critério que conduzirá, de forma mais coerente, à proposição da sua tipologia. Assim sendo, o modo de circulação dos documentos funciona como o parâmetro responsável por identificar a especificidade dos textos: os de circulação oficial – cartas da administração pública –, os de circulação privada – cartas da administração privada – e os particulares. Retome-se ainda a indagação tecida por Lobo (2001a:110-111 apud Oliveira 2003) sobre a edição de cartas particulares oitocentistas do Recôncavo Baiano, a fim de entender a relevância da edição de corpora para o estudo da formação do português brasileiro: “Qual a especificidade do corpus que aqui se apresenta em face de um corpus geral diacrônico para o estudo da constituição histórica do português brasileiro?” Julga-se, que a partir dos textos escritos em terras brasileiras1, seja possível contribuir para a análise da face assumida pela língua portuguesa na realidade sócio-histórica colonial e imperial do Brasil. A esses corpora que vieram elucidar o português no Brasil, propõese, nessa dissertação, acrescentar uma amostra composta por sessenta cartas manuscritas no Rio de Janeiro setecentista e oitocentista. As palavras de Castro (1996:139 apud Lobo 1998:180) ressaltam inclusive a importância dos recortes temporal e diatópico na constituição de corpora para estudos comparativos entre a realidade lingüística lusitana e a brasileira da língua portuguesa. (...) para nos sentirmos todos mais à vontade neste domínio, que interessa tanto a brasileiros como a portugueses, seria conveniente desenvolver nos estudos lingüísticos sobre o português uma prática de análises comparatistas em que as estruturas brasileiras e portuguesas fossem, por sistema, confrontadas, para não acontecer que se afirme a diferença na ausência, ou no desconhecimento, de um dos termos da comparação. (CASTRO, I., 1996:139.)2 Em consonância com o pensamento de Castro (1996), avalia-se como positiva a tarefa de contribuir para a composição de corpora que evidenciem o português no Brasil, aliada a outras iniciativas que possibilitem o reconhecimento da variedade do português brasileiro, como é o caso da edição de documentos produzidos pelos africanos e seus descendentes confeccionada por Oliveira (2003). Acrescente-se ainda que, a partir de estudos comparativos entre os traços do português europeu em oposição aos do português brasileiro, seja possível entrever-se, criteriosamente, a expressão brasileira da língua portuguesa. Adotando-se tais critérios, partiu-se para a edição diplomático-interpretativa de sessenta cartas produzidas no contexto sócio-histórico carioca da segunda metade do século XVIII e do século XIX, conforme expõe o quadro geral dos corpora a seguir exposto. 1 Destacam-se tanto as cartas de comércio produzidas no Brasil da segunda metade do século XVIII (Barbosa, 1999), quanto as cartas particulares do Recôncavo Baiano do século XIX (Lobo, 2001). 2 CASTRO, I. Para uma história do português clássico. DUARTE, I.; LEIRIA, I. (Orgs.) Actas do Congresso Internacional sobre o Português. Lisboa: Colibri, 1996, p. 135-150. OS CORPORA CARTAS PRODUZIDAS NO RIO DE JANEIRO (PNB - SÉCULO XVIII) CARTAS DE CIRCULAÇÃO PÚBLICA CARTAS DE CIRCULAÇÃO PRIVADA 15 Cartas da BN-RJ 16 cartas do AN Sub-Total: 31 Cartas CARTAS PRODUZIDAS NO RIO DE JANEIRO (PNB - SÉCULO XIX) CARTAS DE CIRCULAÇÃO PÚBLICA CARTAS DE CIRCULAÇÃO PRIVADA 12 cartas da BN-RJ 15 Cartas 14 cartas da BN-RJ 15 Cartas 03 cartas do IHGB 01 carta do IHGB Sub-Total: 30 Cartas Total de Cartas Transcritas: 61 Cartas Quadro 1: Os Corpora. Durante a composição dessa amostra de cartas manuscritas diplomático-interpretativamente editadas com seus respectivos fac-símiles, “saltaram aos olhos” as diferentes formas nominais de tratamento localizadas e, em particular, a forma nominal de tratamento Vossa Mercê ao lado de sua contraparte gramaticalizada Você. Estava-se, pois, diante de um fenômeno lingüístico a ser descrito e analisado face à realidade lingüística do português em terras brasileiras. Concorda-se com Faraco (1996:51), ao admitir que “as formas de tratamento de interlocutor nas diferentes línguas naturais têm interessado particularmente aos antropólogos e aos lingüistas”. Enquanto para aqueles é possível, através da análise das formas de tratamento, depreender a organização social e a cultura de uma dada comunidade lingüística, para estes é possível analisar as estratégias lingüísticas usuais para evocar o interlocutor e as suas conseqüências na reorganização do sistema de tratamento de base nominal e pronominal da língua portuguesa no Brasil. 3.1 Sobre as cartas de circulação pública no Rio de Janeiro setecentista e oitocentista. Resgatando-se as macro-categorias textuais propostas por Barbosa (1999:149), expõe-se a sua concepção sobre textos de circulação oficial para justificar a relevância de uma edição de manuscritos que também privilegie tais tipos de textos. Devemos entender por documentos da administração colonial em circulação pública tanto aqueles de caráter deliberativo oficial, quanto os de requerimento pessoal junto à estrutura de poder, em que pelo menos um dos interessados esteja na condição de pessoa jurídica ou de representação oficial de Estado. (BARBOSA, 1999:149.) Com base na categorização dos textos não-literários pensada por Barbosa (1999), entendem-se os textos de circulação oficial como aqueles direcionados às instâncias do Poder no Brasil colônia – segunda metade do século XVIII – e ao Império Brasileiro desde 1822 até fins do século XIX. Em conformidade com a perspectiva de análise adotada pelo autor, “o conhecimento sistemático dessa administração pública que produziu milhares de documentos pode seguir três vias: os aspectos temporais, avaliando as mudanças administrativas implantadas ao longo do período colonial; os aspectos hierárquicos, avaliando as relações de subordinação entre cargos e órgãos; e, por fim, os aspectos temáticos, ou seja, classificando os textos pelas diversas funções em que se subdividiu a administração colonial.” (Barbosa 1999:149). Constata-se, pois, a aplicabilidade desta investigação lingüística que se volta para textos da administração pública, uma vez que a análise dos aspectos hierárquicos e temporais poderá fornecer indícios acerca dos tipos de interações sociais estabelecidas entre o remetente e o destinatário das missivas oficiais trocadas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX. A tabela 1 apresenta o conteúdo das cartas oficiais editadas na presente investigação, bem como os dados sobre autoria, local e data de escritura do documento, a fim de permitir a observância do perfil social do remetente e do tom oficial das cartas manuscritas na realidade sócio-histórica do Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX. CARTAS DE CIRCULAÇÃO PÚBLICA (SÉCULO XVIII) N REMETENTE 1. Joaquim Alves Meneses (Nacionalidade não identificada) O 2. 3. 4. Conde de Rezende (Português) Afonso Botelho de Sampaio e Souza (Português, Fidalgo da Casa Real, cf. SILVA, I. F.; SOARES, E., 1958) Afonso Botelho de Sampaio e Souza (Português, Fidalgo da Casa Real, cf. SILVA, I. F.; SOARES, E., 1958) 5. Raimundo José de Sousa (Nacionalidade não identificada) 6. Raimundo José de Sousa (Nacionalidade não identificada) 7. Marquês do Lavradio (Português) 8. J. Be. do Rio de Janeiro (Nacionalidade não identificada) 9. J. Be. do Rio de Janeiro (Nacionalidade não identificada) CONTEÚDO Carta a Luís Antônio de Souza Botelho Mourão, governador da capitania de São Paulo, tratando da próxima vinda dos governadores de Pernambuco, Minas Gerais e Bahia e da chegada de uma Nau da Índia. Carta do Conde de Rezende a Dom Fernando José de Portugal pedindo que a Bahia socorresse o Rio de Janeiro em relação ao problema da falta de farinha. Carta de Afonso Botelho de Sampaio e Souza ao governador da Capitania de São Paulo, Luís Antônio de Souza Botelho Mourão, relatando sua visita ao Marquês de Lavradio e a conversa que haviam tido sobre a defesa do Iguatemi. Carta de Afonso Botelho de Sampaio e Souza ao governador da Capitania de São Paulo, Luís Antônio de Souza Botelho Mourão, tratando do interesse manifestado pelo Marquês de Lavradio e Dom Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho em relação às questões referentes à Capitania de São Paulo além de transmitir suas opiniões sobre a defesa do Iguatemi. Carta do Ajudante de ordens Raimundo José de Sousa ao governador da capitania de São Paulo, Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, comunicando sua chegada àquela cidade e relatando os assuntos tratados no seu encontro com o Marquês Vice-Rei entre os quais estavam a saída de tropas para Iguatemi e a construção de uma fábrica de ferro. Carta do Ajudante de ordens Raimundo José de Sousa a Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, governador da capitania de São Paulo, transmitindo notícias da posse de Antônio Carlos Furtado de Mendonça no governo de Minas Gerais e da morte de Dona Maria Antônia de S. Boaventura além de tratar de assuntos referentes à extração do cobre e mineração de pedras preciosas. Carta do Marquês do Lavradio, Vice Rei do Brasil, ao capitão engenheiro Francisco João Roscio determinando-lhe que passasse prontamente para o continente do Rio Grande, a fim de fazer lá as obras necessárias à defesa da região. Carta de J. Be. do Rio de Janeiro a João Henrique Böhm felicitando-o pela saída dos castelhanos dos domínios do Rio Grande. Carta de J. Be. do Rio de Janeiro a João Henrique Böhm informando que o Padre Luís de Medeiros Correa não chegou ainda ao “Continente do Rio Grande”. DATA RJ, 09.05.1768. RJ, 18.02.1773. RJ, 20.03.1773. RJ, 21.03.1773. RJ, 21.03.1773. RJ, 26.03.1773. RJ, 15.02.1774. RJ, 28.04.1776. RJ, 15.01.1777. 10. 11. 12. 13. 14. 15. J. Be. do Rio de Janeiro (Nacionalidade não indentificada) Carta de J. Be. do Rio de Janeiro a João Henrique Böhm referente ao vigário Manoel RJ, 15.01.1777. Francisco. Carta de J. Be. do Rio de Janeiro a João e J. B . do Rio de Janeiro Henrique Böhm agradecendo a notícia sobre os RJ, 02.09.1777. (Nacionalidade padres Manoel Francisco da Costa e Luís de não identificada) Medeiros Correa. Luis de Vasconcelos e Sousa Carta do Vice Rei do Brasil ao Conde de (Português (Lisboa), Vimieiro remetendo instrução ao juiz de fora de RJ, 03.04.1784. cf. Enciclopédia Luso-Brasileira, Santos sobre a capitania de São Vicente. o 17 Vol.) Carta do Juiz de fora de Santos, Marcelino Pereira Cleto Cortez da Silva e Vasconcelos, ao Marcelino Pereira Cleto Conde de Vimieiro agradecendo sua Cortez da Silva e Vasconcelos interferência em despacho para o Porto Seguro RJ, 20.02.1788. (Nacionalidade e depois para a ouvidoria do Rio de Janeiro e não identificada) estimando que tivesse recebido os documentos enviados sobre a capitania de São Vicente. Carta do Conde de Rezende a Dom Fernando José de Portugal informando que o Bacharel RJ, 17.11.1791. Conde de Rezende José de Sá Bitancourt fora considerado inocente (Português) da Conjuração Mineira e fora posto em liberdade. Carta do Conde de Rezende a Dom Fernando José de Portugal, Governador e Capitão RJ, 20.03.1796. Conde de Rezende General da Bahia, comunicando as providências (Português) que tomara para socorrer a Bahia na esterilidade pela qual passava. CARTAS DE CIRCULAÇÃO PÚBLICA (SÉCULO XIX) N O 1. 2. 3. 4. 5. REMETENTE Infante Almirante General Pedro Carlos (Nacionalidade não identificada) Manoel José da Costta, (Brasileiro (PE), cf. SILVA, I. F.; SOARES, E., 1958.) Francisco Xavier Peres. (Nacionalidade não identificada) José Luís Alves. (Nacionalidade não identificada) Duarte Mendes de Sampaio Fidalgo (Nacionalidade não identificada) Infante Almirante General (Nacionalidade não identificada) Conde de Linhares (Português, cf. Enciclopédia Luso-Brasileira, 12o Vol.) CONTEÚDO DATA Carta do Infante Almirante General Dom Pedro Carlos ao Conde da Ponte, Governador e Capitão General da Bahia, sobre o arsenal RJ, 12.08.1808. daquela cidade. Demarcação dos limites da cidade do Rio de RJ, 15.10.1808. Janeiro. Carta de Duarte Mendes de Sampaio Fidalgo ao Conde da Palma solicitando um emprego para RJ, 28.02.1811. Manuel Gomes de Moura. Carta do Infante Almirante General ao Conde dos Arcos sobre os tipos de embarcações mais RJ, 24.04.1812. apropriados à defesa da capitania da Bahia. Carta do Conde de Linhares ao Conde de Palma tratando de remessa de artífices para a fábrica RJ, 17.04.1811. de armas. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. Manoel Jacinto Nogueira da Gama Carta de Manoel Jacinto Nogueira da Gama (Brasileiro, 08.09.1765 – São João Del Rei (MG), 15.02.1847., dirigida ao Conde de Aguiar versando sobre o projeto de sua autoria e a reforma tributária. cf. Dicionário das Famílias Brasileiras Vol II, p. 1626.) Carta do Decano da Real Capela Fluminense Monsenhor Joaquim Nóbrega Cao’ d’ Aboim Joaquim Nóbrega Cao’ d’Aboim. dirigida a Sua Majestade sobre irregularidades verificadas na eleição do Cabido do Rio de Janeiro. Carta de José Clemente Pereira dirigida a José José Clemente Pereira Bonifácio de Andrada e Silva apresentando (Português (Adem), cf.. SILVA, esclarecimentos sobre o cumprimento do I. F.; SOARES, E., 1958, Compromisso da Irmandade do Divino Espírito Tomo IV, p. 391.) Santo. José Bonifácio de Andrada e Silva Carta oficial de José Bonifácio de Andrada e (Brasileiro, Santos, 1763 – Niterói, 1838, cf. Enciclopédia Silva concedendo o Hábito da Ordem de São Bento de Aviz a Jose Francisco de Andrade Luso-Brasileira, 3o Vol. e cf., Almeida Bonjardim. SILVA, I. F.; SOARES, E., 1958, Tomo IV, p. 296.) Carta de Miguel Calmon de Pin e Almeida dirigida a José Clemente Pereira informando Miguel Calmon du Pin sobre a remessa de ofício da Junta da Fazenda e Almeida da Província da Bahia e sobre o pagamento do (BA, 1796, cf.. SILVA, I. F.; tempo em que o Cônego Manoel Dendê Bias SOARES, E., 1958, serviu de membro do conselho interino do Tomo VI, pág.229.) Governo, na vila de Cachoeira, localizada na Bahia. Aureliano de Souza e Oliveira (Visconde de Sepetiba) Carta de Aureliano de Souza e Oliveira, (Português, Colônia de Visconde de Sepetiba, ao Conselheiro Manoel Sacramento, 16.06.1762, cf. José Maria da Costa e Sá remetendo-lhe uma Dicionário das Famílias carta imperial. Brasileiras Vol II, p. 2144.) Conde de Irajá (Manuel do Monte Rodrigues de Carta do Conde de Irajá, Bispo do Rio de Araújo – Recife, 17.03.1798 – Janeiro, ao Conselheiro Nabuco de Araújo, PE, 11.06.1863 – , cf. Dicionário Ministro da Justiça, acerca dos padres Manuel das Famílias Brasileiras, Ramos Duarte e Demétrio João Vieira Falcão. Volume II, p. 1945.) Conde de Irajá (Manuel do Monte Rodrigues de Carta do Conde de Irajá, Bispo do Rio de Araújo – Recife, 17.03.1798 – Janeiro, ao Conselheiro Nabuco de Araújo, PE, 11.06.1863 – , cf. Dicionário Ministro da Justiça, acerca dos padres Manuel das Famílias Brasileiras, Ramos Duarte e Demétrio João Vieira Falcão. Volume II, p. 1945.) Marquês do Paraná (Honório Hermeto Carneiro Leão – São Carlos de Jacuí, MG, Carta do Marquês do Paraná (Presidente do 11,01,1801 – RJ, 03.09.1857 –, Conselho) ao Conselheiro Nabuco de Araújo, Ministro da Justiça, acerca da imigração de cf. Dicionário das leprosos. Famílias Brasileiras, Volume II, p. 1709.) Visconde do Rio Branco Carta oficial do Barão de Cotegipe a Leonel (José Maria da Silva Paranhos – Martiniano de Alencar agradecendo Salvador, 16.03.1819 – RJ, considerações de respeito para com ele tecidas 01.11.1880 –, cf. Dicionário das na última carta, notificando a adoção de Famílias Brasileiras, medidas em forma de lei que contemplarão os Volume 02, p. 2079.) empregados diplomáticos. RJ,14.07.1812. RJ, 03.01.1819. RJ, 28.02.1822. RJ, 21.06.1822. RJ, 03.12.1828. RJ, 13.01.1843. RJ, 26.05.1854. RJ, 26.05.1854. RJ, 17.06.1855. RJ, 20.08.1873. Tabela 1: Cartas de circulação pública produzidas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX. Constata-se o caráter oficial de cartas autógrafas e cópias de época destinadas a circular em âmbito público, versando sobre questões que competiam às instâncias superiores do Poder colonial e imperial deliberar. Destaque-se o caráter oficial de cartas editadas neste trabalho como, por exemplo, a 13a carta oficial setecentista redigida pelo Juiz de Fora de Santos (Marcelino Pereira Cleto Cortez da Silva e Vasconcelos), em que agradece, ao Conde de Vimieiro, a sua interferência em despacho para o Porto Seguro e para a Ouvidoria do Rio de Janeiro. A 5a carta oficial oitocentista também se presta à identificação do tom oficial com que foi produzida, visto que se trata de uma missiva direcionada a Sua Majestade Real, na qual são relatadas as irregularidades ocorridas na eleição do Cabido do Rio de Janeiro. 3.2 Sobre as cartas de circulação privada no Rio de Janeiro setecentista e oitocentista. Conforme a discussão tecida por Barbosa (1999) acerca dos tipos de textos produzidos na segunda metade do século XVIII na América Portuguesa, entendem-se os textos da administração pública e os da administração privada como macro-categorias tipológicas às quais se acrescentam os textos de caráter particular stricto sensu, designados de circulação particular. Na designação administração privada, devem-se compreender os textos trocados entre instituições não governamentais e ou entre particulares quando um deles, ou os dois, estava(m) em condição de pessoa jurídica ou de representação institucional. Em geral, nesse grande grupo, enquadram-se religiosos, monocultores das grandes fazendas, pecuaristas, extrativistas e comerciantes em geral. (BARBOSA, 1999:150.) Os textos cuja expressão é particular são os que tratam de assuntos de interesse único e exclusivo dos interlocutores nas relações interpessoais, podendo expor questões de ordem pessoal ou social. Assume-se, contudo, que no contexto sócio-histórico do Brasil setecentista e oitocentista, é possível reunir as cartas da administração privada e as cartas particulares num único grupo: circulação privada. Parece coerente a reunião de duas macro-categorias textuais – textos da administração privada e pessoais – em um único grupo – cartas da administração privada –, pois se assim não o fosse, não haveria uma homogeneidade entre as poucas cartas da administração privada existentes nos corpora desta dissertação. Retomando-se a concepção de Barbosa (1999:150) acerca dos textos da administração privada no contexto do Brasil colonial, explicitam-se a autoria, o conteúdo, o local e a data de escritura dos textos de circulação privada dos corpora em análise. CARTAS DE CIRCULAÇÃO PRIVADA (SÉCULO XVIII) N REMETENTE 1. Marquês do Lavradio (Português) 2. Marquês do Lavradio 3. Marquês do Lavradio 4. Marquês do Lavradio 5. Marquês do Lavradio 6. Marquês do Lavradio 7. Marquês do Lavradio 8. Marquês do Lavradio 9. Marquês do Lavradio 10. Marquês do Lavradio 11. Marquês do Lavradio O Conteúdo Carta de amizade do Marquês do Lavradio relatando, ao Padre Baptista, as tarefas desempenhadas em relação à expedição de navios. Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao seu filho, Conde de Tarouca, relatando o prazer sentido em saber as suas notícias e expondo as suas saudades. Carta de amizade do Marquês do Lavradio escrita ao seu irmão, Conde de São Vicente, acerca de questões de comércio. Carta de amizade do Marquês do Lavradio escrita ao seu irmão, Conde de São Vicente, tratando de questões comerciais. Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao Intendente da Fundição da Vila de São Félix, Antônio José de Miranda, certificando-lhe da sua amizade e manifestando-lhe desejos de pronto restabelecimento. Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao seu filho, Conde de Tarouca, pedindo-lhe notícias suas, da nora e netos. Além disso, o autor tece comentários sobre sua própria saúde. Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao seu filho, Conde de Vila Verde, revelando o seu desejo por obter notícias do filho e tecendo comentários acerca da sua própria saúde e de seu trabalho no Rio de Janeiro. Carta de amizade do Marquês do Lavradio a João Henrique de Souza expondo a resolução por ele tomada em virtude do Real Contrato dos Diamantes. Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao seu filho, Conde de Vila Verde, lamentando a demora de navios que venham de Lisboa com notícias do filho. Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao seu filho, Conde de Tarouca, lamentando a falta de notícias do filho e sua família que vieram de Lisboa. Além disso, o Marquês do Lavradio expôs o desejo de obtenção de notícias do filho a quem muito estima. Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao seu filho, Conde de Vila Verde, comentando sobre sua vida atribulada de trabalho em meio a muitas ocupações para justificar-se ter sido breve nesta carta enviada ao filho, Conde de Vila Verde, através do Conde de Valladares. DATA RJ, 28.07.1768. RJ, 17.11.1770. RJ, 17.11.1770. RJ, 23.12.1770. RJ, 12.12.1772. RJ, 22.02.1773. RJ, 22.02.1773. RJ, 26.03.1773. RJ, 11.06.1773. RJ, 12.06.1773. RJ, 02.03.1774. 12. Marquês do Lavradio 13. Marquês do Lavradio 14. Marquês do Lavradio 15. Marquês do Lavradio 16. Marquês do Lavradio Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao seu filho, Conde de Tarouca, comentando sobre sua vida atribulada com o excesso de trabalho como justificativa por ter sido breve nesta carta enviada através do Conde de Valladares. Além disso, o autor desculpa-se com o filho em relação as suas caturrices e impaciência. Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao senhor Manoel da Cunha Menezes felicitandolhe pela sua chegada à Bahia. Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao seu filho, Conde de Tarouca, expressando a sua felicidade diante do recebimento de notícias do filho. O autor expõe ao filho a rotina de trabalho que limita seu tempo para ser mais extenso na escritura das cartas. Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao seu filho, Conde de Vila Verde, agradecendo o recebimento de notícias do filho e dos netos e justificando que em virtude do excesso de trabalho não pode ser mais extenso na carta. Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao Conde de Tarouca agradecendo-lhe as notícias enviadas e tecendo comentários acerca da sua própria saúde. RJ, 02.03.1774. RJ, 03.03.1774. RJ, 06.05.1774. RJ, 06.05.1774. RJ, 15.01.1773. CARTAS DE CIRCULAÇÃO PRIVADA (SÉCULO XIX) N REMETENTE 1. Fernando José de Portugal (Português, Lisboa (?), cf. SILVA, I. F.; SOARES, E., 1958, Tomo II, pág.274.) Carta de Fernando José de Portugal a Joaquim Pedro de Quintela pedindo para enviar o mais RJ, 16.04.1803. depressa possível as suas encomendas. Joaquim José de Azevedo (Nacionalidade não identificada) Carta de Joaquim José de Azevedo a José da Costa e Silva tratando de assunto de interesse RJ, 16.08.1809. particular além de relatar seu encontro com Sua Majestade. O 2. 3. 4. 5. 6. Martin Francisco Ribeiro de Andrada e Silva (Santos, SP, em 1776, cf. SILVA, I. F.; SOARES, E., 1958, Tomo IV, pág.153.) Joaquim José de Sousa Lobato (Nacionalidade não identificada) Manoel Jacinto Nogueira da Gama (Brasileiro, 08.09.1765 – São João Del Rei (MG), 15.02.1847, cf. Dicionário das Famílias Brasileiras, Vol II, p. 1626.) José Luís Alves (Nacionalidade não identificada) CONTEÚDO DATA Carta de Martin Francisco Ribeiro de Andrada e Silva a José Bonifácio de Andrada e Silva RJ, 16.01.1810. enviando-lhe uma determinada quantia para a viagem do irmão. Carta de Joaquim José de Sousa Lobato ao Conde de Palmas tratando de assuntos RJ, 13.02.1811. familiares. Carta de Manoel Jacinto Nogueira da Gama a destinatário ignorado pedindo que o atendesse RJ, 20.02.1811. em dois favores. Carta de José Luiz Alves a Antônio Esteves Costa referindo-se às letras de João Pereira de RJ, 06.07.1811. Sousa Caldas e tratando do comércio marítimo. Bernardo Teixeira Coutinho Alvarez de Carvalho (Nacionalidade não identificada) 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. Inocêncio A. das Neves (Nacionalidade não identificada) João Crysostomo de Oliveira Salgado Brandão (Nacionalidade não identificada) João Ventura Rodrigues (Nacionalidade não identificada) João Ventura Rodrigues (Nacionalidade não identificada) J. F. da C. Miranda. (Nacionalidade não identificada) J. F. da C. Miranda. (Nacionalidade não identificada) J. F. da C. Miranda. (Nacionalidade não identificada) Romualdo Antônio Franco de Sá (Nacionalidade não identificada) Carta de Bernardo Teixeira Coutinho Alvarez de Carvalho a José Bonifácio de Andrada e Silva oferecendo uma peça de formação cristalina em RJ, 11.07.1815. forma de um anel e disponibilizando seus serviços. Carta de Inocêncio A. das Neves a Dona Narcisa Emília de Andrada perguntando sobre RJ, 08.05.1816. Dona Carlota e outras assuntos. Carta de João Crysostomo de Oliveira Salgado Brandão a José Bonifácio de Andrada e Silva RJ, 06.03.1820. pedindo-lhe uma carta de proteção. Carta de João Ventura Rodrigues dirigida Manoel José Maria da Costa e Sá sobre a extinção do tráfico da escravatura. Carta de João Ventura Rodrigues dirigida Manoel José Maria da Costa e Sá sobre a extinção do tráfico da escravatura. Carta ao senador José Martiniano de Alencar relatando-lhe fatos ocorridos na Câmara dos Deputados. Carta ao senador José Martiniano de Alencar comunicando-lhe que houve mudança no Ministério. Carta ao senador José Martiniano de Alencar tratando de envio de materiais para o término de obras públicas. Carta de Romualdo Antônio Franco de Sá a seu irmão Felipe Franco de Sá sobre assuntos de família. RJ, 27.09.1822. RJ, 24.07.1832. RJ, 30.07.1835. RJ, 18.02.1836. RJ, 28.03.1837. RJ, 26.12.1858. Tabela 2: Cartas de circulação privada produzidas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX. As cartas de circulação privada escritas no Rio de Janeiro da segunda metade do século XVIII constituem-se como cópias de época3 de missivas particulares enviadas por um único remetente (Marquês do Lavradio) a diferentes destinatários: o padre Baptista, os seus filhos4 (Conde de Tarouca, Conde de Vila Verde), e os amigos (Antônio José de Miranda, João Henrique de Souza e Manoel da Cunha Menezes). As cartas de circulação privada produzidas no Rio de Janeiro do século XIX, expostas na tabela 2, são missivas autógrafas ou cópias de época que circulavam para estabelecer transações comerciais e tratar de assuntos de interesse particular, viabilizando assim a observância dos tipos de relações interpessoais estabelecidas entre remetente e destinatário de textos dotados de menor grau de cerimônia. Há desvantagens e vantagens em relação ao fato de um único remetente (Marquês do Lavradio) representar todas as cartas da administração privada do século XVIII dos corpora deste estudo. No que se refere às desvantagens, é presumível a hipótese de um possível enviesamento dos dados da análise lingüística, uma vez que cabe às cartas pessoais de um único 3 Afirma-se que tais cartas do Marquês do Lavradio, compiladas em dois códices (Códice 1095 e 1096 do AN), constituam-se como cópias de época, pois no próprio códice, visualizado através do seu microfilme, há as seguintes informações “Livro copiador das cartas de Amizade do Marquês do Lavradio durante seu governo no Rio de Janeiro 1768-1772 e 1772-1776”. 4 Convém esclarecer que, no decorrer deste trabalho, a partir da reconstituição da árvore genealógica da família do Marquês do Lavradio, descobriu-se que o Conde de Tarouca e o Conde de Vila Verde não eram seus filhos consangüíneos, mas seus genros. Apesar de a relação consangüínea de pai e filho não existir verdadeiramente, as relações sociais travadas entre eles apresentam-se nas cartas em análise com esse sentido. autor a exposição da produção escrita de fins da era setecentista no Brasil. No que diz respeito às vantagens, admite-se que dificilmente se tenha acesso a um material de cunho pessoal produzido por um escritor culto no Brasil setecentista, o que já aponta para a peculiaridade dessas cartas que compõem os corpora desta investigação. Acrescente-se a isso o fato de esse conjunto homogêneo de cartas pessoais prestar-se ao cotejo com a prática de escrita culta dos textos impressos em língua portuguesa a fim de se detectar a expressão da norma culta do português no Brasil. Por fim, ressalte-se a especificidade dessas missivas com relação ao contexto de informalidade detectado através da análise do conteúdo das cartas de amizade do Marquês do Lavradio, como é possível verificar a partir da análise dos trechos de tais cartas apresentadas a seguir. “(...) MeuqueridoFilho, e Senhor domeuCoração; Grande hé aconsolação, que tenho com asboas novas que Você me dá suas porem dêvodizer=lhe averdade, eu menão Livro de cuidado, com quanto Você não vive pormais mezes auzentedeLixboa (...)” (Carta não-oficial (02). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.) “(...) [espaço] Eu entanto passo Sem novidade, excepto em velhice, e rabuje que lheconfeço a Voce mevou fazendo insofrivel vejão Vocês aSarna que selhe [espera] quando ca tiver afelicidade que dezejo que he de recolherme a nossa Caza. (...)” (Carta não-oficial (10). Marquês do Lavradio. RJ, 12.06.1773.) 4. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS. 4.1 A teoria da mudança lingüística e suas questões teóricas. Segundo Mattos e Silva (2002), “(...) qualquer língua histórica está em contínuo processo de mudança.”, o que permite concebê-la como instrumento de comunicação que se desenvolve a partir de recorrentes transformações permeadas pelo contexto histórico-social em que está inserida. O fato de a língua expressar eventos da fala humana justifica a sua dinamicidade e, conseqüentemente, a suscetibilidade à heterogeneidade em sua essência. Assumindo as palavras de Lucchesi (1998:74), que considera a realidade lingüística do português brasileiro “(...) não apenas como heterogênea e variável, mas também como uma realidade plural; mais especificamente, como uma realidade polarizada.”, os estudos sociolingüísticos se propõem a depreender a realidade heterogênea, plural e polarizada das línguas humanas, descrevendo-as e analisandoas à luz de teoria e metodologia científicas. Considerando que o sistema lingüístico se organiza a partir de uma heterogeneidade ordenada, Weinreich, Labov e Herzog (1968) tecem os fundamentos teóricos para o estabelecimento de uma teoria sobre a mudança lingüística. Para a sua depreensão, formularam-se cinco questões teóricas: o problema das restrições – (constraints problem) – depreensão das condições que licenciam ou restringem a mudança lingüística, o problema da transição (transition problem) – percepção dos estágios pelos quais a língua em processo de mudança perpassa –, o problema do encaixamento (embedding problem) – análise do encaixamento da mudança nas matrizes lingüística e extralingüística –, o problema da avaliação (evaluation problem) – avaliação do falante acerca da mudança da língua e dos efeitos na sua estrutura –, o problema da implementação (actuation problem) – compreensão dos mecanismos de implementação da mudança movida pela seguinte indagação: por que um dado processo de mudança lingüística ocorreu em um momento e lugar determinados e não, em outro momento e lugar ? Ramos (1997 apud Lobo, 2003), em estudo acerca do uso de você, ocê e cê no dialeto mineiro, aplica esses princípios formulados por Weinreich et alii (1968) ao fenômeno lingüístico em análise e elabora alguns problemas que serão discutidos neste estudo: “Questão do encaixamento [embbeding problem]: Encaixamento social: a forma você, usada pela baixa burguesia, era forma corrente na fala dos colonizadores que vieram para o Brasil, por isso estabeleceu-se entre nós. Encaixamento lingüístico: a forma tu indicativa de uma flexão mais rica, possivelmente seria, e de fato foi, preferida pelo dialeto cuja flexão possui tal característica: o PE. A forma você com flexão de terceira pessoa foi preferida pelo PB. (...) Questão da transição [transition problem]: Como a língua muda? Qual foi o percurso que vai de vós a você? Por quais caminhos a língua muda? Questão da implementação [actuation problem]: Por que a mudança tu/você/ocê ocorreu? Quando ocorreu? Onde ocorreu? Essas respostas são obtidas através de informações de natureza sócio-histórica e análise lingüística quantitativa (...) Questão da avaliação [evaluation problem]: Como os membros de uma comunidade avaliam a mudança? Quais os efeitos dessa avaliação sobre o processo de mudança em si? Novamente aqui informações tanto de natureza sócio-histórica quanto de natureza propriamente lingüística são requisitadas, de modo a evitar a conclusão de que a extensão do uso de tu no PE resulta do fato de você ser usado em contextos de relação assimétrica, sem levar em conta as propriedades gramaticais abstratas, que se manifestam no PB contemporâneo como tendência de preenchimento de sujeito e marcação não-redundante da concordância”. (RAMOS, J., 1997 apud LOBO, T., 2003). Embora o objeto de estudo proposto não se constitua como um fenômeno variável stricto sensu, parte-se de uma premissa básica da Sociolingüística Variacionista de base Laboviana de que a variação é inerente às línguas humanas e determinada por fatores lingüísticos e extralingüísticos. Para a identificação das pressões sociais, estruturais e discursivo-funcionais que atuaram na mudança do nosso sistema pronominal de tratamento, procura-se integrar a perspectiva Variacionista Laboviana, discutida por Weinreich et alii (1968) e Labov (1994), a outros modelos funcionais e formais. A análise dos resultados será apresentada, nesta dissertação, em dois momentos. Primeiramente, objetiva-se descrever e analisar as formas de tratamento de base nominal e pronominal identificadas nas cartas. Entende-se, pois, que seja possível entrever os tipos de relações travadas entre remetentes e destinatários das cartas setecentistas e oitocentistas à luz da Teoria do Poder e Solidariedade, conforme Brown & Gilman (1960). Uma vez levantadas e quantificadas as formas de tratamento existentes nos corpora em análise, discute-se, em um segundo momento, o processo de mudança sofrido pela estratégia nominal de tratamento Vossa Mercê dando origem à forma pronominal Você. Parece pertinente depreender os estágios dessa mudança (transition problem, conforme Weinreich et alii 1968) em relação às propriedades funcionais – conforme os princípios de gramaticalização propostos por Hopper (1991), Lehmann (1985), etc – e aos traços formais e semântico-discursivos – segundo a proposta de Lopes (1999, 2003) – da forma fonte – Vossa Mercê – e da forma final – Você – no seu processo de gramaticalização. Atenta-se ainda para o encaixamento da mudança na matriz lingüística e na matriz social (embedding problem, Weinreich et alii 1968). 4.2 As formas de tratamento e a Teoria do Poder e da Solidariedade Antes de enveredar pelos pressupostos funcionais e formais que dariam conta, nesse estudo, do fenômeno da gramaticalização de Vossa mercê para Você, cabe discutir, em primeiro lugar, a Teoria do Poder e Solidariedade – essencial à análise das questões relativas às formas de tratamento empregadas nas cartas setecentistas e oitocentistas. Brown & Gilman (1960), no texto The Pronouns of Power and Solidarity, admitem que traços da organização social de uma dada comunidade lingüística podem se deixar transparecer através do uso efetivo da língua. Assim sendo, a Teoria do Poder e da Solidariedade é pensada por Brown e Gilman a partir das relações sociais que transparecem no emprego de certas formas pronominais. A semântica do Poder se manifesta nas relações interpessoais através do uso assimétrico e não recíproco do Vous5. Em relações sociais assimétricas, o interlocutor superior se dirige ao seu interlocutor hierarquicamente inferior por Tu e é tratado por Vous. A semântica da Solidariedade se expressa através do uso de formas de tratamento que indiquem simetria, reciprocidade entre os interlocutores. O uso recíproco do pronome Tu é o que caracteriza esse tipo de relação interpessoal distensa. No entanto, é possível observar-se o uso recíproco da forma de tratamento Vous entre os interlocutores, o que permite entender o relacionamento entre iguais (classe alta) como um relacionamento movido pela Solidariedade. Consoante Brown & Gilman (1960), inicialmente, a diferença entre Tu e Vós era estabelecida em latim pela oposição entre singular e plural. No século IV, o pronome Vós passa a funcionar, a partir da reforma de Diocleciano, como estratégia de tratamento para fazer referência a uma única pessoa que fosse uma personalidade real, como é o caso dos Imperadores de Roma e de Constantinopla. A escolha do Vós como forma de tratamento se deu a partir da noção de pluralidade implícita que evidenciava metaforicamente, as relações de Poder na sociedade. Wardhaugh (1998) reinterpreta a Teoria do Poder e da Solidariedade em algumas sociedades contemporâneas. Segundo o autor, a evolução do sistema conceptual Tu/Vous se direciona do assimétrico Tu/Vous para o polido e simétrico Vous/Vous e para o mútuo e simétrico Tu/Tu em virtude da relevância da Solidariedade nas sociedades em geral. O autor admite que a semântica do Poder aponta para o uso do Tu/Vous e que a mudança para o simétrico Tu/Tu solidário, semântica da Solidariedade, é uma transformação lingüística recente. Conforme a perspectiva de análise do autor, o simétrico Tu/Tu se dá quando as classes baixas ou as classes altas querem se evidenciar democráticas como ocorreu na França com a Revolução Francesa. As sociedades modernas assumem diferentes formas de engendrarem as dinâmicas do Poder e 5 Os autores opõem Tu a Vous utilizando o francês como referência, embora as línguas humanas tenham soluções distintas para o estabelecimento das relações de Poder e Solidariedade (formas nominais de tratamento cortês, formas pronominais etc.). Entendamos, pois, Vous referindo-se ao distanciamento, polidez e/ou cortesia e o Tu como forma de intimidade, Solidariedade. da Solidariedade a partir da distinção entre as formas Tu/Vous, já que as relações sociais não só se movimentam a favor da Solidariedade, mas também se manifestam movidas pelo Poder. − A complexidade tratamental na América Hispânica e Portuguesa: análise de casos. Ao discutir a origem e funcionalidade da cortesia, no que diz respeito às formas de tratamento do espanhol, Albert Doppagne (1970) o faz a partir de considerações morfológicas e socioculturais. Além disso, tece ponderações acerca do espanhol na América e comparações sobre o tutear e o vosear em domínios lingüísticos de outras línguas. Considerando que o sistema latino privilegiava o uso da 2a pessoa do singular – Tu – para fazer referência a um único interlocutor e a 2a pessoa do plural – Vós – para fazer referência a vários interlocutores ou a magnanimidade de um único interlocutor, Doppagne (1970) admite que as fórmulas de cortesia, historicamente, significaram um rompimento com o sistema de tratamento da cultura latina. Assim sendo, o autor se propõe a expor, resumidamente, as estratégias de cortesia pensadas para o espanhol, compondo uma visão panorâmica das relações sociais que embasam os tratamentos de cortesia. O tratamento cortês, em espanhol, é licenciado por relações interpessoais que se dão de superior para inferior – cortesia descendente –, de inferior para superior – cortesia ascendente – e as que são travadas entre indivíduos de um mesmo nível social – cortesia de mesmo nível social. Doppagne admite que as novas feições assumidas pelas formas de cortesia nos eixos diacrônico e diastrático podem ser analisadas a partir de uma perspectiva morfológica, tendo em vista as propriedades de número, pessoa e gênero. No que diz respeito ao número, observa-se que em latim o ato de se tratar um único interlocutor com o pronome de 2a pessoa do discurso em sua forma pluralizada – Vós –funcionava como estratégia lingüística respeitosa. Trata-se de uma forma de exaltar a superioridade do ser sobre o qual recai a responsabilidade de dominar soberanamente uma nação. Em relação ao traço de pessoa, verifica o caráter de descortesia atribuído à 2a pessoa do discurso – Tu – em oposição ao caráter cortês com que é concebida a 2a pessoa do plural – Vós. O traço de gênero feminino pode ser identificado nas estratégias corteses de referência à 2a pessoa do discurso – Vossa Majestade, Vossa Senhoria, Vossa Excelência, Vossa Alteza, Vossa Reverência, Vossa Mercê – , expressando-se em relação de concordância entre o pronome Vossa e o Nome – Majestade, Senhoria, Alteza, Reverência, Mercê – que ressalta a autoridade imperial. Segundo Doppagne, há forças sociais e lingüísticas que interagem para estabelecer a expressão de cortesia. No século XVI, o sistema de tratamento do espanhol apresentava o Vos e o Vuestra Merced como estratégias de cortesia descendente e ascendente, respectivamente. A forma pronominal Tu, que antes figurava como tratamento desrespeitoso, torna-se, no século XVI, tratamento informal nas relações sociais entre iguais. O autor afirma que convivem, nas grandes capitais e, especificamente, no México e em Lima, três sistemas de tratamento: o Tuteo, nas capitais e regiões costeiras; o Ustedeo, estratégia de tratamento que desestabilizou o sistema de tratamentos do espanhol e o Voseo – estratégia de tratamento considerada arcaizante. Doppagne admite, pois, a expressão da cortesia como fenômeno lingüístico híbrido que se move ao sabor dos desarranjos político-sociais no interior de uma dada comunidade lingüística. Essa consideração do autor é construída em conseqüência de vigorarem na América Hispânica três sistemas de tratamento – o Tuteo, o Ustedeo e o Voseo. Mathieu (1982) analisa as principais formas de tratamento respeitoso – Vos e Vuestra Merced – e as formas de tratamento de confiança –Tú e Vos –, utilizados na América durante o século XVI e a primeira metade do século XVII. Acredita o autor que, nesse período, tenha surgido Vuestra Merced em conseqüência do desuso de Vos. A análise de Mathieu incidiu sobre o espanhol e sobre algumas línguas crioulas, tecendo, em síntese, as seguintes considerações finais: o surgimento de Vuestra Merced e o inevitável e progressivo desuso de Vos, em finais do século XVI e inícios do século XVII, acarretaram a funcionalidade do Tú, reduzindo-o às pessoas de mais baixo nível social; o Vos, na América Hispânica, é considerado como forma de tratamento ofensivo para os sacerdotes; o Vos predomina sobre o Tú em princípios do século XVII, em Bogotá. No que diz respeito ao desaparecimento de Vos, Mathieu admite a hipótese de que a distância existente entre Usted e Tú é maior do que a que existia entre Vos e Tú no século XV. Segundo o autor, tem-se uma hipótese difícil de provar, mas que pode sugerir indício de que, em algumas regiões da América Hispânica, se tenha dado predominantemente preferência a Usted por considerar Tú, mais informal em relação a Usted, que, por sua vez, assume caráter de formalidade. Apesar de a forma final do processo de gramaticalização de Vuestra Merced – Usted – ainda resguardar certo grau de polidez, não pode ser considerada uma forma de tratamento com alto teor de cerimônia, visto que absorveu traços de Tú, generalizando-se, assim, como estratégia de tratamento preferida no espanhol atual. No espanhol de Bogotá, o autor detecta o uso de Usted entre membros de uma mesma classe social e em relações sociais de superior para inferior ao passo que o Tuteo somente se dá em relações sociais marcadas pela informalidade. O estudo de Fontanella de Weinberg (1970) incide sobre a evolução das estratégias de tratamento no espanhol bonaerense, atentando para a primeira década do século XX, por se tratar de época marcada por transformações econômicas, avanços na industrialização, acelerado processo de urbanização na Argentina. A autora também assume, como ponto de partida para a sua investigação, o estudo de Brown & Gilman (1960) e sua análise incide sobre um corpus composto por peças teatrais produzidas no período em análise. Considerando as limitações de um trabalho com textos literários, a autora se propõe a tecer considerações acerca da evolução das estratégias de tratamento nas principais relações familiares e em algumas relações sociais. No âmbito familiar, mais especificamente nas relações travadas entre pais e filhos, Fontanella de Weinberg (1970) identifica a coexistência de dois tipos de formas de tratamento: o uso recíproco de Vos – Vos e o uso assimétrico de Usted – Vos. A convivência dessas duas formas de tratamento entre pais e filhos aponta para uma etapa intermediária entre uma época anterior em que era recorrente o uso de Usted – Vos como formas de tratamento entre os falantes da classe alta e a atual freqüência de Vos por parte dos jovens em relação aos padres, desvinculando-se da noção de status social. As relações sociais tornaram-se mais solidárias no espanhol bonaerense. Nas relações familiares, observou-se a tendência inovadora expressa através do uso de Vos – Vos entre pais e filhos nas classes altas e médias urbanas e entre jovens o uso de Vos recíproco. Em relação ao tratamento entre Tios e Sobrinhos, havia o predomínio do tratamento assimétrico Usted – Vos que também se manifestava a partir do tratamento recíproco Vos – Vos. O tratamento entre esposos, irmãos, primos por meio do mútuo Vos manteve-se inalterado até fins do século XX. Em conformidade com a análise de Fontanella de Weinberg, as demais relações sociais sofreram transformações nos últimos setenta anos do século XX. O tratamento entre jovens que, em inícios dos anos 70, se dava por Usted – Usted, independentemente de fatores como idade e sexo, expressa-se, em fins do século em análise, por Vos – Vos. Nas relações afetivas, a autora observou que os pretendentes a um relacionamento amoroso mantinham, no início do século XX, Usted como forma tratamental mútua. Já em relações afetivas, em que o compromisso era estabelecido por um noivado, a relação entre os noivos expressava-se através de Vos recíproco. Em síntese, Fontanella de Weinberg admite que as relações familiares manifestavam-se, em inícios do século XX, a favor da expressão do Poder em detrimento da Solidariedade. Em fins do século XX, a autora constata a preponderância de relações solidárias. No âmbito das relações afetivas, tem-se a passagem de relações formais e recíprocas para relações formais que denotam maior grau de proximidade entre os interlocutores. A comparação entre as estratégias de tratamento usadas, em inícios e fins do século XX, permitiu evidenciar um sistema de tratamento condicionado socialmente – relações sociais entre pais e filhos – e geracionalmente – relações sociais entre tios e sobrinhos – e entre noivos. Ao discutir a alternância Tu/Usted no espanhol atual, Arroyo (1994) remete à teoria do Poder e Solidariedade para afirmar que, a partir da segunda metade do século XX, as relações sociais estabelecidas sob o viés do Poder têm se transformado em relações solidárias como conseqüência dos triunfos democráticos no mundo ocidental. Blas Arroyo (1994) defende que a afirmação de que as formas pronominais Tú/Usted constituem as manifestações de Poder e de Solidariedade, respectivamente, é uma conclusão simplista, uma vez que os falantes interagem numa sociedade que se apresenta vinculada a um dado contexto histórico-social. Há uma reelaboração progressiva dos sistemas de tratamento no espanhol: fase inicial – tratamento recíproco por Usted, fase intermediária – tratamento assimétrico por Tú – Usted (na relação social estabelecida entre vendedor - cliente, respectivamente), fase final – tratamento recíproco – Tú. O autor ressalta a importância da abordagem interacional atribuída à eleição de estratégias de tratamento feita pelos falantes no discurso. São caracterizados os níveis de interação – gênero, tópico, objetivo, lugar, tom, participantes, regras para a interação – com base no esquema do speak grid, conforme Hymes (apud Arroyo 1994:403), a fim de expor os aspectos lingüísticos e extralingüísticos que estão em jogo na interação comunicativa. Assim sendo, a perspectiva de análise empírica adotada por Blas Arroyo o leva a admitir que a compreensão do porquê da escolha por determinadas formas tratamentais numa dada sociedade não deve somente se ater à adoção de categorias teóricas estáticas (Poder – Solidariedade), mas se deve atentar para a complexa combinação de fatores textuais e contextuais que sedimentam o discurso humano. Uber (1985) constata que o Usted assume, no espanhol de Bogotá, a função de denotar a ausência de Solidariedade ou a existência de Solidariedade nas relações sociais. usted ______________ tú ______________ usted (Não Solidariedade) (Solidariedade) usted ______________ tú ______________ usted______________ su merced (Não Solidariedade) (Solidariedade) Quadro 2: O Continuum da Solidariedade, segundo Uber (1985). A aplicabilidade de Usted, em Bogotá, pode ser verificada a partir do quadro 2, em que se evidencia o continuum da Solidariedade. O Tú mantém-se entre os graus máximo e mínimo de Solidariedade nas relações interpessoais travadas na sociedade colombiana. Uber (1985) acrescenta que a expansão do domínio do Tú deixa-se evidenciar com dupla direcionalidade no decorrer de um continuum de Solidariedade que se manifesta com Usted, Su Merced e Mijo(a), formas de tratamento solidárias e informais, em Bogotá. A fim de comparar os resultados de estudos que se prestam a analisar a influência das interações socias no uso efetivo da língua com o estudo das formas tratamentais usuais nos corpora em análise, apresentam-se os resultados de investigações lingüísticas – Biderman (1972), Oliveira e Silva (1974) e Wilhelm (1979) – que abordam a relação entre as estratégias nominais e pronominais de referência à 2a pessoa do discurso e os tipos de estrutura social que as subsidiam em português. Biderman (1972) discute, qualitativamente, a funcionalidade das formas nominais de tratamento em textos literários e, quantitativamente, em textos litúrgicos de algumas línguas, relacionando-as com as suas estruturas sociais nas sociedades da Península Ibérica e da América Latina. Considerando também a perspectiva teórica de Brown e Gilman (1960), a autora admite que as sociedades fechadas na centralização absoluta do Poder em torno do rei foram paulatinamente cedendo lugar à Solidariedade nas relações interpessoais que se dão no alvorecer da Modernidade. Segundo a autora, as relações sociais estruturadas sob o Poder na Península Ibérica foram levadas para a América Latina na época da colonização. No Novo Mundo, as relações humanas, sob a égide do Poder, assumiram o grau máximo da sua manifestação, explicitando-se através da escravidão nas terras ameríndias. As relações de trabalho entre senhor e escravo; as relações familiares entre pais e filhos, marido e mulher e as relações entre homens e mulheres são mantidas de forma assimétrica na América Portuguesa (América Latina). O sistema de tratamento do português brasileiro mostrou-se simplificado em relação aos sistemas tratamentais da América Latina e da Península Ibérica. Países da América Latina tais como Peru, México e Chile apresentam um sistema bipartido entre as formas Tú e Usted e a Argentina, entre as formas Vos e Usted. Acrescente-se que, na Argentina, Vosear uma pessoa significava Tuteá-la, isto é, constitui forma de tratamento dotada de informalidade. O sistema de formas de tratamento do português brasileiro é bipartido – Você e Senhor – em oposição ao sistema do português europeu que, por sua vez, é tripartido – Tu, Você e Senhor. As discrepâncias entre os sistemas de tratamento que se expressam através da língua portuguesa d’além-mar e d’aquém-mar podem caracterizar a sociedade brasileira como uma sociedade aberta a receber culturas diferenciadas que para a América imigraram. Além de não se mostrar receptiva à entrada de imigrantes, a sociedade portuguesa conservou-se distanciada das transformações peculiares à modernidade. Como conseqüência desse comportamento em Portugal, tem-se a sociedade lusitana a assumir uma gradação intermediária entre a familiaridade (tu) e o formalismo (senhor), o que não é tão nítido na comunidade lingüística do português brasileiro. Segundo a autora, no Brasil, o Você é usado nas relações interpessoais de familiaridade e o Senhor nas relações sociais de formalidade correspondendo às formas pronominais Tu/Vous do francês, conforme a concepção de Brown e Gilman (1960). Os pronomes de tratamento e as questões sociolingüísticas que envolviam suas freqüências de uso constituíram o objeto de estudo de Oliveira e Silva (1974). A autora volta o seu olhar científico para a variação dos pronomes de tratamento em português comparando-o com o sistema do francês. Em seu estudo, parte da premissa de que as formas de tratamento da língua portuguesa assumem um comportamento menos estável em relação às do francês. As hipóteses que norteiam a sua investigação são as seguintes: 1 a) a instabilidade do sistema de formas de tratamento do português é tanto individual como social, 2a) a instabilidade individual e social tem como razão histórica o fato de Você e das suas formas pronominais complementares relacionadas à 3a pessoa terem sido introduzidas no sistema do português e 3a) a variação também pode ser motivada pela rápida mudança social, o que, segundo a autora, poderia repercutir na semântica dos pronomes de tratamento. Oliveira e Silva (1974) admite que há uma origem histórica para o desencadeamento dessa instabilidade do sistema de pronomes de tratamento do português caracterizada pela introdução do pronome Você e das formas pronominais complementares da 3a pessoa, o que leva a entender que a mudança social ocorrida no Brasil interfere na semântica dos pronomes de tratamento. Partindo também da Teoria do Poder e da Solidariedade de Brown e Gilman (1960), Oliveira e Silva (1974) defende que a variação no uso de formas nominais e pronominais e a seleção de tais formas ocorrem através da manifestação de forças vetoriais que, por sua vez, atuam em conformidade com um sistema tridimensional: o eixo do interlocutor, o do falante e o da situação. As principais diferenças entre o português e o francês são as seguintes: 1) em francês, só há assimetria de tratamento entre adultos e crianças; 2) em francês, o tratamento geral é Vous, e em certos casos, Tu; já em português, o tratamento mais generalizado é Você; 3) enquanto em francês o falante é obrigado a escolher, de imediato, o tratamento empregado, em português, essa escolha pode ser tardia, ou, até mesmo, pode não se realizar, sobretudo em situações que envolvam os seguintes traços: [-superior] [+ocasional]; 4) em francês, a semântica do Poder já foi substituída pela semântica da Solidariedade e, em português, tudo leva a crer que está se encaminhando na mesma direção. Os pronomes de distância usados na realidade lingüística do Brasil e de Portugal, em fins da década de 70 do século XX, constituem o objeto de estudo de Wilhelm (1979). O autor conceitua os pronomes de distância como os que são usuais em relações interpessoais caracterizadas pelo distanciamento entre os interlocutores. Wilhelm admite que o sistema de pronomes e nomes de distância pronominalizados do português europeu é estruturado entre as formas pronominais Tu, Você e as formas nominais de tratamento O Senhor, A Senhora, Vossa Senhoria (exército), Vossa Excelência. A forma pronominal para fazer referência pluralizada à 2a forma do discurso – Vós – assume uma relativa restrição em sua freqüência de uso na comunidade lingüística do português europeu. O sistema de pronomes de distância do português brasileiro é apresentado por Wilhelm a partir da sua estruturação entre as formas tratamentais Você, O senhor, Vossa Senhoria (correspondência comercial) e Vossa Excelência. O Vós, como pronome de distância usado para fazer referência à 2a pessoa do discurso, se apresenta em desuso na variedade brasileira do português. Entre os falantes brasileiros não cultos, o autor constata a recorrente mistura entre as formas de referência à 2a pessoa do discurso em relação de concordância com a 3a pessoa gramatical. Wilhelm (1979) questiona também o fato de tanto Brasil como Portugal ainda conservarem suas relações sociais estabelecidas entre superiores, equivalentes e inferiores, assemelhando-se ao sistema de organização feudal. O autor atribui ao desejo de manutenção do status quo expresso pelo conservadorismo das camadas de cúpula como o fator que conduz à manutenção de uma sociedade tão estratificada. Diferentemente do que pensa Biderman (1972) acerca do encaminhamento para a Solidariedade assumido pelo Brasil, Wilhelm acredita que os novos ares da República insuflados em Portugal, em 1910, e no Brasil, em 1889, foram incapazes de reestruturar a sociedade numa perspectiva mais igualitária e, conseqüentemente, movida por relações interpessoais mais solidárias. As relações sociais de inferior para superior se organizam a partir dos pronomes de distância Vossa Excelência, Senhor doutor, Senhor engenheiro, o que o levou a admitir que as relações de Poder ainda vigoram na língua portuguesa d’aquém e d’além mar. Em suma, a diversidade e o complexo sistema de formas de tratamento no espanhol e no português, discutidas sob a égide do Poder e da Solidariedade, anunciam: 1) a existência de um certo paralelismo entre o português e o espanhol no que se refere à disseminação de Vossa Mercê/Vuestra Merced pelo desuso de Vós/Vos; 2) a pertinência da Teoria do Poder e Solidariedade para a análise do emprego das estratégias de tratamento, em termos das relações simétricas e assimétricas ascendentes e descendentes, ainda que não se possa perder de vista a complexidade das relações humanas em um dado contexto histórico-social; 3) a estruturação social mais aberta, seja das terras de colonização espanhola, seja das terras de colonização portuguesa, que se apresentam, respectivamente, com sistemas de tratamento bipartidos – (Tu e Usted/Vos e Usted), (Você e Senhor) – em contraposição à configuração social mais rigidamente estratificada da Península Ibérica explicitada através de um sistema de tratamento tripartido – Tu, Você e Senhor – no português europeu ou bipartido no espanhol – Tu e Usted. 4.3 De Vossa Mercê a Você: discussão da gramaticalização de formas nominais de tratamento na língua portuguesa. A discussão acerca dos pressupostos funcionalistas que embasam a análise do processo de pronominalização de Vossa Mercê > Você, em português, com ênfase na discussão desse processo no português no Brasil dos séculos XVIII e XIX, leva a se explicitar, inicialmente, em que consiste lato sensu o fenômeno da gramaticalização. Antonie Meillet (apud Hopper 1991:17) entende a gramaticalização como “a atribuição de uma característica gramatical a um vocábulo previamente autônomo”. A metáfora da espiral (apud Castilho 1997:28) é utilizada por Meillet na depreensão da gramaticalização como a passagem de um item lexical a um item gramatical, o que permite inferir que a gramaticalização segue seu curso de forma inacabada. Lehmann (1985) se volta para a discussão do conceito de gramaticalização nos eixos sincrônico e diacrônico. A partir da análise da gramaticalização no eixo diacrônico, o autor a admite como um processo que torna um lexema em formativos gramaticais e faz dos formativos gramaticais itens mais gramaticais. Sob a perspectiva da análise sincrônica, o autor entende que a gramaticalização estabelece um princípio em que subcategorias de uma categoria gramatical podem ser ordenadas. Admite Lehmann (1985) que a gramaticalização está relacionada com o grau de autonomia do signo lingüístico. Quanto maior a liberdade com que é usado o signo lingüístico, maior é a sua autonomia. A partir dessa concepção de gramaticalização, o autor se propõe a mensurar o grau de autonomia do signo com o intuito de detectar o nível de gramaticalização assumido. O autor estabelece parâmetros para a depreensão dos graus de gramaticalização (fraca ou forte) através do estabelecimento de uma escala de análise sincrônica. São eles: integridade (desgaste), paradigmaticidade, variabilidade paradigmática (obrigatoriedade), escopo (condensação), coesão (coalescência), variabilidade sintagmática (condensação). Com o intuito de analisar a gramaticalização como um processo diacrônico, o autor propõe princípios para a sua depreensão: paradigmatização, obrigatoriedade, condensação, coalescência, fixação. O princípio da integridade pensado por Lehmann (1985) aplica-se ao processo de gramaticalização de Vossa Mercê, uma vez que essa expressão nominal de tratamento perdeu, gradualmente, a sua integridade, degenerando-se, desgastando-se foneticamente e morfologicamente – 6mercê > vossa mercê > * vosm’ce > * voscê > você > oçê > cê. A gramaticalização fraca a que Lehmann faz referência pode 6 Estágios do processo de gramaticalização de Vossa Mercê conjecturados por Antenor Nascentes no artigo intitulado “O tratamento ‘Você’ no Brasil”, publicado na revista Letras, no 05/06, em dezembro de 1956. ser detectada na variação identificada entre Vossa mercê ~ Vossemecê, pois em termos morfofonêmicos passa-se a ter um vocábulo polissilábico. A gramaticalização forte, por sua vez, pode ser detectada à medida que começa a haver a combinação morfológica da primeira sílaba do pronome possessivo Vossa com a segunda sílaba do substantivo Mercê a resultar na forma pronominal Você. Atualmente, na língua falada, é possível identificar a referência à segunda pessoa do discurso a partir do Cê, o que expressa um estágio da gramaticalização forte, em que o pronome Você já se apresenta desgastado fonológica e morfologicamente, tornando-se monossegmental 7. A fixação, concebida por Lehmann (1985) como princípio da gramaticalização que se estabelece a partir da perda de variabilidade sintagmática, pode ser evidenciada em relação ao processo de pronominalização de Vossa Mercê. Na medida em que tal forma nominal de tratamento inicia o seu processo de gramaticalização, começa a assumir posições sintáticas mais fixas na sentença, tal como a função sintática de sujeito. Entende-se, pois, que a recorrente performance sintática de Vossa Mercê e de Você no exercício da função sintática de sujeito – função peculiar às formas legitimamente pronominais pessoais em português – pode indiciar a instauração do processo de gramaticalização de Vossa Mercê. O questionamento acerca do(s) fator(es) que impulsionam a gramaticalização nas línguas humanas remete à reflexão sobre a gramaticalização e a cognição, revelando a metáfora e a metonímia como processos que atuam como verdadeiros gatilhos a acionarem a mudança categorial. Em conformidade com o raciocínio de Martelota et alii (1996:54), “a metáfora constitui um processo unidirecional de abstratização crescente, pelo qual conceitos que estão próximos da experiência humana são utilizados para expressar aquilo que é mais abstrato e, conseqüentemente, mais difícil de ser definido. A metonímia diz respeito aos processos de mudança por contigüidade, no sentido de que são gerados no contexto sintático.” Acredita-se que, em sendo a fórmula nominal de tratamento Vossa Mercê, derivada do substantivo mercê, pensada, inicialmente, como forma nominal de tratamento específica para fazer referência à Corte Real Portuguesa, buscava-se evocar a grandiosidade real por associação de sentido com a graça, a benevolência, a benignidade irradiada pela personalidade do rei. Compôs-se, pois, uma estratégia de tratamento formada por metáfora a partir das noções abstratas de graça, benevolência, benignidade – qualidades que somente poderiam ser irradiadas, segundo a ideologia do regime monárquico, pela realeza portuguesa. Iniciou-se, assim, o processo de gramaticalização de Vossa Mercê como um processo de abstratização motivado por alterações na carga semântica da forma nominal de tratamento que, inicialmente, era de domínio da realeza portuguesa, disseminou-se pela nobreza portuguesa, alcançando a burguesia 7 Conforme a perspectiva de Ramos (1997), a partícula cê funciona como um clítico em português. e, por fim, “caindo na boca do povo português”, responsável direto por acelerar o seu desgaste fonético e semântico, de modo a resultar na forma Você. Castilho (1997) resenha estudos lingüísticos que versam sobre gramaticalização e constrói um exame crítico sobre tal fenômeno e sobre as suas manifestações no português, concebendoo como resultado da cristalização das formas discursivas mais produtivas (Castilho 1997:31). Para a depreensão da mudança de estatuto categorial (recategorização), propõe princípios gerais que dêem conta desse processo de mudança. Trata-se da analogia, da reanálise, da continuidade/gradualismo e da unidirecionalidade. A partir da consideração de que o léxico armazena os itens lexicais categorizados com base nos traços gramaticais, discursivos e semânticos, o autor admite que não interessa se é o discurso, como pregam os funcionalistas, ou a gramática, como defendem os formalistas, as instâncias em que se manifesta efetivamente a gramaticalização. Considera que os processos cognitivos (metáfora e metonímia) constituem as manifestações motivadoras da transformação de um item lexical em item gramatical. Assim sendo, sugere que se ativem investigações lingüísticas acerca de tais processos cognitivos que funcionam como forças propulsoras da gramaticalização em língua portuguesa. Além disso, Castilho (1997) propõe que se concentrem os estudos acerca dos fenômenos da gramaticalização, semanticização e discursivização. Hopper e Traugott (1993:03-07) concebem os clines como uma noção básica a ser desenvolvida para a análise da gramaticalização. Considerando que a mudança categorial não se estabelece de forma abrupta, mas gradual e paulatina, entende-se que os clines, sob uma perspectiva de análise diacrônica, constituem as fases de transição no processo de mudança lingüística. A partir de uma perspectiva sincrônica, os clines podem ser entendidos a partir da noção de continuum através da qual se estabelece uma linha imaginária para se detectar o ponto no eixo da sincronia em que determinado item da língua se apresenta como um item lexical ou se mostra como um item gramatical. À luz da diacronia, quais seriam os clines que se deixam evidenciar no processo de pronominalização de Vossa Mercê investigado através de cartas oficiais e cartas não-oficiais do Brasil da 2a metade do século XVIII e do século XIX ? − Aplicação dos princípios de gramaticalização propostos por Hopper ao processo de pronominalização de Vossa Mercê > Você em língua portuguesa. Apesar de os parâmetros idealizados por Lehmann (1985) e por Castilho (1997) se prestarem a depreender os estágios da gramaticalização nas línguas humanas, optou-se por discutir, em relação ao processo de pronominalização de Vossa Mercê, os princípios da gramaticalização propostos por Hopper (1991) – layering, divergência, especialização, persistência e decategorização – porque tais critérios se mostraram pertinentes em relação à depreeensão do processo de gramaticalização sofrido por a gente > gente, conforme constatou Omena e Braga (1996). O conceito de layering faz referência ao fato de novas formas lingüísticas emergirem, num mesmo domínio funcional, sem necessariamente levarem à exclusão imediata de formas que já existiam, o que leva a entender que as camadas velhas convivam com as camadas mais recentes num mesmo campo funcional. As formas novas denotam maior especialização dos itens lexicais, classes de construções ou registros sociolingüísticos, podendo assumir ainda significados ligeiramente diferentes ou ser reconhecidos como alternativas estilísticas. Hopper (1991) expõe as expressões de tempo e aspecto verbais do inglês como evidências de layering. Sutis graduações de significado em relação ao tempo futuro em inglês – the future tense – podem ser detectadas com as construções verbais formadas a partir das formas Will, be going + to, be + -ing e be + to verb. O auxiliar de futuro Will constitui a forma não marcada, isto é, a mais freqüente para a expressão da noção de futuridade incerta (prediction) – He will be here in five minutes 8. As construções de futuro expressas a partir de be going + to, be + verb-ing e be + to verb evidenciam, respectivamente, a noções de um futuro certo – She is going to have a baby 9 –, futuro planejado – The plane is taking of at 5:20 10 – e futuro iminente – An investigation is to take place11. Omena e Braga (1996) admitem que o comportamento assumido pela forma A gente constitui um legítimo caso de layering, pois A gente compete com Nós. Tais estratégias de fazer referência à 1a pessoa do discurso no plural apresentam-se como formas que se mostram alternantes num mesmo domínio funcional, conforme evidenciam as sentenças apresentadas pelas autoras. “F: Porque a única coisa que não vai bem é o seguinte: que nós temos aqui uma dificuldade muito grande de colocar a documentação do bar em dia.” “F: Então, a gente tem condições de fazer uma documentação certa para que eles não tenham o direito de interferir no nosso movimento, entendeu?” O princípio da divergência remete ao fato de a instauração da gramaticalização licenciar a convivência da forma em vias de gramaticalização com a forma original que impulsionou o 8 He will be here in five minutes. (Ele estará aqui em cinco minutos). She is going to have a baby. (Ela terá um bebê) 10 The plane is taking of at 5:20. (O avião decolará às 5:20h.) 11 An investigation is to take place. (Uma investigação está para acontecer.) 9 processo de mudança categorial. A divergência evidencia que as formas comungam da mesma origem etimológica, apesar de serem funcionalmente divergentes. Hopper (1991) julga que a divergência possa ser concebida como um caso especial de layering, uma vez que este princípio envolve diferentes graus de gramaticalização em um mesmo domínio funcional, enquanto aquele princípio se aplica aos casos em que a forma lexical autônoma transforma-se, em determinados contextos, numa forma mais gramaticalizada. A fim de ilustrar a expressão de tal princípio na língua, Hopper (1991) apresenta o fato de o verbo latino habere ter se transformado em morfema preso de futuro no francês moderno (-ai). A construção verbal latina de expressão do futuro cantare habeo originou je chanterai (eu cantarei) em francês. A forma verbal lexical avoir veio a constituir, em francês, um verbo auxiliar do perfeito j’ai chanté12 que, por sua vez, se apresenta como auxiliar de tempo e aspecto gramaticizado, além de se deixar evidenciar como a forma verbal lexical não gramaticizada j’ai (eu tenho)13. Trata-se, pois, de uma camada secundária de gramaticização, expressa como uma forma perifrástica aspectual de perfeito, em convivência com o sufixo marcador de futuro em francês -erai. Segundo Hopper, a partir da observação das diferentes camadas que sobrevivem num mesmo domínio funcional, entende-se que tais camadas divergem entre si, uma vez que evocam o item lexical autônomo e o item gramatical proveniente da gramaticalização do primeiro. No que diz respeito à aplicação do princípio da divergência, Omena e Braga (1996) observam que a forma gente – forma originadora da forma pronominal A gente – não passou por tranformações morfofonêmicas. A estratégia inovadora de fazer referência à primeira pessoa do plural – A gente –, alternando-se, por vezes, com a forma pronominal nós, apresenta-se como resultado da cristalização do determinante – a – ao item lexical gente. A especialização consiste na restrição das escolhas que caracterizam uma construção gramatical emergente. Esse princípio poderia também corresponder à “obrigatoriedade”, princípio de gramaticalização pensado por Lehmann (1985), como responsável por detectar a perda da possibilidade de escolha ocorrida quando uma forma já se apresenta completamente gramaticalizada. A forma, em processo de gramaticalização, somente ao final do processo de mudança categorial torna-se obrigatória, já que é possível que a mudança possa conduzir ou não à gramaticização. Hopper considera a negação no francês moderno como um bom exemplo da manifestação do princípio da especialização. Historicamente, a negação em francês se estabelece a partir da anteposição da partícula ne ao verbo que, por sua vez, era seguido da 12 j’ai chanté (eu cantei/eu havia cantado). Em português, o processo apresenta alguma semelhança. Tem-se a terminação de futuro – cantar-ei –, a presença do verbo haver como um verbo auxiliar, em havia cantado, e a forma lexical autônoma em, há cadeiras na sala. 13 partícula de reforço – ne + verbo + pas. Os itens gramaticais que se combinavam com ne dependiam da natureza do verbo – verbos de movimento exigiam pas, em construções do tipo pas beaucoup14 e verbos do tipo comer/dar determinavam o uso do nome mie como reforço da negação denotando pequena quantidade. Depois do século XVI, pas e point tornaram-se formas predominantes como reforços para negação em francês. Pas se propagou como uma partícula de reforço da negação em francês e, apesar de se constituir como uma forma semanticamente neutra, participava de uma variada gama de construções, assumindo alta freqüência de uso no discurso. Na língua falada, já se detecta o ne caindo em desuso – je sais pas15 – deixando a partícula pas como a marca única que se especializou para determinar a negação. Tal estágio também poderia ser caracterizada como obrigatoriedade de uso com esse valor. Constata-se, pois, que pari passu uma construção emergente se especializa, outra parte fica liberada, isto é, a medida em que o pas deixa de ser restrito para verbos de movimento, aumentam as possibilidades de utilizá-lo com outros tipos de verbos em que pas se estabeleça como marca obrigatória da negação. Com relação à interpretação do princípio de especialização, Omena e Braga (1996) constatam que a freqüência de uso da forma resultante da gramaticalização – A gente – se sobrepõe em relação à antiga forma pronominal de referência à 1a pessoa pluralizada do discurso – Nós –, principalmente quando o falante faz referência a “grupos grandes” (eu + todo mundo). O princípio da persistência faz menção à conservação, manutenção, por parte da forma que sofreu gramaticalização, de alguns traços semânticos da forma fonte. Essa relação é completamente opaca no estágio da morfologização, mas num estágio intermediário, tal forma se evidenciará polissêmica com um ou mais significados que assumirão o significado dominante mais recente. Hopper faz menção à discussão de Bybee e Pagliuca (1986) acerca da construção do tempo futuro em inglês – the future tense – como expressão do princípio da persistência. É possível identificar as possibilidades de manifestação do tempo futuro em inglês através do típico auxiliar de futuro em inglês – will –, que, por sua vez, é capaz de denotar uma variedade de distinções semânticas. Segundo Bybee e Pagliuca (1986), diferentes usos dos marcadores de futuro em inglês – will, shall, be going to – podem ser compreendidos como continuações dos seus originários significados lexicais. Apesar de a noção de predição constituir o genuíno sentido de futuridade a partir do auxiliar will – I think the bulk of this year’s studentes will go into industry 14 pas beaucoup (Não muito.) je sais pas (Eu não sei.) 16 I think the bulk of this year’s students will go into industry. (Acho/Acredito que a maioria dos alunos desse ano irá trabalhar.) 15 16 –, tal significação representa uma das possibilidades expressivas do will como modalizador do discurso a expressar as noções de espontaneidade – Give them the name of someone who will sign for it and take it in if you are not at home 17 – e intencionalidade – I’ll put them in the post today 18. Bybee e Pagliuca (1986) admitem que a noção de futuro preditivo estabeleceu-se independentemente das noções de espontaneidade e intencionalidade e que o significado de futuro estava estabelecido no inglês medieval quando seres inanimados, incapazes de exercerem a capacidade de desejar, surgem como sujeitos em construções de futuro com o auxiliar will. A ressemantização sofrida por will legitimou que o futuro preditivo permanecesse como apenas um dos significados distintos assumidos por tal forma no inglês atual. Acrescentou-se uma nova acepção a já polissêmica forma will e, conseqüentemente, novas possibilidades distribucionais foram atribuídas a tal forma. Segundo Omena e Braga (1996), a idéia de coletividade peculiar ao substantivo gente ainda persiste na forma pronominal A gente, pois tal forma pronominal, por vezes, pode assumir uma referência mais indeterminada. A decategorização se manifesta a partir da perda ou da neutralização de marcas morfológicas e propriedades sintáticas das categorias plenas (Nome e Verbo) e conseqüente aquisição de traços característicos das categorias gramaticais secundárias (adjetivo, particípio e preposição). O processo de gramaticalização pode ser entendido a partir da noção de perda da optimal marca de categorialidade. A contraparte funcional da decategorização é a perda da autonomia discursiva da forma: nomes como formas que não mais identificam participantes do discurso e verbos como formas que não evocam aos eventos – Our thanks were accepted by the mayor – Thanks to his generosity 19. His face was pale – in (the) face of these new demands 20–, os verbos também, em formas participiais, podem assumir funções menos centrais – They saw the Northern Lights – Seeing that you have declared bankrupty, you can hardly make any new investments 21. Omena e Braga (1996), ao discutirem a gramaticalização de A gente no português, admitem que a forma gente apresenta a mobilidade peculiar aos substantivos, podendo se desdobrar em número e originar novos vocábulos a partir da noção de grau – gentinha, gentalha. Além disso, tal forma pode ser modificada por quantificadores, determinantes, possessivos e locuções prepositivas, como se observa nos versos de Camões apresentados pelas autoras a título de exemplificação: 17 Give them the name of someone who will sign for it and take it in if you are not at home. (Dê a eles o nome de alguém que assinará por isso e pegueo/receba-o, se você não estiver em casa.) 18 I’ll put them in the post today (Eu as/os colocarei no correio hoje.) 19 Our thanks were accepted by the mayor – Thanks to his generosity. (Nossos agradecimentos foram aceitos pelo prefeito – Obrigada por sua generosidade.) 20 His face was pale – in (the) face of these new demands. (Sua face estava pálida – diante dessas novas exigências/demandas.) 21 They saw the Northern Lights – Seeing that you have declared bankrupty, you can hardly make any new investments. (Eles viram as Luzes do Norte – Percebendo que você declarou falência, dificilmente você pode fazer novos investimentos.) “E julgareis qual é mais excelente, Se ser do mundo Rei, se de tal gente,” (Camões 12) “E tão longo caminho e duvidoso Por perdidos as gentes nos julgavam, (...)” (Camões, p. 110) No que diz respeito à forma gramaticalizada A gente, observa-se que, embora tal forma estabeleça com o verbo a mesma relação de harmonia sintática mantida com o nome gente – relação de concordância com a 3a pessoa gramatical –, uma outra variante sintática tem-se mostrado funcional entre os falantes não cultos da língua portuguesa. Trata-se da relação de concordância verbal estabelecida entre a forma A gente e a 1a pessoa do plural – “A gente começamos a bater papo, A gente começamos a se conhecer.” –, admitindo-se, pois, que a relação de concordância se dá não com a forma A gente, mas com a noção de eu-ampliado e de pluralidade que tal item passa a evocar. 4.4 Para a análise da Gramaticalização de Vossa Mercê > Você no português: a discussão dos traços formais e semântico-discursivos. Lopes (1999, 2003), ao adaptar a proposta de Rooryck (1994)22, elabora um sistema de traços que permite detectar propriedades formais e semânticas do substantivo gente, conservadas e perdidas no seu processo evolutivo, até originar a forma pronominal a gente em português. Ao ajustar os pressupostos formalistas, levando em conta o princípio chomskyano de que o léxico deve ser minimamente especificado, a autora considera os traços primitivos de gênero, de número e de pessoa relevantes à formalização dos traços intrínsecos ao substantivo gente e ao pronome a gente na língua portuguesa. Adotando a configuração de traços de Rooryck (1994), Lopes (1999, 2003) optou por representar o gênero feminino como [+ fem] e o masculino como [- fem]. Com relação ao número formal tem-se [+ pl] para o plural e [- pl] para o singular. A representação do traço pessoa dá-se a partir do atributo [eu], que pode ser marcado [+ eu], para a 1a pessoa, [- eu] para a 2a pessoa e [∅ eu] para a 3a pessoa. Considerando o fato de nem sempre existir uma correspondência biunívoca entre forma e sentido, a autora optou por admitir que cada atributo seja desmembrado em traços formais – [fem], [pl] e [eu] – e em traços semânticos para os quais foram estabelecidas notações em letras maiúsculas – [FEM], [PL], [EU] – com a possibilidade de atribuição de valores distribuídos entre valores variáveis – (+), (-) ou (α) – e os valores não-variáveis – (∅). 22 O autor estabelece uma diferença entre os traços subespecificados variáveis (traços-α) e os traços subespecificados não-variáveis (traços∅). Enquanto estes traços não apresentam um valor específico, aqueles podem ter os seus valores capturados ou resgatados pela análise sintática. Ao traço subespecificado variável – traço-α – é possível atribuir um valor positivo – [+x] – ou negativo – [-x] –, ao passo que ao traço subespecificado não-variável – traço-∅ – não é possível estipular valor específico ao atributo. 4.4.1 Aplicação do sistema de traços às formas pronominais em português Antes de caracterizar, formal e semanticamente, as formas Mercê, Vossa Mercê e Você, tentar-se-á aplicar o sistema de traços proposto por Lopes (1999, 2003) ao quadro pronominal do português. Com relação ao traço de gênero formal, os pronomes de 1a pessoa – Eu, Nós, A gente – e de 2a pessoa – Tu e Vós – poderiam ser interpretados como [∅ fem]. Isso quer dizer que tais formas pronominais não carregam um valor específico a ser atribuído ao gênero formal, ou seja, não são nem positiva – [+ fem] –, nem negativamente – [- fem] – marcados. Semanticamente, no entanto, tais pronomes acionam uma interpretação subespecificada variável – [α FEM] –, uma vez que a depender da combinação estabelecida com os adjetivos flexionados no masculino ou feminino em estruturas predicativas, ativa-se a interpretação do gênero semântico, como se observa nas seguintes sentenças: Eu me sinto cansado (referente masculino); Eu me sinto cansada (referente feminino); Tu estás animado (referente masculino); Tu estás animada (referente feminino); Nós estamos exaustos (referente masculino); Nós estamos exaustas (referente feminino); Vós estais conservados (referente masculino); Vós estais conservadas (referente feminino); A gente está perplexo (referente masculino); A gente está perplexa (referente feminino). As únicas formas pronominais que assumiriam subespecificação variável no que se refere aos traços de gênero formal – [α fem] – e gênero semântico – [α FEM] seriam os pronomes de 3a pessoa ele/ela (P6): Ele (s) está/estão faminto(s) – (referente masculino) – [- fem, -FEM]; Ela(s) está/estão faminta(s) – (referente feminino) – [+ fem, + FEM]. No que diz respeito ao traço de número, os pronomes – Eu – e – Tu – são negativamente marcados tanto formal – [- pl] – quanto semanticamente – [- PL] –, visto que representam uma única pessoa: a que fala e a pessoa com quem se fala, respectivamente. Ambas as formas pronominais apresentam-se, pois, em sua expressão no singular – Eu me sinto feliz, Tu fizeste o trabalho. Em contrapartida, as formas pronominais Nós e Vós seriam positivamente marcadas em relação ao traço de número formal e semântico – [+ pl], [+ PL] – Nós estamos felizes, Vós permaneceis saudáveis. Os pronomes de 3a pessoa do discurso – ele (s)/ela (s) – seriam, por sua vez, subespecificadas, formal e semanticamente, – [α pl] e [α PL] –, pois admitem, diferente dos pronomes anteriores, flexão de número – “Ele(s)/Ela(s) são inteligente(s)”. No tocante à noção de pessoa, Lopes (1999, 2003) propõe que os pronomes de 1a pessoa do singular Eu/Nós seriam formal e semanticamente marcados para o atributo [eu] – [+ eu, + EU]. Os pronomes de 2a pessoa (“não-eu”) seriam negativamente marcados – [- eu, - EU]: Tu estás muito bem, Vós fizestes bons trabalhos. Em conformidade com a concepção de Benveniste (1988), a forma pronominal de 3a pessoa do discurso evidencia a referência à não-pessoa, já que se apresenta sempre fora do eixo dialógico falante – receptor. Dessa forma, atribuiu-se valor neutro à 3 a pessoa do discurso – [∅ eu, ∅ EU]. Na sentença Ele/Ela sobreviveu ao naufrágio, verifica-se a referência a um ser que está fora do eixo dialógico (Eu versus Tu – legítimas formas pronominais), o que leva à interpretação semântica do pronome de 3a pessoa como a não-pessoa do discurso. A forma pronominal A gente resguardou do substantivo que lhe deu origem – gente – o traço formal de pessoa – [∅ eu] – visto que tal forma mantém a relação de concordância com verbos em P3 – A gente tem as melhores opções de financiamento. Por outro lado, tal forma pronominal apresenta-se positivamente marcada no que se refere ao traço de pessoa semântica – [+ EU]. O fato de a forma A gente incluir o próprio falante legitima que a sua interpretação semântica contemple a referência à pesssoa que fala – [+ EU]. Quando se afirma A gente acredita no ensino de qualidade que tal universidade pública oferece, pressupõe-se a noção do eu-ampliado, ou seja, a pessoa que fala e outras pessoas (alia) – eu + você, eu + os estudantes, eu + você + os estudantes + os professores, eu + toda a sociedade. 4.4.2 Os traços de gênero de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em português: a legitimidade de Você. Consoante a concepção de Lyons (1979:299) “o termo gênero (...) deriva de uma palavra extremamente geral que significa ‘classe’ ou ‘tipo’ (lat. genus): os três gêneros do grego e do latim eram as três grandes classes nominais que a gramática reconhecia. Do ponto de vista gramatical, os substantivos gregos e latinos eram classificados em três gêneros para dar conta de dois fenômenos distintos: 1) a referência pronominal; 2) a concordância do adjetivo.” Considerando que Lyons (1979) aponta para a referência pronominal e para a relação de concordância dos substantivos com o adjetivo como duas informações gramaticais detectadas a partir do gênero dos substantivos, discute-se, a partir dos dados a seguir apresentados, o comportamento de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em relação ao atributo gênero em português. O item lexical Mercê é positivamente marcado quanto ao traço de gênero formal – [+ fem] – , uma vez que só pode ser especificado por determinantes cujo gênero formal é feminino. Semanticamente, no entanto, a forma nominal Mercê com o sentido original de favor, graça não aciona um valor específico de gênero, pois não faz referência a pessoas do sexo feminino. O vocábulo Mercê se constitui como um substantivo abstrato [- animado, - humano] como beleza, graça, diferenciando-se do substantivo gente, que por si só já evoca a noção de um conjunto de pessoas. Os exemplos (1) e (2) mostram que o mecanismo morfossintático da concordância com o feminino não aciona interpretação quanto ao gênero semântico do nome mercê. (1) “(...) A outra cartinha he para a Cunhada do Bonifacio em Respeito a que me escreveo, e como mefallava em Vossa Senhoria e não sei outro modo de lha fazer Receber, e Vossa Senhoria sabera onde ella mora, ou ella aparecera, por isso vou a pedir-lhe a mercê de lhe fazer ir amão a Carta. (...)” (Carta não-oficial (08). Inocêncio A. das Neves. RJ, 08.05.1816.) (2) “(...) Apezar doque, eu lhefiz ver as razoens emque estava demerecer esta graça, que [[tinha]] lugar, enão era contraria adisciplina cannonica ávista do conssentimento epostulação do Vigário Collado e Postulação do meu bispo aSua Magestade eque havião muitos exemplos de [i]guaes mercês. (...)” (Carta não-oficial (09). João Crysostomo de Oliveira Salgado Brandão. RJ, 06.03.1820.) O pronome de tratamento Vossa Mercê conserva o traço de gênero [+ fem] peculiar ao item lexical que lhe originou – Mercê – dada a presença do determinante, o pronome possessivo Vossa, no feminino. Em termos semânticos, entretanto, passa a assumir uma interpretação subespecificada – [α FEM] –, uma vez que, nesse caso, é possível a ocorrência de estruturas predicativas no masculino ou feminino, resgatando o gênero do referente, conforme se verifica em (3), (4) e (5). (3) “(...) Este bonito Navio afazer-se com elle mais interessante Comercio em que vossa mercê está contemplado cujas vantagens não só aos Proprietarios como a vossa mercê eu muito lhe dezejo (...)” (Carta não-oficial (06). José Luiz Alves. RJ, 06.07.1811.) (4) “(...) e no S. Thiago que chegou no 1o doCorrente heide remeter-lhe o resto da sua Conta nodito genero no que vossa mercê pode ficar certo (...)” (Carta não-oficial (06). José Luiz Alves. RJ, 06.07.1811.) (5) “(...) Dezejarei queVossamercê esteja mais convalecido, eque tenha todas aquellaz felicidades, queeu muito verdadeiramente lhedezejo. (...)” (Carta não-oficial (05). Marquês do Lavradio. RJ, 12.12.1772.) Divergindo de Mercê e de Vossa Mercê, a forma pronominal Você deixa de ter gênero formal intrínseco, assumindo a especificação default – [∅ fem] – como ocorre com as formas pronominais legítimas – Eu, Tu, Nós, Vós – em português. Em relação ao gênero semântico, a forma pronominal Você conserva a interpretação subespecificada da forma de tratamento Vossa Mercê, visto que o predicativo que cerca Vossa Mercê, assim como o que circunda o pronome Você, é capaz de resgatar a interpretação do gênero do referente. É possível analisar de (6) a (7) que a concordância predicativa com o masculino licencia a interpretação do destinatário como uma pessoa do sexo masculino. (6) “(...) dando por prova disto as suas mesmas cautelas na remessa do dito dizendo que se você não tivesse insiumado o contrario do que dezia os seus officios, (...)” (Carta não-oficial (12). J. F. da C. Miranda. RJ, 30.07.1835.) (7) “(...) Você tem sido batido na Camera pelos Hollandezes, e na sessão de 13 deste o Padre Pinto estudou hum sermão acusatorio (...)” (Carta não-oficial (12). J. F. da C. Miranda. RJ, 30.07.1835.) Em síntese, ao relacionar a evolução da forma de tratamento Vossa Mercê para o pronome Você com os traços atribuídos aos pronomes pessoais em português, constata-se que, o pronome Você assume comportamento semelhante à legítima forma pronominal da 2a pessoa do discurso – Tu –, pois perde a especificação de gênero formal, mas mantém-se semanticamente subespecificada – de [+ fem, α FEM] a [∅ fem, α FEM] – como se verifica nas seguintes sentenças: Tu estás enciumado/enciumada – Você está enciumado/enciumada. 4.4.3 Os traços de número de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em português: a ilegitimidade de Você. Segundo a concepção de Lyons (1979:297), “o número é, portanto, uma categoria do substantivo; (...) que se combina, de uma maneira especial, com a categoria de pessoa para formar os ‘pronomes pessoais’, que podem ser considerados como sintaticamente equivalentes aos substantivos.” O traço de número pode ser entendido a partir da diferenciação que há entre ‘um elemento’ e ‘mais de um elemento’ (Câmara Jr., 1970 apud Lopes 1999:24), o que resultará na diferenciação existente entre singular e plural em português. Do ponto de vista formal, o substantivo Mercê (s) apresenta-se subespecificado com relação ao atributo número – [α pl]. O pronome de tratamento Vossa(s) Mercê(s) assumiu esse valor subespecificado, que, por sua vez, foi transferido à forma pronominal Você(s). Formalmente, temse um quadro de estabilidade com relação ao atributo número, uma vez que a mudança categorial de nome para pronome não acarretou transformações com relação ao atributo em questão, como já foi apontado por Menon (1996). Quando analisado independentemente do traço de pessoa, atribui-se um valor neutro – [∅ PL] – ao traço de número semântico do item lexical Mercê, em virtude de a pluralização da forma nominal não acionar um valor específico à sua interpretação. O item lexical Mercê, flexionado em número ou não – Mercê (s) – possui uma interpretação genérica – como se observa em (8) e em (9) –, não estabelecendo, pois, oposição entre uma ou mais de uma graça. (8) “(...) Na occazião prezente não posso deixar de considerar a Vossa Excelência occupado do maior jubilo, e alegria pelas Mercez das novas patentes, com que Sua Magestade foi servido premiar os serviços dos Officiaes, que se distinguirão nas occazioens de honra (...)” (Carta oficial (09). J. Be. do Rio de Janeiro. RJ, 22.10.1776.) (9) “(...) A proporção eu me encho de prazer, e consolação; e congratulandome com Vossa Excelência lhe dou mil parabens pela grande parte que lhe toca; pois que estas mesmas Mercez são evidentes demonstraçoens que Sua Magestade dá do merecimento de quem dirigio toda a acção (...)” (Carta oficial (09). J. Be. do Rio de Janeiro. RJ, 22.10.1776.) A forma nominal de tratamento Vossa Mercê apresenta-se com uma interpretação subespecificada em relação ao atributo número – [α PL] –, pois a forma de tratamento pode assumir ou não uma interpretação pluralizada, conforme a presença ou a ausência do traço de número formal, como é possível observar em (10), ocorrência em que se interpreta que a forma Vossas Mercês evoque mais de um sujeito de 2a pessoa do discurso em conseqüência da presença do traço formal de pluralidade em tal forma de tratamento. (10) “(...) eque adita entrega deveria ser por huma escriptura em que eu o izentasse de todas as circunstancias comerciaes ejuros que vossas mercês lhe quizessem acumular (...)” (Carta não-oficial (06). José Luiz Alves. RJ, 06.07.1811.) A forma Você conserva a subespecificação – [α PL] – atribuída ao número da forma de tratamento que a motivou, o que pode ser observado nas ocorrências de (11) a (13). O pronome Você, assim como a forma nominal de tratamento Vossa mercê, mostraram-se isomórficos com relação ao atributo número nas suas especificidades formal e semântica, uma vez que a existência ou não do morfe flexional -s será o fator a determinar a sua interpretação pluralizada ou singularizada. Pode-se considerar que essa isomorfia entre Vossa Mercê e Você, no que se refere ao atributo número, deve ter sido motivada pelo fato de Vossa Mercê ter surgido em substituição à forma pronominal de 2a pessoa do plural – Vós – como já mencionado anteriormente. (11) “(...) Meo quirido Filho, meo Senhor domeo Coração, são passados ja muitos mezez, em que estamoz na sensadoria de não termos navio de Lixboa faltandome por esta cauza o gosto denovaz de Voce, edemas dar taobem dobom suceso de Francisca ahum Pay que os ama aVocez tão cheyo deternura, considere Você quam Tormentuoza meterá sido essa demora: (...)” (Carta não-oficial (09). Marquês do Lavradio. RJ, 11.06.1773.) (12) “(...) Novaz doPays, que eu possa dar não há por hora nenhumas, e quando Vossez asnão achão emLisboa nãopodera fazer admiração, que haja muito menoz na América: a donde Você terá Sempre aminha Vontade com omayor gosto para emtudo lhe servir. (...)” (Carta não-oficial (09). Marquês do Lavradio. RJ, 11.06.1773.) (13) “Dellepoderão Vocês alcançar todas as miudaz novazque quizerem minhas, que excepto noque diserem emabono meo, em tudo omais as poderão Vocês ter cheyaz da mayor verdade. (...)” (Carta não-oficial (12). Marquês do Lavradio. RJ, 02.031774.) Ao comparar a matriz de traços da forma pronominal Você – [α pl, α PL] – com a matriz de traços dos pronomes pessoais, percebe-se que o pronome Você apresenta, em relação ao atributo número nas suas bifurcações formal e semântica, os mesmos traços que o pronome de 3a pessoa – ele(s), ela(s). Aparentemente, ao se pronominalizar, o item lexical perdeu algumas características nominais – a interpretação genérica atribuída ao substantivo Mercê no plural [∅ PL] – e assumiu a subespecificação de número plural – [α PL] – atribuída à forma de tratamento Vossa Mercê e ao pronome Você. 4.4.4 Os traços de pessoa de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em português: a dupla face do pronome Você. O enunciado lingüístico é construído a partir da relação dialógica travada entre interlocutores no discurso, figurando, necessariamente, no eixo dialógico, o eu e o tu, 1a e 2a pessoas do discurso. Há, ainda, a possibilidade de fazer referência à pessoa ou coisa que, por sua vez, não evocam nem o falante, nem o ouvinte. Trata-se da referência a alguém ou algo que está fora do contexto comunicativo – 3a pessoa – a não-pessoa do discurso, segundo Benveniste (1988). ‘Eu’ designa aquele que fala e implica ao mesmo tempo um enunciado sobre o ‘eu’: dizendo ‘eu’, não posso deixar de falar de mim. Na segunda pessoa, ‘tu’ é necessariamente designado por ‘eu’ e não pode ser pensado fora de uma situação proposta a partir do ‘eu’; e, ao mesmo tempo, ‘eu’ enuncia algo como um predicado de ‘tu’. Da terceira pessoa, porém, um predicado é bem enunciado somente fora do ‘eu-tu’; essa forma é assim exceptuada da relação pela qual ‘eu’ e ‘tu’ se especificam. Daí ser questionável a legitimidade dessa forma como ‘pessoa’. (BENVENISTE, E. 1988:250) Discute-se, pois, o comportamento de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em relação ao atributo pessoa a partir da configuração dos traços adotada por Lopes (1999). A autora contrapõe, em síntese, o eu (falante) – [+eu] – ao não-eu (ouvinte) – [- eu]. A chamada terceira pessoa, por ser a não-pessoa por excelência e estar fora da relação dialógica falante-ouvinte, seria não-marcada [∅ eu] como os nomes em geral. O item lexical Mercê não apresenta um valor específico que possa determiná-lo formal e semanticamente quanto à noção de pessoa – [∅ eu, ∅ EU] –, o que permite considerá-lo neutro em oposição às duas outras pessoas – [+ eu] eu/nós e [- eu] tu/vós – como se verifica em (14). (14) “(...) A outra cartinha he para a Cunhada do Bonifacio em Respeito a que me escreveo, e como mefallava em Vossa Senhoria e não sei outro modo de lha Receber, e Vossa Senhoria sabera onde ella mora, ou ella aparecera, por isso vou a pedir-lhe a mercê de lhe fazer ir amão a Carta. (...)” (Carta não-oficial (08). Inocêncio A. das Neves. RJ, 08.05.1816.) Ao ser utilizado no composto sintagmático Vossa Mercê como expressão de tratamento, observa-se que esta conserva, com relação à noção de pessoa formal e semântica, a ausência de valor específico para esse atributo – [∅ eu, - EU] –, como pode ser evidenciado em (15) e (16). (15) “(...) Domesmo Continente medarâ Vossa mercê Conta daquillo que for enCarregado, doqueSetiver posto empratica a este Respeito, edetudo que tiver aContecido naz partez emque Vossa mercê seachar: esta Conta bastará, queseja por hum Diario muito simplez a fim denão estar embaraçando aVossa mercê Comescriptaz, que lhetomem otempo, esejão inuteiz(...)” (Carta oficial (07). Marquês do Lavradio. RJ, 15.02.1774.) (16) “(...) Entendo que convém que Vossa mercê se entenda com o Senhor Ministro do Império para que não se consinta na importação d’esses colonos assim enfermos, pois já temos no pais lazaros de sobra, e precisamos de colonos sadios e não de morpheticos; (...)” (Carta oficial (14). Marquês do Paraná. RJ, 17.06.1855.) Entende-se que não há traço formal que permita identificar a pessoa do discurso em questão, ao evocar-se o sujeito de 2a pessoa do discurso a partir da forma nominal de tratamento Vossa Mercê, uma vez que o verbo mantém-se na 3a pessoa. No que diz respeito à sua contraparte gramaticalizada, observa-se que Você conserva, formalmente, o atributo pessoa – [∅ eu] –, advindo da forma de tratamento, como se verifica em (17) e (18). (17) “(...) As novidades que aqui há euasdou na Carta daminha Maria, epormenão fazer importuno aVocê por hiço lhenão repito. Você desculpe opouco extenço que sou, porem otrabalho, comque meacho, eograndissimo defluxo, comque fico menão permitte demorarmecomodezejava. Você aseite afielamizade, comque sempre metem prompto para emtudo lhedar gozto. Eu lhedeito aminha benção, ea Deus peço oGuarde muitos anos como muito dezejo eheymister(...)” (Carta não-oficial. Marquês do Lavradio (14). RJ, 06.05.1774) (18) “(...) Estimo muito que você e tudo quanto lhe pertence goze saude e todas as venturas que para mim apeteço. Na carta, que ultimamente lhe escrevi participei o arbitrio que tomei de exceder as suas ordens na encomenda da bomba, que você me havia encomendado para colocar nhum Poço Publico, que mandara construir, e de prezente asseguro-lhe que esta obra está quasi concluida a medida do meo dezejo (...)” (Carta não-oficial (14). J. C. da Miranda. RJ, 28.03.1837.) Com relação à noção de pessoa semântica, observa-se que a forma Você mantém a sua especificação [- EU], peculiar também à forma nominal de tratamento que a originou (Vossa Mercê), o que evidencia que a forma resultante do processo de gramaticalização (Você) resguarda o caráter de estratégia de referência à 2a pessoa do discurso. Em suma, ter-se-iam os seguintes quadros: FORMAS PRONOMINAIS PESSOAIS RELAÇÃO FORMA/CONTEÚDO TRAÇOS GÊNERO NÚMERO PESSOA EU TU ELE/ELA ELES/ ELAS NÓS A GENTE VÓS FORMAL SEMÂNTICO [∅ fem] [α FEM] [∅ fem] [α FEM] [α fem] [α FEM] [∅ fem] [α FEM] [∅ fem] [α FEM] [∅ fem] [α FEM] FORMAL SEMÂNTICO [- pl] [- PL] [- pl] [-PL] [α pl] [α PL] [+ pl] [+ PL] [- pl] [+ PL] [+ pl] [+ PL] FORMAL SEMÂNTICO [+ eu] [+EU] [- eu] [- EU] [ ∅ eu] [ ∅ EU] [+ eu] [+EU] [∅ eu] [+ EU] [- eu] [- EU] Quadro 3: Matriz morfo-semântica dos pronomes pessoais do português com base em Lopes (1999), (2003). FORMA NOMINAL FORMA NOMINAL DE TRATAMENTO FORMA PRONOMINAL MERCÊ VOSSA MERCÊ VOCÊ/VOCÊS GÊNERO FORMAL SEMÂNTICO [+ fem] [α FEM] [+ fem] [α FEM] [∅ fem] [α FEM] NÚMERO FORMAL SEMÂNTICO [α pl] [∅ PL] [α pl] [α PL] [α pl] [α PL] PESSOA FORMAL SEMÂNTICO [ ∅ eu] [ ∅ EU] [ ∅ eu] [- EU] [ ∅ eu] [ - EU] TRAÇOS RELAÇÃO FORMA/CONTEÚDO Quadro 4: Proposta de aplicação do sistema de traços na confecção de matriz morfo-semântica de Mercê, de Vossa Mercê e de Você. Na passagem de Mercê para Vossa Mercê e para Você, observa-se, a partir do sistema de traços intrínsecos ao item lexical e ao pronome, algumas perdas e ganhos consideráveis, o que poderia referendar o princípio da decategorização proposto por Hopper (1991). A análise dos quadros 3 e 4 permite evidenciar que houve a perda da valorização positiva atribuída ao traço de gênero formal do substantivo Mercê e da forma nominal Vossa Mercê. A adoção de subespecificação não-variável à forma pronominal Você – [∅ fem] –, a ausência de gênero formal ou o seu valor neutro é também observado nos pronomes pessoais legítimos – Eu, Tu, Nós e Vós –, o que já assinala, formalmente, a pronominalização de Você em português. Em termos semânticos, a interpretação neutra do gênero – [∅ FEM] – em Mercê transformou-se em subespecificada variável – [α FEM] – na forma de tratamento Vossa Mercê. Ao se pronominalizar, Você herdou de Vossa Mercê essa subespecificação atribuída ao gênero semântico – [α FEM], o que evidencia um indício do processo de pronominalização, visto que os legítimos pronomes pessoais – eu, tu, nós e vós – assumem uma interpretação subespecificada com relação ao atributo gênero semântico. Interessante comentar que Vossa Mercê mantém o traço formal de mercê – [+ fem] –, mas adquire um traço semântico inexistente em mercê – [α FEM]. Considerando ainda a análise dos quadros 3 e 4, verifica-se que houve manutenção da subespecificação formal de número – [α pl]. Semanticamente, o item lexical Mercê perdeu o valor neutro atribuído à noção de número semântico, passando a ser subespecificado – [α PL]: Vossa Mercê – referência ao ouvinte – e Vossas Mercês – referência a mais de um ouvinte. Tal subespecificação variável de Vossa Mercê é conservada pelo pronome Você em português – [α PL]. Comparando a matriz de traços dos pronomes pessoais e a de Você, percebe-se que a forma apresenta as mesmas propriedades de número identificadas nos pronomes de 3a pessoa. Em outras palavras, o pronome Você se identifica, formal e semanticamente, no que toca ao traço número, com a não-pessoa do discurso, segundo Benveniste (1988), – as formas pronominais de 3a pessoa – ele(s), ela(s). Também em relação aos traços de pessoa do produto final da gramaticalização – Você [∅ eu] –, são identificadas semelhanças formais com o pronome de 3a pessoa do discurso. Lopes (1993:19), ao analisar o uso de nós e de a gente no português falado culto a partir de corpus do Projeto NURC, já anuncia que a impessoalidade da 3a pessoa pode estar influenciando as demais – a 2a pessoa do singular e a 1a pessoa do plural. Essa hipótese da autora é confirmada com a aplicação do sistema de traços ao quadro pronominal do português, visto que se constatou a identidade formal existente entre a forma pronominal Você e a 3a pessoa do discurso – ele(s), ela(s) – em relação ao traço pessoa – [∅ eu] – e de número. Em termos semânticos, a forma Você faz referência, com relação ao atributo pessoa, à 2a pessoa do discurso – tu, vós – [- EU]. Trata-se de um pronome um tanto quanto “camaleônico” no que diz respeito ao atributo pessoa, o que pode senão justificar, estar refletido no fato de o pronome Você fazer referência à 2a pessoa do discurso (ganho de uma propriedade pronominal), embora estabeleça concordância com a 3a pessoa gramatical (manutenção de um traço original). Em síntese, quais traços morfo-semânticos devem ser levados em conta para distinguir a forma nominal de tratamento Vossa Mercê da forma pronominal pessoal Você ? Constata-se que Vossa Mercê e Você se distinguem concretamente em relação às noções de gênero formal e de pessoa semântica. Enquanto a forma nominal de tratamento Vossa Mercê é marcada positivamente em relação ao seu gênero formal [+ fem], a forma pronominal pessoal Você assume representação neutra – [∅ fem]. É interessante constatar que a interpretação neutra assumida pela forma pronominal Você no que se refere ao seu gênero formal a aproxima das legítimas formas pronominais de 1a pessoa – Eu, Nós, A gente – e de 2a pessoa – Tu e Vós. No que diz respeito ao traço de pessoa semântica, observa-se que a forma nominal de tratamento Vossa Mercê admite, ou não, interpretação neutra – [∅ EU] –, o que a distingue da forma pronominal Você que, por sua vez, faz referência ao ouvinte – [- EU] –, assemelhando-se às legítimas formas pronominais de referência à 2a pessoa do discurso – Tu e Vós23. 23 É possível conjecturar a impessoalidade de Você em construções pessoais, conforme Duarte (2003) e Avelar (2003). 5. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS. 5.1 Distribuição dos dados das formas nominais de tratamento e das formas pronominais nas cartas setecentistas e oitocentistas. O objetivo principal deste capítulo é expor os resultados quantitativos e qualitativos das formas nominais de tratamento e das formas pronominais levantadas nos corpora desta investigação em termos de freqüência de uso. Foram co-relacionados estatisticamente, nesse sub-item, os seguintes grupos de fatores extralingüísticos: a distribuição temporal (século XVIII versus século XIX), o tipo de texto (cartas oficiais versus cartas não-oficiais) e as relações sociais estabelecidas entre o remetente e o destinatário das cartas, adotando-se a perspectiva de Brown e Gilman (1960) discutida anteriormente. Os dados foram quantificados e submetidos ao programa estatístico computacional Makecell inserido no pacote de programas Goldvarb para o cálculo das freqüências brutas. A quantificação de todas as formas nominais e pronominais de tratamento existentes nas cartas da segunda metade do século XVIII e do século XIX resultou em um total de 551 dados. Foram identificados 371 dados – 67% – na amostra relativa à segunda metade do século XVIII e 180 dados – 33% – em relação ao corpus do século XIX. Apesar de constar da tabela 3 a seguir apresentada, somente serão analisadas, nesse momento, as freqüências de uso das formas de tratamento de base nominal e pronominal, excluindo-se os comentários relativos à forma Você24. Na segunda metade do século XVIII, detectaram-se ocorrências de Vossa Excelência, Vossa Mercê e de Senhor. Em relação às cartas produzidas no decorrer do século XIX, localizaram-se, além das formas nominais já identificadas na segunda metade do século XVIII, ocorrências de Vossa Senhoria e Vossa Majestade. No que diz respeito às formas pronominais, observaram-se, nas cartas dos séculos XVIII e XIX, ocorrências de Tu. Foram identificadas ocorrências de Vós, nas cartas do século XIX. A tabela 3 expõe separadamente as ocorrências das formas nominais de tratamento e das formas pronominais em relação aos tipos de texto que compõem os corpora25 – cartas oficiais (cartas da administração pública) e cartas não-oficiais (cartas da administração privada → cartas de comércio e cartas particulares). 24 Adotou-se essa forma de apresentação dos resultados, uma vez que será destinada uma parte desta dissertação – item 5.3 – à abordagem dos reflexos da pronominalização de Vossa Mercê > Você, na qual se discutirá a mudança categorial em processo nos corpora em análise. 25 Os percentuais de freqüência de uso apresentados na tabela 3 devem ser lidos por coluna (na vertical). FORMAS PRONOMINAIS E NOMINAIS DE TRATAMENTO EM CARTAS OFICIAIS E NÃO-OFICIAIS DOS SÉCULOS XVIII E XIX SÉCULO XVIII SÉCULO XIX FORMAS DE TRATAMENTO CARTAS CARTAS TOTAL CARTAS CARTAS TOTAL OFICIAIS NÃO-OFICIAIS (XVIII) OFICIAIS NÃO-OFICIAIS (XIX) OCO. % OCO. % OCO. % OCO. % OCO. % OCO. % 175/211 83% 20/160 13% 195/371 53% 37/67 55% 09/113 08% 46/143 32% 18/211 8,5% 31/160 19% 49/371 13% 01/67 01% 26/113 23% 27/143 19% 17/211 08% 17/160 11% 34/371 09% 12/67 18% 11/113 09% 23/143 16% - - - - - - 05/67 07% 36/113 32% 41/143 29% - - - - - - 06/67 09% - - 06/143 04% TU 01/211 0,5% 11/160 07% 12/371 03% - - 13/113 12% 13/37 35% VÓS - - - - - - 06/67 09% - - 06/37 16% VOCÊ26 - - 81/160 50% 81/371 22% - - 18/113 16% 18/37 49% VOSSA EXCELÊNCIA VOSSA MERCÊ SENHOR VOSSA SENHORIA VOSSA MAJESTADE 211/371 (57%) TOTAL 160/371 (43%) 371/551 (67%) 371/371 67/180 (37%) 113/180 (63%) 180/180 180/551 (33%) Tabela 3: Formas pronominais e nominais de tratamento em cartas oficiais e não-oficiais dos séculos XVIII e XIX. Confrontando-se as formas nominais de tratamento em relação aos séculos XVIII e XIX, é possível evidenciar que o século XIX é o período em que se apresentou uma maior diversidade de formas – Vossa Excelência, Vossa Mercê, Senhor, Vossa Senhoria e Vossa Majestade – em oposição ao século XVIII – em que as duas últimas fórmulas de tratamento não foram localizadas na amostra. Dentre as estratégias nominais de tratamento, constata-se que Vossa Excelência é o recurso mais propagado nos corpora, com maior incidência de uso nas cartas do século XVIII – 195 ocorrências (53%) – do que no século XIX, 46 ocorrências (32%). Nesse último período, verifica-se uma concorrência equilibrada entre as estratégias utilizadas. É interessante observar que tal forma de tratamento apresenta-se com alta produtividade nas cartas oficiais dos dois períodos analisados – 83% no século XVIII, e 55% no século XIX. 26 Embora a forma Você ainda apresente um comportamento híbrido – forma nominal de tratamento e forma pronominal –, optou-se por incluí-la no quadro das formas pronominais dos corpora desta investigação com o intuito de apresentar um panorama geral dos dados levantados. Apesar de a forma Vossa Excelência manifestar-se tanto nas cartas oficiais quanto nas nãooficiais, constata-se que a sua freqüência de uso é mais significativa nas cartas cujo grau de formalismo é maior. No século XVIII, identificaram-se 175 ocorrências – 83% – de tal estratégia nas cartas oficiais em oposição a 20 ocorrências – 13% – em cartas não-oficiais. Verifica-se, em (01) e (02), expressões da forma nominal de tratamento Vossa Excelência em carta de circulação pública, trocada entre o Conde de Resende e Dom Fernando José de Portugal através da qual o autor solicitava auxílio para enfrentar crise, no Rio de Janeiro, causada pela falta da farinha. (01) “(...) todos estes objectos dignos da mayor considerasão me obrigão aRecorrer a Vossa Excelência, para que, Fazendo amais seria Reflexão, que exigem as actuaes circumtancias, emque meacho, queira aplicar assuas vistas para esta Capitania (...)” (Carta oficial (02). Conde de Resende. RJ, 18.02.1773.) (02) “Nesta inteligência confiando nasbem ajustadas providencias, comque Vossa Excelência sehade dignar atender aestes motivos detanta consequencia, tenho destinado Fazer expedir algumas Embarcaçoens, que se ofereserem, para ese Porto (...)” (Carta oficial (02). Conde de Resende. RJ, 18.02.1773.) É interessante observar que as 20 ocorrências de Vossa Excelência (13%), em cartas setecentistas não-oficiais, se distribuem em três documentos: 02 ocorrências de Vossa Excelência aparecem em duas cartas de amizade trocadas entre irmãos, o Marquês do Lavradio e o Conde de São Vicente, como se observa em (03) e (04), e as demais 18 ocorrências da forma nominal de tratamento em análise se apresentam em uma única carta de amizade trocada entre amigos – o Marquês do Lavradio e o seu amigo Manuel da Cunha de Menezes –, conforme evidenciam os exemplos (05) e (06). Observe-se que, em (03) e (04), um pecado gramatical, prática tão criticada pelos gramáticos do português, já se dava nas cartas setecentistas. Acredita-se que tal mistura de pronomes possa ser reflexo da confusão em relação ao fato de que apesar de a forma nominal de tratamento (Vossa Excelência) fazer referência à 2a pessoa do discurso, assim como o pronome pessoal Tu o faz, estabelece relação de concordância com a 3a pessoa gramatical. (03) “ (...) MeuIrmão eSenhordomeuCoração, nasbrevissimas cartas que tive ogosto deReceber suas medás aestimavel serteza datuaboaSaude edetodaatuaExlentíssima Casa Familia, que eu infinitamente estimo, ete agradeço dezejando que estaseconserve a todas Vossas Excelências sempre tão felismente como tu opodes ser daminha verdadeira efielamizade. (...)” (Carta não-oficial (03). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.) (04) “(...) eomuito que agora tenhoque fazer menão dá Lugar aduplicar asminhas escritas, ecomo das mais novidades deste Estado poderá oCommandante informar aelle me [R]efiro; [a este] peço medéz muitas oCazioens de[lhedar] Gosto. DeozGuarde aVossa Excelência muitos anos. (...)” (Carta não-oficial (04). Marquês do Lavradio. RJ, 23.12.1770.) (05) “(...) Meo amavel collega Amigo eSenhor domeucoração Consinta VossaExcelência queeu o felicite, que tão bem ofaça aos povos da Bahia ea mim mesmo comachegada deVossaExcelência aessa Capitania adar principio ao seu Feliz Governo. (...)” (Carta não-oficial (13). Marquês do Lavradio. RJ, 03.03.1774.) (06) “(...) não creya Vossa Excelência Lizonjeeraz a[s] minhaz expressoensz, quanto a Vossa Excelência repito são puros sentimentos domeoCoração” (Carta não-oficial (13). Marquês do Lavradio. RJ, 03.03.1774.) No século XIX, constata-se que Vossa Excelência se manifesta, preferencialmente, em documentos com um maior grau de cerimônia, conforme se observa, em (07), na carta do Visconde do Rio Branco para o Senador José Martiniano de Alencar. É possível detectar essa estratégia nominal de tratamento em duas cartas não-oficiais: 06 ocorrências numa carta de Joaquim José de Souza Lobato para o Conde de Palma, versando sobre assuntos familiares, e 03 ocorrências em carta de Manoel Jacinto Nogueira da Gama para destinatário ignorado, pedindo que o atendesse em dois favores, conforme se observa em (08) e (09). (07) “(...) A intervenção de Vossa Excelência a favor da estrada deBaturité não é suspeita, mas legitima, e o seu juizo do mais alto valor para mim. (...)” (Carta oficial (15). Visconde do Rio Branco. RJ, 02.08.1873.) (08) “(...) Eu aestimei como Vossa Excelência póde supôr de minha amizade, pelas boas notícias da suasaude, por vêr se não esquecia das minhas Recomendaçoens, e pelos interesses que toma benignamente sobre os meus particulares, a Respeito dos quaes, anão ser a efficacia de Vossa Excelência, seguramente nenhum bem me Rezultaria(...)” (Carta não-oficial (04). Joaquim José de Souza Lobato. RJ, 13.02.1811.) (09) “(...) Desejo que Vossa Excelência Goze de perfeita saude e que em algum momento de descanso, se lembre dos seus Amigos, que vivem na Corte (...)” (Carta não-oficial (05). Manuel Jacinto Nogueira da Gama. RJ, 20.02.1811) Com base na análise dos índices percentuais de Vossa Excelência nas cartas setecentistas e oitocentistas, em suas modalidades oficiais e não-oficiais, verifica-se que as suas maiores freqüências de uso se dão nas cartas oficiais. Essa constatação expõe Vossa Excelência como forma nominal de tratamento que ainda resguarda o caráter cortês com que foi instituída nos séculos XV e XVI para fazer referência à realeza portuguesa, conforme afirmam Nascentes (1950), Cintra (1972), Wilhelm (1979). Em relação à forma nominal de tratamento Vossa Mercê, verifica-se uma ligeira diferença de comportamento, se forem confrontados os dois períodos em análise: no século XVIII, tal estratégia é a mais produtiva nas cartas não-oficiais com 19% de freqüência, em contrapartida, no século XIX, Vossa Mercê (23%) concorre com Vossa Senhoria (32%). No século XVIII, a forma Vossa Mercê apresenta-se nas cartas oficiais com índices percentuais pouco relevantes – 18 ocorrências (8,5%) em uma única carta oficial de autoria do Marquês do Lavradio para o Engenheiro Francisco João Roscio, através da qual o autor transmitia ordens sobre a defesa da região e a passagem do engenheiro Roscio para o Rio Grande, como se nota em (13) e (14). Nas cartas não-oficiais, tipo de texto em que tal estratégia é mais freqüente, as 31 ocorrências de Vossa Mercê – 19% dos dados – se deram em três cartas do Marquês do Lavradio para os seus amigos Padre Baptista (carta comercial), Antonio João de Miranda (carta pessoal) e João Henrique de Souza (carta comercial), como é possível constatar em (10), (11) e (12). O fato de Vossa Mercê, nas cartas setecentistas, mostrar-se recorrente na produção escrita não-oficial permite evidenciar um processo paulatino e gradual de dessemantização pelo qual tal forma nominal de tratamento perpassa. À medida que Vossa Mercê começa a se disseminar pelas cartas não-oficiais já no século XVIII, acelera-se esse processo de perda do caráter polido e cortês com que tal forma de tratamento foi, inicialmente, concebida em fins do século XV, segundo Santos Luz (1958), Cintra (1972). (10) “(...) Otrabalho que tenho tido naespedição destes Navioz, e afazer omeu primeiro Estabelecimento nesteGoverno como vossa mercê Largamente verá por essa Secretaria, todo este embaraço metinha na descosolação detomar isso detalforma otempo, que eu não podese por este modo continuar asegurar aVossa mercê aminha amizade (...)” (carta não-oficial (01). Marquês do Lavradio. RJ, 28.07.1768.) (11) “(...) Tenho Recebido trezCartasde Vossamercê depois dasuapartida, enão me tendo sido possivel escrever-lhe; tenho pedido aos meos Ajudantes das ordéns, eatodas aspessoaz daminha família hajão desegurar a vossa mercê aminha amizade eo quanto tenhosentido que Vossa mercê tenha tido tantoz derimentoz nasua Saude. (...)” (Carta não-oficial (05). Marquês do Lavradio. RJ, 12.12.1772.) (12) “(...) Eusou avossamercê devedor devarias respostas, talvez confiando dofavor que Vossa mercê mefaz, edeter procurado mostrar lhe quanto metem sido possível aminha sincera amizade eque por estes motivoz Vossa mercê houvese dedisculpar esta minha falta depromptualidade; (...)” (Carta não-oficial (08). Marquês do Lavradio. RJ, 26.03.1773.) (13) “(...) Devo agradecer aVossa mercê eLouvar-lhe muito o zello, intelligencia, eactividade Comque tem trabalhado para Sevencerem as difficuldades, que sempreSetinhão emContrado nas marchaz para aquelle Continente (...)” (Carta oficial (07). Marquez do Lavradio. RJ, 15.02.1774.) (14) “(...) Agrande Confiança, que faço doprestimo de Vossa mercê, omuito que me esperanceyo que osSeos trabalhoz Sejão demuita utilidade aoEstado, ogrande perigo, emque Considero prezentemente oContinente do Rio Grande fazendose aly prezentemente Summamente precizo hum Engenheiro habil, quetenha zello peloServiço, epela Patria, mefazem indispensavel haja de ordenar a Vossa mercê, pase emediatamente áquelleContinente para nélle fazer dirigir as obraz (...)” (Carta oficial (07). Marquez do Lavradio. RJ, 15.02.1774.) Nas cartas oitocentistas, dentre as 27 ocorrências da forma nominal de tratamento Vossa Mercê, 26 delas – 23 % dos dados – se distribuem entre duas cartas não-oficiais: uma carta particular e uma carta comercial cujas autorias pertencem a Joaquim José de Azevedo e José Luís Alves, respectivamente, como se pode observar de (15) a (18). Há de se atentar para a improdutividade de tal forma nominal de tratamento nas cartas oitocentistas de circulação oficial, já que somente há uma única ocorrência de Vossa Mercê – 01% dos dados – expressa em uma correspondência de autoria do Marquês do Paraná para o Ministro da Justiça nos corpora em estudo, conforme é possível constatar em (19). (15) “(...) Meo querido Amigo doCoração, acuzo haver recebido asua Carta de 26 de Mayo doprezente Anno, aqual me dêo grande satisfação pelo gesto de têr noticias de Vossa mercê, que todos os dias me lembra, tanto pela Amizade com que sempre nos tratamos, como para me ajudar na grande lyda de Obras que aqui tem havido e haverá (...)” (Carta não-oficial (02). Joaquim José de Azevedo. RJ, 16.08.1809.) (16) “(...)Tive ahonra de beijar a Mao aSua Alteza Real no Nome deVossa Mercê, que aocazião de lha beijar se mostrou não só agradecido, com bem lembrado do quanto estimava. (...)” (Carta não-oficial (02). Joaquim José de Azevedo. RJ, 16.08.1809.) (17) “(...) Pelo meu avizo de 28 de Mayo deve vossa mercê mandar a original Letra de João Pereira de SouzaCaldas e sem ella nada se pode fazer conforme o parecer do Letrado (...)” (Carta não-oficial (06). José Luís Alves. RJ, 06.07.1811.) (18) “(...) Para eu receber as ditas quantias que ordena odito João Barboza mandrá vossa mercê outra procuração como assima expresso, etãobemmandará aoriginal Letra para deligenciar dodito Izedoro Alves oresto que vossa mercê julgar elle dever que aporse em caminho judicial deve serperciza (...)” (Carta não-oficial (06). José Luís Alves. RJ, 06.07.1811.) (19) “(...) Entendo que convém que Vossa Mercê se entenda com o Senhor Ministro do Império para que não se consinta na importação d’esses colonos assim enfermos (...)” (Carta oficial (14). Marquês do Paraná. RJ, 17.06.1855.) O desgaste semântico sofrido por Vossa Mercê iniciou-se entre os membros da nobreza portuguesa, uma vez que tal estratégia de tratamento específica para o rei, em 1460 – século XV –, cf. Cintra (1972), começou a se tornar usual como forma de tratamento entre os nobres da côrte. Acentuou-se ainda mais esse desgaste semântico à medida que a ascensão social da burguesia impulsiona a sua difusão entre os comerciantes portugueses, que, por sua vez, lidavam mais diretamente com o povo, o que acaba por propagar essa forma de tratamento pela plebe, acelerando ainda mais o seu desgaste fonético e semântico. Com base na análise dos dados de Vossa Mercê dos corpora, observa-se que essa forma nominal de tratamento apresentase, nos séculos XVIII e XIX, em estágio de dessemantização, visto que assume maior freqüência de uso nas cartas não-oficiais, tipo de texto dotado de menor grau de formalismo. Em relação à forma nominal de tratamento Senhor, estratégia pouco produtiva nos corpora, identificaram-se, tanto no século XVIII (09%), quanto no século XIX (16%), apenas ocorrências como Vocativos introdutórios em estruturas de cartas. Embora a forma Vossa Excelência seja o recurso mais produtivo nas cartas oficiais dos dois períodos analisados, Senhor se comporta também como estratégia de tratamento usual nesse tipo de documento formal, mesmo com os seus tímidos 08%, no século XVIII, – 17 ocorrências – e 18%, no século XIX, – 12 ocorrências. Nas cartas não-oficiais dos dois períodos, a forma Senhor apresenta índices baixíssimos de freqüência – 11% no século XVIII e 09% no século XIX. Observem-se algumas ocorrências de Senhor apresentadas de (20) a (24). (20) “Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor Recebi a ultima Carta de Vossa Excelência sem que nella Vossa Excelência mefizese menção deoutras minhas que tive ahonra dedirigir a Vossa Excelência (...)” (Carta oficial (01). Joaquim Alves Meneses. RJ, 09.05.1768.) (21) “MeuqueridoFilho, e Senhor domeuCoração; Grande hé aconsolação, que tenho com asboas novas que Você me dá suas porem dêvodizer=lhe averdade (...)” (Carta não-oficial (02). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.) (22) “Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor Sendoprezente nezteSenado O officio derigidopor Vossa Excelência ao Dezembargador Juis deFora Presidente com datta de 3 do Corrente para Omesmo Senado proceder ahuma novademarcação do termo dezta Cidade (...)” (Carta oficial (02). Dom Fernando José de Portugal. RJ, 15.10.1808.) (23) “Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor Conselheiro José Martiniano d’Alencar Tenho presente a sua carta de 5 de Julho por findo [espaço] Parece-me ella annunciar que o clima de sua provincia natal lhe vae restaurando as perdidas forças, o que muito me alegra. (...)” (Carta oficial (15). Barão de Cotegipe. RJ, 20.08.1873.) (24) “Illustríssimo eExcelentíssimo Senhor Conde dePalma Não possodeixar deCertificar a Vossa Excelência, dos meus puros sentimentos, sendome necessario handar buscando noticias suas, edoquanto omeu Coração se achava Recentido; (...)” (Carta não-oficial (04). Joaquim José de Souza Lobato. RJ, 13.02.1811.) Considerando que, segundo Santos Luz (1958), a fórmula de tratamento Senhor conviveu desde o primeiro quartel do século XIV até o mesmo período do século XV, com Vós, sendo que ambos foram substituídos, em fins do século XV, por fórmulas específicas para o tratamento da nobreza portuguesa, constatou-se que tal forma de tratamento ainda perdura nos séculos XVIII e XIX no Rio de Janeiro como estratégia, preferencialmente vocativa, que, conforme Said Ali (1937:143), “é nada mais do que pronome de polidez em lugar do grosseiro e familiar Tu.” Conforme se observa na tabela 3, as fórmulas nominais de tratamento Vossa Senhoria e Vossa Majestade foram identificadas apenas nas cartas oitocentistas. No que diz respeito à Vossa Senhoria, verificou-se que, embora tal estratégia ocorra tanto nas cartas oficiais, quanto nas não-oficiais, se trata do recurso mais recorrente em textos de menor grau de formalismo – 36 ocorrências – 32% dos dados que se distribuem por seis cartas não-oficiais, conforme se observa de (25) a (30). (25) “(...)Depois de ter escrito a Vossa Senhoria duas Cartas nesta occazião, faço esta para o importunar, pedindo lhe queira remeterme com abrevidade possivel as encomendas constantes da Relação inclusa, cuja importancia será entregue apessoa que Vossa Senhoria para este fim authorizar nestaCidade, ou irá emLetra para Lisboa na forma que me avizar. (...)” (Carta não-oficial (01). D. Fernando Joze de Portugal RJ, 16.04.1803.) (26) “(...) Estimarei muito que Vossa Senhoria a ache digna de ser guarda nessa Academia, e ter occazião de occuparme no seu serviço (...)” (Carta não-oficial (07). Bernardo Teixeira Coutinho Alvarez de Carvalho. RJ, 11.07.0815.) (27) “(...) A outra cartinha he para a Cunhada de Bonifacio em Respeito a que me escreveo, e como mefallava em Vossa Senhoria e não sei outro modo de lha fazer Receber, e Vossa Senhoria sabera onde ella mora ou ella aparecera, (...)” (Carta não-oficial (08). Inocêncio A. das Neves. RJ, 08.05.1816.) (28) “(...) Bem persuadido dafranqueza, com que Vossa Senhoria me prometteo seu valimento eprotecção em razão da amizade com oSenhor Coronel Martin Francisco certificando-me ainda na ultima noite, emque tive ahonra de receber as suas ordens; que sepor ventura eu achasse algum obstáculo, ou dilação naminha pertenção, não tivesse duvida em partecipar aVossa Senhoria que mefaria obeneficio de escrever ameufavor para aCorte(...)” (Carta não-oficial (09). João Crysostomo de Oliveira Salgado Brandão. RJ, 06.03.1820.) (29)“(...) Meu amigo eSenhor [espaço] Em 3 de Julho passado tive a honra de escrever a Vossa Senhoria dando-lhe parte da minha chegada a esta, o disgosto que tive em não encontrar a Vossa Senhoria em Casa quando fui procura-lo para me despedir (...)” (Carta não-oficial (10). João Ventura Rodrigues. RJ, 27.09.1822) (30) “(...) com tudo posso assegurar aVossa Senhoria que mesmo havendo extreitas rellações entre nós, elle nunca me falou em Vossa Senhoria em couza que podesse comprometer, confessamos sempre que lhe hera muito, e muito obrigado, em vista do que custame a crér o que dicerão a Vossa Senhoria (...)” (Carta não-oficial (11). João Ventura Rodriguez. RJ, 24.07.1832.) As pouquíssimas ocorrências de Vossa Senhoria – 05 dados –, nas cartas oitocentistas oficiais, deixaram-se evidenciar em somente uma única carta confeccionada pelo Visconde de Sepetiba para o Conselheiro Manoel José Maria da Costa e Sá, enviando-lhe uma carta imperial, como pode se verificar em (31) e (32). (31) “(...) Cabendo-me a honra de levar á presença de Vossa Senhoria a inclusa Carta Imperial, pela qual Sua Majestade o Imperador Houve por bem Conferir a’ Vossa Senhoria o Gráo de Official da Ordem da Roza(...)” (Carta oficial (11). Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho. RJ, 13.01.1843.) (32) “(...) como hum testemunho publico da Sua Imperial Magnanimidade, e consideração, que Lhe merecem os serviços prestados por Vossa Senhoria a’ este Império do Brazil; eu me felicito de ser o primeiro a dar à Vossa Senhoria os devidos parabens por tão valioza e merecida Graça Imperial; e aproveito a opportunidade para assegurar à Vossa Senhoria dos sentimentos de minha estima e da attenção (...)” (Carta oficial (11). Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho. RJ, 13.01.1843.) Ainda que tal forma nominal de tratamento tenha sido instituída como estratégia específica para o clero e para autoridades do império português, na sociedade portuguesa do século XV, conforme Cintra (1972), observou-se a recorrência de Vossa Senhoria em cartas não-oficiais do século XIX. Além disso, acrescente-se o fato de que, segundo Nascentes (1950), Vossa Senhoria foi determinada como estratégia de tratamento cortês entre oficiais do Exército e da Armada, através de decreto, em 1861, generalizando-se com a República Brasileira entre os cidadãos. No entanto, na amostra oitocentista em análise, observa-se que Vossa Senhoria, em concorrência com Vossa Mercê, se dissemina com maior índice percentual nas cartas não-oficiais, o que já a evidencia como recurso produtivo em textos dotados de um menor grau de cerimônia. É interessante comentar a intercambialidade das fórmulas Vossa Mercê e Vossa Senhoria expressas no seguinte trecho de um texto publicado pela imprensa carioca na 1a metade do século XIX: “O pião sobre a vizão do qual o rico metal não |[exer]cia pouca influencia, (...) não | se pôde conter, e exclamou - << V.m., quero dizer, | V. S. está muito bom em demasia, esta cousinha | não merece dois vintens; os sertões estão cheios disto. (...)” Nesse excerto da Revista O Beija Flor27, observe-se que o redator deixa transparecer que Vossa Mercê não é uma estratégia adequada à situação comunicativa em questão por estar perdendo o caráter de polidez com que foi idealizada. 27 BARBOSA, Afranio Gonçalves. (Editor.). Revista O Beija Flor. Rio de Janeiro: 1830. Disponível na Seção de Obras Raras da BN-RJ sob a seguinte indicação: PR-SOR 0083-1. Vossa Senhoria, por sua vez, parece assumir esse caráter cortês, resguardando o valor de estratégia de tratamento indicada para as situações de formalidade. A partir da análise da tabela 3 com as formas nominais de tratamento que se mostraram freqüentes nos corpora desta investigação, constata-se que Vossa Excelência e Vossa Senhoria foram concebidas, inicialmente, como estratégias formais de tratamento para com a realeza portuguesa. Porém, depreende-se que tanto Vossa Excelência quanto Vossa Senhoria têm a sua freqüência de uso ampliada em textos cujo grau de formalismo é menor. Observou-se que, dentre essas duas formas de tratamento, Vossa Senhoria parece estar em um estágio mais avançado de desgaste semântico sofrido por ambas as formas tratamentais. No que se refere à maior diversidade de formas nominais de tratamento ocorridas no século XIX, ressalte-se que a presença de Vossa Majestade pode estar condicionada ao fato de se ter, aleatoriamente, incluído na amostra uma única carta destinada à realeza imperial portuguesa. As seis únicas ocorrências de Vossa Majestade – 09% dos dados – somente se deixaram evidenciar em uma única carta remetida pelo decano da Real Academia – Monsenhor Joaquim Nóbrega Coió d’ Aboim – para Sua Majestade Real, como mostram as ocorrências de (33) a (38). (33) “Aos Augustos Pés de Vossa Magestade seprosta Joaquim da Nóbrega Caó’ d’ Aboim Prelado Patriarchal, Deão daSua Real Capela Fluminense, pedindo primeiro submisso, e Reverente avenia e faculdadeparaofazer.” (Carta oficial (07). Joaquim Nóbrega Caó d’ Aboim. RJ, 03.01.1819.) (34) “(...) porque Vossa Magestade, foi servido approvar e Confirmar estes Estatutos, dizendo nofim dele = ibi = Hei por bem approvar, e Confirmar estes Estatutos, paraque tenhão inviolável, einteira observancia (...)” (Carta oficial (07). Joaquim Nóbrega Caó d’ Aboim. RJ, 03.01.1819.) (35) “(...) Ecomo eu não vi, nem ouvi falar no Real Consenso, eConselho de Vossa Magestade; antes pelo contrario vi violada, e alterada asua observância contra as Reaes ordens Constantes do Alvará, mandei proceder á nova eleição dePrioste, (...)” (Carta oficial (07). Joaquim Nóbrega Caó d’ Aboim. RJ, 03.01.1819.) (36) “(...) rogo a Vossa Magestade se Digne confirmar esta eleição, athe para evitar aenfadonha delonga, que haverá noPagamento daCapela; evitando assim taobem orisco de affectadas intelligencias” (Carta oficial (07). Joaquim Nóbrega Caó d’ Aboim. RJ, 03.01.1819.) (37) (...)” “(...) Vossa Magestade mandará oquefôr servido; que obedecer-lhe he, foi, eserá sempre omeo prazer, egloria (Carta oficial (07). Joaquim Nóbrega Caó d’ Aboim. RJ, 03.01.1819.) (38) “(...) Deos nos guarde edefenda sempre aPrecioza vidade Vossa Magestade pelos annos doz meos, e Comuns dezejos.” (Carta oficial (07). Joaquim Nóbrega Caó d’ Aboim. RJ, 03.01.1819.) Mesmo que tenham sido localizados poucos dados, Vossa Majestade, aparentemente, se constitui como a única forma de tratamento existente nos corpora que mantém o valor original instituído nas Leis de Cortesia de Felipe I, segundo Cintra (1972), pois permanece sendo utilizado nas cartas para fazer referência, única e exclusivamente, ao rei e à rainha da monarquia portuguesa. No que se refere às formas pronominais levantadas nos corpora, identificou-se um número irrisório de dados, em função do teor impessoal das cartas não-oficiais que constituem a amostra. O pronome Tu se manifesta tanto no século XVIII, quanto no século XIX, em cartas não-oficiais. A única ocorrência de Tu, em uma carta oficial, como se observa em (39), apresenta-se como mais uma evidência da mistura de pronomes. Confunde-se a forma nominal de tratamento Vossa Excelência com o pronome pessoal – Tu –, já que Vossa Excelência, apesar de fazer referência à 2a pessoa do discurso, estabelece relação de concordância com a 3a pessoa gramatical. (39) “(...) ese Vossa Excelência lheescrever sejão cartas que [aspirão] ver osenhor Marques por que cazo elle tenha sahido podeos abrir o d.o S.r tambem mediga Vossa Excelência se lhas has de Remeter para Lisboa aquellas que Vossa Excelência for servido mandar mas de baixo deoutro sobreescrito (...)” (Carta oficial (06). Raimundo José de Sousa. RJ, 26.03.1773.) No século XVIII, as 11 ocorrências de Tu foram identificadas em duas cartas nãooficiais escritas pelo Marquês do Lavradio para o seu irmão, Conde de São Vicente. No século XIX, há ocorrências de Tu em três cartas pessoais: cartas trocadas entre os amigos J. F. da C. Miranda e o Senador José Martiniano de Alencar, entre os irmãos Martin Francisco Ribeiro de Andrada e Silva e José Bonifácio de Andrada e Silva e entre Romualdo Antonio Franco de Sá e Felipe, referendando o caráter de informalidade que Tu deixa transparecer em cartas não-oficiais – cartas com um menor grau de formalidade, como se observa de (40) a (44). (40) “(...) Eu tenho sido tam[exten]ço nesta minha Carta, porque quero, que tudo quanto oque digo aeste Respeito, o Repitas daminha parte aSua Excelência, aquem eu pella Nau deGuerra escreverei com aRemeça dequesepoder ter cobrado. (...)” (Carta não-oficial (01). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.) (41) “(...) Agoraqueroquemedes boas novas tuas, edetoda atuaExcelentíssima Família, aquem peçome Recomendez com o mayor Respeito (...)” (Carta não-oficial (04). Marquês do Lavradio. RJ, 23.12.1770.) (42) “(...) Tu sabes, que, alem de teu irmão, sou realmente teu amigo, e portanto consternei-me em demasia, pensando no que terás sofrido (...)” (Carta não-oficial (03). Martin Francisco Ribeiro de Andrada e Silva. RJ, 16.01.1810.) (43) “(...) Já cansado de esperar noticias dessa foi a 27 deste finante mez que tive o gosto de receber a sua prezada carta de 8 de Maio deste anno, em que me das noticias, de que tem havido depois da sahida do sucupira (...)” (Carta não-oficial (12). J. F. da C. Miranda. RJ, 30.07.1835.) (44) “(...) Acabo de receber uma carta tua, na qual, como nas outras, te mostras muito amigo. Não tens razão, meu Felipe.(...)” (Carta não-oficial (15). Romualdo Antônio Franco de Sá. RJ, 2[6].12.1858.) A presença de Tu nas cartas não-oficiais dos séculos XVIII e XIX reitera o caráter de informalidade atribuído a tal estratégia pronomimal em língua portuguesa, segundo Said Ali (1937, 2001), Basto (1932), Luft (1957), Cintra (1972), Biderman (1974), Wilhelm (1979), Domingos (2001), Soto (2001). Atente-se para o fato de que as 06 únicas ocorrências de Vós foram levantadas em duas únicas cartas da amostra, produzidas pelo mesmo autor – Infante Almirante General Pedro Carlos –, que, por sua vez, as remete para o Conde da Ponte, em 1808, versando sobre o desarranjo do arsenal da Bahia e para o Conde dos Arcos, em 1812, tratando dos tipos de embarcações recomendáveis para a defesa da Bahia, como pode ser observado de (45) a (48). (45) “(...) reconheço, eagradeço ovosso zelo, esperando que das vossas boas qualidades deis cadavez maiores provas perante a MuitoAugusta Pessoa do Príncipe Regente (...)” (Carta Oficial (01). Infante Almirante General Pedro Carlos. RJ, 12.08.1808.) (46) “(...) em conceqüência do que me derijo avos mesmo, para que com omaior segredo possivel façaes devassar emforma pelo tocante às verdadeiras cauzas, que tem produzido o dezarranjo do Arcenal da Bahia (...)” (Carta Oficial (01). Infante Almirante General Pedro Carlos. RJ, 12.08.1808.) (47) “(...) epellas explicações emque entrais na vossa carta, vejo que estais bem instruido na materia, escolhendo justamente o meio de tirar algum casual partido d’aquella especie de Embarcações sem vos expôr a huma despeza constante ...” (Carta Oficial (04). Infante Almirante General Pedro Carlos. RJ, 24.04.1812.) (48) “(...) Muito folguei que se salva-se a Equipagem do Barco Triunfo do Sul, que me participais na vossa carta de desessete de Fevereiro” (Carta Oficial (04). Infante Almirante General Pedro Carlos. RJ, 24.04.1812.) Considerando que, segundo Cintra (1972), a forma pronominal Vós já assumia, no século XVIII, caráter arcaizante, constata-se que essas ocorrências de Vós redigidas por um mesmo remetente parecem evidenciar um traço idiossincrático presente nessas duas cartas oficiais escritas em nome do Infante Almirante General Pedro Carlos. É inviável conjecturar a hipótese de que o vós, em inícios do século XIX, esteja ressurgindo como uma usual estratégia de referência à 2 a pessoa do discurso, uma vez que o baixíssimo número de dados não confere sustentabilidade a essa hipótese. No seguinte trecho de uma narrativa sobre a Vida do Padre Belchior de Pontes28, confirma-se o tom arcaizante e não cortês de vós por ser uma forma utilizada para os escravos: “Eraõ os complices mais frequentes destes delictos os Paulistas; porque como viviaõ abastados de Indios, que tinhaõ trazido do Certaõ, e de grande numero de escravos, que com o ouro tinhaõ comprado, se fizeraõ notavelmente poderosos, chegando alguns a tanta soberania, que fallando com os forasteiros os tratavaõ por vós, como se fossem escravos (...)” 28 FONSECA, Manoel. VIDA do Veneravel Padre BELCHIOR de Pontes, da Companhia de Jesus da Provincia do Brasil. Lisboa: Officina de Francisco da Silva, 1752, p. 203-204. 5.2 As relações de Poder e de Solidariedade na sociedade carioca dos séculos XVIII e XIX. Segundo Callou (2002:282), “As histórias das línguas, como objetos disponíveis ou criados pelos lingüistas, são, segundo Lass (1997:5), como todas as histórias, mitos. Mito no sentido de, por um lado, haver registros de fatos em documentos das várias fases da nossa história, conseqüentemente, da língua que supostamente refletem, mas, por outro, de não haver condições de saber exatamente o que significam a não ser indiretamente, por meio de uma interpretação.” Ponderando sobre as considerações tecidas por Lass (apud Callou, 2002) acerca do processo de reconstituição da história das línguas humanas, justifica-se que, quando se tenta interpretar as relações sociais supostamente estabelecidas entre remetente e destinatário das cartas em análise, com base na Teoria do Poder e da Solidariedade, se esteja fornecendo indícios para a reconstituição da história da língua portuguesa disseminada por terras d’aquém mar. Conforme anunciado nos pressupostos teóricos, adotou-se a proposta de Brown e Gilman (1960) sobre a Teoria do Poder e Solidariedade. Pretende-se identificar como certos traços lingüísticos deixam transparecer se as relações sociais evidenciam opressão ou solidariedade. Adotou-se a tipologia pensada por Lopes (2001) a partir das seguintes relações sociais: 1) de inferior para superior (assimétrica ascendente); 2) de superior para inferior (assimétrica descendente); 3) entre membros de um mesmo grupo social – classes altas – (simétricas). A tabela 4 apresenta o confronto entre os tipos de relações sociais com as freqüências de uso das formas nominais e pronominais de tratamento recorrentes nas cartas setecentistas e oitocentistas em análise. TIPOS DE RELAÇÕES SOCIAIS PERCEPTÍVEIS EM CARTAS MANUSCRITAS NO RIO DE JANEIRO COLONIAL (SÉCULO XVIII) TIPOS DE RELAÇÕES SOCIAIS FORMAS PRONOMINAIS E NOMINAIS DE TRATAMENTO V. EX. A S S I M E T R RELAÇÕES SOCIAIS DE INFERIOR PARA SUPERIOR RELAÇÕES SOCIAIS DE SUPERIOR PARA INFERIOR V. M S. 138/195 (71%) - - TOTAIS VOCÊ TU 11/34 (32%) - 01/12 (08%) 150/371 (40%) 18/49 (37%) 12/34 (35%) 76/81 (94%) - 106/371 (29%) 57/195 (29%) 31/49 (63%) 12/34 (32%) 05/81 (06%) 11/12 (92%) 115/371 (31%) 195/371 (53%) 49/371 (13%) 34/371 (09%) 81/371 (22%) 12/371 (03%) 371/371 (100%) A CE R 256/371 (69%) I A s I M E T R I RELAÇÕES SOCIAIS ENTRE MEMBROS DE UM MESMO GRUPO SOCIAL (CLASSE ALTA) A TOTAIS TIPOS DE RELAÇÕES SOCIAIS PERCEPTÍVEIS EM CARTAS MANUSCRITAS NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL (SÉCULO XIX) TIPOS DE RELAÇÕES SOCIAIS FORMAS PRONOMINAIS E NOMINAIS DE TRATAMENTO V. EX. RELAÇÕES SOCIAIS DE INFERIOR PARA SUPERIOR (ASSIMETRIA) RELAÇÕES SOCIAIS ENTRE MEMBROS DE UM MESMO GRUPO SOCIAL (CLASSE ALTA) (SIMETRIA) TOTAIS A V. M CE S. V. S. 11/23 (48%) 22/41 (54%) R A V. MAJ. TOTAIS VOCÊ TU VÓS 06/06 (100%) - - - 57/180 (32%) E 18/46 (39%) - 28/46 (61%) 27/27 (100%) 12/23 (52%) 19/41 (46%) - 18/18 (100%) 13/13 (100%) 06/06 (100%) 123/180 (68%) 46/180 (26%) 27/180 (15%) 23/180 (13%) 41/180 (22%) 06/180 (03%) 18/180 (10%) 13/180 (07%) 06/180 (07%) 180/180 (100%) Rumeu (2001) discute que “o exercício do poder conduz a uma assimetria nas relações interpessoais que, por sua vez, acarreta uma assimetria no tratamento entre os falantes.” A partir da análise da tabela 4, verifica-se uma mudança de comportamento quanto ao emprego de Vossa Excelência do século XVIII para o XIX. No século XVIII, observou-se maior produtividade de uso nas relações sociais de inferior para superior (assimétrica ascendente) com 138 ocorrências – 71% –, já no século XIX, houve predomínio do emprego de Vossa Excelência nas relações sociais entre membros de um mesmo grupo social (simétrica) com 28 ocorrências – 61%. No século XVIII, a maior parte das ocorrências de Vossa Mercê (31 dados - 63%) foi identificada em duas cartas não-oficiais trocadas entre pessoas pertencentes a um mesmo grupo social (relações sociais simétricas), como se obseva de (01) a (04). (01) “(...) Tenho Recebido trezCartazde Vossamercê depois dasuapartida, enão me tendo sido possivel escrever-lhe; tenho pedido aos meos Ajudantes das ordéns, eatodas aspessoaz daminha familia hajão desegurar a Vossa mercê aminha amizade eoquanto tenhosentido queVossa mercê tenha tido tantoz detrimentoz nasua Saude. (...)” (Carta não-oficial do Marquês do Lavradio ao Intendente da Vila de São Félix, Antônio José de Miranda (05). RJ, 12.12.1772.) (02) “(...) Vossamercê temsempre muitoCerta aminha vontade para emtudolhedargosto. (...)” (Carta não-oficial do Marquês do Lavradio ao Intendente da da Vila de São Félix, Antônio José de Miranda (05). RJ, 12.12.1772.) (03) “(...) Eusou avossamercê devedor devarias respostas, talvez confiando dofavor que Vossa mercê mefaz, edeter procurado mostrar lhe quanto metem sido possivel aminha sincera amizade eque por estes motivoz Vossa mercê houvese dediscupar esta minha falta depromptualidade (...)” (Carta não-oficial do Marquês do Lavradio a João Henrique de Souza (08). RJ, 26.03.1773.) (04) “(...) Ao Conselheiro, eThezoureiro Mor Joaquim Ignácio da Cruz escrevo largamente sobre esta matéria, oque creyo elle comonicará a Vossa mercê (...)” (Carta não-oficial do Marquês do Lavradio a João Henrique de Souza (08). RJ, 26.03.1773.) As outras 18 ocorrências de Vossa Mercê se deram em um tipo de relação assimétrica e foram expressas através de uma única carta oficial redigida pelo Marquês do Lavradio para o capitão engenheiro Francisco João Roscio, determinando-lhe ordens em relação às obras no Continente do Rio Grande, como é possível observar em (05) e (06). (05) “ComaChegada daCurvetta Conceição vinda daIlha deSanta Catharina Receby aCarta deVossa mercê dandomeaCerteza deterem feito felismente asua viagem, sem embargo deSeteremdemorado nélla mais algunz dias dos que aquî Sesopunhão (...)” (Carta oficial do Marquês do Lavradio para Francisco João Roscio (07). RJ, 15.02.1774.) (06) “Agrande Confiança, que faço doprestimo de Vossa mercê, omuito que me esperanceyo que osSeos trabalhoz Sejão demuita utilidade aoEstado, ogrande perigo, emque Considero prezentemente oContinente do Rio Grande fazendose aly prezentemente Summamente precizo hum Engenheiro habil, quetenha zello peloServiço, epela Patria, mefazem indispensavel haja de ordenar a Vossa mercê, pase emediatamente aquelleContinente para nélle fazer dirigir as obraz (...)” (Carta oficial do Marquês do Lavradio para Francisco João Roscio (07). RJ, 15.02.1774.) O fato de Vossa Mercê apresentar-se para estabelecer assimetria descendente pode sugerir a perda do caráter de cortesia peculiar ao seu emprego, segundo Santos Luz (1958), Cintra (1972). Constata-se não se tratar mais de uma forma usada, única e exclusivamente, para evocar o monarca português, como foi estabelecida, inicialmente, conforme as apreciações de Santos Luz, 1958; Cintra, 1972; Said Ali, 2001. No que diz respeito à contraparte gramaticalizada de Vossa Mercê – Você –, verifica-se maior produtividade de uso dessa estratégia de referência à 2a pessoa do discurso para estabelecimento de assimetria descendente (94%). Esse tipo de relação assimétrica, a partir da qual Você se mostrou com maior aplicabilidade, deixou-se evidenciar nas cartas particulares trocadas entre pai e filho como, por exemplo, as cartas de amizade trocadas entre o Marquês do Lavradio e seus filhos – Conde de Tarouca e o Conde de Vila Verde –, conforme se observa de (07) a (09). (07) “MeuqueridoFilho, e Senhor domeuCoração; Grande hé aconsolação, que tenho com asboas novas que Você me dá suas porem dêvodizer=lhe averdade, eu menão Livro de cuidado, com quanto Você não vive pormais mezes auzentedeLixboa; (...)” (Carta não-oficial do Marquês do Lavradio para o seu filho, Conde de Tarouca (02). RJ, 17.11.1770.) (08) “Meu Filho eSenhor domeucoração: Parece que depropozito se mejuntão os negocios demayor trabalho nas ocazioenz, emque dezejo escrever aVocê Largamente, para que eu lhenão possa escrever tão extenço como dezejava: (...)” (Carta não-oficial do Marquês do Lavradio para o seu filho, Conde de Vila Verde (15). RJ, 06.05.1774.) (09) “Meu Filho e Senhor domeuCoração, ogrande gosto, Comque recebo as novaz de Você faz comque Você receba agora esta carta minha, (...)” (Carta não-oficial do Marquês do Lavradio para o seu filho, Conde de Tarouca (14). RJ, 06.05.1774.) A forma pronominal Tu é praticamente categórica29 (92% - 11/12) em cartas particulares – tipo de texto dotado de menor grau de cerimônia –, evidenciando maior proximidade entre remetente e destinatário da carta. Na amostra oitocentista, observa-se a presença de Vossa Mercê, Você e Tu somente nas cartas não-oficiais em que se identificam relações sociais entre membros de um mesmo grupo social – classe alta. O fato de Vossa Mercê mostrar-se freqüente nesse tipo de relação solidária, como se constata em (10) e (11), evidencia o acelerado processo de dessemantização sofrido por tal forma na passagem do século XVIII para o século XIX – 63% para 100% dos dados, respectivamente. (10) “(...) Tive ahonra de beijar a Mao aSua Alteza Real, no Nome deVossaMercê, que aocazião de lha beijar se mostrou não só agradecido, como bem lembrado do quanto estimava. (...)” (Carta não-oficial de Joaquim José de Azevedo para Joaquim José da Costa e Silva (02). RJ, 16.08.1809.) (11) “(...) Acresce mais outra duvida com que agora se lembrou o dito Izedoro Alves que diz que não deve pagar o risco por que vossa mercê motivou oficar em Angola aquella quantia embargada, equepor semelhante razão não seguio o destino quedeclarava a Letra, e que não pode haver direito que o obrigue a pagar o que não deve de trinta por Cento (...)” (Carta não-oficial de Jozé Luis Alves a Antônio Esteves Costa (06). RJ, 06.07.1811.) Você e Tu assumem, nas cartas não-oficiais mantidas entre membros de um mesmo grupo social, um aumento perceptível nas suas freqüências de uso – de 06% para 100% (Você) e de 92% para 100% (Tu) na transição do século XVIII para o século XIX. Essa mudança de comportamento legitima que se considere tais formas como estratégias de referência à 2 a pessoa do discurso, em relações sociais movidas pela Solidariedade, conforme se observa de (12) a (15). (12) “(...) Na carta, que ultimamente lhe escrevi participei o arbitrio que tomei de exceder as suas ordens na encomenda da bomba, que você me havia encomendado para colocar nhum Poço Publico, que mandara construir, e de prezente asseguro-lhe que esta obra está quasi concluida a medida do meo dezejo (...)” (Carta não-oficial de J. F. da C. Miranda ao senador José Martiniano de Alencar (14). RJ, 28.03.1837.) (13) “(...) Deos queira não haja novidades, e que tanto você e sua família como todos os nossos amigos estejão em paz com saúde efelicidade (...)” (Carta não-oficial de J. F. da C. Miranda para o senador José Martiniano de Alencar (13). RJ, 18.02.1836.) 29 Considerou-se como categórica, pois a única ocorrência da forma pronominal Tu numa relação social de inferior para superior apresentou-se em co-referência com a forma nominal de tratamento Vossa Excelência conforme já apresentado na tabela 1 e exemplificado em (41) – página 121 deste texto. (14) “(...) Se esta quantia te não chegar para os teos arranjos, e passagem, julgo, não será difficultoso pagaresapassagem no fim de viagem, quero dizer, nesta Cidade, onde has de achar ordem para tudo.(...)” (Carta não-oficial de Martin Francisco Ribeiro de Andrada e Silva para José Bonifácio de Andrada e Silva (03). RJ, 16.01.1810.) (15) “(...) Estimei muito saber que fosses approvado plenamente Embarços de saúde [↓a] [ ↑mais] ainda uma vez me fizeram interromper os meus estudos preparatórios. (...)” (Carta não-oficial de Romualdo Antônio Franco de Sá para o seu irmão Felipe Franco de Sá. RJ, 2[6].12.1858.) A forma de tratamento respeitoso Senhor mostra-se como a única estratégia recorrente em todos os tipos de relações sociais nos corpora em análise com índices de freqüência muito próximos entre si. Tal comportamento, como observado anteriormente, deve-se ao fato de essa estratégia se constituir recurso específico nos vocativos que introduzem as missivas. As formas nominais de tratamento Vossa Senhoria e Vossa Majestade, como mencionado anteriormente, somente foram identificadas no século XIX. A forma Vossa Senhoria apresentase com maior freqüência de uso nas relações assimétricas ascendentes com 22 ocorrências – 54% –. Apesar disso, tal estratégia de tratamento também é empregada entre membros de um mesmo grupo social (classe alta) – 19 ocorrências (46%). Vossa Majestade, por sua vez, se constitui como um recurso específico nas cartas direcionadas ao rei. Uma vez que se considere – parafraseando Bakhtin e Voloshinov (1973) – a língua como o sensor das transformações sociais, há de se atentar para as repercussões desse rearranjo social nas relações interpessoais, e conseqüentemente, nas formas de tratamento. Mesmo que preliminarmente, em conseqüência do baixo número de dados, é possível tecer algumas considerações acerca das co-relações estabelecidas entre as freqüências de uso das formas de tratamento de base nominal e pronominal e o tipo de relação social que esses usos lingüísticos refletem. O controle do papel social assumido entre remetentes e destinatários das cartas oficiais e não-oficiais produzidas no século XVIII evidenciou uma distribuição em três níveis: de inferior para superior (40% - 150/371), de superior para inferior (29% - 106/371) e entre membros de um mesmo grupo social – classe alta – (31% - 115/371). Considerando que os dois primeiros tipos correspondem a relações assimétricas (ascendente e descendente), perfaz-se um total de 256 ocorrências (69%), o que permite supor-se, através das cartas setecentistas em análise, a configuração de uma organização social orientada pela semântica do Poder. Nas cartas oitocentistas em análise, por sua vez, foram identificados apenas dois tipos de relações interpessoais: de inferior para superior – assimétrica ascendente – e entre membros de um mesmo grupo social (classe alta) – simétrica. Pelo fato de as relações simétricas constituírem-se com o maior índice percentual – 68% – em comparação à freqüência das relações assimétricas – 32% – vislumbra-se a possibilidade de se pensar que as missivas do século XIX parecem denunciar uma organização social calcada na Solidariedade. A reflexão acerca da possibilidade de uma orientação mais solidária, na passagem do século XVIII para o XIX, parece se mostrar em conformidade com o pensamento de Biderman (1972) e com o de Oliveira e Silva (1974) que também previram estar a sociedade brasileira se encaminhando para relações sociais movidas pela Solidariedade. 5.3 Reflexos da mudança categorial ‘Vossa Mercê’ > ‘Você’ no português à luz dos princípios de gramaticalização propostos por Hopper. Pretende-se depreender, neste sub-item, com base na quantificação dos dados, o estágio da pronominalização assumido por Vossa Mercê (transition problem, cf. Weinreich et alii, 1968), a partir dos princípios de gramaticalização elaborados por Hopper (1991), nos corpora em análise. Apresentar-se-ão os resultados relativos a Vossa Mercê, Você, Tu e Vós em função dos seguintes grupos de fatores lingüísticos: tipo de carta, funções sintáticas, expressão do sujeito, estrutura do sintagma complementizador, co-referenciabilidade e posição do sujeito. Naro e Braga (2000) tecem o seguinte comentário acerca dos princípios de gramaticalização idealizados por Hopper (1991): o autor, dada sua concepção de gramática emergente (1987), está interessado nas fronteiras frouxas e difusas entre gramática e léxico, vale dizer, no fluxo intermitente entre uma e outra. Daí sua preocupação com um conjunto de princípios capazes de detectar a transformação incipiente de um item qualquer. Assim sendo, busca-se reinterpretar o processo de pronominalização de Vossa Mercê > Você à luz dos cinco princípios de gramaticalização propostos por Hopper (1991) – layering, divergência, especialização, persistência e decategorização, discutidos com base na quantificação dos dados de Vossa Mercê, Você, Vós e Tu extraídos das cartas. O primeiro princípio faz referência ao fato de que, em processos de gramaticalização, o velho e o novo convivem em um mesmo domínio funcional – layering (estratificação). As camadas mais antigas não são necessariamente descartadas, mas podem coexistir e interagir com as recentes. A convivência simultânea de camadas/variantes não sugere a imediata eliminação das antigas no uso lingüístico, em virtude do surgimento de novas camadas, mas evidencia a coexistência de formas lingüísticas alternantes a atuarem num mesmo campo funcional. A tabela 5 apresenta o resultado da concorrência entre as estratégias de referência à 2a pessoa do discurso controladas nas cartas setecentistas e oitocentistas. DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE ‘VOSSA MERCÊ’, ‘VOCÊ’ , ‘TU’ E ‘VÓS’ EM CARTAS MANUSCRITAS NO RIO DE JANEIRO COLONIAL E IMPERIAL FORMAS NOMINAIS E PRONOMINAIS OFICIAIS OCO. VOSSA MERCÊ VOCÊ TU VÓS TOTAL SÉCULO XIX SÉCULO XVIII CARTAS CARTAS % CARTAS NÃO-OFICIAIS OCO. % 18/19 95% 31/123 25% 81/123 66% 01/19 07% 11/123 09% 19/206 123/206 (09%) (60%) 142/206 (69%) OFICIAIS OCO. TOTAL CARTAS % NÃO-OFICIAIS OCO. % 01/07 14% 26/57 45% 18/57 32% 13/57 23% 06/07 86% 07/206 57/206 (03%) (28%) 64/206 (31%) OCO. % 76/206 99/206 25/206 06/206 37% 48% 12% 03% 206 (100%) Tabela 5: Distribuição dos dados de Vossa Mercê, Você, Tu e Vós em cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial. Constata-se, a partir da análise da tabela 5, que Você com 99 ocorrências (48%), forma resultante do processo de gramaticalização de Vossa Mercê, convive e coexiste com o legítimo pronome de 2a pessoa – Tu com 25 ocorrências (12%). A transformação, paulatina e gradual, de um item lexical – Vossa Mercê – em um item gramatical – Você – se dá sem que seja eliminado do sistema da língua portuguesa o pronome de 2a pessoa do discurso – Tu –, como se observa de (01) a (04), nas cartas não-oficiais dos séculos XVIII e XIX. (01) “(...) Grande he aconsolação, que tenho com asboas novas que Você me dá suas porem dêvo dizer=lhe averdade, eu menão Livro de cuidado, com quanto Você não vive pormais mezes auzentedeLixboa (...)” (Carta não-oficial (02). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.) (02) “(...) Agoraqueroquemedes boas novas tuas, edetoda atuaExcelentíssima Família, aquém peçome Recomendez com o maior Respeito (...)” (Carta não-oficial (04). Marquês do Lavradio. RJ, 23.12.1770) (03) “(...) Não te demores em vir, foge para os braços de huă familia, que te ama: não [↑há] hum só membro della, que não suspira pela tua vinda, este he o voto de todos nós, e podes crer-me, que he apropria verdade. (...)” (Carta não-oficial (03). Martin Francisco Ribeiro de Andrada e Silva. RJ, 16.01.1810.) (04) “Estimo muito que você e tudo quanto lhe pertence goze saude e todas as venturas que para mim apeteço.” (Carta não-oficial (14). J. F. da C. Miranda. RJ, 28.03.1837.) As formas de Você e Tu são estratégias em competição, pois ocorrem quase exclusivamente nas cartas não-oficiais dos corpora em análise. Nas cartas setecentistas, as 81 ocorrências (66%) de Você se apresentam distribuídas em 09 cartas de amizade, trocadas entre o Marquês do Lavradio e os seus filhos, Conde de Tarouca e Conde de Vila Verde e entre o Marquês do Lavradio e seu irmão, Conde de São Vicente. Nas 09 correspondências pessoais em que foram identificados os dados de Você, observa-se que, em 02 cartas redigidas pelo Marquês do Lavradio para o seu irmão – Conde de São Vicente – há dados de Você(s) e de Tu num mesmo parágrafo como se observa em (05) e (06). Tal convivência pode constituir indício para confirmação da hipótese de que a gramaticalização se tenha dado no plural em substituição à forma Vós que, por sua vez, se apresentou, nos corpora em análise, com índice percentual de 03%, ratificando, assim, como afirma Cintra (1972), o seu desuso no português europeu do século XVIII. (05) “(...) Como esta Carta poderá chegar, com tempo, ó deestares emSalvaterra, ó deteachares deSemana eneçasoCazioens, pelo que vejo datuaCarta edoConde doPrado, lhesobejaaVocês tampoucotempo, Comoeujulgo dasCartas queVocês daquelles Lugaresme escrevem, nãooquero Rogar inutilmente Obrigando-os aLer por mais instantes as minhas impertinências, tu tens Sempre promtissima aminha vontade para em tudo eemtodaaparte teobedeçer comomayorgosto. (...)” (Carta não-oficial (03). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.) (06) “(...) MeuIrmão eSenhor domeuCoração aindaque meachava desobrigado detedarodescomodo daContinuação daminha ComRespondençia por estarem chegando continuamente Navios sem que Vocês selembrem; ó como parentes ou Como Amigoz de que me acho neste continente, eque em toda aparte medevem omayor intreçe asnovas devocês com tudo como este hé oprimeiro Navio que parte, depois que mechegou anotícia dapromoção doSenhor Cardeal, eeudezejo ser sempre dos primeiroz que felicite pelo grande intereçe que medevetudoquehé felicidade detua Caza, devo guardar este meu infado para outraoCazião, enesta só tedevo darosparabens daquela nomeação; eutambem os Recebo, eaindaque estou tamLonge, também cá puzemoz as nosas Luminárias; [espaço] Agoraqueroquemedes boas novas tuas, edetoda atuaExcelentíssima Família, aquem peçome Recomendez com o mayor Respeito (...)” (Carta não-oficial (04). Marquês do Lavradio. RJ, 23.12.1770.) A divergência se constitui como um outro princípio de gramaticalização, segundo Hopper (1991), através do qual é possível detectar a permanência da forma original como elemento autônomo ao lado da forma gramaticalizada. Em relação ao processo de pronominalização de Vossa Mercê, observa-se que a estrutura fonológica do item lexical Mercê é preservada em vários contextos, porém a forma nominal de tratamento (Vossa Mercê) se desgastou fonética e semanticamente até originar o pronome (Vossa Mercê > Você). Nas cartas setecentistas e oitocentistas em análise, a presença de Mercê ao lado de Vossa Mercê e de Você, atuando como um vocábulo autônomo, aponta para o fato de que tais formas divergem, manifestando-se com um comportamento mais lexical ou mais gramatical a depender do estágio de gramaticalização em que estejam. Dentre as cinco ocorrências do item lexical Mercê, duas delas se dão numa única carta oficial setecentista de J. B.e do Rio de Janeiro destinada a João Henrique Böhm para informar que o Padre Luís de Medeiros Correa ainda não tinha chegado ao “Continente do Rio Grande”, como se verifica em (07) e (08). Nas cartas oitocentistas oficiais, a única ocorrência do item lexical Mercê se dá em uma missiva oficial redigida por José Bonifácio de Andrada e Silva através da qual o autor concede o Hábito da Ordem de São Bento de Aviz a Joze Francisco de Andrada Almeida Bonjardim, como se observa em (09). Já nas cartas oitocentistas não-oficiais, o vocábulo Mercê ocorre nas correspondências redigidas por Inocêncio A. das Neves (carta 08) e por João Crysostomo de Oliveira Salgado Brandão (carta 09) as quais versavam, por sua vez, sobre assuntos de ordem pessoal, como se verifica em (10) e (11). (07) “(...) Na occazião prezente não posso deixar de considerar a Vossa Excelência occupado do maior jubilo, e alegria pelas Mercez das novas patentes, com que Sua Magestade foi servido premiar os serviços dos Officiaes que se distinguirão nas occazioens de honra (...)” (Carta oficial (09). J. Be. do RJ. RJ, 22.10.1776.) (08) “(...) A proporção eu me encho de prazer, e consolação; e congratulandome com VossaExcelência lhe dou mil parabens pela grande parte que lhe toca; pois que estas mesmas Mercez são evidentes demonstracoens que Sua Magestade dá do merecimento de quem dirigio toda a acção (...)” (Carta oficial (09). J. Be. do RJ. RJ, 22.10.1776.) (09) “(...) Havendo Sua Alteza Real o Principe Regente feito Merce a Jozé Francisco de Andrade Almeida, Bonjardim, Capitão da primeira Companhia do Corpo de Tropa de Linha de Província do Espírito Sancto, do Habito da Ordem de São Bento de Aviz, por despacho de 13 de Maio do corrente; e não se lhe tendo ainda expedido os Despachos necessarios, para receber, e professar na dita ordem: Há por bem conceder-lhe faculdade, para que por tempo de tres mezes possar usar livremente da Insignia do Habito da Ordem de São Bento de Aviz (...)” (Carta oficial (09). Jozê Bonifácio de Andrada e Silva. RJ, 21.06.1822.) (10) “(...) A outra cartinha he para a Cunhada do Bonifacio em Respeito a que me escreveo, e como mefallava em Vossa Senhoria e não sei outro modo de lha fazer Receber, e Vossa Senhoria sabera onde ella mora, ou ella aparecera, por isso vou a pedir-lhe a mercê de lhe fazer ir amão a Carta. (...)” (Carta não-oficial (08). Inocêncio A. das Neves. RJ, 08.05.1816.) (11) “(...) Apezar doque, eu lhefiz ver as razoens emque estava demerecer esta graça, que [[tinha]] lugar, enão era contraria adisciplina cannonica ávista do conssentimento epostulação do Vigário Collado e Postulação do meu bispo aSua Magestade eque havião muitos exemplos de [i]guaes mercês. (...)” (Carta não-oficial (09). João Crysostomo de Oliveira Salgado Brandão. RJ, 06.03.1820.) O princípio da especialização remete ao estreitamento de escolhas sofridas pelas construções gramaticais. A forma lingüística, em vias de gramaticalização, se torna obrigatória em alguns contextos, sofrendo, por exemplo, restrições sintagmáticas. A hipótese que embasa a análise de Vossa Mercê e Você a partir de suas respectivas funções sintáticas é a de que, à medida que Vossa Mercê começa a se pronominalizar, passa a assumir a função sintática de sujeito como é próprio dos pronomes pessoais tônicos. DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE ‘VOSSA MERCÊ’ E ‘VOCÊ’ E SUAS FUNÇÕES SINTÁTICAS NAS CARTAS MANUSCRITAS NO FUNÇÕES SINTÁTICAS RIO DE JANEIRO COLONIAL (SÉC. XVIII) VOSSA MERCÊ VOCÊ TOTAL OCO % OCO % OCO % SUJEITO OBJETO INDIRETO ADJUNTO ADNOMINAL COMPLEMENTO NOMINAL 31/49 13/49 04/49 01/49 63% 27% 08% 02% 45/81 26/81 07/81 03/81 56% 32% 09% 03% 76/130 39/130 11/130 04/130 57% 31% 09% 03% TOTAL 49/130 37% 81/130 62% 130/130 100% DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE ‘VOSSA MERCÊ’ E ‘VOCÊ’ E SUAS FUNÇÕES SINTÁTICAS NAS CARTAS MANUSCRITAS NO FUNÇÕES SINTÁTICAS RIO DE JANEIRO IMPERIAL (SÉC. XIX) VOSSA MERCÊ VOCÊ TOTAL OCO % OCO % OCO % SUJEITO OBJETO INDIRETO OBJETO DIRETO COMPLEMENTO NOMINAL ADJUNTO ADNOMINAL 20/27 04/27 02/27 01/27 74% 15% 07% 04% 17/18 01/18 - 94% 06% - 37/45 04/45 01/45 02/45 01/45 82% 09% 02% 04% 02% TOTAL 27/45 60% 18/45 40% 45/45 100% Tabela 6: Distribuição dos dados de Vossa Mercê e Você em relação às suas funções sintáticas nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial. Ao analisar as ocorrências de Vossa Mercê e Você na tabela 6, verifica-se que a forma Você assume, de um século para o outro, maior freqüência de uso no exercício da função sintática de sujeito: 45 ocorrências – 56% – para o século XVIII e 17 ocorrências – 94% – para o século XIX, conforme se verifica de (12) a (15). Embora os percentuais de Vossa Mercê aumentem na passagem do século XVIII – 31 ocorrências (63%) – para o século XIX – 20 ocorrências (74%) –, percebe-se maior estabilidade em termos de freqüência de uso. Ressalte-se que, nas cartas setecentistas, as ocorrências de Vossa Mercê e Você, apesar de assumirem maior freqüência de uso no exercício da função sintática de sujeito, apresentam-se regularmente distribuídas entre as demais funções sintáticas – objeto direto, objeto indireto, complemento nominal e adjunto adnominal –, o que as evidencia como formas de natureza muito próximas. Comportamento diferente é o assumido por Você nas cartas oitocentistas, uma vez que 94% dos dados – 17 ocorrências – se dão na função sintática de sujeito, comportamento sintático próprio das formas pronominais pessoais. Além de exercer a função sintática de sujeito, a forma Você somente uma única vez assume outro comportamento sintático: o papel sintático de objeto direto, como se observa em (16). Acredita-se que, embora o baixo número de ocorrências restrinja a distribuição dos dados pelas diversas funções, é possível evidenciar indícios de que, no século XIX, o Você parece assumir comportamento sintático de forma pronominal pessoal nas cartas em análise. (12) “(...) fazendo Vossamercê aomesmo tempo todaz as observaçoenz, que lheforem possiveiz para Se haver deformar humMappa domesmoContinente mais Certo, eCom menos defeito, que osque athegora setemfeito. (...)” (Carta oficial (07). Marquês do Lavradio. RJ, 15.02.1774.) (13) “(...) Pelo meu avizo de 28 de Mayo deve vossa mercê mandar a original Letra de João Pereira de SouzaCaldas e sem ella nada se pode fazer conforme o parecer do Letrado (...)” (Carta não-oficial (06). José Luiz Alves. RJ, 06.07.1811.) (14) “(...) Você desculpe o eu não ser mais extenço nesta ocazião, porem omesmo Conde mejustificarâ com o grande trabalho, emque medeixa (...)” (Carta não-oficial (11). Marquês do Lavradio. RJ, 02.03.1774.) (15) “Você tem sido batido na Câmera pelos Hollandezes, e na sessão de 13 deste oPadre Pinto estudou hum sermão acusatorio, escreveo e deo ao Tachigrafo (...)” (Carta não-oficial (12). J. F. da C. Miranda. RJ, 30.07.1835.) (16) “(...) antes disto consulte a algum ahi dos que estão nas circunstancias de reger a Província que não seja de sua família nem dos Castros; para no Cazo delle aceitar Você nos comunicar (...)” (Carta não-oficial (12). J. F. da C. Miranda. RJ, 30.07.1835.) O princípio da persistência pressupõe a conservação, na forma gramaticalizada, de um traço semântico da forma fonte. Quando um item lexical inicia o processo de gramaticalização, alguns detalhes da sua história lexical podem refletir-se na sua distribuição gramatical. A persistência de traços da forma fonte pode explicar as restrições sofridas pela forma gramaticalizada. Embora o princípio pressuponha a manifestação de propriedades semânticas, foram analisados três fatores estruturais que indicam, de certa forma, um tipo de persistência: a expressão do sujeito e a co-referencialidade. DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE ‘VOSSA MERCÊ’, ‘VOCÊ’ E ‘TU’ QUANTO À EXPRESSÃO DO SUJEITO DE 2 PESSOA DO DISCURSO NAS CARTAS MANUSCRITAS A EXPRESSÃO DO SUJEITO SUJEITO PLENO SUJEITO NULO TOTAL NO RIO DE JANEIRO COLONIAL (SÉC. XVIII) VOCÊ VOSSA MERCÊ OCO. % OCO. % OCO. % OCO. % 23/31 08/31 31/88 32/45 13/45 45/88 71% 28% 51% 03/12 09/12 12/88 25% 75% 14% 58/88 30/88 88/88 66% 34% 100% 74% 25% 35% TU TOTAL DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE ‘VOSSA MERCÊ’, ‘VOCÊ’, ‘TU’ E ‘VÓS’ QUANTO À EXPRESSÃO DO SUJEITO DE EXPRESSÃO DO A NO SUJEITO SUJEITO PLENO SUJEITO NULO TOTAL 2 PESSOA DO DISCURSO NAS CARTAS MANUSCRITAS VOSSA MERCÊ RIO DE JANEIRO IMPERIAL (SÉC. XIX) VOCÊ TU VÓS OCO. % OCO. % OCO. % OCO. % 13/20 07/20 20/55 65% 35% 36% 12/17 05/17 17/55 70% 29% 31% 01/13 12/13 13/55 07% 92% 24% 05/05 05/55 100% 09% TOTAL OCO. % 26/55 29/55 55/55 47% 53% 100% Tabela 7: Distribuição dos dados de Vossa Mercê, Você e Tu quanto à expressão do sujeito de 2a pessoa do discurso nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial. Nas cartas setecentistas em análise, observa-se que Vossa Mercê com 23 ocorrências – 74% dos dados – e Você com 32 ocorrências – 71% dos dados – apresentam-se, preferencialmente, como sujeitos plenos. O mesmo ocorre nas cartas oitocentistas: Vossa Mercê com 13 ocorrências – 65% dos dados – e Você com 12 ocorrências – 70% dos dados. O comportamento sintático assumido por Você se assemelha ao da forma nominal que o motivou – Vossa Mercê, apresentando maiores freqüências de uso como sujeito pleno, nos dois períodos controlados. Situação diferente é a assumida pelas formas pronominais legítimas – Tu (no século XVIII, 09 ocorrências, 75%, no século XIX, 12 ocorrências, 92%) e Vós (05 ocorrências, 100%, no século XIX) – que, preferencialmente, se apresentam como sujeitos nulos. Confirma-se, pois, a tese de Duarte (1995) de que o português brasileiro do século XIX era uma língua de sujeito nulo, iniciando o seu processo de mudança de parâmetro a partir do século XX. De (15) a (19), verifica-se a categoria de sujeito preenchida pelas formas Vossa Mercê e Você nas cartas dos séculos XVIII e XIX. (15) “(...) Vossamercê metem Sempre muito prompto para emtudo lhemostrar aminha Estimação.” (Carta oficial (07). Marquês do Lavradio. RJ, 15.02.1774.) (16) “(...) Domesmo Continente medarâ Vossamercê Conta daquillo que for enCarregado, doqueSetiver posto empratica aeste Respeito, edetudo que tiver aContecido nas partez emque Vossamercê seachar (...)” (Carta oficial (07). Marquês do Lavradio. RJ, 15.02.1774.) (17) “(...) Grande hé aconsolação, que tenho com asboas novas que Você me dá suas porem dêvo dizer=lhe averdade, eu menão Livro de cuidado, com quanto Você não vive pormais mezes auzentedeLixboa(...)” (Carta não-oficial (02). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.) (18) “(...) Deos queira não haja novidades, e que tanto você e sua familia como todos os nossos amigos estejão em paz com saude efelicidade (...)” (Carta não-oficial (13). J. F. da C. Miranda. RJ, 18.02.1836.) (19) “(...) Estimo muito que você e tudo quanto lhe pertence goze saude e todas as venturas que para mim apeteço. (...)” (Carta não-oficial (14). J. F. da C. Miranda. RJ, 28.03.1837.) Outra categoria de análise que poderia referendar o princípio da persistência seria o controle da co-referencialidade entre Vossa Mercê, Você, Tu e Vós e as formas de 2a e 3a pessoas do discurso. Pretende-se, inicialmente, testar tal fator, a fim de verificar se a “famigerada” mistura de tratamento (Você – te/tua), tão condenada pelas nossas gramáticas atuais, já se fazia presente nos corpora em análise. Machado (2003), analisando cartas familiares do final do século XIX, localiza a combinação de formas pronominais de 3a com formas de 2a pessoa, principalmente nos fechamentos das cartas, como se pode mostrar no seguinte trecho: “A 12 escrevi a Christiano | e hoje a voce. Estimei muito | as boas noticias que tive que | voce está muito estudiozo e | que está muito adiantado (...) Te abraça e a | Christiano (...)” (Carta no 41.) Nesta investigação, como pode ser depreendido da tabela 8, tais combinações não foram identificadas. A CO-REFERENCIALIDADE DE ‘VOSSA MERCÊ’, ‘VOCÊ’ E ‘TU’ NAS CARTAS MANUSCRITAS NO RIO DE JANEIRO COLONIAL (SÉC. XVIII) PESSOAS GRAMATICAIS EM CO-REFERÊNCIA VOSSA MERCÊ TU VOCÊ(S) TOTAL OCO. % OCO. % OCO. % OCO. % (3 PESSOA DO SINGULAR) P2 29/29 100% 37/38 97% 03/10 30% 69/77 89% (2 PESSOA DO SINGULAR) P6 - - - - 07/10 70% 07/77 09% - - 01/38 03% - - 01/77 01% 29/29 100% 38/38 100% 10/10 100% 77/77 100% P3 A A (3 PESSOA DO PLURAL) A TOTAL A CO-REFERENCIALIDADE DE ‘VOSSA MERCÊ’, ‘VOCÊ’, ‘TU’ E ‘VÓS’ NAS CARTAS MANUSCRITAS NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL (SÉC. XIX) PESSOAS GRAMATICAIS EM VOCÊ(S) VOSSA MERCÊ TU VÓS TOTAL CO-REFERÊNCIA P3 (3 PESSOA DO SINGULAR) P2 (2 PESSOA DO SINGULAR) OCO. % OCO. % OCO. % OCO. % OCO. % A 11/11 100% 13/14 93% - - - - 25/38 66% A - - - - 08/08 100% - - 08/38 21% P5 (2 PESSOA DO PLURAL) P6 - - - - - - 04/39 100% 04/38 10% - - 01/14 07% - - - - 01/38 03% 11/11 100% 14/14 100% 08/08 100% 04/39 100% 38/38 100% A (3 PESSOA DO PLURAL) A TOTAL Tabela 8: A co-referencialidade de Vossa Mercê, Você e Tu nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial. Com base nos resultados expostos na tabela 8, verifica-se que a co-referência com formas de 3a pessoa são categóricas, seja no singular, seja no plural para Vossa Mercê e para Você nos dois séculos. O fato de Você se combinar apenas com pronomes de 3a pessoa gramatical o identifica, nesse estágio da sua gramaticalização, com a forma nominal de tratamento que o derivou, como se nota em (20). Nas cartas oitocentistas, observou-se o mesmo tipo de comportamento: Vossa Mercê e Você somente se combinam com a 3a pessoa gramatical, seja no singular (P3) – Vossa Mercê com 11 ocorrências (100%) e Você com 13 ocorrências (93%) –, seja no plural (P6), Você com 01 ocorrência (07%). Tais combinações sintáticas acabam por indiciar que traços morfossintáticos da forma nominal de tratamento – Vossa Mercê – persistem em Você, como é possível se averiguar em (21) e (22). (20) “(...) Vossamercê metem Sempre muito prompto para emtudo lhemostrar aminha Estimação. (...)” (Carta oficial (07). Marquês do Lavradio. RJ, 15.02.1774.) (21) “(...) ella serve para segurar aVocê omeu amor, e aminha saudade, e o alvoroso comque eztou esperando novaz suas, que atanto tempo nos faltão.” (Carta não-oficial (07). Marquês do Lavradio. RJ, 22.02.1773.) (22) “(...) Na carta, que ultimamente lhe escrevi participei o arbitrio que tomei de exceder as suas ordens na encomenda da bomba, que você me havia encomendado para colocar n hum Poço Publico (...)” (Carta não-oficial (14). J. F. da C. Miranda. RJ, 28.03.1837.) A forma pronominal Tu aparece, preferencialmente, nas cartas setecentistas e oitocentistas, em co-referência com a 2a pessoa gramatical: 07 ocorrências (70%) e 08 ocorrências (100%), conforme evidenciam os dados de (23) a (25). (23) “(...) Agoraqueroquemedes boas novas tuas, edetoda atuaExcelentíssima Família, aquem peçome Recomendez com o maior Respeito.” (Carta não-oficial (04). Marquês do Lavradio. RJ, 23.12.1770.) (24) “(...) Não te demores em vir, foge para os braços de huă familia, que te ama (...)” (Carta não-oficial (03). Martin Francisco Ribeiro de Andrada e Silva. RJ, 16.01.1810.) (25) “(...) Tu sabes, que, alem de teu irmão, sou realmente teu amigo, e portanto consternei-me em demasia, pensando no que terás sofrido (...)” (Carta não-oficial (03). Martin Francisco Ribeiro de Andrada e Silva. RJ, 16.01.1810.) Foi possível detectar, entretanto, nas cartas setecentistas, 03 ocorrências do pronome pessoal Tu em co-referência com P3 – 30% dos dados. Tais ocorrências distribuem-se por uma carta oficial, em uma única ocorrência, e pelas cartas não-oficiais, em 02 ocorrências, conforme se observa de (26) a (28), respectivamente. (26) “(...) esse Vossa Excelência lheescrever sejão cartas que [aspira] ver osenhor Marques por que cazo elle tenha sahido podeos abrir o d.o S.r tambem mediga Vossa Excelência se lhas has de Remeter para Lisboa aquellas que Vossa Excelência for servido mandar (...)” (Carta oficial (06). Raimundo José de Sousa. RJ, 26.03.1773.) (27) “(...) MeuIrmão eSenhordomeuCoração, nasbrevissimas cartas que tive ogosto deReceber suas medás aestimavel serteza datuaboaSaude edetodaatuaExlentíssima Casa Familia (...)” (Carta não-oficial (03). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.) (28) “(...) MeuIrmão eSenhordomeuCoração, nasbrevissimas cartas que tive ogosto deReceber suas medás aestimavel serteza datuaboaSaude edetodaatuaExlentíssima Casa Familia, que eu infinitamente estimo, e teagradeço dezejando, que estaseconserve a todas Vossas Excelências sempre tão felismente como tu opodes ser daminha verdadeira efielamizade. (...)” (Carta não-oficial (03). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.) A partir do princípio da decategorização, conjectura-se que formas, em processo de gramaticalização, tendem a perder ou neutralizar marcas morfológicas e propriedades sintáticas das categorias plenas (Nome e Verbo) e a assumir atributos das categorias secundárias (Adjetivo, Particípio, Preposição). Revelam-se indícios da instauração da mudança categorial (nome – Vossa Mercê – para pronome – Você) a partir da detecção de traços formais e de comportamentos sintáticos característicos das formas pronominais. No que diz respeito ao fenômeno lingüístico em estudo, observa-se que a posição assumida por Vossa Mercê e por Você pode fornecer indícios de uma maior ou menor aproximação da forma em vias de gramaticalização – Você – com a forma nominal que a determinou ou com os pronomes pessoais. Acrescente-se ainda que a discussão do princípio da decategorização idealizado por Hopper (1991) dialoga com a estabelecida por Lehmann (1982) através do princípio da fixação, que, segundo este, permite detectar, a partir do grau de variabilidade de uma forma no interior do sintagma oracional, indícios sintáticos do seu estágio de gramaticalização. DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE ‘VOSSA MERCÊ’ E ‘VOCÊ’ COMO SUJEITOS DE POSIÇÃO DO SUJEITO 2 PESSOA DO DISCURSO EM RELAÇÃO À VARIÁVEL POSIÇÃO DO SUJEITO NAS A CARTAS MANUSCRITAS NO RIO DE JANEIRO COLONIAL (SÉC. XVIII) VOSSA MERCÊ VOCÊ TOTAL OCO. % OCO. % OCO. % PRÉ-VERBAL PÓS-VERBAL ENTRE O VERBO AUXILIAR EO VERBO PRINCIPAL 18/23 05/23 78% 22% 21/32 07/32 66% 22% 39/55 12/55 71% 22% - - 04/32 12% 04/55 07% TOTAL 23/23 100% 32/32 100% 55/55 100% DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE ‘VOSSA MERCÊ’ E ‘VOCÊ’ COMO SUJEITOS DE 2 PESSOA DO DISCURSO EM RELAÇÃO À VARIÁVEL POSIÇÃO DO SUJEITO NAS A CARTAS MANUSCRITAS NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL POSIÇÃO DO SUJEITO VOSSA MERCÊ OCO. % (SÉC. XIX) VOCÊ OCO. % PRÉ-VERBAL PÓS-VERBAL ENTRE O VERBO AUXILIAR EO VERBO PRINCIPAL 11/13 01/13 85% 7,5% 11/12 - 92% - 22/25 01/25 88% 04% 01/13 7,5% 01/12 08% 02/25 08% TOTAL 13/13 100% 12/12 100% 25/25 100% TOTAL OCO. % Tabela 9: Distribuição dos dados de Vossa Mercê e Você como sujeitos de 2a pessoa do discurso em relação à variável posição do sujeito nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial. Vossa Mercê e Você como sujeitos plenos assumem uma significativa variabilidade sintagmática nas cartas do século XVIII se comparada com os resultados do século XIX. Vossa Mercê se deixa evidenciar em posições pré-verbal – 18 ocorrências (78%) – e pós-verbal – 05 ocorrências (22%). Você se manifesta como sujeito expresso em posição pré-verbal – 21 ocorrências (66 %) –, pós-verbal – 07 ocorrências (22%) – e 04 ocorrências entre o verbo principal e o verbal auxiliar – 12%. A possibilidade de ocorrer antes e depois do verbo e também entre o verbo auxiliar e o verbo principal parece indiciar que Você ainda funciona como nome, assemelhando-se à forma nominal de tratamento que o determinou – Vossa Mercê –, como se verifica de (29) a (32). Nesse caso, o fato de persistirem os traços nominais leva a admitir que a forma Você ainda não tinha perdido ou neutralizado as propriedades sintáticas herdadas de Vossa Mercê. Ao discutir o princípio da fixação pensado por Lehmann (1982), em relação ao processo de pronominalização em análise, constata-se que a forma Você se apresenta, no século XVIII, com uma maior variabilidade sintagmática, comportando-se de forma menos fixa no interior da oração, o que parece indiciar que a forma Você se aproxima da forma nominal de tratamento que a gerou. (29) “(...) Vosse Receberá a dezagradavel noticia de ter morrido o seu afilhado Domingoz Gomes daCunha muito percipitadamente porque nem eu soube da Sua molestia. (...)” (Carta não-oficial (10). Marquês do Lavradio. RJ, 12.06.1773.) (30) “(...) Meo filho esenhor domeo Coração pormão do Conde de Valladarez, que parte nesta ocazião receberá Você esta minha carta, (...)” (Carta não-oficial (12). Marquês do Lavradio. RJ, 02.03.1774.) (31) “(...) aseite Você esta verdadeira, esincera morteficação assim como as expressoens de gosto, comque recebo boas novaz suas edos meus quiridos nettos, que muito lheagradeço (...)” (Carta não-oficial (15). Marquês do Lavradio. RJ, 06.05.1774.) (32) “(...) De Você tenho recebido algumasCartas de empenho, pode você ficar serto que em tudoque mecouber nopossivel, farei conheçer aosSeusAfilhadoz, ovalor dasua porteção,(...)” (Carta não-oficial (02). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.) Nas cartas oitocentistas, por sua vez, Vossa Mercê e Você como sujeitos começam timidamente a assumir comportamentos sintáticos diferentes no que se refere à posição em relação ao verbo. A forma nominal de tratamento Vossa Mercê apresenta-se em 11 ocorrências – 85% dos dados – como sujeito em posição pré-verbal. Apesar dessas ocorrências, Vossa mercê se mantém, na amostra de cartas do século XIX, ainda que com baixíssimas ocorrências, em posição pós-verbal – 01 ocorrência (7,5% dos dados) – e entre o verbo auxiliar e o verbo principal – 01 ocorrência (7,5% dos dados). Em contrapartida, a forma Você, dentre as suas 12 ocorrências de sujeito expresso, mostra-se em 11 delas – 92% dos dados – na posição préverbal, posição característica de pronomes pessoais legítimos. Assim sendo, ao comparar o comportamento sintático de Vossa Mercê com o de Você, é possível considerar que enquanto Vossa Mercê parece se manter, nas cartas do século XIX, com uma certa mobilidade sintagmática, característica peculiar aos nomes, a forma Você já se mostra com menor mobilidade sintagmática, deixando-se evidenciar, preferencialmente, em posição pré-verbal, posição típica de pronome pessoal, como se observa em (33) e (34). Observa-se ainda que, em somente 01 ocorrência (08% dos dados), Você foi detectado entre o verbo auxiliar e o verbo principal, conforme se verifica em (35). No século XIX, constata-se, pois, que a forma Você apresenta-se com menor variabilidade sintagmática, fixando-se, segundo a terminologia teórica adotada por Lehmann (1982), na posição cânonica de sujeito expresso em língua portuguesa – posição pré-verbal, o que ratifica as conclusões tecidas por Lopes (2001), Lopes e Duarte, (2003b). (33) “(...) Na carta, que ultimamente lhe escrevi participei o arbitrio que tomei de exceder as suas ordens na encomenda da bomba, que você me havia encomendado para colocar n hum Poço Publico, que mandara construir, e de prezente asseguro-lhe que esta obra está quasi concluida a medida do meo dezejo (...)” (Carta não-oficial (14). J. F. da C. Miranda. RJ, 28.03.1837.) (34) “Você não me tem respondido sobre o que tenho pedido acerca de Mariano Gomes. (...)” (Carta não-oficial (14). J. F. da C. Miranda. RJ, 28.03.1837.) (35) “(...) como fosse [↑você] novamente arguido por Maciel Monteiro, que esta sendo o defensor do dito Pinto e Ibiapina filho de Francisco Miguel; a que deu lugar responder o Vieira de huma maneira que não eu esperava, pedi a palavra pela ordem para tomar a sua defeza e não me deixarão falar (...)” (Carta não-oficial (12). J. F. da C. Miranda. RJ, 30.07.1835.) A discussão do processo de pronominalização de Vossa Mercê nas cartas setecentistas e oitocentistas, a partir dos princípios de gramaticalização pensados por Hopper (1991), permitiu depreender, através de uma escala, o estágio da pronominalização assumido por Vossa Mercê (transition problem, cf. Weinreich et alii, 1968) nos corpora em análise. VOCÊ 2 a Pessoa (+ referencial) VOCÊ MERCÊ VOSSA MERCÊ VOCÊ Forma Pronominal de Tratamento VOCÊ indeterminador em construções pessoais VOCÊ expletivo em construções existenciais Quadro 5: Proposta de Estágios da Pronominalização de Vossa Mercê > Você no português. A partir do quadro 5, observa-se que o nome Mercê motivou a forma nominal de tratamento Vossa Mercê – estratégia honorífica concebida para ressaltar a benignidade suprema do rei português em relação aos súditos da Coroa Portuguesa (cf. Cintra, 1972). Tal forma nominal de tratamento desgasta-se, fonética e semanticamente, até originar Você que, por sua vez, se insere no quadro pronominal do português brasileiro como forma pronominal de 2a pessoa do discurso, segundo Lemos Monteiro (1994). Na realidade atual da língua portuguesa, atenta-se para a referência indeterminadora assumida por Você em estruturas existenciais com possível valor expletivo, como evidenciam Duarte (1995, 1999, 2003) e Avelar (2003). No que diz respeito à forma Você, argumenta-se que tal forma assume, nas cartas oficiais e nas cartas nãooficiais dos séculos XVIII e XIX, um estágio intermediário no seu processo de mudança categorial. Trata-se, pois, da expressão de um cline (cf. Hopper e Traugott, 1993) que acaba por evidenciar o Você existente, nos corpora desta investigação, como uma forma medianeira entre a forma nominal de tratamento que a determinou, no século XV, para referência honorífica, desgastada semanticamente no século XVIII, e o pronome Você que, atualmente, já se inseriu no sistema pronominal do português brasileiro, conforme constatou Duarte (1995). Você apresenta-se, pois, nas cartas setecentistas e oitocentistas, como uma forma pronominal de tratamento, deixando entrever, traços sintáticos que o aproximam tanto da forma nominal de tratamento que o impulsionou – Vossa Mercê – como da forma pronominal pessoal Você, o que legitima a interpretação de tal forma como uma estratégia pronominal de tratamento nos corpora em análise. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base na análise de cartas setecentistas e oitocentistas criteriosamente editadas, identificaram-se variadas estratégias pronominais e nominais de tratamento e vislumbraram-se, em suma, as seguintes constatações: a) Nas cartas setecentistas, localizaram-se ocorrências de Vossa Excelência, Vossa Mercê e Senhor. Além de tais formas nominais de tratamento, detectaram-se, nas cartas oitocentistas, ocorrências de Vossa Senhoria e Vossa Majestade; b) A forma nominal de tratamento Vossa Excelência apresenta-se de forma expressiva nas cartas oficiais dos séculos XVIII e XIX, conservando-se, pois, como uma estratégia cortês de tratamento; c) A estratégia nominal de tratamento Vossa Mercê se deixa evidenciar em um estágio de dessemantização já que assume maior freqüência de uso nas cartas não-oficiais que, por sua vez, se constituem como um tipo de texto dotado de um menor grau de formalismo; d) A fórmula de tratamento Senhor, além de expressar-se como uma estratégia pouco recorrente nos corpora, manifesta-se tão somente como uma estratégia vocativa introdutória nas cartas setecentistas e oitocentistas; e) A expressão nominal de tratamento Vossa Senhoria mostrou-se recorrente em cartas nãooficiais do século XIX, estando em concorrência com Vossa Mercê em textos dotados de um menor grau de formalismo, o que pode referendar a perda do caráter de cortesia com que foi idealizada no século XV, conforme Cintra (1972); f) As pouquíssimas ocorrências de Vossa Majestade, explícitas em somente uma única carta oitocentista direcionada à Sua Majestade Real Portuguesa, ratificam a conservação do valor original com o qual foi estabelecida através das Leis de Cortesia instituídas, segundo Cintra (1972), por Felipe I, em Portugal, na era seiscentista. Ao estabelecer correspondência entre as formas pronominais e nominais de tratamento e os tipos de relações sociais travadas entre remetente e destinatário das cartas setecentistas e oitocentistas, é possível tecer, em síntese, as seguintes considerações: a) Nas relações sociais assimétricas de inferior para superior, a forma nominal de tratamento Vossa Excelência apresenta-se, nas cartas setecentistas e oitocentistas como a fórmula de cortesia ascendente com maior freqüência de uso. No século XIX, por sua vez, Vossa Senhoria concorre com Vossa Excelência em tal relação social movida pela assimetria; b) Nas relações sociais assimétricas de superior para inferior, a forma Você mostra-se, no século XVIII, como uma produtiva estratégia de cortesia descendente; c) Nas relações sociais simétricas entre membros de um mesmo grupo social (classe alta), as formas Vossa Excelência e Vossa Mercê se manifestam, nos séculos XVIII e XIX, como fórmulas de tratamento concorrentes. Ainda em relação ao período oitocentista, observa-se que, entre iguais, Vossa Senhoria compete com as formas Você, Tu e Senhor. A correspondência estabelecida quantitativamente entre as formas pronominais e nominais de tratamento e os tipos de relações sociais – de inferior para superior, de superior para inferior e entre membros de um mesmo grupo social (classe alta) – identificadas na documentação analisada permitem supor que as cartas do século XVIII parecem entremostrar uma estruturação social voltada para o Poder. Tal suposição encontra respaldo no contexto sóciohistórico do Brasil Colônia em que a Corte Portuguesa, orientada pela semântica do Poder, administra a América Brasileira. Em contrapartida, as cartas do século XIX parecem permitir entrever-se uma organização social movida pela semântica da Solidariedade em consonância, pois, com o contexto sócio-histórico do Brasil Imperial. No que diz respeito à gramaticalização de Vossa Mercê > Você, além da análise de sua distribuição nos corpora, discutiram-se as propriedades formais e semântico-discursivas peculiares à forma nominal de tratamento Vossa Mercê perdidas e conservadas no seu processo evolutivo até originar a forma Você. a) A forma Você perde o traço de gênero positivamente marcado em relação ao gênero formal – [+ fem] –, assemelhando-se aos legítimos pronomes pessoais do português – Eu, Tu, Nós e Vós – que também não possuem valor específico a ser atribuído ao gênero. Por outro lado, constata-se que o Você conserva a possibilidade de ter o seu traço de gênero semântico capturado pela sintaxe, uma vez que a concordância com o feminino ou masculino em estruturas predicativas do tipo Você está interessado/interessada aciona diferentes interpretações semânticas (referente do sexo masculino, referente feminino, respectivamente); b) A forma Você apresenta-se subespecificada em relação ao traço de número nas suas bifurcações formal e semântica: você (um único interlocutor) e vocês (mais de um interlocutor – você+ele(a)(s), você+todo mundo, etc). Ainda no que concerne ao traço de número, constata-se que Você se assemelha às formas pronominais de 3a pessoa do discurso, pois tais formas pronominais também podem ter seus valores detectados a partir da presença ou ausência formal do traço de número (morfe -s) no próprio pronome, segundo a discussão de Menon (1995); c) A forma Você preserva a concordância formal com a 3a pessoa – [Ø eu] –, o que constitui uma característica peculiar não só à fórmula de tratamento Vossa Mercê, como também às formas ele(s), ela(s) – a “não-pessoa” discutida por Benveniste (1988). Em compensação, observa-se que Você ao remeter ao interlocutor/ouvinte, assemelha-se, em relação à noção de pessoa semântica, às legítimas formas pronominais pessoais de 2a pessoa do discurso ([- EU] → Tu e Vós). Em virtude do desuso do pronome Vós para o tratamento cerimonioso de interlocutor, houve a inserção de formas nominais de tratamento no português europeu e entre elas está a forma nominal de tratamento Vossa Mercê que aportou em terras ameríndias na versão européia da língua portuguesa do século XVI, evoluindo, lenta e gradualmente, até constituir a forma pronominal Você em português. Constatou-se que a forma Você apresentou-se como uma híbrida estratégia de referência à 2a pessoa do discurso. Apesar de tal forma ainda manter alguns traços sintáticos que a aproximam da forma nominal de tratamento original (a expressão plena do sujeito e a coreferencialidade com a 3a pessoa gramatical), já assume traços que parecem anunciar a mudança categorial em curso (o exercício da função sintática de sujeito e a posição do sujeito), o que permite entendê-la como uma forma pronominal de tratamento em português. Com relação ao encaixamento da mudança categorial de Vossa Mercê para Você nas matrizes lingüística e social (embbeding problem, segundo Weinreich et alii, 1968), constatou-se, em conformidade com as conclusões de Lopes (1999) para a forma uma transformação lingüística isolada: a gente, que não se trata de Há uma emergência gradativa de formas nominais de tratamento que passam a substituir o tratamento cortês universal vós, num primeiro momento pela ascensão da nobreza e mais tarde da burguesia que exigia um tratamento diferenciado. Essa propagação, que começa de cima para baixo, se dissemina pela comunidade como um todo, e as formas perdem sua concepção semântica inicial, gramaticalizando-se – algumas de forma mais acelerada que outras, como é o caso de Vossa Mercê > vosmecê > você. Pelo fato de as formas nominais levarem o verbo para a terceira pessoa do singular, houve a redução do nosso paradigma flexional, que perdeu, como já apontou Duarte (1995), ‘a propriedade de licenciar e identificar sujeitos nulos.’ (LOPES, 1999:144) Verificou-se, pois, que a produtividade de Vossa Mercê deu-se de cima para baixo, favorecendo o seu desgaste fonético e semântico até formar Você que, por sua vez, carrega, como um traço da forma original, o fato de estabelecer relação de concordância com a 3a pessoa gramatical. A inserção de Você no quadro pronominal do português brasileiro conduz à sua reorganização a partir da perda da riqueza flexional, impulsionando-o a não mais licenciar a expressão nula do sujeito referencial em português. O estudo das formas pronominais e nominais de tratamento em missivas oficiais e nãooficiais produzidas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX apresenta um Você em estágio intermediário do seu processo de mudança categorial (cline intermediário, cf. Hopper e Traugott, 1993, transition problem, cf. Weinreich et alii, 1968). Manifesta-se, assim, um dos estágios do processo de mudança categorial (Nome > Pronome → Vossa Mercê > Você), que, segundo a fala do pronome Eu, no texto “Na Casa dos Pronomes” de Monteiro Lobato, trata-se do caminho trilhado pelo pronome serviçal –Vossa Mercê –, ao originar o legítimo pronome de referência à 2a pessoa do dicurso – Você. “(...) No começo, havia o tratamento Vossa Mercê dado aos reis unicamente. Depois passou a ser dado aos fidalgos e foi mudando de forma. Ficou uns tempos Vossemecê e depois passou a Vosmecê e finalmente como está hoje – Você, entrando a ser aplicado em vez do Tu, no tratamento familiar ou caseiro. (...)” (LOBATO, 1994:22 - 24.) A ampliação dos corpora, para a retomada de estudos lingüísticos acerca da gramaticalização de Vossa Mercê em outros tipos de textos literários e não-literários, reconduzirá a investigação por caminhos lingüísticos ainda não devastados nessa busca por vislumbrar-se cientificamente o processo de gestação da norma brasileira do português. 7. BIBLIOGRAFIA ALKMIM, Tânia Maria. (Org.) (2002). Para a história do português brasileiro. Volume III: Novos Estudos. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP. AMARAL, Amadeu. (1920). O Dialeto Caipira. São Paulo: Casa Editora "O Livro". ALMEIDA, Napoleão Mendes de. (1957). Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 9a ed., São Paulo: Editora Saraiva. AVELAR, Juanito Ornelas. (2003). Estruturas com o verbo ter, preenchimento de sujeito e movimento em forma lógica. Comunicação apresentada no III Congresso Internacional da ABRALIN, Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras. BAKHTIN, M. M.; VOLOSHINOV, V. N. (1973). Marxism and the philosophy of language. 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Na segunda, descrevem-se e analisam-se as formas pronominais e nominais de tratamento utilizadas nessa amostra criteriosamente editada, atentando-se para o processo de pronominalização de Vossa Mercê em português. Em síntese, este estudo comprova que, dentre as estratégias de tratamento concorrentes nas cartas oficiais e não-oficiais do período, Vossa Excelência é aquela que mais conserva o caráter cortês de tratamento cerimonioso e Vossa Mercê e Vossa Senhoria perdem, em maior e menor grau, respectivamente, o caráter de cortesia com que foram originalmente utilizadas. Em relação a gramaticalização de Vossa Mercê > Você no português, constata-se que a forma Você ainda se apresenta na amostra como uma forma pronominal de tratamento, pois é possível entreverem-se traços morfossintáticos que tanto a assemelham à forma nominal da qual se originou (Vossa Mercê), quanto à forma pronominal de referência à 2 a pessoa do discurso. Editam-se com fac-símile, em volume anexo, sessenta cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial. RUMEU, Márcia Cristina de Brito. Para uma História do Português no Brasil: Formas Pronominais e Nominais de Tratamento em Cartas Setecentistas e Oitocentistas. Master´s Dissertation in the Portuguese Language – Curso de Pós-graduação em Letras Vernáculas, Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2004, 286 p. Mimeo. ABSTRACT The discussion on the process of the historical formation of the european and brasilian varieties has sparked linguistic studies concerning Portuguese (Roberts & Kato, 1996; Mattos & Silva, 2001; Alkmin, 2002; Duarte & Callou, 2002). As a result, a lot of effort was made on the research and also on the selection of the corpus which could trustfully represent the reality of the Portuguese language in Brazil. In order to accomplish that, this work was divided in two parts. In the first part there are the corpora for the studies related to the Brazilian Portuguese based on a diplomatic-interpretative facsimile edition of sixty hand-written letters (manuscripts) from the eighteenth and nineteenth centuries, in Rio de Janeiro. The second part is dedicated to the analysis and description of the nominal and pronominal address terms identified on the corpora, regarding the process of the pronominalization of Vossa Mercê > Você (you). In summary, this study proves that, among the addressing terms registered whether in official or non-official letters (manuscripts) of the mentioned period, Vossa Excelência (Your Honor) is the form which preserves the courteous and formal way of treatment. Vossa Mercê and Vossa Senhoria lose, in higher and lower extents, respectively, the courteous way in which they were originally used. Concerning the gramaticalization of Vossa Mercê > Você (you) in Portuguese, it is possible to assure that Você did not appear as a pronominal form in the sample until that moment, due to the fact that Você (you) has morphosyntactic features that are similar to the nominal form (Vossa Mercê) from which it originated and also to its pronominal form. The pronoun Você refers to the 2nd person singular of discourse. Sixty hand-written letters (manuscripts) in colonial and imperial Rio de Janeiro are being edited with facsimile´s help in an attached volume.