PARA UMA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS NO BRASIL:
FORMAS PRONOMINAIS E NOMINAIS DE TRATAMENTO
EM CARTAS SETECENTISTAS E OITOCENTISTAS.
por
Márcia Cristina de Brito Rumeu
Volume I
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
2004
EXAME DE DISSERTAÇÃO
RUMEU, Márcia Cristina de Brito. Para uma História do Português no Brasil: Formas Pronominais e
Nominais de Tratamento em Cartas Setecentistas e Oitocentistas. Dissertação de Mestrado em Língua
Portuguesa – Curso de Pós-graduação em Letras Vernáculas, Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade
de Letras, 2004, 286 fl. Mimeo.
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________________________________
Professora Doutora Célia Regina dos Santos Lopes
(Departamento de Letras Vernáculas/UFRJ)
Orientador
_________________________________________________________________
Professor Doutor Afranio Gonçalves Barbosa
(Departamento de Letras Vernáculas/UFRJ)
Co-orientador
_________________________________________________________________
Professora Doutora Tânia Conceição Freire Lobo
(Departamento de Letras Vernáculas/ UFBA)
_________________________________________________________________
Professora Doutora Maria Eugênia Lamoglia Duarte
(Departamento de Letras Vernáculas/UFRJ)
_________________________________________________________________
Professora Doutora Sílvia Rodrigues Vieira
(Departamento de Letras Vernáculas/UFRJ)
Suplente
_________________________________________________________________
Professora Doutora Maria Luíza Braga
(Departamento de Lingüística/UFRJ)
Suplente
Examinada a Dissertação:
Conceito: __________ .
Em: ___ / ___ / 2004.
PARA UMA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS NO BRASIL:
FORMAS PRONOMINAIS E NOMINAIS DE TRATAMENTO
EM CARTAS SETECENTISTAS E OITOCENTISTAS.
por
MÁRCIA CRISTINA DE BRITO RUMEU
Departamento de Letras Vernáculas
Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa
apresentada à Coordenação dos Cursos de PósGraduação em Letras da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Orientador: Professora Doutora
Célia Regina dos Santos Lopes. Co-orientador:
Professor Doutor Afranio Gonçalves Barbosa.
UFRJ/Faculdade de Letras
Rio de Janeiro, 1o semestre de 2004.
Aos meus pais, personalidades indispensáveis na minha vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus orientadores Célia Lopes, Afranio Barbosa e Dinah Callou.
À primeira, pela orientação séria, competente e comprometida com a coerência de uma
investigação científica.
Manifesto a minha gratidão pela paciência e dedicação da minha
orientadora não só em relação à leitura atenta dos meus textos desde a época em que também
norteava os meus trabalhos na Iniciação Científica, mas também no que se refere à discussão
teórica por nós travada no decorrer da confecção desta dissertação.
Ao segundo, por ter viabilizado o meu ingresso nos Projetos NURC-RJ e PHPB-RJ,
conduzindo-me, em arquivos e bibliotecas, no levantamento de fontes inéditas para o estudo
do processo de formação do português brasileiro e orientando-me na instigante tarefa de leitura
de textos manuscritos em sincronias passadas.
À terceira, por muito ter contribuído para a minha formação acadêmica como bolsista
de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq), impulsionando, com a sua competência, disciplina, e
profissionalismo, o meu despertar para a seriedade do trabalho com a pesquisa lingüística.
Apesar de a professora Dinah Callou não estar formalmente inscrita como minha orientadora,
devo lembrar que, na realidade, nunca deixou de assumir tal função na minha vida profissional
e acadêmica.
A esses três exímios profissionais do ensino e da ciência lingüística deixo registrada a
minha sincera gratidão pela confiança que em mim sempre demonstraram depositar, desde a
época da Iniciação Científica, incentivando assim o meu ingresso no Mestrado.
Devo agradecer ainda à Professora Doutora Maria Emília Barcellos da Silva por muito ter
me estimulado a prosseguir na carreira acadêmica, mostrando-se solícita a me ajudar na difícil
tarefa de organizar a palavra escrita.
Desejo apresentrar-me sinceramente grata à professora Rosa Virgínia Mattos e Silva pela
leitura atenta de um texto por mim produzido sobre a gramaticalização de Vossa Mercê a partir
da aplicação de princípios teóricos funcionalistas, o que resultou na discussão estabelecida nesta
dissertação.
Aos Professores Doutores Anthony Julius Naro, Christina Abreu Gomes, Edwaldo
Cafezeiro, João Moraes, Maria Carlota Rosa, Maria da Conceição de Paiva, Maria Eugênia
Lamoglia Duarte, Maria Luíza Braga, Mário Eduardo Matelota, Sílvia Rodrigues Vieira, Violeta
Virgínia Rodrigues e Yonne Leite deixo expressos o meu reconhecimento e admiração, pois
apresentam-se como profissionais seriamente comprometidos com a qualidade do ensino e da
pesquisa lingüística que promovem na UFRJ.
Exprimo minha gratidão aos professores Ana Catarina Nobre Mello, Eliaine de Moraes
Belford, Fátima Maria Campos Simões, Filomena Varejão, Kate Lúcia Portela e Kátia Carlos da
Silva pelo companheirismo acadêmico.
Desejo agradecer, especialmente, aos meus pais, Alfredo e Antônia Rumeu, pela
responsabilidade com que me apresentaram à vida em sociedade, incitando-me desde sempre a
entender o valor do saber. Manifesto-me também sinceramente grata a minha irmã Cristiane
Rumeu e a todos os meus familiares pelo carinho e atenção a mim dispensados durante todo
este percurso de intenso estudo.
Agradeço aos meus alunos por também contribuírem para o meu amadurecimento
profissional.
Enfim, mostro-me extremamente agradecida a todos que me impulsionaram a concluir
este trabalho e torceram por mim ...
SINOPSE
Descrição e análise das formas pronominais e nominais de
tratamento e suas estruturas sociais.
O processo de
pronominalização de Vossa Mercê com base na confecção de uma
edição fac-similar diplomático-interpretativa de cartas manuscritas no
Rio de Janeiro da segunda metade do século XVIII e do XIX.
“Terreno vasto, árido e difícil de lavrar é a perspectiva que se oferece a quem se
lembra de estudar o desenvolvimento de um idioma como o português desde a
remota fase dos primeiros documentos escritos até os nossos dias. Consciente
das dificuldades, senti-me todavia atraído pelo assunto.”
(M. Said Ali, 1921.)
NA CASA DOS PRONOMES
“(...) – Chega de Adjetivos – gritou a menina. – Eu não sei por que tenho
grande simpatia pelos Pronomes, e queria visitá-los já.
– Muito fácil – respondeu o rinoceronte. – eles moram naquelas casinhas
aqui defronte. A primeira, e menor, é a dos Pronomes Pessoais.
– Ela é tão pequena ... – admirou-se Emília.
– Eles são só um punhadinho, e vivem lá como em república de estudantes.
E todos se dirigiram para a casa dos Pronomes Pessoais enquanto
Quindim ia explicando que os Pronomes são palavras que também não
possuem pernas e só se movimentam amarradas aos Verbos.
Emília bateu na porta – toque, toque, toque.
Veio abrir o Pronome Eu.
– Entrem, não façam cerimônia.
Narizinho fez as apresentações.
– Tenho muito gosto em conhecê-los – disse amavelmente o Pronome Eu. –
Aqui na nossa cidade o assunto do dia é justamente a presença dos meninos e
deste famoso gramático africano. Vão entrando. Nada de cerimônias.
E em seguida:
– Pois é isso, meus caros. Nesta república vivemos a nossa vidinha, que é
bem importante. Sem nós os homens não conseguiriam entender-se na terra.
– Todas as outras palavras dizem o mesmo – lembrou Emília.
– E nenhuma está exagerando – advertiu o Pronome Eu. – Todos somos
por igual importantes, porque somos por igual indispensáveis à expressão do
pensamento dos homens.
– E os seus companheiros, os outros Pronomes Pessoais? – perguntou
Emília.
– Estão lá dentro, jantando.
À mesa do refeitório achavam-se os Pronomes Tu, Ele, Nós, Vós, Eles,
Ela e Elas. Esses figurões eram servidos pelos Pronomes Oblíquos, que
tinham o pescoço torto e lembravam corcundinhas. Os meninos viram lá o Me,
o Mim, o Migo, o Nos, o Nosco, o Te, o Ti, o Tigo, o Vos, o Vosco, o O, o
A, o Lhe, o Se, o Si e o Sigo – dezesseis Pronomes Oblíquos.
– Sim senhor ! Que luxo de criadagem ! – admirou-se Emília. – Cada
Pronome tem a seu serviço vários criadinhos oblíquos ...
– E ainda há outros serviçais, os Pronomes de Tratamento –
disse Eu. – Lá no quintal estão tomando sol os Pronomes Fulano,
Sicrano, Você, Vossa Senhoria, Vossa Excelência, Vossa
Majestade e outros.
– E para que servem os senhores Pronomes Pesosoais? – perguntou a
menina.
– Nós – respondeu Eu – servimos para substituir os Nomes das pessoas.
Quando a Senhorita Narizinho diz Tu, referindo-se aqui a esta senhora
boneca, está substituindo o Nome Emília pelo Pronome Tu.
Os meninos notaram um fato muito interessante – a
rivalidade entre o Tu e o Você. O Pronome Você havia
entrado no quintal e sentara-se à mesa com toda a
brutalidade, empurrando o pobre Pronome Tu do lugarzinho
onde ele se achava. Via-se que era um Pronome muito mais
moço que Tu, e bastante cheio de si. Tinha ares de dono da
casa.
– Que há entre aqueles dois? – perguntou Narizinho. –
Parece que são inimigos ...
– Sim – explicou o Pronome Eu. – O meu velho irmão Tu
anda muito aborrecido porque o tal Você apareceu e anda a
atropelá-lo para lhe tomar o lugar.
– Apareceu como? Donde veio?
– Veio vindo ... No começo, havia o tratamento Vossa
Mercê dado aos reis unicamente. Depois passou a ser dado
aos fidalgos e foi mudando de forma. Ficou uns tempos
Vossemecê e depois passou a Vosmecê e finalmente como
está hoje – Você, entrando a ser aplicado em vez do Tu, no
tratamento familiar ou caseiro. No andar em que vai, creio
que acabará expulsando o Tu para o bairro das palavras
arcaicas, porque já no Brasil muito pouca gente emprega o
Tu. Na língua inglesa, aconteceu uma coisa assim. O Tu lá
se chamava Thou e foi vencido pelo You, que é uma espécie
de Você empregada para todo mundo, seja grande ou
pequeno, pobre ou rico, rei ou vagabundo.
– Estou vendo – disse a menina – que não tirava os olhos
de Você. Ele é moço e petulante, ao passo que o pobre Tu
parece estar sofrendo de reumatismo. Veja que cara triste o
coitado tem ...
– Pois o tal Tu – disse Emília – o que deve fazer é ir
arrumando a trouxa e pondo-se ao fresco. Nós lá no sítio
conversamos o dia inteiro e nunca temos ocasião de
empregar um só Tu, salvo na palavra Tatu. Para nós o Tu já
está velho coroca (...).”
(LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática.
39a ed., São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, p. 22 24.)
Sumário
VOLUME I
Índice de quadros e tabelas .............................................................................................. xvi
Abreviaturas e convenções ............................................................................................ xvii
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 01
2. REVISÃO HISTÓRICO-DESCRITIVA ........................................................................ 05
2.1 As Formas Pronominais e Nominais de Tratamento sob a Perspectiva Tradicional.
............................................................................................................... 05
2.2 Forma de Tratamento ou Pronome Pessoal? A perspectiva das gramáticas históricas.
.................................................................................................................. 11
2.3 A História de Formação das Estratégias Nominais de Tratamento em
...........................................................................................
Português.
...................... 15
3. OS CORPORA ................................................................................................................. 32
3.1 Sobre as cartas de circulação pública no Rio de Janeiro setecentista e oitocentista.
................................................................................................................... 38
3.2 Sobre as cartas de circulação privada no Rio de Janeiro setecentista e oitocentista.
................................................................................................................... 43
4. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS ....................................................... 48
4.1 A teoria da mudança lingüística e suas questões teóricas. .......................... 48
4.2 As formas de tratamento e a Teoria do Poder e da Solidariedade .................. 51
4.3 De Vossa Mercê a Você:
discussão da gramaticalização de formas nominais de
tratamento na língua portuguesa. ..................................................................... 62
4.4 Para a análise da Gramaticalização de Vossa Mercê > Você no português: a discussão
dos traços formais e semântico-discursivos ....................................... 71
4.4.1 Aplicação do sistema de traços às formas pronominais em português.
........................................................................................................ 72
4.4.2 Os traços de gênero de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em português: a
legitimidade de Você. .............................................................. 74
4.4.3 Os traços de número de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em português: a
ilegitimidade de Você. ............................................................. 76
4.4.4 Os traços de pessoa de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em português: a dupla
face do pronome Você. ............................................... 79
5. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS ............................................................. 84
5.1 Distribuição dos dados das formas nominais de tratamento e das formas pronominais
nas cartas setecentistas e oitocentistas. .................................................. 84
5.2 As relações de Poder e de Solidariedade na sociedade carioca dos séculos XVIII e XIX.
........................................................................................................... 99
5.3 Reflexos da mudança categorial ‘Vossa Mercê’ > ‘Você’ no português à luz dos
princípios de gramaticalização propostos por Hopper. ............................ 106
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 123
7. BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 128
RESUMO ............................................................................................................................ 138
ABSTRACT
......................................................................................................................... 139
VOLUME II
Índice da Edição Fac-similar Diplomático-Interpretativa das Cartas Setecentistas e
Oitocentistas ....................................................................................... xvi
1. APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO DIPLOMÁTICO-INTERPRETATIVA .................... 01
1.1 O uso de Reclames em cartas setecentistas e oitocentistas. ..................................... 02
1.2 Os Sistemas de Pontuação das cartas setecentistas e oitocentistas. ..................... 05
1.3 Normas para transcrição de manuscritos dos séculos XVIII e XIX. ........ 12
2. CARTAS DE CIRCULAÇÃO PÚBLICA (SÉCULO XVIII) ........................................ 15
3. CARTAS DE CIRCULAÇÃO PRIVADA (SÉCULO XVIII) ........................................ 53
4. CARTAS DE CIRCULAÇÃO PÚBLICA (SÉCULO XIX) ........................................... 86
5. CARTAS DE CIRCULAÇÃO PRIVADA (SÉCULO XIX) ....................................... 117
RESUMO ............................................................................................................................ 146
ABSTRACT ......................................................................................................................... 147
Índice de quadros e tabelas:
Quadro 1: Os Corpora. ..................................................................................................... 36
Tabela 1: Cartas de circulação pública produzidas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX.
...................................................................................................................... 39
Tabela 2: Cartas de circulação privada produzidas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX.
...................................................................................................................... 44
Quadro 2: O Continuum da Solidariedade, segundo Uber (1985) .................................. 57
Quadro 3: Matriz morfo-semântica dos pronomes pessoais do português com base em Lopes
(1999), (2003). ......................................................................................................... 81
Quadro 4: Proposta de aplicação do sistema de traços na confecção de Matriz morfosemântica de Mercê, de Vossa Mercê e de Você. ....................................................... 81
Tabela 3: Formas pronominais e nominais de tratamento em cartas oficiais e não-oficiais dos
Séculos XVIII e XIX. ................................................................................... 85
Tabela 4: Tipos de relações sociais perceptíveis em cartas manuscritas no Rio de Janeiro
colonial e imperial. ............................................................................................. 100
Tabela 5: Distribuição dos dados de Vossa Mercê, Você, Tu e Vós em cartas manuscritas no Rio
de Janeiro colonial e imperial. ..................................................... 107
Tabela 6: Distribuição dos dados de Vossa Mercê e Você em relação às suas funções sintáticas
nas
cartas
manuscritas
no
Rio
de
Janeiro
colonial
e
imperial.
............................................................................................................................................. 111
Tabela 7: Distribuição dos dados de Vossa Mercê, Você e Tu quanto à expressão do sujeito de 2a pessoa
do discurso nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial.
............................................................................................................................. 113
Tabela 8: A co-referencialidade de Vossa Mercê, Você e Tu nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro
colonial e imperial. ................................................................................. 115
Tabela 9: Distribuição dos dados de Vossa Mercê e Você como sujeitos de 2a pessoa do discurso em
relação à variável posição do sujeito nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial.
........................................................................................ 118
Quadro 5: Proposta de Estágios da Pronominalização de Vossa Mercê > Você no português.
.......................................................................................................................... 121
Abreviaturas e convenções:
AN → Arquivo Nacional
BN-RJ → Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
IHGB → Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
NURC → Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta
PHPB-RJ → Projeto Para uma História do Português Brasileiro (Equipe do Rio de Janeiro)
PE → Português Europeu
PB → Português do Brasil
PnB → Português no Brasil
P1 → Primeira pessoa do singular
P2 → Segunda pessoa do singular
P3 → Terceira pessoa do singular
P4 → Primeira pessoa do plural
P5 → Segunda pessoa do plural
P6 → Terceira pessoa do plural
S.r → Senhor
V. Ex.a → Vossa Excelência
V. M.ce → Vossa Mercê
V. S.a → Vossa Senhoria
V. Maj.e → Vossa Majestade
[+ fem] → Feminino
[- fem] → Masculino
[+ pl] → Plural
[- pl] → Singular
[+eu] → Primeira pessoa
[- eu] → Segunda pessoa
[Ø eu] → Terceira pessoa
1. INTRODUÇÃO
A questão da constituição histórica das variantes nacionais lusitana e brasileira do
português tem suscitado investigações lingüísticas (Roberts e Kato, 1996; Mattos e Silva, 2001;
Alkmin, 2002; Duarte e Callou, 2002.) acerca dos traços caracterizadores dessas variedades da
língua portuguesa.
Para que se desvele o processo de formação da norma brasileira do
português, faz-se necessária a composição de um corpus que seja reflexo transparente do estado
da língua portuguesa no Brasil em sincronias passadas.
Assim sendo, o interesse pela
representatividade da amostra sobre a qual incidirão análises lingüísticas torna-se condição sine
qua non para que se efetivem estudos acerca da face assumida pelo português na América
Portuguesa. Nesse sentido, esta investigação estrutura-se a partir de dois objetivos principais:
1o) a organização de corpora para estudo do português no Brasil a partir da confecção de uma
edição fac-similar diplomático-interpretativa de cartas manuscritas no Rio de Janeiro, durante a
segunda metade do século XVIII e no decorrer do século XIX e 2 o) a descrição e a análise das
formas nominais e pronominais de tratamento, atentando-se para o processo de
pronominalização de Vossa Mercê em português, com base na amostra criteriosamente editada.
A tese laboviana de que os estudos em lingüística histórica constituem “A arte de fazer o
melhor uso de maus dados” (1994:11) funciona como o princípio norteador desta investigação,
ratificando a necessária preocupação do lingüista pesquisador com a transparência do corpus em
relação à realidade lingüística que representa.
Admite-se, como ponto de partida para a
descrição e análise proposta, uma certa inquietação com a confiabilidade dos dados utilizados
no estudo lingüístico. Julga-se, pois, que a edição fac-similar diplomático-interpretativa de sessenta
cartas manuscritas, confeccionadas no Rio de Janeiro setecentista e oitocentista, favoreça a
comunidade acadêmica, disponibilizando-lhe um conjunto de textos editados e organizados
com o rigor filológico necessário aos estudos lingüísticos de sincronias passadas. A edição
dessa amostra de cartas apresenta-se assim distribuída: trinta cartas produzidas na segunda
metade do século XVIII – quinze cartas de circulação pública e quinze cartas de circulação
privada – e trinta cartas elaboradas no decorrer do século XIX – quinze cartas de circulação
pública e quinze cartas de circulação privada.
Com relação, ainda, à organização dos corpora pretende-se, num nível mais específico,
atentar para os seguintes aspectos filológicos:
(1o) A composição de uma amostra diversificada de cartas manuscritas distribuídas entre dois
tipos de textos, conforme a tipologia de classificação de textos não-literários proposta por
Barbosa (1999): cartas da administração pública (textos oficiais), cartas da administração privada
(textos não-oficiais) e cartas pessoais. Privilegia-se, pois, a partir da organização do conjunto de
cartas, na 1a e 2a categorias, a contraposição de textos com diferentes graus de cerimônia, além
da constituição de um material que forneça subsídios para a confecção de estudos sobre a
realidade lingüística do Brasil durante o período colonial e imperial;
(2o) A busca por documentos autógrafos ou cópias de época, a fim de garantir o controle da
originalidade da fonte em relação ao período em análise;
(3o) A depreensão de aspectos gerais relativos aos(s) sistema(s) de pontuação transparente(s) em
algumas cartas de circulação pública e privada produzidas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII
e XIX, para chamar a atenção a certos problemas de decodificação enfrentados por um leitor
contemporâneo face aos textos de sincronias passadas.
No que diz respeito à análise lingüística, pretende-se responder às seguintes questões:
(1o) Que formas nominais e pronominais de tratamento se apresentam em cartas setecentistas e
oitocentistas? Que tipos de relações sociais condicionam a freqüência de uso das fórmulas
nominais de tratamento em manuscritos coloniais e imperiais à luz da Teoria do Poder e da
Solidariedade idealizada por Brown e Gilman (1960) ?
(2o) Que propriedades formais e semânticas da expressão nominal Vossa Mercê foram
conservadas e perdidas no seu processo evolutivo até originar a forma pronominal Você na
língua portuguesa ?
(3o) Que estágios do processo de pronominalização foram trilhados pela forma nominal de
tratamento Vossa Mercê até originar a forma pronominal Você na língua portuguesa (transition
problem, cf. Weinreich et alii, 1968) ?
(4o) Como é possível entender o encaixamento da mudança categorial de Vossa Mercê para Você
na matriz lingüística e social (embbeding problem) sob a perspectiva de análise de Weinreich et alii
(1968) ?
Com o intuito de dar conta dos objetivos do presente trabalho, organizou-se esta
dissertação em dois volumes. O primeiro volume apresenta-se estruturado em cinco capítulos.
Inicialmente, expõe-se o problema a ser discutido nesta investigação. No segundo capítulo,
compôs-se um panorama dos estudos lingüísticos acerca das formas de tratamento no
português, a fim de resgatar os trabalhos que versem sobre a sua origem e suas estruturas
sociais e sobre a evolução de Vossa Mercê para Você. No terceiro capítulo, descrevem-se os
corpora, caracterizando as cartas de circulação pública e as de circulação privada produzidas no
Rio de Janeiro colonial e imperial. No quarto capítulo, divulgam-se os pressupostos teóricometodológicos que fundamentam a análise. Explicita-se em que consiste a Teoria do Poder e da
Solidariedade e a metodologia utilizada para depreender os tipos de relações sociais que se
deixaram explicitar nas cartas. O quinto capítulo está dividido em três partes. Na primeira,
descrevem-se e analisam-se os dados, apresentando a distribuição assumida pelas formas de
tratamento levantadas nos corpora.
Na segunda, discutem-se as relações de Poder e de
Solidariedade que se entremostram nas cartas setecentistas e oitocentistas produzidas no Rio de Janeiro.
Na terceira, aborda-se o processo de gramaticalização de Vossa Mercê, a partir da quantificação
dos dados, buscando-se depreender as etapas do seu processo de pronominalização e o
encaixamento da mudança categorial nas matrizes lingüística e social.
No segundo volume desta investigação, apresentam-se, inicialmente, alguns apontamentos
sobre questões de ordem filológica que podem dificultar a decodificação de textos de sincronias
passadas. Divulgam-se ainda os critérios de edição que nortearam a edição das missivas que
compõem os corpora em análise.
Esses parâmetros de transcrição de manuscritos foram
discutidos no IV Encontro Nacional do Projeto Para a História do Português Brasileiro, a que se
vincula esta dissertação. Após a exposição dos critérios de edição, editam-se, com fac-símile, as
sessenta cartas produzidas na realidade histórica do Rio de Janeiro, na segunda metade do
século XVIII e no curso do século XIX.
2. REVISÃO HISTÓRICO-DESCRITIVA.
2.1 As Formas Pronominais e Nominais de Tratamento sob a Perspectiva Tradicional.
Renomados gramáticos da língua portuguesa são unânimes na apresentação das formas
pronominais como estratégias gramaticais para fazer referência à 1a pessoa do discurso – ao
próprio falante (eu – singular, nós – plural.), à 2a pessoa do discurso – ao interlocutor (tu –
singular, vós – plural) – e à 3a pessoa do discurso – a quem ou aquilo de que se fala (ele(s)
masculino singular/plural, ela(s) feminino singular/plural). Estudiosos da língua portuguesa sob
a perspectiva tradicional –Almeida (1957), Cuesta & Luz (1971), Rocha Lima (1972), Lapa
(1973), Cunha & Cintra (1985), Bechara (2001) e Leitão et alii (2001) – se eximem da tarefa de
explicitar a norma objetiva em relação ao quadro de pronomes pessoais e de tratamento do
português brasileiro, limitando-se, por vezes, a registrar, a título de observação, comentários
mais atuais desse sistema pronominal principalmente em relação às formas você e a gente.
Almeida (1957) define os pronomes substantivos ou pronomes pessoais como formas
pronominais que, além de substituírem o nome de um ser, os relacionam com a pessoa
gramatical. Posteriormente à exposição do quadro dos pronomes pessoais da língua portuguesa
com a contemplação das seis pessoas do discurso, o autor apresenta locuções nominais do tipo
fulano, beltrano, A gente, Vossa Mercê, Vossa Excelência, Vossa Senhoria, Sua Senhoria, Sua Majestade
como formas de 3a pessoa gramatical além das consagradas formas pronominais ele e ela. Em nota
de rodapé, o autor não estabelece nítida diferença entre pronome de tratamento e pronome
pessoal, conforme se observa no trecho transcrito a seguir.
Alguns desses pronomes são suscetíveis de plural: vossas majestades, vossas senhorias, vossas
senhorias, vocês etc. Observe-se que o plural de você (Este pronome não é usado em Portugal)
costumam pronunciar ‘voceis’, antepondo um ‘i’ ao ‘s’ do plural, pronúncia que devemos
condenar e evitar.
(ALMEIDA, 1957:163).
Almeida ainda prescreve que para a manifestação de um português escorreito há de se
atentar para a relação de concordância entre a forma de tratamento de 3a pessoa gramatical e os
pronomes adjetivos possessivos.
É de regra, num discurso, em cartas ou em escritos de qualquer natureza, a uniformidade de
tratamento, isto é, do pronome escolhido para a pessoa a que nos dirigimos. Se tratamos o
interlocutor por vós, os pronomes oblíquos devem ser os que correspondem a essa pessoa, e o
mesmo se deve dizer dos adjetivos possessivos. Se o tratarmos por ‘tu’, usaremos os oblíquos
‘te’, ‘ti’, ‘contigo’ e os possessivos ‘teu’, ‘tua’, ‘teus’, ‘tuas’ (jamais ‘seu’, ‘sua’). Se o
tratarmos por Vossa Senhoria, Senhor, Você diremos o ‘lhe’, ‘seu’, ‘sua’ etc.
(ALMEIDA, 1957:130).
Cuesta & Luz (1971), ao descreverem as fórmulas de cortesia usuais no Brasil, afirmam
que, no português d’aquém mar, as estratégias de tratamento reduzem-se basicamente a dois
tipos: Você – tratamento de intimidade equivalente ao uso de Tú do espanhol – e O Senhor, A
Senhora – tratamento cortês semelhante ao Usted do espanhol. As autoras tecem um comentário
impressionístico acerca do uso do pronome Tu em regiões específicas do Brasil, mas mostram a
possibilidade de co-referência com formas de 2a pessoa.
O tu, que soa muito mal ao ouvido brasileiro, conserva-se apenas na sua forma de
sujeito no Rio Grande do Sul e no Maranhão, embora as formas te, ti, contigo,
apareçam na fala familiar de todo o país juntamente com você. Assim, podem ouvirse frases como esta: Você esteve na praia? Eu também estive, mas não te vi lá.
(CUESTA & LUZ, 1971:488.)
Cuesta e Luz apresentam a forma Você como uma estratégia de tratamento peculiar ao
português brasileiro em relações sociais de intimidade.
O tratamento de intimidade Você está muito divulgado, sendo normal entre pessoas
da mesma idade e categoria social que acabam de se conhecer, ainda que pertençam a
sexos diferentes.
Dentro da família, Você é utilizado não só pelos indivíduos mais velhos para se
dirigirem aos mais novos, mas também por estes, embora os papais, mamães, vovôs,
vovós, titios, titias, dindinhos ou dindinhas tradicionais prefiram que os seus filhos,
netos, sobrinhos ou afilhados os tratem por o senhor, a senhora.
(CUESTA & LUZ, 1971:489.)
Segundo Cuesta e Luz, o tratamento cerimonioso se dá no português do Brasil pelas
formas Vossa Senhoria para os documentos oficiais e comerciais e por Vossa Excelência para o
tratamento de autoridades governamentais. Já o tratamento cerimonioso por Vós persiste
apenas em contextos de escrita cujo grau de formalismo é alto. As autoras ressaltam ainda o
fato de a forma resultante do processo de gramaticalização de Vossa(s) Mercê(s) em sua forma
pluralizada – Vocês – ter preenchido a lacuna deixada no sistema de pronomes do português
com o desuso do Vós.
A segunda pessoa do plural, vós, persiste apenas na linguagem solene dos oradores
sagrados, nos discursos de ingresso na Academia Brasileira de Letras e em alguns
discursos. Tal como em Portugal, quando tem o valor do ‘vosotros’ espanhol, foi
substituída por vocês.
(CUESTA & LUZ, 1971:490.)
Rocha Lima (1972), após a apresentação dos pronomes pessoais do português, faz
referência ao Você como pronome de 2a pessoa do discurso, mas o acolhe como uma forma de
tratamento.
Há alguns pronomes de segunda pessoa que requerem para o verbo as terminações da
terceira. Tais são:
Você, Vocês (tratamento familiar)
o Senhor, a Senhora (tratamento cerimonioso),
e, acompanhados de seus plurais, os chamados “pronomes de reverência”: Vossa Senhoria,
Vossa Excelência, Vossa Alteza, Vossa Majestade, Vossa Santidade, Vossa Eminência,
Vossa Reverendíssima, Vossa Magnificência...
(ROCHA LIMA, 1972:112.)
A descrição das formas de tratamento de 3a pessoa gramatical feita por Lapa (1973)
contempla Você como estratégia de tratamento familiar usual no Brasil, contrapondo-a ao Tu
que, por sua vez, é de uso restrito a algumas regiões do país. O autor ainda comenta que, no
Brasil, a forma Você se fixou como estratégia de tratamento informal, ao passo que, em
Portugal, apresenta-se como forma de tratamento desrespeitoso.
Lapa (1973) relaciona o uso generalizado das formas nominais de tratamento com a
estrutura social da comunidade lingüística, apontando Portugal como uma sociedade decadente,
pois ainda se apresenta como uma estrutura hierarquizada.
Nota o professor Carlos Góis que a expressão Vossa Excelência é rara no Brasil,
por se opor aos sentimentos democráticos do povo. Donde se poderia talvez concluir
que a sua manutenção entre nós, portugueses, indica uma certa sobrevivência dos
costumes antigos, próprios duma sociedade decadente.
(LAPA, 1973:121.)
Ao comentar o desuso da legítima forma pronominal Vós e sua conseqüente substituição
pelas estratégias nominais de tratamento, Lapa condena a mistura de pronomes no português,
entendendo a forma Senhor como uma forma pronominal de 3a pessoa.
O que importa relevar é o desaparecimento do pronome vós e a sua substituição por formas
da 3a pessoa. Sendo assim, é conveniente não misturar as formas pronominais do singular
com o verbo no plural, como fazem certos principiantes. Um exemplo: ‘Peço ao Sr. a fineza
de me enviardes a 5a lição e corrigirdes os exercícios da 4a.’ Quem assim escreveu esqueceu-se
de que Sr. é forma pronominal da 3a pessoa e confundiu-a com o cerimonioso e antiquado
vós. Deu-se um cruzamento entre a forma antiga e a moderna, o que se deverá sempre
evitar.
(LAPA, 1973:121.)
Cunha & Cintra (1985) apresentam Você, no tópico Pronomes de Tratamento, como uma
forma de tratamento que funciona como um legítimo pronome pessoal.
Denominam-se PRONOMES DE TRATAMENTO certas palavras e locuções que
valem por verdadeiros pronomes pessoais, como: você, o senhor, Vossa Excelência.
Embora designem a pessoa a quem se fala (isto é, a 2a), esses pronomes levam o verbo para a
3a pessoa.
(CUNHA & CINTRA, 1985:282.)
Apesar de Cunha & Cintra (1985) assumirem o mesmo comportamento que Rocha Lima
(1972), isto é, o de acrescentarem Você ao quadro das formas de tratamento do português, os
autores redigem um subtópico destinado ao Emprego dos pronomes de tratamento da 2a pessoa em que
tecem os seguintes comentários em relação ao emprego do Tu e do Você no português
brasileiro.
No português do Brasil, o uso do tu restringe-se ao extremo sul do País e a alguns pontos da
região Norte, ainda não suficientemente delimitados. Em quase todo o território brasileiro,
foi ele substituído por você como forma de intimidade. Você também se emprega, fora do
campo da intimidade, como tratamento de igual para igual ou de superior para inferior.
(CUNHA & CINTRA, 1985:284.)
Seguindo a tradição gramatical, Bechara (2001) expõe Você, no tópico Formas de tratamento,
como uma forma pronominal de tratamento.
Existem ainda formas substantivas de tratamento indireto de 2a pessoa que levam o verbo
para a 3a pessoa. São as chamadas formas substantivas de tratamento ou formas
pronominais de tratamento:
Você, Vocês (no tratamento familiar)
o Senhor, a Senhora (no tratamento cerimonioso).
(BECHARA, 2001:135.)
Ao tecer a seguinte observação, em relação ao uso das formas Você e Tu no português
brasileiro, Bechara (2001) faz menção à forma nominal de tratamento Vossa Mercê (forma
originadora de Você), ao desuso do pronome Vós e à sua conseqüente substituição por Vocês
como estratégia de referência à 2a pessoa do discurso, em sua forma pluralizada, ao lado do Tu.
Você, hoje usado familiarmente, é a redução da forma de reverência Vossa Mercê. Caindo,
entre brasileiros, o pronome Vós em desuso, só presente nas orações e estilo solene, emprega-se
vocês como o plural de tu.
(BECHARA, 2001:136.)
Leitão et alii (2001), em sua Gramática Crítica, após a exposição das formas pessoais
pronominais vigentes na língua portuguesa, apresentam em destaque a informação de que os
pronomes de tratamento no português apresentam-se como estratégias formais de referência à
2a pessoa do discurso. Ainda no subtópico formas de tratamento, Leitão et alii afirmam ser a forma
Você um pronome que funciona no lugar da forma pronominal Tu em relação de concordância
com a 3a pessoa gramatical. Apesar de Leitão et alii apresentarem Você no espaço destinado à
exposição das formas de tratamento do português, os autores denominam-no pronome,
parecendo equipará-lo ao pronome pessoal Tu. Observa-se, pois, que não há clareza na
exposição das idéias no que se refere à forma Você, uma vez que não se explicitou, com a
devida rigidez de critérios, se tal forma se constitui no português como pronome pessoal ou como
forma de tratamento.
Pronomes de tratamento: a língua dispõe ainda de formas cerimoniosas destinadas ao
tratamento com um ouvinte revestido de maior solenidade: são os chamados pronomes de
tratamento, cujo emprego requer a enunciação do verbo e dos pronomes possessivos na 3a
pessoa, visto que, em princípio, a 2a pessoa fica reservada a um tratamento mais íntimo e
direto. Adotando, porém, o pronome você em lugar do tu (próprio da 2ap.), a linguagem
coloquial brasileira, sobretudo a carioca, desfez tal distinção e consagrou a 3 a pessoa como
forma preferencial para qualquer interlocutor, independentemente do grau de formalidade da
situação comunicacional existente: Você vai ? (informal) x Vossa Excelência irá ?
(formal).
(LEITÃO et alii, 2001:81.)
A partir dos estudos gramaticais expostos em análise, constata-se que os gramáticos da
língua portuguesa não descrevem, coerentemente, o que é funcional em relação ao quadro
pronominal do português do Brasil, apresentando uma diferenciação pouco nítida entre forma
de tratamento e pronome pessoal. No que diz respeito à forma Você, os autores, partindo de
uma classificação gramatical pouco clara e, às vezes, incoerente, acabam por entendê-la ora
como uma forma de tratamento de 3a pessoa, ora como estratégia de 2a pessoa. Outro ponto ainda
não esclarecido e controvertido refere-se à mistura de tratamento (concordância entre as supostas
formas de 3a pessoa com os pronomes possessivos de 2a pessoa).
2.2 Forma de Tratamento ou Pronome Pessoal?
A perspectiva das gramáticas
históricas.
Como os corpora desta investigação lingüística são formados por textos dos séculos XVIII
e XIX, pesquisou-se, em gramáticas da língua portuguesa setecentistas e oitocentistas, o enfoque
concedido à forma pronominal de referência à 2a pessoa do discurso – Você.
Para tal,
selecionou-se, em relação ao século XVIII, a gramática de Joanne de Moraes Madureyra Feijó –
Explicações de algumas partes da arte do Reverendo Padre Manuel Álvares (1729).
No que diz respeito
ao século XIX, consultaram-se os seguintes compêndios gramaticais: a gramática de Júlio
Ribeiro – Gramática Portuguesa (1881), a de Jerônimo Soares Barbosa – Gramática Filosófica da
Língua Portuguesa (1875), a de Francisco Julio Caldas Aulete (1868) – Gramática Nocional –, a de
Francisco Solano Constâncio (1831) – Gramática analítica da língua portuguesa – e a de Cândido
Figueiredo (1900) – Lições Práticas da língua portuguesa. Tanto a gramática do português no século
XVIII, quanto os compêndios gramaticais editados no século XIX não fizeram referência às
formas nominais de tratamento que vigiam no português daquelas sincronias passadas.
Reviram-se ainda as abordagens das gramáticas históricas quanto às formas nominais de
tratamento em português. Em análise estão a Gramática Histórica da Língua Portuguesa (2001) de
Said Ali, a Grammatica Historica (1932) de Eduardo Carlos Pereira, a Gramática Histórica de Ismael
de Lima Coutinho (1954) e o Compêndio de Gramática Histórica Portuguesa de José Joaquim Nunes
(1989).
Said Ali, em sua Gramática histórica da língua portuguesa (2001), dedica um capítulo à
descrição dos pronomes, explicitando-os em relação a sua espécie, forma e significado.
Inicialmente, o autor se envolve com uma discussão acerca da definição da categoria dos
pronomes em língua portuguesa, mostrando-se insatisfeito com o conceito de “pronome como
palavra supridora do nome substantivo”. Posiciona-se, pois, a favor da definição concebida por
Henry Sweet (apud Said Ali 2001:74) acerca dos “pronomes como nomes e adjetivos gerais, em oposição
aos ordinários nomes e adjetivos especiais, devendo-se advertir que alguns nomes e adjetivos são mais gerais em
sua significação do que outros. Assim, um nome de significação geral é, muitas vezes, quase equivalente a um
pronome”.
Senhor com sentido especial é nome, mas o Senhor, referido geralmente a qualquer pessoa a
quem dirigimos a palavra, é pronome. (...) Todo o pronome é ou um substantivo (pronomesubstantivo), ou um adjetivo (pronome-adjetivo). Alguns se usam ora como substantivos, ora
como adjetivos. Para não confundir a categoria dos pronomes com a dos nomes, diremos que
são pronomes absolutos os que fazem vezes de substantivos, e pronomes adjuntos os que se
empregam como adjetivo.
(SAID ALI, 2001:74.)
No que diz respeito aos pronomes pessoais, o autor os apresenta em relação às 1a, 2a e 3a
pessoas do discurso do singular e do plural, expondo duas maneiras de fazer referência à 2a
pessoa do discurso na interação lingüística face a face. A primeira consiste em usar o plural
Vós como indício de polidez e a segunda diz respeito à evocação de atributo ou a qualidade da
pessoa a que se faz referência como um procedimento lingüístico para enaltecê-la.
É
interessante observar que, apesar de Said Ali (2001) se mostrar preocupado com a noção de
pronome em língua portuguesa, não evidenciou sua posição quanto à categorização a ser
assumida pela forma Você. O autor parece entender Você como pronome, pois o apresenta em
confronto com a legítima forma pronominal Tu, mas o expõe como forma variante da forma
nominal de tratamento Vossa Mercê, o que, numa segunda leitura, poderia levar a interpretá-lo
como reflexo da sua forma originária – Vossa Mercê.
Do uso e abuso da fórmula vossa mercê nasceu em boca do povo a variante você, a qual não
só perdeu todo o antigo brilho, mas acabou por aplicar-se a indivíduos de condição igual, ou
inferior, à da pessoa que fala; e dirigindo-nos a mais de uma indivíduo, servimo-nos hoje de
vocês como plural semântico de tu. Outra forma alterada de vossa mercê é vossancê (...)
(SAID ALI, 2001:75.)
Pereira (1932) menciona o fato de a expressão pronominal de tratamento Vossa Mercê ter
originado Você que, por sua vez, se apresenta como forma equivalente a Tu. Embora o autor
afirme que Você advém da estratégia pronominal de tratamento – Vossa Mercê –, o equipara à
legítima forma pronominal Tu no português brasileiro.
Vossa Mercê deu-nos, contrahido, você (V.), com mudança de sentido, pois você
equivale a tu, uso actual, e se refere a eguaes ou inferiores, indicando, ás vezes, no
circulo domestico, carinho e confiança de filhos para com seus paes.
(PEREIRA, 1932:461.)
Coutinho (1954), ao apresentar o processo de formação dos pronomes pessoais da língua
portuguesa, faz menção à origem de Você, anunciando-o como um pronome de 2a pessoa do
discurso. O fato de Coutinho expor Você como um pronome de segunda pessoa, isto é, como
um pronome pessoal do português evidencia a sua aguçada percepção em relação à categoria
gramatical a que tal forma pertence no português atual – forma pronominal pessoal.
O pronome da 2a pessoa você era antigamente tratamento de respeito Vossa Mercê. A
evolução deve ter sido a seguinte: Vossa Mercê > Vossemecê > Você.
(COUTINHO, 1954:266.)
Nunes (1989) apresenta a evolução histórica dos pronomes possessivos, fazendo menção ao
desgaste fonético sofrido pela forma nominal de tratamento Vossa Mercê na língua portuguesa.
No entanto, o autor não explicita claramente a categoria gramatical a que pertence a forma Você
em língua portuguesa, uma vez que faz referência à tal forma como uma expressão que, por sua
vez, se originou da forma de tratamento Vossa Mercê.
Também na forma feminina do pronome vosso, influiu a próclise de tal maneira, que
fez que ela perdesse a sílaba final da expressão você, que ocorre a par de vossemecê, e
esta, como é sabido, por vossa mercê; contribuiu decerto para tamanha redução no
pronome e no substantivo o seu uso constante no tratamento: cf. também o espanhol
usted que corresponde à fórmula portuguesa, e o galego misia que está por mia
senhoria.
(NUNES, 1989:245.)
Acrescente-se ainda o estudo descritivista tecido por Paul Teyssier acerca do processo de
formação da língua portuguesa. Teyssier (2001), ao reconstituir a história da língua portuguesa,
apresenta a forma Você como estratégia de tratamento informal que surgiu a partir do desgaste
fonético e semântico sofrido pela forma nominal de tratamento Vossa Mercê. No que diz
respeito ao tratamento no Brasil, o autor expõe Você como forma de tratamento familiar em
contraposição ao tratamento reverente estabelecido pelas formas o senhor, a senhora.
O português do Brasil simplificou, igualmente, o código de tratamento. Como em Portugal, o
vós desapareceu, mas o tu sobrevive apenas no extremo sul e em áreas não suficientemente
delimitadas do Norte. Em circunstâncias normais, existem apenas duas fórmulas: o
tratamento por você, que é familiar, e o tratamento por o senhor, a senhora, que é mais
reverente.
(TEYSSIER, 2001:107.)
Uma vez constatada a indefinição das gramáticas descritivas no que se refere a uma
explicitação criteriosa acerca do que efetivamente distingue um pronome pessoal de um pronome de
tratamento, passa-se, na próxima seção, a rever estudos descritivistas acerca da história do
surgimento das formas nominais de tratamento no português.
2.3 A História de Formação das Estratégias Nominais de Tratamento em Português.
Cintra (1972) analisa as formas de tratamento em português a partir do contexto
histórico-social que as licencia na sociedade portuguesa. Ao iniciar a reconstrução das origens
das formas de tratamento, admite que o português herdou do latim tardio um sistema bifurcado
de referência à 2a pessoa do discurso – Tu e Vós. Entre o final do século XIII e a primeira
metade do século XIV, dava-se preferência aos pronomes Tu, no plano da intimidade, e Vós,
no plano da cortesia. O sistema de formas de tratamento da língua portuguesa assemelhava-se
ao do francês, que continua, até hoje, assumindo as formas pronominais Tu e Vous na expressão
do tratamento informal e formal, respectivamente. Até princípios do século XV, o pronome de
tratamento Vós representou a forma de tratamento cerimonioso preferida pela realeza
portuguesa.
Domingos (2001) volta-se para os pronomes de tratamento usuais no português do século
XVI, entendendo-os como estratégias de tratamento a partir das quais são percebidas as
relações sociais entre os interlocutores na interação comunicativa.
Trata-se de pronomes com os quais se estabelece uma relação direta entre falantes e ouvintes
expressando distanciamento ou não entre eles. (...) Ocupamo-nos, principalmente, daqueles
que caracterizam a relação entre uma pessoa e seu ouvinte no tratamento direto. O valor de
tratamento igualitário ou de superior para inferior ou de inferior para superior, ou mesmo de
[+ intimidade], de insulto, de [+afetividade], de modéstia, de ordem, (...) faz-nos afirmar
que pronome de tratamento é a representação no discurso do ser-social. Somente o uso
determina a regra. As normas são sociais. TU e VÓS (...) não são nomes, mas
representações sociais ou psicológicas.”
(DOMINGOS, 2001:21.)
O corpus sobre o qual incide a análise de Domingos (2001) é representado pelos Autos de
Gil Vicente e das Escolas Vicentinas do século XVI. A autora defende a hipótese de que o
teatro português deixa evidenciar resquícios da linguagem falada em Portugal desse período,
entendendo-se que essa foi a versão da língua portuguesa que aportou em terras ameríndias por
ocasião da descoberta e colonização do Brasil pelos portugueses.
A análise dos pronomes de tratamento usuais pelos personagens do teatro de cordel
português do século XVI possibilita a descrição das suas regras de uso em relação à 2a pessoa
gramatical. Segundo a autora, a função da 2a pessoa gramatical – Tu e Vós – apresenta-se em
sintonia com as relações de superioridade, inferioridade, igualdade, [+ intimidade], [+ afetividade], insulto
e ordem.
No que se refere ao uso do pronome Tu, a regra geral é a de marcar a relação interpessoal
de superior para inferior. Apresentam-se, ainda, os seguintes contextos em que se evidencia a
aplicabilidade do pronome Tu: nas relações de [+ intimidade] entre desiguais, entre iguais, e
entre namorados; nas relações de [+ afetividade] e também nas relações de insulto.
O pronome Vós apresenta como regra geral a sua aplicação em relações interpessoais de
inferior para superior. No entanto, constatou-se ainda a sua aplicabilidade nas relações de
modéstia, de ordem, de igualdade social; de
[- intimidade] movidas por igualdade social;
de [+ intimidade] com igualdade social, entre casados; em casos de pluralização de pessoas (uma
personagem falando por várias), nas situações de reverência a Deus ou entes religiosos e nos
chamamentos.
Com relação às outras estratégias nominais de tratamento, Cintra (1972) consegue
detectar, ainda que esporadicamente nas Crônicas de Fernão Lopes dos séculos XIV e XV,
ocorrências de Vossa Mercê, em 1394, de Vossa Alteza, em 1455, e de Vossa Senhoria, em 1442.
Consoante o pensamento de Santos Luz (1958), acredita-se que o surgimento dessas fórmulas
indiretas de tratamento – Vossa Mercê, Vossa Alteza, Vossa Senhoria, Vossa Excelência – conduziu a
uma revolução no sistema de tratamento da língua portuguesa, uma vez que surgem, para evocar
a 2a pessoa do discurso, como formas específicas que se manifestam em relação de
concordância gramatical com a 3a pessoa do singular.
Os motivos para o abandono do pronome de tratamento Vós como uma demonstração
de polidez para com a realeza portuguesa devem ser entendidos, pois, conforme Cintra (1972),
a partir do contexto histórico-social de Portugal nos séculos XV e XVI. Em termos sociais, há de se
admitir que a corte e a nobreza foram as responsáveis pela adoção e posterior degradação das
polidas formas nominais de tratamento cortês na sociedade portuguesa, visto que desejavam
estabelecer, lingüisticamente, uma diferenciação hierárquica entre as diferentes camadas da
pirâmide social. Essa tentativa de consolidação de uma sociedade hierarquizada expressa o
desejo de manutenção das relações sociais de poder entre a realeza portuguesa e seus súditos a partir
da efetiva instauração de um relacionamento interpessoal assimétrico. Em termos lingüísticos,
observa-se que, em virtude do desuso do pronome Vós para o tratamento cerimonioso de
interlocutor, surgiram formas nominais de tratamento e, entre elas, está a forma nominal de
tratamento Vossa Mercê que, lenta e gradualmente, evoluiu até constituir a forma pronominal
Você em português.
Em relação à semântica da forma de tratamento Vossa Mercê, evidencia-se uma clara
referência à benignidade do rei como traço inerente à pessoa humana que detém o Poder no
regime monárquico português. Segundo Said Ali (1937:139), “os súbditos, dependentes sempre da
mercê ou da graça do príncipe, apresentavam as suas queixas e requerimentos dando-lhe o habitual vós.
Sabiamente pediam por mercê e punham freqüentemente vossa mercê por vós, referindo-se não à pessoa do
soberano, e sim à graça e o favor que dele dimanava.” Quando se empregava Vossa Mercê, objetivavase, através de uma associação metonímica, evocar, sobretudo, a justiça e a benevolência do
monarca soberano para com seus servos.
A fim de corroborar o pensamento de Said Ali no que se refere à questão dessa associação
metonímica, resgatou-se a etimologia do vocábulo mercê em português. O substantivo mercê
originou-se do substantivo latino mercēs, -ēdis com o sentido de salário, prêmio, assumindo, em
língua portuguesa, conforme Moraes Silva (1813), Nascentes (1955) e Cunha (1982), o sentido
de graça, benefício, proteção, mercadoria. Tais acepções comprovam a interpretação de Said Ali
(1937, 2001) em relação ao fato de a forma nominal de tratamento Vossa Mercê constituir-se
como uma estratégia para invocar apenas indiretamente a segunda pessoa, pois, evocava, em
primeira instância, a proteção e a graça disseminadas pelo representante da autoridade imperial.
Determinado pelo pronome possessivo de cerimônia Vossa, o substantivo Mercê
propagou-se como Vossa Mercê, forma de tratamento cerimonioso para com o rei na sociedade
portuguesa, em 1460 – século XV (cf. Cintra:1972). O autor afirma que, a partir de 1490, a forma
de tratamento de caráter nominal deixa de ser empregada para se dirigir, única e
exclusivamente, ao monarca português, passando a figurar como uma forma de tratamento
compartilhada também por duques e infantes, em seguida, por fidalgos e, no século XVI, por
componentes da burguesia.
A sociedade portuguesa de origem feudal reorganizou-se em virtude do surgimento de
uma nova classe social – a burguesia – que estava voltada para o comércio citadino. Em fins do
século XV e início do XVI, além do clero e da nobreza, também essa nova classe social passou
a compor a pirâmide social portuguesa. O fato de o monarca português ter tido que dividir o
glamour do cenário social com a burguesia conduziu à reestruturação das relações interpessoais
de modo que as fórmulas de tratamento deveriam enaltecer, preferencialmente, a soberania do
rei em relação às demais camadas sociais. A preocupação em evidenciar a hierarquização social
por formas de tratamento era tão relevante que foram instituídas, na segunda metade do século
XV, expressões substantivas especificamente direcionadas ao tratamento da realeza portuguesa,
tais como Vossa Majestade, Vossa Alteza, Vossa Excelência, Vossa Senhoria, Vossa Mercê, por meio
das leis de cortesia estabelecidas, em 1586, por Felipe II, na Espanha e, em 1597, por Felipe I, em
Portugal. Conforme a legislação imperial, Felipe I estabelece, em Portugal, as formas nominais
de tratamento Vossa Majestade para o Rei e para a Rainha, Vossa Alteza para Príncipes e seus
sucessores, Vossa Excelência para sucessores dos Infantes e para o Duque de Bragança e Vossa
Senhoria para o Clero e autoridades do Império Português. A forma nominal de tratamento
Vossa Mercê não tinha seu contexto de aplicação especificada através das leis de cortesia, mas tal
forma nominal de tratamento já havia se disseminado pela nobreza e também pela burguesia
portuguesa, comportando-se como uma estratégia de tratamento formal que se opunha ao
informal Tu. No século XVIII, o autor afirma que o Vós como forma empregada para fazer
referência a um único interlocutor, àquela altura do processo de reorganização do sistema de
tratamento do português, já se constituía como um traço arcaizante da língua, condenada, pois,
ao desuso.
Wilhelm (1979) admite que o Vós foi o pronome de distância recorrente como forma de
tratamento cortês para com o rei português no período de 1331 até 1490. Vossa Mercê tem
provável proveniência espanhola, vigorando, na sociedade lusitana, desde 1455 até 1580. Às
formas nominais de tratamento Vossa Alteza e Vossa Senhoria são atribuídas a origem italiana,
manifestando-se na comunidade lingüística do português europeu a partir de 1442 e 1453,
respectivamente. Com relação a Vossa Excelência e a Vossa Majestade, acredita-se que as suas
primeiras manifestações tenham se dado a partir de 1455 e 1597, respectivamente, na
comunidade lingüística do português europeu.
No que diz respeito à origem espanhola atribuída por Wilhelm à forma Vossa Mercê,
acrescentem-se as contribuições de José Pla Cárceles (1923) acerca da inserção de Vuestra
Merced no sistema lingüístico do espanhol. O autor admite que o pronome Vos, forma de
tratamento cortês, mostrou-se funcional na Espanha do século XV, começando a cair em desuso
no século XVI. Para o lugar que o pronome Vos deixou vago no sistema da língua, surge a
forma nominal de tratamento Vuestra Merced que, por sua vez, não se destina à nobreza, porque
para os nobres da sociedade hispânica, tem-se Vuestra-Señoria, Vuestra-Excelencia, mas se
constitui como estratégia cortês de tratamento em relações sociais de inferior para superior. Como
resultado do desgaste fonético-fonológico sofrido pela forma nominal de tratamento Vuestra
Merced originou-se Usted, forma de tratamento cortês ainda usual na língua espanhola. Constatase, pois, que é coerente a hipótese de que Vossa Mercê, ou melhor, Vuestra Merced tenha se
implementado primeiramente na comunidade lingüística espanhola uma vez que, segundo
Cintra (1972), as leis de Cortesia foram estabelecidas por Felipe II para fixar o uso de Vossa
Majestade, Vossa Alteza, Vossa Excelência e Vossa Senhoria, inicialmente, na Espanha, em 1586, e,
quinze anos depois foram instauradas por Felipe I, em Portugal. Cintra ainda afirma que Vossa
Mercê aparece no teatro português de Gil Vicente principalmente na boca de personagens
castelhanos.
A evolução assumida por Vossa Mercê até originar Você no português foi investigada, em
relação ao século XVIII, por Lopes (2001) e, no que se refere aos séculos XVIII e XIX, tal
processo de mudança categorial foi analisado por Lopes e Duarte (2003a) e (2003b). No que
toca aos séculos XIX e XX, apresentam-se os estudos acerca das estratégias de tratamento
nominais e pronominais do português produzidos por Salles (2001), Soto (2001), Nascentes
(1950, 1953, 1956), Luft (1957), Said Ali (1937), Basto (1932), Amaral, (1920), Marroquim
(1996).
O estudo de Lopes (2001), intitulado O Processo evolutivo de Vossa Mercê > Você (Português) e
Vuestra Merced > Usted (Espanhol), tem por objetivo comparar o processo evolutivo da forma
Você (s) com o da forma Usted (s), considerando que, apesar de terem uma base comum, como
defende Cintra (1972), as formas nominais de tratamento Vossa Mercê e Vuestra Merced
assumiram comportamentos distintos nas línguas em análise. Os corpora utilizados para a análise
são compostos por peças teatrais, entremezes produzidos em castelhano e em português entre
os séculos XVI e XIX.
Em espanhol, a forma Usted resguarda o valor de cortesia em oposição ao tratamento por
Tú que, por sua vez, se constitui como uma estratégia de tratamento mantida em relações
sociais marcadas pela informalidade e pela familiaridade. No que diz respeito à língua portuguesa, a
forma Você, que proveio da estratégia cortês de tratamento Vossa Mercê, perdeu o seu caráter de
cortesia. Assim sendo, funciona como estratégia para fazer referência à segunda pessoa do
discurso em situações comunicativas movidas pela informalidade, estando, pois, em
concorrência com o pronome de segunda pessoa – Tu. Além disso, acrescente-se o fato de a
forma Você já se apresentar, no português brasileiro, como estratégia de indeterminação em
construções pessoais (Nos grandes centros urbanos, você vive momentos de violência social.) e com um
valor expletivo em construções existenciais (Você não tem comércio no centro da cidade.), como
evidenciam as análises de Duarte (1995, 1999, 2003) e de Avelar (2003). Ao comparar o
processo de pronominalização de Vossa Mercê com o de Vuestra Merced, Lopes (2001) constata
que a mudança categorial se dá de forma mais rápida no espanhol, séculos XVI – XVII, do que
no português, séculos XVIII – XIX. Considerando o lento, gradual e paulatino processo de
mudança categorial sofrido por Você, observa a autora que, a partir do século XIX, tal forma
começa a ocupar posições mais fixas na sentença, funcionando, preferencialmente, na função
sintática de sujeito em posição pré-verbal, em oposição a Vossa Mercê, que, por sua vez, se deixa
evidenciar com maior variabilidade sintagmática.
Com base nos corpora formados por cartas pessoais e por peças populares produzidas em
Portugal e no Brasil dos séculos XVIII e XIX, Lopes e Duarte (2003b) se propuseram a refletir
sobre a gramaticalização de nominais em português, atentando para a evolução histórica de Vossa(s)
Mercê(s) > Você – Vocês em alternância com as formas pronominais Tu – Vós. A partir de uma
análise quantitativa, as autoras constatam que, nos textos literários representativos da variedade
brasileira do português, Você, em fins do século XIX, invade paulatinamente o sistema
pronominal, mostrando-se em concorrência com Tu. Na variedade lusitana do português, em
contrapartida, a forma pronominal Tu começa a se sobrepor em relação às outras estratégias de
tratamento apresentadas, tornando-se mais produtiva na passagem do século XVIII para o
século XIX. Nas cartas pessoais produzidas no Brasil, tem-se uma baixa freqüência de uso de
Vossa Mercê no século XVIII, seguida da sua ausência significativa no século XIX. As formas
pronominais Tu e Você iniciam, no século XVIII, uma tímida concorrência que é ratificada no
século XIX. A baixa freqüência de uso de Vós, nas peças brasileiras do século XIX, aliada ao
desuso dessa forma pronominal nas cartas pessoais cariocas, apresentam-se como indícios da
dessemantização de Vossa Mercê em favor do aumento da freqüência de uso de Você.
Fundamentando sua análise nos corpora compartilhados do projeto Para a História do
Português Brasileiro – PHPB –, Lopes e Duarte (2003a), a partir de uma amostra de cartas nãooficiais brasileiras setecentistas e oitocentistas, produzidas no Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais e
Bahia, procuram identificar as formas nominais de tratamento e pronominais usuais nos corpora
em análise. Na tentativa de integrar a perspectiva variacionista discutida por Weinreich et alii
(1968) e Labov (1994) aos princípios funcionais discutidos por Hopper (1991), as autoras
chegaram às seguintes conclusões: 1a) nas relações simétricas, prevalecem, nas cartas setecentistas
e oitocentistas, o uso mútuo do pronome Tu (T/T) – 72% –, contrapondo-se às relações sociais [íntimas], nas quais se detecta maior freqüência de Vossa Mercê – 61% – em relação às outras
formas de tratamento – Vossa Senhoria, Vossa Excelência – 39%; 2a) em virtude do processo de
dessemantização sofrido por Vossa Mercê, a sua contraparte gramaticalizada, Você, mostrou-se
produtiva nas relações sociais assimétricas de superior para inferior, principalmente nas cartas
pessoais; 3a) a forma nominal de tratamento Vossa Mercê mostrou-se freqüente nos séculos
XVIII e XIX nas relações sociais assimétricas de inferior para superior; 4a) a rigidificação da
ordem SV, a mistura de formas tratamentais nas cartas pessoais e a presença de co-referentes de 2 a
pessoa fornecem indícios de que a gramaticalização de Vossa Mercê se inicia, ainda que
lentamente, no século XVIII, implementando-se de forma mais acelerada no final do século
XIX, principalmente em relação ao pronome pessoal Vós.
Miguel Salles (2001) se propõe a descrever a evolução da mudança no sistema de
pronomes do português a partir de uma única peça teatral e de cartas pessoais produzidas no
Brasil do século XIX. Pretende explicitar, ainda, os estágios da mudança, detectando as formas
de tratamento em variação e mudança no português brasileiro. As estratégias de tratamento
inventariadas por Salles podem ser divididas em dois grupos: (1 o) formas de tratamento – Você,
Senhor, (em relação de concordância com a 3a pessoa gramatical) Tu, Vós (em relação de
concordância com a 2a pessoa gramatical) – e (2o) formas de tratamento reverente – Vossa
Senhoria, Vossa Senhoria Reverendíssima, Vossa Excelência, Vossa Excelência Reverendíssima, Vossa
Paternidade, Vossa Paternidade Reverendíssima e Vossa Majestade Imperial. O autor constata que a
introdução de novas formas de tratamento do interlocutor no Brasil do século XIX conduziu à
reformulação do sistema de tratamento da 2a pessoa do discurso a partir de rearranjos
gramaticais e de simplificações na conjugação verbal. A reorganização do quadro pronominal
do português brasileiro dá-se com o desaparecimento da 2a pessoa do plural – Vós – e com o
uso da 2a pessoa do singular – Tu – em relação de concordância com a 3a pessoa gramatical.
A partir da análise de cartas brasileiras, Soto (2001) constrói seu estudo acerca das
expressões de tratamento pronominal alocutivo no Brasil dos séculos XIX e XX. A autora
assume, como ponto de partida para a sua análise, a instabilidade do sistema de tratamentos do
português em relação à marcação do lugar do outro – interlocutor – detectada na Carta de
Caminha. Constata-se que Você se insere como forma de referência à 2a pessoa do discurso no
sistema de pronomes da língua portuguesa, dividindo o seu espaço de atuação com vestígios da
forma nominal de tratamento Vossa Mercê – Mecê – e com a forma pronominal Tu.
A
investigação lingüística das cartas brasileiras novecentistas conduziu Soto (2001) a constatar que o
século XX representa o momento de ruptura com um quadro pronominal que previa o Tu
como forma licenciada, conforme os preceitos da norma padrão para língua escrita para evocar
a segunda pessoa do discurso. Além disso, a autora comprova que o século XX se apresenta
como o período em que se dá a configuração do Você como forma de referência ao interlocutor
totalmente desligada do sentido de polidez atribuído à sua forma nominal de tratamento
originária, Vossa Mercê. A forma Você se apresenta completamente desvinculada da semântica
do Poder, compartilhando o seu campo de manifestação no domínio da informalidade em
concorrência com a forma pronominal – Tu.
Ao descrever os tipos de expressões nominais de tratamento usuais no Brasil dos séculos XIX e XX,
Nascentes (1950) inicialmente divide as fórmulas de tratamento em três tipos: (1) tratamentos oficiais e
respeitosos, (2) tratamentos a pessoas da classe eclesiástica e (3) tratamentos da vida comum. Tendo em vista os
corpora propostos e os períodos históricos em análise, faz-se necessário expor apenas a descrição dos
tratamentos oficiais e respeitosos (primeiro tipo) e dos tratamentos da vida comum (terceiro tipo), pois
os comentários do autor servem como hipóteses básicas para a composição deste estudo em cartas
oficiais e não-oficiais.
No que se refere aos tratamentos oficiais e respeitosos, o autor afirma que as formas
nominais de tratamento Vossa Excelência e Vossa Alteza se aplicavam aos membros da Corte
Portuguesa, constituindo-se, assim, como formas usadas para manifestar, através do discurso, a
soberania da Coroa Portuguesa em relação a seus súditos. A fórmula de tratamento Vossa
Excelência, segundo Nascentes (1950), foi destinada à realeza portuguesa a partir da lei instituída
em 16 de setembro de 1597. Em terras brasileiras, tal expressão nominal de tratamento foi
substituída por Majestade Imperial, conforme decreto imperial de 13 de outubro de 1822,
manifestando-se como estratégia de tratamento indicada aos imperadores
D. Pedro I e
D. Pedro II desde o período imperial até a data da proclamação da república brasileira. Ainda
em relação às formas de tratamento respeitoso que vigoravam na língua portuguesa do século
XIX, apresenta-se a expressão de tratamento Vossa Alteza que, por sua vez, a partir de lei
portuguesa instituída em 1597, destinava-se aos príncipes e princesas da Casa Real Portuguesa
além de aplicar-se a filhos, genros, noras e cunhados do rei.
A forma nominal Vossa Senhoria, instituída através de Alvará de 17 de maio de 1797,
conforme a descrição de Nascentes (1950), constituía expressão cerimoniosa de tratamento a
pessoas ilustres da sociedade, tais como desembargadores, barões, brigadeiros. A expressão de
tratamento em análise prestava-se a fazer referência aos cabidos das igrejas arquiepiscopais e
episcopais do governo imperial. Por um decreto, em 1861, tem-se a determinação de uso de
Vossa Senhoria como forma de tratamento cortês entre generais oficiais do Exército e da
Armada. Generalizou-se, assim, com a República Brasileira, o uso de Vossa Senhoria para o
tratamento de cortesia entre cidadãos da sociedade.
A forma Vossa Mercê é apresentada por Nascentes (1950) como uma forma de tratamento
respeitoso em vigor no Brasil dos séculos XIX e XX. Segundo o autor, trata-se de uma
expressão destinada ao tratamento de coronéis, tenentes-coronéis, majores, capitães, tenentes e alferes,
conforme autorização legal estabelecida em 02 de agosto de 1842. O pronome Vós somente
sobrevive na língua escrita, o que aponta para o seu desuso como forma de tratamento cortês
na dinâmica das relações interpessoais travadas no Brasil dos séculos XIX e XX.
Dentre as estratégias de tratamento da vida comum descritas por Nascentes (1950), temse o Você como forma de tratamento entre iguais, disseminada por todo o Brasil do século XIX
e XX, à exceção da Região Sul em que predomina o uso do pronome Tu. Acrescente-se que,
nas relações de superior para inferior, as formas Você, Tu e Senhor apresentam-se como
estratégias usuais no Brasil do período em estudo.
O autor faz referência à mistura de tratamentos que ocorre no português do Brasil dos
séculos XIX e XX. É comum a mistura da forma de tratamento Vossa Excelência com a forma
pronominal Vós – “Peço que Vossa Excelência vos digneis ...”. No que diz respeito à confusão entre
as formas Você e Tu, é interessante observar que, apesar de o autor mostrar-se atento às
transformações sofridas pela língua portuguesa, produz uma análise impressionística acerca de
uma possível motivação para a mistura de pronomes em português e para o não preenchimento da
posição do clítico de 3a pessoa com os pronomes oblíquos átonos o, a.
O tratamento de você se mistura com o de tu.
Eu disse que o brasileiro julga bruto o tratamento por tu. Julga bruto, porém, no
pronome recto.
No pronome oblíquo, emprega-o sem sentir brutalidade.
Comummente ouvem-se frases deste teor:
“Você esteve na praia? Eu tambem estive, mas não te vi lá.”
Explica-se facilmente. Como pronome objectivo te é mais leve do que você. Se se
empregasse você, a frase ficaria: “Eu também estive, mas não vi você lá. Frase
pesada. O brasileiro não usa o, a, com caso objectivo de você. Usa o mesmo você do
caso sujeito. Há certa repulsa por estas formas átonas. Parecem-nos vazias.
(NASCENTES, 1950:21.)
Ao estudar o valor da depreciação nas formas de tratamento no português, Luft (1957)
considera que a depreciação se dá por desvio da norma que estabelece o uso de uma dada
expressão de tratamento a depender da posição social ocupada pelo falante na sociedade, o que
pode ocorrer não só por excesso de cerimônia (ironia), mas também por excesso de
familiaridade. Caso se admita que a forma pronominal Vós, usual em Portugal entre os séculos
XIV e XVI, mostra-se em desuso na sociedade portuguesa do século XX, depreendem-se os
tons de ironia ou de depreciação assumidos pelo locutor em relação ao seu interlocutor. Ao tratar
por Tu a quem se deve dirigir por expressões de tratamento cerimonioso como, por exemplo,
Senhor, Vossa Excelência, Vossa Senhoria, observa-se, pois, a depreciação com que se dirige à 2a
pessoa do discurso por excesso de informalidade.
Luft (1957:204) afirma ainda que “(...) Vossa Mercê e Vosmecê são tratamentos em recuo, que
tendem a desaparecer. Eram dirigidos a pessoas de condição mediana ou inferior, pessoas as quais não se queria
tutear. No Brasil, era também com essa fórmula que filhos se dirigiam aos pais, e os netos, aos avós. Hoje,
pode-se dizer que está caindo em desuso, e soa verdadeiramente arcaica. E é talvez esta a explicação para o seu
sabor depreciativo.(...)” Criou-se, em algumas regiões de Portugal, uma rejeição à forma de
tratamento resultante do processo de gramaticalização de Vossa Mercê – Você –, entendendo-a
como expressão de tratamento desrespeitosa. No Brasil, Você apresenta-se como forma de
tratamento entre iguais e de superior para inferior. Contudo, ainda é possível empregá-la com
quem não se pode relacionar-se informalmente. Assim sendo, é possível detectar o tom
depreciativo assumido por Você tanto em terras brasileiras quanto em terras lusitanas, espaços
geográficos em que a língua portuguesa é a língua oficial. Com relação à forma pronominal Tu,
observa-se que, apesar de essa forma se apresentar, preferencialmente, no Brasil como fórmula
de tratamento íntimo, também pode assumir um tom depreciativo, se usada em contextos que
somente admitem formas de tratamento cerimonioso. Conforme a análise de Sá Nunes (apud
Luft, 1957:204), Tu assume manifestações completamente díspares: “na linguagem afetiva, íntima e
de igual para igual, ou então no falar enfático, energético e, por vezes, escarninho ou irônico.”
Basto (1932) descreve as formas nominais de tratamento funcionais no português
europeu do século XX, fazendo referência, inclusive, às fórmulas de tratamento usadas no
Brasil. O autor constata que Vossa Excelência constitui a fórmula de tratamento cerimonioso
mais disseminada pela sociedade lusitana na primeira metade do século XX. Segundo Rodrigo
de Sá (apud Basto, 1932), Vossa Excelência é de caráter respeitoso e formal, usada entre os
componentes da milícia militar da sociedade portuguesa, mais especificamente, para o
tratamento desde major até instâncias superiores do poderio militar. Ainda em relação às
formas respeitosas de tratamento, tem-se Vossa Senhoria, cujo emprego é recorrente, na primeira
metade do século XX, entre os comerciantes da sociedade portuguesa e entre os componentes
das tropas militares que, conforme Rodrigo de Sá, se dá desde capitão a alferes (subalternos).
Basto afirma ainda que, no século XX, Vossa Mercê já não mais é usual entre os
portugueses que preferem Você ou ainda as manifestações de tal forma desgastadas
foneticamente: vossemecê, voss’mecê, vosmecê, vosmicê e você. Acrescente-se o fato de a forma voncê se
manifestar com maior freqüência no Algarve, Alentejo e Trás-os-Montes. No que diz respeito
às relações sociais que embasam as ocorrências da fórmula de tratamento Vossa Mercê, afirma o
autor que, nas relações entre pais e filhos, os pais, na região da Beira, são tratados por Vossemecê, o
que permite entender que, em relações sociais de inferior para superior, ainda persiste a fórmula
de tratamento mais respeitoso, ao menos, em uma região (Beira) da sociedade lusitana do século
XX.
Em relação ao Brasil, as fórmulas vossuncê, vancê e vacê funcionam como estratégias de
tratamento preferidas na região do Amazonas e a forma mecê apresenta-se como uma forma
usual no Rio Grande, Paraná e São Paulo. Para Basto (1932), a forma Você e variantes
(vossemecê) foram evitadas como forma de tratamento cerimonioso. No entanto, na primeira
metade do século XX, o tratamento por Você apresenta-se como uma forma de bom tom. Assim
sendo, o autor se coloca a favor do que denomina o favoristimo da moda, pois a adoção do Você
nas relações interpessoais acarretaria o desaparecimento da multiplicidade de tratamentos que
vigoraram na sociedade portuguesa, constituindo-se, portanto, numa tentativa de simplificação
do complexo sistema de tratamento do português.
No que diz respeito ao Vós, o autor afirma que essa fórmula de tratamento se apresenta
em desuso na sociedade lusitana do século XX. Considerando o desuso do pronome Vós, que
foi tão usual como forma de tratamento respeitoso no passado lingüístico da língua portuguesa,
o autor apresenta algumas regiões, no norte de Portugal e nos Açores, como regiões específicas
em que o povo ainda conserva seu uso. Interessante observar que, em contextos de rezas e nas
cantigas populares portuguesas, se verifica a mistura entre as formas Tu e Vós. Ainda em
relação à forma de tratamento Vós, Basto (1932) põe em evidência o fato de trocar-se Vós por
Vocês no português europeu do século XX, o que, segundo o autor, se dá porque o falante
português ao fazer uso da forma Vocês ainda resguarda, na sua memória lingüística, a forma de
tratamento Vós – “Vocês vindes ou não vindes ?”
As relações sociais que contextualizam o uso de Tu na sociedade portuguesa do século
XX, segundo Basto, são movidas pela informalidade. Dessa forma, mostra-se recorrente o
tratamento por Tu nas relações sociais solidárias estabelecidas entre marido e mulher, irmãos,
primos e condiscípulos. Nas relações sociais de superior para inferior, por sua vez, há evidências
do Tu no tratamento dos pais aos filhos, dos tios aos sobrinhos e aos criados quando são
jovens.
O olhar de Said Ali (1937) sobre as formas de tratamento da língua portuguesa resulta em
um artigo intitulado De eu e tu a familiaridade. Trata-se de um estudo descritivo que atenta para
as fórmulas de tratamento usuais no português europeu do século XX, observando as suas
manifestações em séculos passados. Em português, a referência à segunda pessoa do discurso
dá-se, preferencialmente, por Tu, Você, O Senhor em relação de concordância gramatical com a
3a pessoa gramatical – Tu acha, Você sabe, O Senhor pode. Enquanto Tu e Você, no português
brasileiro, funcionam como estratégias informais para evocar o interlocutor, as formas
respeitosas Senhor e Senhora funcionam, na primeira metade do século XX, como estratégias de
cortesia tanto na modalidade falada, quanto na modalidade escrita da língua portuguesa.
Os glossários regionais em análise, nesta revisão histórico-descritiva, estão representados
pelos estudos descritivistas do português brasileiro realizados por Amadeu Amaral – O Dialeto
Caipira – em 1920, por Antenor Nascentes – O Linguajar Carioca – em 1953, e por Mário
Marroquim – A Língua do Nordeste –, em 1996. Trata-se de investigações lingüísticas que se
comprometeram com a descrição do falar caipira, do falar carioca e do falar popular de Alagoas
e de Pernambuco, respectivamente, apesar de também tecerem considerações acerca da
modalidade brasileira do português, distinguindo-a do português europeu a partir da sua
descrição nos níveis fonético-fonológico, morfossintático e semântico-lexical. Esses estudos
representam o início da sistematização de observações acerca da realidade lingüística
multifacetada do português brasileiro, embora ainda se apresentem vinculados à tradição
filológica clássica.
Em o Dialeto Caipira, Amadeu Amaral apresenta, como seu objeto de estudo, a norma de
uso de falantes paulistas não cultos, entendendo-a como “um aspecto da dialectação portuguesa em
São Paulo”. (AMARAL, A. 1920:14). No que diz respeito aos pronomes, Amaral descreve o
emprego do Tu como essencialmente enfático, mantendo-se em relação de concordância com a
3a pessoa do singular – “tu bem sabia, tu vai, tu disse”. Em relação à 2a pessoa do plural, o autor
apresenta o pronome Vós como uma forma em desuso que, por sua vez, esporadicamente,
pode vir a ser detectada no dialeto caipira. O Vós, conforme a descrição do autor, tem sido
substituído por vacê na realidade lingüística do interior de São Paulo. As formas
a gente e
uma pessoa – ambas equivalentes ao francês on – e Você aliada às suas variações – vacê, vancê,
vossuncê, vassuncê, mecê, ocê – se deixam evidenciar na fala dos não cultos.
Antenor Nascentes, em o Linguajar Carioca, submete a língua das classes não cultas à
apreciação crítica, descrevendo-as e analisando-as sob a justificativa de que é através do falar
dos não cultos que se torna possível a descrição da língua portuguesa em sua espontaneidade.
Ao descrever a norma de uso em relação aos Pronomes no Rio de Janeiro, o autor afirma que a
forma pronominal de 2a pessoa do discurso se explicita através do Você – passível de assumir as
formas – vancê, ocê –, do pronome Tu, que é usado de forma enfática com o caráter de
depreciação – “Tu vais ver quem eu sou!” – e do pronome Vós – Vóis – que é de uso restrito ao
tom retórico do discurso entre os falantes cultos. Para o lugar que o Vós deixou vago no
sistema lingüístico surgem as formas vocês e senhores. Com o caráter de indefinição, a forma A
gente é usada em substituição ao Nós, conforme a descrição de Nascentes (1953).
Em estudo intitulado A Língua do Nordeste, Mário Marroquim se dispõe a estudar o
português popular de Alagoas e Pernambuco através da literatura e da sua experiência de vida
como falante nativo do nordeste. Ao abordar os Pronomes, o autor afirma serem Tu, Você e Vós,
em ordem decrescente, os preferidos pela comunidade lingüística nordestina. A referência à 2 a
pessoa do discurso com o Tu dá-se de forma recorrente entre os nordestinos como estratégia
informal de conduzir o diálogo. O Você se dá entre as classes cultas como estratégia familiar
para fazer referência ao interlocutor. Em relação ao plural, a forma Vocês mostrou-se freqüente
entre os nordestinos, embora Marroquim ressalte a persistência do pronome Vós como forma
de tratamento entre o povo dessa região do Brasil. Segundo o autor, os falantes alagoanos e
pernambucanos empregam o Vós como forma tratamental usada no cotidiano, mantendo-se em
relação de concordância com a forma verbal na 3a pessoa do singular, conforme é possível
detectar na poesia popular – “Quando vós chega zangado, ella progunta o que é”.
Menon (1995) discute a introdução do par Você/Vocês para o tratamento da 2a pessoa em coocorrência com o par Tu/Vós. A autora admite que Vocês se incorporou ao paradigma pronominal do
português, refletindo a expressão da noção de plural em relação à 2 a pessoa do discurso – Você/Vocês –
a partir da aplicação da regra de flexão de número em português. A pluralização pelo processo
flexional já não se dava com relação às legítimas formas pronominais – Tu/Vós –, uma vez que estas se
constituem a partir de vocábulos completamente diferentes entre si. No entanto, a autora reconhece que
persiste no português o uso do plural respeitoso em relação à forma Vocês, mesmo que não tenha sobrevivido com
o mesmo grau de formalismo característico do uso da forma pronominal Vós no português do século
XIV. Na forma Vocês, ainda sobrevivem resquícios semânticos da estratégia respeitosa que a originou
(Vossa Mercê), que, por sua vez, entrou no sistema do português para substituir o plural majestático
assumido por Vós. A autora confirma sua perspectiva tecendo a seguinte indagação:
Quem ainda não se sentiu levemente embaraçado em se decidir entre o uso de você e o de o (a) senhor
(a), ao telefonar a uma empresa ou a chegar numa loja ou escritório e perguntar à pessoa:
‘vocês fazem isso?’ ou
‘vocês fornecem o produto x?’ ou
‘vocês dão desconto?’
embora se dirigindo a uma única pessoa ?
(MENON, 1995:96.)
Nesta revisão histórico-descritiva, partiu-se da indefinição da gramática normativa em
relação às propriedades que diferenciam um pronome pessoal de um pronome de tratamento em
português, perpassando por estudos que resgatam a complexa história de formação das
estratégias nominais de tratamento e do valor que assumiram na sociedade portuguesa e
brasileira ao longo do seu período de formação. Objetiva-se, pois, com base na análise
proposta, contribuir para a discussão dos traços peculiares à forma de tratamento Vossa Mercê e
à forma pronominal Você em língua portuguesa, identificando também se os valores assumidos
pelas diversas estratégias de tratamento levantadas em cartas setecentistas e oitocentistas escritas no
Rio de Janeiro ratificam, ou não, as conclusões dos trabalhos revisitados.
3. OS CORPORA.
O objetivo da edição de corpora confiáveis ao estudo da configuração da norma brasileira
do português, atentando-se para o resgate da história da língua portuguesa no Brasil dos séculos
XVIII e XIX, constitui o fator motivador da presente investigação lingüística.
Segundo
Barbosa (1999:14), “ao estudo da sociedade americana falante do Português enquadra-se a questão do
Português do Brasil, ao passo que, ao estudo da língua da comunidade européia, corresponde a questão do
Português no Brasil.” A discussão acerca do Português no Brasil pode se dar tanto em stricto sensu
quanto em lato sensu. Em lato sensu, a noção de Português no Brasil é determinada pelo aspecto
geográfico, ou seja, privilegia-se a busca por textos produzidos no território brasileiro sem
distinção da origem do redator, em virtude de não se ter informações precisas acerca da
nacionalidade dos autores dos textos. Em stricto sensu, a língua portuguesa no Brasil é reflexo da
produção escrita de portugueses que residiam no Brasil em convivência com lusófonos
(brasileiros) na América Portuguesa. Como não foi possível se obter informações sobre a
nacionalidade de todos os autores das cartas setecentistas e oitocentistas que representam os corpora
em discussão, admite-se apenas o critério geográfico como fator determinante para se entender
que tais cartas parecem refletir o Português no Brasil.
Para cumprirem-se às diretrizes de trabalho propostas pelo Projeto Para uma História do
Português Brasileiro (PHPB-RJ), voltaram-se os esforços para a organização de corpora fidedignos à
expressão do processo de gestação do português brasileiro na América Portuguesa. Visitas
constantes à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN-RJ), ao Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB) e ao Arquivo Nacional (AN) resultaram no levantamento e
transcrição de cartas manuscritas no Rio de Janeiro durante a segunda metade do século XVIII
e ao longo do século XIX. Segundo Barbosa (1999:106), para a construção de corpora confiáveis
ao estudo lingüístico do português no Brasil, faz-se necessário tanto explicitar o contexto sóciohistórico, quanto o contexto de escritura dos textos a serem editados a fim de expor à comunidade
acadêmica uma amostra que seja reflexo expressivo de um dado momento histórico-social.
Nessa altura em que se debruçam por sobre os diversos escritos produzidos na
América Portuguesa pesquisadores tanto de linhas empiricistas, quanto de mentalistas
tornou-se imprescindível editarem-se textos em prosa não literária que não apresentem
semelhantes limitações às diversas abordagens possíveis com os dados deles oriundos.
Mais que isso, edições que avancem ao máximo na descrição, portanto, não só do
contexto sócio-histórico do texto, mas na das condições de produção, relação entre
emissor e receptor, modalidade, estilo etc, tornam-se imperativas para estabelecer
confiabilidade e fidedignidade ao material posto à disposição da comunidade
acadêmica dedicada às questões acerca da mudança lingüística.
(BARBOSA, 1999:106.)
A busca por textos não-literários, com base na proposta de tipologia textual idealizada por
Barbosa (1999), resultou na organização das cartas manuscritas em análise a partir de textos de
circulação pública – cartas da administração pública – e de textos de circulação privada – cartas da
administração privada e cartas particulares.
Dada a dificuldade ou, em muitos casos, a impossibilidade de identificação da nacionalidade
e/ou naturalidade de todos os autores das cartas manuscritas no Brasil setecentista e oitocentista,
consideraram-se as cartas produzidas no Rio de Janeiro como fontes para o estudo do
português no Brasil. Acredita-se que seja possível retomar as palavras de Barbosa (1999:15), ao
expor a aplicabilidade da sua perspectiva aos estudos lingüísticos acerca do português brasileiro:
(...) esta pesquisa contribui também, indiretamente, para os estudos diacrônicos do Português
do Brasil: só se pode saber o que seria o Português do Brasil naquela época se se souber o
que viria a ser o Português no Brasil.
(BARBOSA, 1999:15)
Admite-se que, segundo Cambraia e Lobo (apud Lobo 1998:179), “editar um texto consiste em
escolher-se, do ponto de vista formal, uma maneira particular de o divulgar, a qual será basicamente
determinada a partir do público leitor que se queira atingir.” Assim sendo, acredita-se que uma edição
fac-similar diplomático-interpretativa de textos produzidos no Brasil dos séculos XVIII e XIX
corresponda aos anseios do lingüista-pesquisador ávido por fontes confiáveis ao estudo da
formação da norma brasileira do português.
Barbosa (1999: 110) se propõe a assumir uma tipologia de textos do Brasil colônia no
lugar de uma taxonomia, uma vez que a abordagem taxonômica dos textos provocaria alguns
problemas: “(1) o problema das contradições e superposições de critérios do fazer tipológico comparativo; (2) o
do comprometimento e confusão criados pelo uso consagrado de algumas terminologias, (3) o da imprecisão das
‘tipologias’ arquivísticas; (4) o de saber-se de que maneira as variedades lingüísticas estão retratadas, naquela
época, pela modalidade escrita, distinguindo-se, pelos dados, que fatos poderiam dizer respeito às normas de uso
e, que outros, ao estilo; (5) o de estar-se em descoberta da sociedade colonial brasileira, graças à grande massa de
documentação inédita que tem vindo à luz.” Considerando o desgaste das nomenclaturas dos textos
literários já consagradas – textos narrativos, descritivos, argumentativos e dissertativos – o autor
admite o modo de circulação do documento como critério que conduzirá, de forma mais coerente, à
proposição da sua tipologia. Assim sendo, o modo de circulação dos documentos funciona
como o parâmetro responsável por identificar a especificidade dos textos: os de circulação oficial
– cartas da administração pública –, os de circulação privada – cartas da administração privada – e os
particulares.
Retome-se ainda a indagação tecida por Lobo (2001a:110-111 apud Oliveira 2003) sobre a
edição de cartas particulares oitocentistas do Recôncavo Baiano, a fim de entender a relevância
da edição de corpora para o estudo da formação do português brasileiro: “Qual a especificidade do
corpus que aqui se apresenta em face de um corpus geral diacrônico para o estudo da constituição histórica do
português brasileiro?” Julga-se, que a partir dos textos escritos em terras brasileiras1, seja possível
contribuir para a análise da face assumida pela língua portuguesa na realidade sócio-histórica
colonial e imperial do Brasil. A esses corpora que vieram elucidar o português no Brasil, propõese, nessa dissertação, acrescentar uma amostra composta por sessenta cartas manuscritas no Rio
de Janeiro setecentista e oitocentista.
As palavras de Castro (1996:139 apud Lobo 1998:180) ressaltam inclusive a importância
dos recortes temporal e diatópico na constituição de corpora para estudos comparativos entre a
realidade lingüística lusitana e a brasileira da língua portuguesa.
(...) para nos sentirmos todos mais à vontade neste domínio, que interessa tanto a
brasileiros como a portugueses, seria conveniente desenvolver nos estudos lingüísticos
sobre o português uma prática de análises comparatistas em que as estruturas
brasileiras e portuguesas fossem, por sistema, confrontadas, para não acontecer que se
afirme a diferença na ausência, ou no desconhecimento, de um dos termos da
comparação.
(CASTRO, I., 1996:139.)2
Em consonância com o pensamento de Castro (1996), avalia-se como positiva a tarefa de
contribuir para a composição de corpora que evidenciem o português no Brasil, aliada a outras
iniciativas que possibilitem o reconhecimento da variedade do português brasileiro, como é o
caso da edição de documentos produzidos pelos africanos e seus descendentes confeccionada
por Oliveira (2003). Acrescente-se ainda que, a partir de estudos comparativos entre os traços
do português europeu em oposição aos do português brasileiro, seja possível entrever-se,
criteriosamente, a expressão brasileira da língua portuguesa.
Adotando-se tais critérios, partiu-se para a edição diplomático-interpretativa de sessenta cartas
produzidas no contexto sócio-histórico carioca da segunda metade do século XVIII e do século
XIX, conforme expõe o quadro geral dos corpora a seguir exposto.
1
Destacam-se tanto as cartas de comércio produzidas no Brasil da segunda metade do século XVIII (Barbosa, 1999), quanto as cartas
particulares do Recôncavo Baiano do século XIX (Lobo, 2001).
2
CASTRO, I. Para uma história do português clássico. DUARTE, I.; LEIRIA, I. (Orgs.) Actas do Congresso Internacional sobre o Português.
Lisboa: Colibri, 1996, p. 135-150.
OS CORPORA
CARTAS PRODUZIDAS NO RIO DE JANEIRO
(PNB - SÉCULO XVIII)
CARTAS DE CIRCULAÇÃO PÚBLICA
CARTAS DE CIRCULAÇÃO PRIVADA
15 Cartas da BN-RJ
16 cartas do AN
Sub-Total: 31 Cartas
CARTAS PRODUZIDAS NO RIO DE JANEIRO
(PNB - SÉCULO XIX)
CARTAS DE CIRCULAÇÃO PÚBLICA
CARTAS DE CIRCULAÇÃO PRIVADA
12 cartas da BN-RJ
15 Cartas
14 cartas da BN-RJ
15 Cartas
03 cartas do IHGB
01 carta do IHGB
Sub-Total: 30 Cartas
Total de Cartas Transcritas: 61 Cartas
Quadro 1: Os Corpora.
Durante a composição dessa amostra de cartas manuscritas diplomático-interpretativamente
editadas com seus respectivos fac-símiles, “saltaram aos olhos” as diferentes formas nominais de
tratamento localizadas e, em particular, a forma nominal de tratamento Vossa Mercê ao lado de
sua contraparte gramaticalizada Você. Estava-se, pois, diante de um fenômeno lingüístico a ser
descrito e analisado face à realidade lingüística do português em terras brasileiras. Concorda-se
com Faraco (1996:51), ao admitir que “as formas de tratamento de interlocutor nas diferentes línguas
naturais têm interessado particularmente aos antropólogos e aos lingüistas”. Enquanto para aqueles é
possível, através da análise das formas de tratamento, depreender a organização social e a
cultura de uma dada comunidade lingüística, para estes é possível analisar as estratégias
lingüísticas usuais para evocar o interlocutor e as suas conseqüências na reorganização do
sistema de tratamento de base nominal e pronominal da língua portuguesa no Brasil.
3.1 Sobre as cartas de circulação pública no Rio de Janeiro setecentista e oitocentista.
Resgatando-se as macro-categorias textuais propostas por Barbosa (1999:149), expõe-se a sua
concepção sobre textos de circulação oficial para justificar a relevância de uma edição de
manuscritos que também privilegie tais tipos de textos.
Devemos entender por documentos da administração colonial em circulação pública tanto
aqueles de caráter deliberativo oficial, quanto os de requerimento pessoal junto à estrutura de
poder, em que pelo menos um dos interessados esteja na condição de pessoa jurídica ou de
representação oficial de Estado.
(BARBOSA, 1999:149.)
Com base na categorização dos textos não-literários pensada por Barbosa (1999),
entendem-se os textos de circulação oficial como aqueles direcionados às instâncias do Poder
no Brasil colônia – segunda metade do século XVIII – e ao Império Brasileiro desde 1822 até
fins do século XIX. Em conformidade com a perspectiva de análise adotada pelo autor, “o
conhecimento sistemático dessa administração pública que produziu milhares de documentos pode seguir três vias:
os aspectos temporais, avaliando as mudanças administrativas implantadas ao longo do período colonial; os
aspectos hierárquicos, avaliando as relações de subordinação entre cargos e órgãos; e, por fim, os aspectos
temáticos, ou seja, classificando os textos pelas diversas funções em que se subdividiu a administração colonial.”
(Barbosa 1999:149). Constata-se, pois, a aplicabilidade desta investigação lingüística que se
volta para textos da administração pública, uma vez que a análise dos aspectos hierárquicos e
temporais poderá fornecer indícios acerca dos tipos de interações sociais estabelecidas entre o
remetente e o destinatário das missivas oficiais trocadas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII e
XIX.
A tabela 1 apresenta o conteúdo das cartas oficiais editadas na presente investigação, bem
como os dados sobre autoria, local e data de escritura do documento, a fim de permitir a
observância do perfil social do remetente e do tom oficial das cartas manuscritas na realidade
sócio-histórica do Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX.
CARTAS DE CIRCULAÇÃO PÚBLICA
(SÉCULO XVIII)
N
REMETENTE
1.
Joaquim Alves Meneses
(Nacionalidade
não identificada)
O
2.
3.
4.
Conde de Rezende
(Português)
Afonso Botelho de Sampaio
e Souza
(Português, Fidalgo da Casa
Real, cf. SILVA, I. F.;
SOARES, E., 1958)
Afonso Botelho de
Sampaio e Souza
(Português, Fidalgo da Casa
Real, cf. SILVA, I. F.;
SOARES, E., 1958)
5.
Raimundo José de Sousa
(Nacionalidade
não identificada)
6.
Raimundo José de Sousa
(Nacionalidade
não identificada)
7.
Marquês do Lavradio
(Português)
8.
J. Be. do Rio de Janeiro
(Nacionalidade
não identificada)
9.
J. Be. do Rio de Janeiro
(Nacionalidade
não identificada)
CONTEÚDO
Carta a Luís Antônio de Souza Botelho
Mourão, governador da capitania de São Paulo,
tratando da próxima vinda dos governadores de
Pernambuco, Minas Gerais e Bahia e da
chegada de uma Nau da Índia.
Carta do Conde de Rezende a Dom Fernando
José de Portugal pedindo que a Bahia
socorresse o Rio de Janeiro em relação ao
problema da falta de farinha.
Carta de Afonso Botelho de Sampaio e Souza
ao governador da Capitania de São Paulo, Luís
Antônio de Souza Botelho Mourão, relatando
sua visita ao Marquês de Lavradio e a conversa
que haviam tido sobre a defesa do Iguatemi.
Carta de Afonso Botelho de Sampaio e Souza
ao governador da Capitania de São Paulo, Luís
Antônio de Souza Botelho Mourão, tratando do
interesse manifestado pelo Marquês de Lavradio
e Dom Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho
em relação às questões referentes à Capitania de
São Paulo além de transmitir suas opiniões
sobre a defesa do Iguatemi.
Carta do Ajudante de ordens Raimundo José de
Sousa ao governador da capitania de São Paulo,
Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão,
comunicando sua chegada àquela cidade e
relatando os assuntos tratados no seu encontro
com o Marquês Vice-Rei entre os quais estavam
a saída de tropas para Iguatemi e a construção
de uma fábrica de ferro.
Carta do Ajudante de ordens Raimundo José de
Sousa a Luís Antônio de Sousa Botelho
Mourão, governador da capitania de São Paulo,
transmitindo notícias da posse de Antônio
Carlos Furtado de Mendonça no governo de
Minas Gerais e da morte de Dona Maria
Antônia de S. Boaventura além de tratar de
assuntos referentes à extração do cobre e
mineração de pedras preciosas.
Carta do Marquês do Lavradio, Vice Rei do
Brasil, ao capitão engenheiro Francisco João
Roscio
determinando-lhe
que
passasse
prontamente para o continente do Rio Grande,
a fim de fazer lá as obras necessárias à defesa da
região.
Carta de J. Be. do Rio de Janeiro a João
Henrique Böhm felicitando-o pela saída dos
castelhanos dos domínios do Rio Grande.
Carta de J. Be. do Rio de Janeiro a João
Henrique Böhm informando que o Padre Luís
de Medeiros Correa não chegou ainda ao
“Continente do Rio Grande”.
DATA
RJ, 09.05.1768.
RJ, 18.02.1773.
RJ, 20.03.1773.
RJ, 21.03.1773.
RJ, 21.03.1773.
RJ, 26.03.1773.
RJ, 15.02.1774.
RJ, 28.04.1776.
RJ, 15.01.1777.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
J. Be. do Rio de Janeiro
(Nacionalidade
não indentificada)
Carta de J. Be. do Rio de Janeiro a João
Henrique Böhm referente ao vigário Manoel RJ, 15.01.1777.
Francisco.
Carta de J. Be. do Rio de Janeiro a João
e
J. B . do Rio de Janeiro
Henrique Böhm agradecendo a notícia sobre os
RJ, 02.09.1777.
(Nacionalidade
padres Manoel Francisco da Costa e Luís de
não identificada)
Medeiros Correa.
Luis de Vasconcelos e Sousa
Carta do Vice Rei do Brasil ao Conde de
(Português (Lisboa),
Vimieiro remetendo instrução ao juiz de fora de
RJ, 03.04.1784.
cf. Enciclopédia Luso-Brasileira, Santos sobre a capitania de São Vicente.
o
17 Vol.)
Carta do Juiz de fora de Santos, Marcelino
Pereira Cleto Cortez da Silva e Vasconcelos, ao
Marcelino Pereira Cleto
Conde de Vimieiro agradecendo sua
Cortez da Silva e Vasconcelos interferência em despacho para o Porto Seguro RJ, 20.02.1788.
(Nacionalidade
e depois para a ouvidoria do Rio de Janeiro e
não identificada)
estimando que tivesse recebido os documentos
enviados sobre a capitania de São Vicente.
Carta do Conde de Rezende a Dom Fernando
José de Portugal informando que o Bacharel
RJ, 17.11.1791.
Conde de Rezende
José de Sá Bitancourt fora considerado inocente
(Português)
da Conjuração Mineira e fora posto em
liberdade.
Carta do Conde de Rezende a Dom Fernando
José de Portugal, Governador e Capitão
RJ, 20.03.1796.
Conde de Rezende
General da Bahia, comunicando as providências
(Português)
que tomara para socorrer a Bahia na esterilidade
pela qual passava.
CARTAS DE CIRCULAÇÃO PÚBLICA
(SÉCULO XIX)
N
O
1.
2.
3.
4.
5.
REMETENTE
Infante Almirante General
Pedro Carlos
(Nacionalidade
não identificada)
Manoel José da Costta,
(Brasileiro (PE), cf. SILVA, I. F.;
SOARES, E., 1958.)
Francisco Xavier Peres.
(Nacionalidade
não identificada)
José Luís Alves.
(Nacionalidade
não identificada)
Duarte Mendes
de Sampaio Fidalgo
(Nacionalidade
não identificada)
Infante Almirante General
(Nacionalidade
não identificada)
Conde de Linhares
(Português, cf. Enciclopédia
Luso-Brasileira, 12o Vol.)
CONTEÚDO
DATA
Carta do Infante Almirante General Dom Pedro
Carlos ao Conde da Ponte, Governador e
Capitão General da Bahia, sobre o arsenal RJ, 12.08.1808.
daquela cidade.
Demarcação dos limites da cidade do Rio de RJ, 15.10.1808.
Janeiro.
Carta de Duarte Mendes de Sampaio Fidalgo ao
Conde da Palma solicitando um emprego para RJ, 28.02.1811.
Manuel Gomes de Moura.
Carta do Infante Almirante General ao Conde
dos Arcos sobre os tipos de embarcações mais RJ, 24.04.1812.
apropriados à defesa da capitania da Bahia.
Carta do Conde de Linhares ao Conde de Palma
tratando de remessa de artífices para a fábrica RJ, 17.04.1811.
de armas.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
Manoel Jacinto
Nogueira da Gama
Carta de Manoel Jacinto Nogueira da Gama
(Brasileiro, 08.09.1765 – São
João Del Rei (MG), 15.02.1847., dirigida ao Conde de Aguiar versando sobre o
projeto de sua autoria e a reforma tributária.
cf. Dicionário das Famílias
Brasileiras Vol II, p. 1626.)
Carta do Decano da Real Capela Fluminense
Monsenhor Joaquim Nóbrega Cao’ d’ Aboim
Joaquim Nóbrega Cao’ d’Aboim.
dirigida a Sua Majestade sobre irregularidades
verificadas na eleição do Cabido do Rio de
Janeiro.
Carta de José Clemente Pereira dirigida a José
José Clemente Pereira
Bonifácio de Andrada e Silva apresentando
(Português (Adem), cf.. SILVA,
esclarecimentos sobre o cumprimento do
I. F.; SOARES, E., 1958,
Compromisso da Irmandade do Divino Espírito
Tomo IV, p. 391.)
Santo.
José Bonifácio
de Andrada e Silva
Carta oficial de José Bonifácio de Andrada e
(Brasileiro, Santos, 1763 –
Niterói, 1838, cf. Enciclopédia Silva concedendo o Hábito da Ordem de São
Bento de Aviz a Jose Francisco de Andrade
Luso-Brasileira, 3o Vol. e cf.,
Almeida Bonjardim.
SILVA, I. F.; SOARES, E.,
1958, Tomo IV, p. 296.)
Carta de Miguel Calmon de Pin e Almeida
dirigida a José Clemente Pereira informando
Miguel Calmon du Pin
sobre a remessa de ofício da Junta da Fazenda
e Almeida
da Província da Bahia e sobre o pagamento do
(BA, 1796, cf.. SILVA, I. F.;
tempo em que o Cônego Manoel Dendê Bias
SOARES, E., 1958,
serviu de membro do conselho interino do
Tomo VI, pág.229.)
Governo, na vila de Cachoeira, localizada na
Bahia.
Aureliano de Souza e Oliveira
(Visconde de Sepetiba)
Carta de Aureliano de Souza e Oliveira,
(Português, Colônia de
Visconde de Sepetiba, ao Conselheiro Manoel
Sacramento, 16.06.1762, cf.
José Maria da Costa e Sá remetendo-lhe uma
Dicionário das Famílias
carta imperial.
Brasileiras Vol II, p. 2144.)
Conde de Irajá
(Manuel do Monte Rodrigues de Carta do Conde de Irajá, Bispo do Rio de
Araújo – Recife, 17.03.1798 – Janeiro, ao Conselheiro Nabuco de Araújo,
PE, 11.06.1863 – , cf. Dicionário Ministro da Justiça, acerca dos padres Manuel
das Famílias Brasileiras,
Ramos Duarte e Demétrio João Vieira Falcão.
Volume II, p. 1945.)
Conde de Irajá
(Manuel do Monte Rodrigues de Carta do Conde de Irajá, Bispo do Rio de
Araújo – Recife, 17.03.1798 – Janeiro, ao Conselheiro Nabuco de Araújo,
PE, 11.06.1863 – , cf. Dicionário Ministro da Justiça, acerca dos padres Manuel
das Famílias Brasileiras,
Ramos Duarte e Demétrio João Vieira Falcão.
Volume II, p. 1945.)
Marquês do Paraná
(Honório Hermeto Carneiro
Leão – São Carlos de Jacuí, MG, Carta do Marquês do Paraná (Presidente do
11,01,1801 – RJ, 03.09.1857 –, Conselho) ao Conselheiro Nabuco de Araújo,
Ministro da Justiça, acerca da imigração de
cf. Dicionário das
leprosos.
Famílias Brasileiras,
Volume II, p. 1709.)
Visconde do Rio Branco
Carta oficial do Barão de Cotegipe a Leonel
(José Maria da Silva Paranhos – Martiniano
de
Alencar
agradecendo
Salvador, 16.03.1819 – RJ,
considerações de respeito para com ele tecidas
01.11.1880 –, cf. Dicionário das na última carta, notificando a adoção de
Famílias Brasileiras,
medidas em forma de lei que contemplarão os
Volume 02, p. 2079.)
empregados diplomáticos.
RJ,14.07.1812.
RJ, 03.01.1819.
RJ, 28.02.1822.
RJ, 21.06.1822.
RJ, 03.12.1828.
RJ, 13.01.1843.
RJ, 26.05.1854.
RJ, 26.05.1854.
RJ, 17.06.1855.
RJ, 20.08.1873.
Tabela 1: Cartas de circulação pública produzidas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX.
Constata-se o caráter oficial de cartas autógrafas e cópias de época destinadas a circular em
âmbito público, versando sobre questões que competiam às instâncias superiores do Poder
colonial e imperial deliberar. Destaque-se o caráter oficial de cartas editadas neste trabalho
como, por exemplo, a 13a carta oficial setecentista redigida pelo Juiz de Fora de Santos (Marcelino
Pereira Cleto Cortez da Silva e Vasconcelos), em que agradece, ao Conde de Vimieiro, a sua
interferência em despacho para o Porto Seguro e para a Ouvidoria do Rio de Janeiro. A 5a carta
oficial oitocentista também se presta à identificação do tom oficial com que foi produzida, visto
que se trata de uma missiva direcionada a Sua Majestade Real, na qual são relatadas as
irregularidades ocorridas na eleição do Cabido do Rio de Janeiro.
3.2 Sobre as cartas de circulação privada no Rio de Janeiro setecentista e oitocentista.
Conforme a discussão tecida por Barbosa (1999) acerca dos tipos de textos produzidos na
segunda metade do século XVIII na América Portuguesa, entendem-se os textos da
administração pública e os da administração privada como macro-categorias tipológicas às quais se
acrescentam os textos de caráter particular stricto sensu, designados de circulação particular.
Na designação administração privada, devem-se compreender os textos trocados entre
instituições não governamentais e ou entre particulares quando um deles, ou os dois,
estava(m) em condição de pessoa jurídica ou de representação institucional. Em geral, nesse
grande grupo, enquadram-se religiosos, monocultores das grandes fazendas, pecuaristas,
extrativistas e comerciantes em geral.
(BARBOSA, 1999:150.)
Os textos cuja expressão é particular são os que tratam de assuntos de interesse único e
exclusivo dos interlocutores nas relações interpessoais, podendo expor questões de ordem pessoal
ou social. Assume-se, contudo, que no contexto sócio-histórico do Brasil setecentista e oitocentista,
é possível reunir as cartas da administração privada e as cartas particulares num único grupo: circulação
privada. Parece coerente a reunião de duas macro-categorias textuais – textos da administração
privada e pessoais – em um único grupo – cartas da administração privada –, pois se assim não o
fosse, não haveria uma homogeneidade entre as poucas cartas da administração privada existentes
nos corpora desta dissertação.
Retomando-se a concepção de Barbosa (1999:150) acerca dos textos da administração
privada no contexto do Brasil colonial, explicitam-se a autoria, o conteúdo, o local e a data de escritura
dos textos de circulação privada dos corpora em análise.
CARTAS DE CIRCULAÇÃO PRIVADA
(SÉCULO XVIII)
N
REMETENTE
1.
Marquês do Lavradio
(Português)
2.
Marquês do Lavradio
3.
Marquês do Lavradio
4.
Marquês do Lavradio
5.
Marquês do Lavradio
6.
Marquês do Lavradio
7.
Marquês do Lavradio
8.
Marquês do Lavradio
9.
Marquês do Lavradio
10.
Marquês do Lavradio
11.
Marquês do Lavradio
O
Conteúdo
Carta de amizade do Marquês do Lavradio
relatando, ao Padre Baptista, as tarefas
desempenhadas em relação à expedição de
navios.
Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao
seu filho, Conde de Tarouca, relatando o prazer
sentido em saber as suas notícias e expondo as
suas saudades.
Carta de amizade do Marquês do Lavradio
escrita ao seu irmão, Conde de São Vicente,
acerca de questões de comércio.
Carta de amizade do Marquês do Lavradio
escrita ao seu irmão, Conde de São Vicente,
tratando de questões comerciais.
Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao
Intendente da Fundição da Vila de São Félix,
Antônio José de Miranda, certificando-lhe da
sua amizade e manifestando-lhe desejos de
pronto restabelecimento.
Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao
seu filho, Conde de Tarouca, pedindo-lhe
notícias suas, da nora e netos. Além disso, o
autor tece comentários sobre sua própria saúde.
Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao
seu filho, Conde de Vila Verde, revelando o seu
desejo por obter notícias do filho e tecendo
comentários acerca da sua própria saúde e de
seu trabalho no Rio de Janeiro.
Carta de amizade do Marquês do Lavradio a
João Henrique de Souza expondo a resolução
por ele tomada em virtude do Real Contrato
dos Diamantes.
Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao
seu filho, Conde de Vila Verde, lamentando a
demora de navios que venham de Lisboa com
notícias do filho.
Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao
seu filho, Conde de Tarouca, lamentando a falta
de notícias do filho e sua família que vieram de
Lisboa. Além disso, o Marquês do Lavradio
expôs o desejo de obtenção de notícias do filho
a quem muito estima.
Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao
seu filho, Conde de Vila Verde, comentando
sobre sua vida atribulada de trabalho em meio a
muitas ocupações para justificar-se ter sido
breve nesta carta enviada ao filho, Conde de
Vila Verde, através do Conde de Valladares.
DATA
RJ, 28.07.1768.
RJ, 17.11.1770.
RJ, 17.11.1770.
RJ, 23.12.1770.
RJ, 12.12.1772.
RJ, 22.02.1773.
RJ, 22.02.1773.
RJ, 26.03.1773.
RJ, 11.06.1773.
RJ, 12.06.1773.
RJ, 02.03.1774.
12.
Marquês do Lavradio
13.
Marquês do Lavradio
14.
Marquês do Lavradio
15.
Marquês do Lavradio
16.
Marquês do Lavradio
Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao
seu filho, Conde de Tarouca, comentando sobre
sua vida atribulada com o excesso de trabalho
como justificativa por ter sido breve nesta carta
enviada através do Conde de Valladares. Além
disso, o autor desculpa-se com o filho em
relação as suas caturrices e impaciência.
Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao
senhor Manoel da Cunha Menezes felicitandolhe pela sua chegada à Bahia.
Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao
seu filho, Conde de Tarouca, expressando a sua
felicidade diante do recebimento de notícias do
filho. O autor expõe ao filho a rotina de
trabalho que limita seu tempo para ser mais
extenso na escritura das cartas.
Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao
seu filho, Conde de Vila Verde, agradecendo o
recebimento de notícias do filho e dos netos e
justificando que em virtude do excesso de
trabalho não pode ser mais extenso na carta.
Carta de amizade do Marquês do Lavradio ao
Conde de Tarouca agradecendo-lhe as notícias
enviadas e tecendo comentários acerca da sua
própria saúde.
RJ, 02.03.1774.
RJ, 03.03.1774.
RJ, 06.05.1774.
RJ, 06.05.1774.
RJ, 15.01.1773.
CARTAS DE CIRCULAÇÃO PRIVADA
(SÉCULO XIX)
N
REMETENTE
1.
Fernando José de Portugal
(Português, Lisboa (?), cf.
SILVA, I. F.;
SOARES, E., 1958,
Tomo II, pág.274.)
Carta de Fernando José de Portugal a Joaquim
Pedro de Quintela pedindo para enviar o mais RJ, 16.04.1803.
depressa possível as suas encomendas.
Joaquim José de Azevedo
(Nacionalidade
não identificada)
Carta de Joaquim José de Azevedo a José da
Costa e Silva tratando de assunto de interesse RJ, 16.08.1809.
particular além de relatar seu encontro com Sua
Majestade.
O
2.
3.
4.
5.
6.
Martin Francisco Ribeiro
de Andrada e Silva
(Santos, SP, em 1776,
cf. SILVA, I. F.;
SOARES, E., 1958,
Tomo IV, pág.153.)
Joaquim José de Sousa Lobato
(Nacionalidade
não identificada)
Manoel Jacinto
Nogueira da Gama
(Brasileiro, 08.09.1765 – São
João Del Rei (MG), 15.02.1847,
cf. Dicionário das Famílias
Brasileiras, Vol II, p. 1626.)
José Luís Alves
(Nacionalidade
não identificada)
CONTEÚDO
DATA
Carta de Martin Francisco Ribeiro de Andrada e
Silva a José Bonifácio de Andrada e Silva RJ, 16.01.1810.
enviando-lhe uma determinada quantia para a
viagem do irmão.
Carta de Joaquim José de Sousa Lobato ao
Conde de Palmas tratando de assuntos RJ, 13.02.1811.
familiares.
Carta de Manoel Jacinto Nogueira da Gama a
destinatário ignorado pedindo que o atendesse RJ, 20.02.1811.
em dois favores.
Carta de José Luiz Alves a Antônio Esteves
Costa referindo-se às letras de João Pereira de RJ, 06.07.1811.
Sousa Caldas e tratando do comércio marítimo.
Bernardo Teixeira Coutinho
Alvarez de Carvalho
(Nacionalidade
não identificada)
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
Inocêncio A. das Neves
(Nacionalidade
não identificada)
João Crysostomo
de Oliveira Salgado Brandão
(Nacionalidade
não identificada)
João Ventura Rodrigues
(Nacionalidade
não identificada)
João Ventura Rodrigues
(Nacionalidade
não identificada)
J. F. da C. Miranda.
(Nacionalidade
não identificada)
J. F. da C. Miranda.
(Nacionalidade
não identificada)
J. F. da C. Miranda.
(Nacionalidade
não identificada)
Romualdo Antônio Franco de Sá
(Nacionalidade
não identificada)
Carta de Bernardo Teixeira Coutinho Alvarez
de Carvalho a José Bonifácio de Andrada e Silva
oferecendo uma peça de formação cristalina em RJ, 11.07.1815.
forma de um anel e disponibilizando seus
serviços.
Carta de Inocêncio A. das Neves a Dona
Narcisa Emília de Andrada perguntando sobre RJ, 08.05.1816.
Dona Carlota e outras assuntos.
Carta de João Crysostomo de Oliveira Salgado
Brandão a José Bonifácio de Andrada e Silva RJ, 06.03.1820.
pedindo-lhe uma carta de proteção.
Carta de João Ventura Rodrigues dirigida
Manoel José Maria da Costa e Sá sobre a
extinção do tráfico da escravatura.
Carta de João Ventura Rodrigues dirigida
Manoel José Maria da Costa e Sá sobre a
extinção do tráfico da escravatura.
Carta ao senador José Martiniano de Alencar
relatando-lhe fatos ocorridos na Câmara dos
Deputados.
Carta ao senador José Martiniano de Alencar
comunicando-lhe que houve mudança no
Ministério.
Carta ao senador José Martiniano de Alencar
tratando de envio de materiais para o término
de obras públicas.
Carta de Romualdo Antônio Franco de Sá a seu
irmão Felipe Franco de Sá sobre assuntos de
família.
RJ, 27.09.1822.
RJ, 24.07.1832.
RJ, 30.07.1835.
RJ, 18.02.1836.
RJ, 28.03.1837.
RJ, 26.12.1858.
Tabela 2: Cartas de circulação privada produzidas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX.
As cartas de circulação privada escritas no Rio de Janeiro da segunda metade do século
XVIII constituem-se como cópias de época3 de missivas particulares enviadas por um único
remetente (Marquês do Lavradio) a diferentes destinatários: o padre Baptista, os seus filhos4
(Conde de Tarouca, Conde de Vila Verde), e os amigos (Antônio José de Miranda, João
Henrique de Souza e Manoel da Cunha Menezes). As cartas de circulação privada produzidas no
Rio de Janeiro do século XIX, expostas na tabela 2, são missivas autógrafas ou cópias de época que
circulavam para estabelecer transações comerciais e tratar de assuntos de interesse particular,
viabilizando assim a observância dos tipos de relações interpessoais estabelecidas entre
remetente e destinatário de textos dotados de menor grau de cerimônia.
Há desvantagens e vantagens em relação ao fato de um único remetente (Marquês do
Lavradio) representar todas as cartas da administração privada do século XVIII dos corpora deste
estudo.
No que se refere às desvantagens, é presumível a hipótese de um possível
enviesamento dos dados da análise lingüística, uma vez que cabe às cartas pessoais de um único
3
Afirma-se que tais cartas do Marquês do Lavradio, compiladas em dois códices (Códice 1095 e 1096 do AN), constituam-se como cópias
de época, pois no próprio códice, visualizado através do seu microfilme, há as seguintes informações “Livro copiador das cartas de Amizade
do Marquês do Lavradio durante seu governo no Rio de Janeiro 1768-1772 e 1772-1776”.
4
Convém esclarecer que, no decorrer deste trabalho, a partir da reconstituição da árvore genealógica da família do Marquês do Lavradio,
descobriu-se que o Conde de Tarouca e o Conde de Vila Verde não eram seus filhos consangüíneos, mas seus genros. Apesar de a relação
consangüínea de pai e filho não existir verdadeiramente, as relações sociais travadas entre eles apresentam-se nas cartas em análise com
esse sentido.
autor a exposição da produção escrita de fins da era setecentista no Brasil. No que diz respeito
às vantagens, admite-se que dificilmente se tenha acesso a um material de cunho pessoal
produzido por um escritor culto no Brasil setecentista, o que já aponta para a peculiaridade
dessas cartas que compõem os corpora desta investigação. Acrescente-se a isso o fato de esse
conjunto homogêneo de cartas pessoais prestar-se ao cotejo com a prática de escrita culta dos
textos impressos em língua portuguesa a fim de se detectar a expressão da norma culta do
português no Brasil. Por fim, ressalte-se a especificidade dessas missivas com relação ao
contexto de informalidade detectado através da análise do conteúdo das cartas de amizade do
Marquês do Lavradio, como é possível verificar a partir da análise dos trechos de tais cartas
apresentadas a seguir.
“(...) MeuqueridoFilho, e Senhor domeuCoração; Grande hé aconsolação, que tenho com
asboas novas que Você me dá suas porem dêvodizer=lhe averdade, eu menão Livro de
cuidado, com quanto Você não vive pormais mezes auzentedeLixboa (...)”
(Carta não-oficial (02). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.)
“(...) [espaço] Eu entanto passo Sem novidade, excepto em velhice, e rabuje que lheconfeço a
Voce mevou fazendo insofrivel vejão Vocês aSarna que selhe [espera] quando ca tiver
afelicidade que dezejo que he de recolherme a nossa Caza. (...)”
(Carta não-oficial (10). Marquês do Lavradio. RJ, 12.06.1773.)
4. PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS.
4.1 A teoria da mudança lingüística e suas questões teóricas.
Segundo Mattos e Silva (2002), “(...) qualquer língua histórica está em contínuo processo de mudança.”, o
que permite concebê-la como instrumento de comunicação que se desenvolve a partir de recorrentes
transformações permeadas pelo contexto histórico-social em que está inserida. O fato de a língua
expressar eventos da fala humana justifica a sua dinamicidade e, conseqüentemente, a suscetibilidade à
heterogeneidade em sua essência. Assumindo as palavras de Lucchesi (1998:74), que considera a
realidade lingüística do português brasileiro “(...) não apenas como heterogênea e variável, mas também como uma
realidade plural; mais especificamente, como uma realidade polarizada.”, os estudos sociolingüísticos se propõem
a depreender a realidade heterogênea, plural e polarizada das línguas humanas, descrevendo-as e analisandoas à luz de teoria e metodologia científicas.
Considerando que o sistema lingüístico se organiza a partir de uma heterogeneidade ordenada,
Weinreich, Labov e Herzog (1968) tecem os fundamentos teóricos para o estabelecimento de uma
teoria sobre a mudança lingüística. Para a sua depreensão, formularam-se cinco questões teóricas: o
problema das restrições – (constraints problem) – depreensão das condições que licenciam ou restringem a
mudança lingüística, o problema da transição (transition problem) – percepção dos estágios pelos quais a
língua em processo de mudança perpassa –, o problema do encaixamento (embedding problem) – análise
do encaixamento da mudança nas matrizes lingüística e extralingüística –, o problema da avaliação
(evaluation problem) – avaliação do falante acerca da mudança da língua e dos efeitos na sua estrutura –, o
problema da implementação (actuation problem) – compreensão dos mecanismos de implementação da
mudança movida pela seguinte indagação: por que um dado processo de mudança lingüística ocorreu
em um momento e lugar determinados e não, em outro momento e lugar ?
Ramos (1997 apud Lobo, 2003), em estudo acerca do uso de você, ocê e cê no dialeto mineiro, aplica
esses princípios formulados por Weinreich et alii (1968) ao fenômeno lingüístico em análise e elabora
alguns problemas que serão discutidos neste estudo:
“Questão do encaixamento [embbeding problem]: Encaixamento social: a forma você, usada pela
baixa burguesia, era forma corrente na fala dos colonizadores que vieram para o Brasil, por isso
estabeleceu-se entre nós. Encaixamento lingüístico: a forma tu indicativa de uma flexão mais rica,
possivelmente seria, e de fato foi, preferida pelo dialeto cuja flexão possui tal característica: o PE. A
forma você com flexão de terceira pessoa foi preferida pelo PB. (...)
Questão da transição [transition problem]: Como a língua muda? Qual foi o percurso que vai de
vós a você? Por quais caminhos a língua muda?
Questão da implementação [actuation problem]: Por que a mudança tu/você/ocê ocorreu?
Quando ocorreu? Onde ocorreu? Essas respostas são obtidas através de informações de natureza
sócio-histórica e análise lingüística quantitativa (...)
Questão da avaliação [evaluation problem]: Como os membros de uma comunidade avaliam a
mudança? Quais os efeitos dessa avaliação sobre o processo de mudança em si? Novamente aqui
informações tanto de natureza sócio-histórica quanto de natureza propriamente lingüística são
requisitadas, de modo a evitar a conclusão de que a extensão do uso de tu no PE resulta do fato de
você ser usado em contextos de relação assimétrica, sem levar em conta as propriedades gramaticais
abstratas, que se manifestam no PB contemporâneo como tendência de preenchimento de sujeito e
marcação não-redundante da concordância”.
(RAMOS, J., 1997 apud LOBO, T., 2003).
Embora o objeto de estudo proposto não se constitua como um fenômeno variável stricto sensu,
parte-se de uma premissa básica da Sociolingüística Variacionista de base Laboviana de que a variação é
inerente às línguas humanas e determinada por fatores lingüísticos e extralingüísticos.
Para a
identificação das pressões sociais, estruturais e discursivo-funcionais que atuaram na mudança do nosso
sistema pronominal de tratamento, procura-se integrar a perspectiva Variacionista Laboviana, discutida
por Weinreich et alii (1968) e Labov (1994), a outros modelos funcionais e formais.
A análise dos resultados será apresentada, nesta dissertação, em dois momentos. Primeiramente,
objetiva-se descrever e analisar as formas de tratamento de base nominal e pronominal identificadas nas
cartas. Entende-se, pois, que seja possível entrever os tipos de relações travadas entre remetentes e
destinatários das cartas setecentistas e oitocentistas à luz da Teoria do Poder e Solidariedade, conforme Brown &
Gilman (1960).
Uma vez levantadas e quantificadas as formas de tratamento existentes nos corpora em análise,
discute-se, em um segundo momento, o processo de mudança sofrido pela estratégia nominal de
tratamento Vossa Mercê dando origem à forma pronominal Você. Parece pertinente depreender os
estágios dessa mudança (transition problem, conforme Weinreich et alii 1968) em relação às propriedades
funcionais – conforme os princípios de gramaticalização propostos por Hopper (1991), Lehmann
(1985), etc – e aos traços formais e semântico-discursivos – segundo a proposta de Lopes (1999, 2003)
– da forma fonte – Vossa Mercê – e da forma final – Você – no seu processo de gramaticalização.
Atenta-se ainda para o encaixamento da mudança na matriz lingüística e na matriz social (embedding
problem, Weinreich et alii 1968).
4.2 As formas de tratamento e a Teoria do Poder e da Solidariedade
Antes de enveredar pelos pressupostos funcionais e formais que dariam conta, nesse estudo, do
fenômeno da gramaticalização de Vossa mercê para Você, cabe discutir, em primeiro lugar, a Teoria do
Poder e Solidariedade – essencial à análise das questões relativas às formas de tratamento empregadas nas
cartas setecentistas e oitocentistas.
Brown & Gilman (1960), no texto The Pronouns of Power and Solidarity, admitem que traços da
organização social de uma dada comunidade lingüística podem se deixar transparecer através do uso
efetivo da língua. Assim sendo, a Teoria do Poder e da Solidariedade é pensada por Brown e Gilman a
partir das relações sociais que transparecem no emprego de certas formas pronominais. A semântica
do Poder se manifesta nas relações interpessoais através do uso assimétrico e não recíproco do Vous5.
Em relações sociais assimétricas, o interlocutor superior se dirige ao seu interlocutor hierarquicamente
inferior por Tu e é tratado por Vous. A semântica da Solidariedade se expressa através do uso de formas
de tratamento que indiquem simetria, reciprocidade entre os interlocutores. O uso recíproco do
pronome Tu é o que caracteriza esse tipo de relação interpessoal distensa. No entanto, é possível
observar-se o uso recíproco da forma de tratamento Vous entre os interlocutores, o que permite
entender o relacionamento entre iguais (classe alta) como um relacionamento movido pela Solidariedade.
Consoante Brown & Gilman (1960), inicialmente, a diferença entre Tu e Vós era
estabelecida em latim pela oposição entre singular e plural. No século IV, o pronome Vós
passa a funcionar, a partir da reforma de Diocleciano, como estratégia de tratamento para fazer
referência a uma única pessoa que fosse uma personalidade real, como é o caso dos
Imperadores de Roma e de Constantinopla. A escolha do Vós como forma de tratamento se
deu a partir da noção de pluralidade implícita que evidenciava metaforicamente, as relações de
Poder na sociedade.
Wardhaugh (1998) reinterpreta a Teoria do Poder e da Solidariedade em algumas sociedades
contemporâneas. Segundo o autor, a evolução do sistema conceptual Tu/Vous se direciona do
assimétrico Tu/Vous para o polido e simétrico Vous/Vous e para o mútuo e simétrico Tu/Tu
em virtude da relevância da Solidariedade nas sociedades em geral. O autor admite que a
semântica do Poder aponta para o uso do Tu/Vous e que a mudança para o simétrico Tu/Tu
solidário, semântica da Solidariedade, é uma transformação lingüística recente. Conforme a
perspectiva de análise do autor, o simétrico Tu/Tu se dá quando as classes baixas ou as classes
altas querem se evidenciar democráticas como ocorreu na França com a Revolução Francesa.
As sociedades modernas assumem diferentes formas de engendrarem as dinâmicas do Poder e
5
Os autores opõem Tu a Vous utilizando o francês como referência, embora as línguas humanas tenham soluções distintas para o
estabelecimento das relações de Poder e Solidariedade (formas nominais de tratamento cortês, formas pronominais etc.). Entendamos, pois,
Vous referindo-se ao distanciamento, polidez e/ou cortesia e o Tu como forma de intimidade, Solidariedade.
da Solidariedade a partir da distinção entre as formas Tu/Vous, já que as relações sociais não só se
movimentam a favor da Solidariedade, mas também se manifestam movidas pelo Poder.
− A complexidade tratamental na América Hispânica e Portuguesa: análise de casos.
Ao discutir a origem e funcionalidade da cortesia, no que diz respeito às formas de
tratamento do espanhol, Albert Doppagne (1970) o faz a partir de considerações morfológicas
e socioculturais. Além disso, tece ponderações acerca do espanhol na América e comparações
sobre o tutear e o vosear em domínios lingüísticos de outras línguas.
Considerando que o sistema latino privilegiava o uso da 2a pessoa do singular – Tu – para
fazer referência a um único interlocutor e a 2a pessoa do plural – Vós – para fazer referência a
vários interlocutores ou a magnanimidade de um único interlocutor, Doppagne (1970) admite
que as fórmulas de cortesia, historicamente, significaram um rompimento com o sistema de
tratamento da cultura latina. Assim sendo, o autor se propõe a expor, resumidamente, as
estratégias de cortesia pensadas para o espanhol, compondo uma visão panorâmica das relações
sociais que embasam os tratamentos de cortesia.
O tratamento cortês, em espanhol, é
licenciado por relações interpessoais que se dão de superior para inferior – cortesia descendente –,
de inferior para superior – cortesia ascendente – e as que são travadas entre indivíduos de um
mesmo nível social – cortesia de mesmo nível social.
Doppagne admite que as novas feições assumidas pelas formas de cortesia nos eixos
diacrônico e diastrático podem ser analisadas a partir de uma perspectiva morfológica, tendo
em vista as propriedades de número, pessoa e gênero. No que diz respeito ao número, observa-se
que em latim o ato de se tratar um único interlocutor com o pronome de 2a pessoa do discurso
em sua forma pluralizada – Vós –funcionava como estratégia lingüística respeitosa. Trata-se de
uma forma de exaltar a superioridade do ser sobre o qual recai a responsabilidade de dominar
soberanamente uma nação. Em relação ao traço de pessoa, verifica o caráter de descortesia
atribuído à 2a pessoa do discurso – Tu – em oposição ao caráter cortês com que é concebida a 2a
pessoa do plural – Vós. O traço de gênero feminino pode ser identificado nas estratégias
corteses de referência à 2a pessoa do discurso – Vossa Majestade, Vossa Senhoria, Vossa Excelência,
Vossa Alteza, Vossa Reverência, Vossa Mercê – , expressando-se em relação de concordância entre
o pronome Vossa e o Nome – Majestade, Senhoria, Alteza, Reverência, Mercê – que ressalta a
autoridade imperial.
Segundo Doppagne, há forças sociais e lingüísticas que interagem para estabelecer a
expressão de cortesia. No século XVI, o sistema de tratamento do espanhol apresentava o Vos
e o Vuestra Merced como estratégias de cortesia descendente e ascendente, respectivamente. A forma
pronominal Tu, que antes figurava como tratamento desrespeitoso, torna-se, no século XVI,
tratamento informal nas relações sociais entre iguais. O autor afirma que convivem, nas
grandes capitais e, especificamente, no México e em Lima, três sistemas de tratamento: o Tuteo,
nas capitais e regiões costeiras; o Ustedeo, estratégia de tratamento que desestabilizou o sistema
de tratamentos do espanhol e o Voseo – estratégia de tratamento considerada arcaizante.
Doppagne admite, pois, a expressão da cortesia como fenômeno lingüístico híbrido que se
move ao sabor dos desarranjos político-sociais no interior de uma dada comunidade lingüística.
Essa consideração do autor é construída em conseqüência de vigorarem na América Hispânica
três sistemas de tratamento – o Tuteo, o Ustedeo e o Voseo.
Mathieu (1982) analisa as principais formas de tratamento respeitoso – Vos e Vuestra
Merced – e as formas de tratamento de confiança –Tú e Vos –, utilizados na América durante o
século XVI e a primeira metade do século XVII. Acredita o autor que, nesse período, tenha
surgido Vuestra Merced em conseqüência do desuso de Vos. A análise de Mathieu incidiu sobre
o espanhol e sobre algumas línguas crioulas, tecendo, em síntese, as seguintes considerações
finais: o surgimento de Vuestra Merced e o inevitável e progressivo desuso de Vos, em finais do
século XVI e inícios do século XVII, acarretaram a funcionalidade do Tú, reduzindo-o às
pessoas de mais baixo nível social; o Vos, na América Hispânica, é considerado como forma de
tratamento ofensivo para os sacerdotes; o Vos predomina sobre o Tú em princípios do século
XVII, em Bogotá.
No que diz respeito ao desaparecimento de Vos, Mathieu admite a hipótese de que a
distância existente entre Usted e Tú é maior do que a que existia entre Vos e Tú no século XV.
Segundo o autor, tem-se uma hipótese difícil de provar, mas que pode sugerir indício de que,
em algumas regiões da América Hispânica, se tenha dado predominantemente preferência a
Usted por considerar Tú, mais informal em relação a Usted, que, por sua vez, assume caráter de
formalidade. Apesar de a forma final do processo de gramaticalização de Vuestra Merced – Usted
– ainda resguardar certo grau de polidez, não pode ser considerada uma forma de tratamento
com alto teor de cerimônia, visto que absorveu traços de Tú, generalizando-se, assim, como
estratégia de tratamento preferida no espanhol atual. No espanhol de Bogotá, o autor detecta o
uso de Usted entre membros de uma mesma classe social e em relações sociais de superior para
inferior ao passo que o Tuteo somente se dá em relações sociais marcadas pela informalidade.
O estudo de Fontanella de Weinberg (1970) incide sobre a evolução das estratégias de
tratamento no espanhol bonaerense, atentando para a primeira década do século XX, por se
tratar de época marcada por transformações econômicas, avanços na industrialização, acelerado
processo de urbanização na Argentina. A autora também assume, como ponto de partida para
a sua investigação, o estudo de Brown & Gilman (1960) e sua análise incide sobre um corpus
composto por peças teatrais produzidas no período em análise. Considerando as limitações de
um trabalho com textos literários, a autora se propõe a tecer considerações acerca da evolução
das estratégias de tratamento nas principais relações familiares e em algumas relações sociais.
No âmbito familiar, mais especificamente nas relações travadas entre pais e filhos,
Fontanella de Weinberg (1970) identifica a coexistência de dois tipos de formas de tratamento:
o uso recíproco de Vos – Vos e o uso assimétrico de Usted – Vos. A convivência dessas duas
formas de tratamento entre pais e filhos aponta para uma etapa intermediária entre uma época
anterior em que era recorrente o uso de Usted – Vos como formas de tratamento entre os
falantes da classe alta e a atual freqüência de Vos por parte dos jovens em relação aos padres,
desvinculando-se da noção de status social. As relações sociais tornaram-se mais solidárias no
espanhol bonaerense. Nas relações familiares, observou-se a tendência inovadora expressa
através do uso de Vos – Vos entre pais e filhos nas classes altas e médias urbanas e entre jovens
o uso de Vos recíproco. Em relação ao tratamento entre Tios e Sobrinhos, havia o predomínio
do tratamento assimétrico Usted – Vos que também se manifestava a partir do tratamento
recíproco Vos – Vos. O tratamento entre esposos, irmãos, primos por meio do mútuo Vos
manteve-se inalterado até fins do século XX.
Em conformidade com a análise de Fontanella de Weinberg, as demais relações sociais
sofreram transformações nos últimos setenta anos do século XX. O tratamento entre jovens
que, em inícios dos anos 70, se dava por Usted – Usted, independentemente de fatores como
idade e sexo, expressa-se, em fins do século em análise, por Vos – Vos. Nas relações afetivas, a
autora observou que os pretendentes a um relacionamento amoroso mantinham, no início do
século XX, Usted como forma tratamental mútua.
Já em relações afetivas, em que o
compromisso era estabelecido por um noivado, a relação entre os noivos expressava-se através
de Vos recíproco.
Em síntese, Fontanella de Weinberg admite que as relações familiares manifestavam-se,
em inícios do século XX, a favor da expressão do Poder em detrimento da Solidariedade. Em fins
do século XX, a autora constata a preponderância de relações solidárias. No âmbito das relações
afetivas, tem-se a passagem de relações formais e recíprocas para relações formais que denotam
maior grau de proximidade entre os interlocutores. A comparação entre as estratégias de
tratamento usadas, em inícios e fins do século XX, permitiu evidenciar um sistema de
tratamento condicionado socialmente – relações sociais entre pais e filhos – e geracionalmente
– relações sociais entre tios e sobrinhos – e entre noivos.
Ao discutir a alternância Tu/Usted no espanhol atual, Arroyo (1994) remete à teoria do
Poder e Solidariedade para afirmar que, a partir da segunda metade do século XX, as relações sociais
estabelecidas sob o viés do Poder têm se transformado em relações solidárias como conseqüência
dos triunfos democráticos no mundo ocidental.
Blas Arroyo (1994) defende que a afirmação de que as formas pronominais Tú/Usted constituem
as manifestações de Poder e de Solidariedade, respectivamente, é uma conclusão simplista, uma vez que os
falantes interagem numa sociedade que se apresenta vinculada a um dado contexto histórico-social. Há
uma reelaboração progressiva dos sistemas de tratamento no espanhol: fase inicial – tratamento
recíproco por Usted, fase intermediária – tratamento assimétrico por Tú – Usted (na relação social
estabelecida entre vendedor - cliente, respectivamente), fase final – tratamento recíproco – Tú. O autor
ressalta a importância da abordagem interacional atribuída à eleição de estratégias de tratamento feita
pelos falantes no discurso. São caracterizados os níveis de interação – gênero, tópico, objetivo, lugar,
tom, participantes, regras para a interação – com base no esquema do speak grid, conforme Hymes (apud
Arroyo 1994:403), a fim de expor os aspectos lingüísticos e extralingüísticos que estão em jogo na
interação comunicativa. Assim sendo, a perspectiva de análise empírica adotada por Blas Arroyo o leva
a admitir que a compreensão do porquê da escolha por determinadas formas tratamentais numa dada
sociedade não deve somente se ater à adoção de categorias teóricas estáticas (Poder – Solidariedade), mas
se deve atentar para a complexa combinação de fatores textuais e contextuais que sedimentam o
discurso humano.
Uber (1985) constata que o Usted assume, no espanhol de Bogotá, a função de denotar a
ausência de Solidariedade ou a existência de Solidariedade nas relações sociais.
usted ______________ tú ______________ usted
(Não Solidariedade)
(Solidariedade)
usted ______________ tú ______________ usted______________ su merced
(Não Solidariedade)
(Solidariedade)
Quadro 2: O Continuum da Solidariedade, segundo Uber (1985).
A aplicabilidade de Usted, em Bogotá, pode ser verificada a partir do quadro 2, em que se
evidencia o continuum da Solidariedade. O Tú mantém-se entre os graus máximo e mínimo de Solidariedade
nas relações interpessoais travadas na sociedade colombiana. Uber (1985) acrescenta que a expansão
do domínio do Tú deixa-se evidenciar com dupla direcionalidade no decorrer de um continuum de
Solidariedade que se manifesta com Usted, Su Merced e Mijo(a), formas de tratamento solidárias e
informais, em Bogotá.
A fim de comparar os resultados de estudos que se prestam a analisar a influência das
interações socias no uso efetivo da língua com o estudo das formas tratamentais usuais nos
corpora em análise, apresentam-se os resultados de investigações lingüísticas – Biderman (1972),
Oliveira e Silva (1974) e Wilhelm (1979) – que abordam a relação entre as estratégias nominais e
pronominais de referência à 2a pessoa do discurso e os tipos de estrutura social que as
subsidiam em português.
Biderman (1972) discute, qualitativamente, a funcionalidade das formas nominais de
tratamento em textos literários e, quantitativamente, em textos litúrgicos de algumas línguas,
relacionando-as com as suas estruturas sociais nas sociedades da Península Ibérica e da América
Latina. Considerando também a perspectiva teórica de Brown e Gilman (1960), a autora
admite que as sociedades fechadas na centralização absoluta do Poder em torno do rei foram
paulatinamente cedendo lugar à Solidariedade nas relações interpessoais que se dão no alvorecer
da Modernidade. Segundo a autora, as relações sociais estruturadas sob o Poder na Península
Ibérica foram levadas para a América Latina na época da colonização. No Novo Mundo, as
relações humanas, sob a égide do Poder, assumiram o grau máximo da sua manifestação,
explicitando-se através da escravidão nas terras ameríndias. As relações de trabalho entre
senhor e escravo; as relações familiares entre pais e filhos, marido e mulher e as relações entre
homens e mulheres são mantidas de forma assimétrica na América Portuguesa (América
Latina).
O sistema de tratamento do português brasileiro mostrou-se simplificado em relação aos
sistemas tratamentais da América Latina e da Península Ibérica. Países da América Latina tais
como Peru, México e Chile apresentam um sistema bipartido entre as formas Tú e Usted e a
Argentina, entre as formas Vos e Usted. Acrescente-se que, na Argentina, Vosear uma pessoa
significava Tuteá-la, isto é, constitui forma de tratamento dotada de informalidade. O sistema
de formas de tratamento do português brasileiro é bipartido – Você e Senhor – em oposição ao
sistema do português europeu que, por sua vez, é tripartido – Tu, Você e Senhor.
As
discrepâncias entre os sistemas de tratamento que se expressam através da língua portuguesa
d’além-mar e d’aquém-mar podem caracterizar a sociedade brasileira como uma sociedade aberta a
receber culturas diferenciadas que para a América imigraram. Além de não se mostrar receptiva
à entrada de imigrantes, a sociedade portuguesa conservou-se distanciada das transformações
peculiares à modernidade. Como conseqüência desse comportamento em Portugal, tem-se a
sociedade lusitana a assumir uma gradação intermediária entre a familiaridade (tu) e o
formalismo (senhor), o que não é tão nítido na comunidade lingüística do português brasileiro.
Segundo a autora, no Brasil, o Você é usado nas relações interpessoais de familiaridade e o
Senhor nas relações sociais de formalidade correspondendo às formas pronominais Tu/Vous do
francês, conforme a concepção de Brown e Gilman (1960).
Os pronomes de tratamento e as questões sociolingüísticas que envolviam suas
freqüências de uso constituíram o objeto de estudo de Oliveira e Silva (1974). A autora volta o
seu olhar científico para a variação dos pronomes de tratamento em português comparando-o
com o sistema do francês. Em seu estudo, parte da premissa de que as formas de tratamento
da língua portuguesa assumem um comportamento menos estável em relação às do francês. As
hipóteses que norteiam a sua investigação são as seguintes: 1 a) a instabilidade do sistema de
formas de tratamento do português é tanto individual como social, 2a) a instabilidade individual
e social tem como razão histórica o fato de Você e das suas formas pronominais
complementares relacionadas à 3a pessoa terem sido introduzidas no sistema do português e 3a)
a variação também pode ser motivada pela rápida mudança social, o que, segundo a autora,
poderia repercutir na semântica dos pronomes de tratamento. Oliveira e Silva (1974) admite
que há uma origem histórica para o desencadeamento dessa instabilidade do sistema de
pronomes de tratamento do português caracterizada pela introdução do pronome Você e das
formas pronominais complementares da 3a pessoa, o que leva a entender que a mudança social
ocorrida no Brasil interfere na semântica dos pronomes de tratamento.
Partindo também da Teoria do Poder e da Solidariedade de Brown e Gilman (1960), Oliveira e
Silva (1974) defende que a variação no uso de formas nominais e pronominais e a seleção de
tais formas ocorrem através da manifestação de forças vetoriais que, por sua vez, atuam em
conformidade com um sistema tridimensional: o eixo do interlocutor, o do falante e o da
situação. As principais diferenças entre o português e o francês são as seguintes: 1) em francês,
só há assimetria de tratamento entre adultos e crianças; 2) em francês, o tratamento geral é
Vous, e em certos casos, Tu; já em português, o tratamento mais generalizado é Você; 3)
enquanto em francês o falante é obrigado a escolher, de imediato, o tratamento empregado, em
português, essa escolha pode ser tardia, ou, até mesmo, pode não se realizar, sobretudo em
situações que envolvam os seguintes traços: [-superior] [+ocasional]; 4) em francês, a semântica
do Poder já foi substituída pela semântica da Solidariedade e, em português, tudo leva a crer que
está se encaminhando na mesma direção.
Os pronomes de distância usados na realidade lingüística do Brasil e de Portugal, em fins
da década de 70 do século XX, constituem o objeto de estudo de Wilhelm (1979). O autor
conceitua os pronomes de distância como os que são usuais em relações interpessoais
caracterizadas pelo distanciamento entre os interlocutores. Wilhelm admite que o sistema de
pronomes e nomes de distância pronominalizados do português europeu é estruturado entre as
formas pronominais Tu, Você e as formas nominais de tratamento O Senhor, A Senhora, Vossa
Senhoria (exército), Vossa Excelência. A forma pronominal para fazer referência pluralizada à 2a
forma do discurso – Vós – assume uma relativa restrição em sua freqüência de uso na
comunidade lingüística do português europeu.
O sistema de pronomes de distância do
português brasileiro é apresentado por Wilhelm a partir da sua estruturação entre as formas
tratamentais Você, O senhor, Vossa Senhoria (correspondência comercial) e Vossa Excelência. O Vós,
como pronome de distância usado para fazer referência à 2a pessoa do discurso, se apresenta
em desuso na variedade brasileira do português. Entre os falantes brasileiros não cultos, o
autor constata a recorrente mistura entre as formas de referência à 2a pessoa do discurso em
relação de concordância com a 3a pessoa gramatical.
Wilhelm (1979) questiona também o fato de tanto Brasil como Portugal ainda
conservarem suas relações sociais estabelecidas entre superiores, equivalentes e inferiores,
assemelhando-se ao sistema de organização feudal. O autor atribui ao desejo de manutenção
do status quo expresso pelo conservadorismo das camadas de cúpula como o fator que conduz à
manutenção de uma sociedade tão estratificada.
Diferentemente do que pensa Biderman
(1972) acerca do encaminhamento para a Solidariedade assumido pelo Brasil, Wilhelm acredita
que os novos ares da República insuflados em Portugal, em 1910, e no Brasil, em 1889, foram
incapazes de reestruturar a sociedade numa perspectiva mais igualitária e, conseqüentemente,
movida por relações interpessoais mais solidárias. As relações sociais de inferior para superior
se organizam a partir dos pronomes de distância Vossa Excelência, Senhor doutor, Senhor engenheiro,
o que o levou a admitir que as relações de Poder ainda vigoram na língua portuguesa d’aquém e
d’além mar.
Em suma, a diversidade e o complexo sistema de formas de tratamento no espanhol e no
português, discutidas sob a égide do Poder e da Solidariedade, anunciam:
1) a existência de um certo paralelismo entre o português e o espanhol no que se refere à
disseminação de Vossa Mercê/Vuestra Merced pelo desuso de Vós/Vos;
2) a pertinência da Teoria do Poder e Solidariedade para a análise do emprego das estratégias de
tratamento, em termos das relações simétricas e assimétricas ascendentes e descendentes, ainda
que não se possa perder de vista a complexidade das relações humanas em um dado contexto
histórico-social;
3) a estruturação social mais aberta, seja das terras de colonização espanhola, seja das terras de
colonização portuguesa, que se apresentam, respectivamente, com sistemas de tratamento
bipartidos – (Tu e Usted/Vos e Usted), (Você e Senhor) – em contraposição à configuração social
mais rigidamente estratificada da Península Ibérica explicitada através de um sistema de
tratamento tripartido – Tu, Você e Senhor – no português europeu ou bipartido no espanhol – Tu
e Usted.
4.3 De Vossa Mercê a Você: discussão da gramaticalização de formas nominais de
tratamento na língua portuguesa.
A discussão acerca dos pressupostos funcionalistas que embasam a análise do processo de
pronominalização de Vossa Mercê > Você, em português, com ênfase na discussão desse processo no
português no Brasil dos séculos XVIII e XIX, leva a se explicitar, inicialmente, em que consiste lato sensu
o fenômeno da gramaticalização.
Antonie Meillet (apud Hopper 1991:17) entende a gramaticalização como
“a atribuição
de uma característica gramatical a um vocábulo previamente autônomo”. A metáfora da espiral (apud
Castilho 1997:28) é utilizada por Meillet na depreensão da gramaticalização como a passagem
de um item lexical a um item gramatical, o que permite inferir que a gramaticalização segue seu
curso de forma inacabada.
Lehmann (1985) se volta para a discussão do conceito de gramaticalização nos eixos
sincrônico e diacrônico. A partir da análise da gramaticalização no eixo diacrônico, o autor a
admite como um processo que torna um lexema em formativos gramaticais e faz dos
formativos gramaticais itens mais gramaticais. Sob a perspectiva da análise sincrônica, o autor
entende que a gramaticalização estabelece um princípio em que subcategorias de uma categoria
gramatical podem ser ordenadas.
Admite Lehmann (1985) que a gramaticalização está relacionada com o grau de
autonomia do signo lingüístico. Quanto maior a liberdade com que é usado o signo lingüístico,
maior é a sua autonomia. A partir dessa concepção de gramaticalização, o autor se propõe a
mensurar o grau de autonomia do signo com o intuito de detectar o nível de gramaticalização
assumido. O autor estabelece parâmetros para a depreensão dos graus de gramaticalização (fraca
ou forte) através do estabelecimento de uma escala de análise sincrônica. São eles: integridade
(desgaste), paradigmaticidade, variabilidade paradigmática (obrigatoriedade), escopo (condensação),
coesão (coalescência), variabilidade sintagmática (condensação).
Com o intuito de analisar a
gramaticalização como um processo diacrônico, o autor propõe princípios para a sua
depreensão: paradigmatização, obrigatoriedade, condensação, coalescência, fixação.
O princípio da
integridade pensado por Lehmann (1985) aplica-se ao processo de gramaticalização de Vossa
Mercê, uma vez que essa expressão nominal de tratamento perdeu, gradualmente, a sua
integridade, degenerando-se, desgastando-se foneticamente e morfologicamente – 6mercê > vossa mercê > *
vosm’ce > * voscê > você > oçê > cê. A gramaticalização fraca a que Lehmann faz referência pode
6
Estágios do processo de gramaticalização de Vossa Mercê conjecturados por Antenor Nascentes no artigo intitulado “O tratamento ‘Você’ no
Brasil”, publicado na revista Letras, no 05/06, em dezembro de 1956.
ser detectada na variação identificada entre Vossa mercê ~ Vossemecê, pois em termos
morfofonêmicos passa-se a ter um vocábulo polissilábico. A gramaticalização forte, por sua vez,
pode ser detectada à medida que começa a haver a combinação morfológica da primeira sílaba
do pronome possessivo Vossa com a segunda sílaba do substantivo Mercê a resultar na forma
pronominal Você. Atualmente, na língua falada, é possível identificar a referência à segunda
pessoa do discurso a partir do Cê, o que expressa um estágio da gramaticalização forte, em que o
pronome Você já se apresenta desgastado fonológica e morfologicamente, tornando-se monossegmental 7.
A fixação, concebida por Lehmann (1985) como princípio da gramaticalização que se
estabelece a partir da perda de variabilidade sintagmática, pode ser evidenciada em relação ao
processo de pronominalização de Vossa Mercê. Na medida em que tal forma nominal de
tratamento inicia o seu processo de gramaticalização, começa a assumir posições sintáticas mais
fixas na sentença, tal como a função sintática de sujeito. Entende-se, pois, que a recorrente
performance sintática de Vossa Mercê e de Você no exercício da função sintática de sujeito – função
peculiar às formas legitimamente pronominais pessoais em português – pode indiciar a
instauração do processo de gramaticalização de Vossa Mercê.
O questionamento acerca do(s) fator(es) que impulsionam a gramaticalização nas línguas
humanas remete à reflexão sobre a gramaticalização e a cognição, revelando a metáfora e a
metonímia como processos que atuam como verdadeiros gatilhos a acionarem a mudança
categorial. Em conformidade com o raciocínio de Martelota et alii (1996:54), “a metáfora
constitui um processo unidirecional de abstratização crescente, pelo qual conceitos que estão próximos da
experiência humana são utilizados para expressar aquilo que é mais abstrato e, conseqüentemente, mais difícil
de ser definido. A metonímia diz respeito aos processos de mudança por contigüidade, no sentido de que são
gerados no contexto sintático.” Acredita-se que, em sendo a fórmula nominal de tratamento Vossa
Mercê, derivada do substantivo mercê, pensada, inicialmente, como forma nominal de tratamento
específica para fazer referência à Corte Real Portuguesa, buscava-se evocar a grandiosidade real
por associação de sentido com a graça, a benevolência, a benignidade irradiada pela personalidade do
rei. Compôs-se, pois, uma estratégia de tratamento formada por metáfora a partir das noções
abstratas de graça, benevolência, benignidade – qualidades que somente poderiam ser irradiadas,
segundo a ideologia do regime monárquico, pela realeza portuguesa. Iniciou-se, assim, o
processo de gramaticalização de Vossa Mercê como um processo de abstratização motivado por
alterações na carga semântica da forma nominal de tratamento que, inicialmente, era de
domínio da realeza portuguesa, disseminou-se pela nobreza portuguesa, alcançando a burguesia
7
Conforme a perspectiva de Ramos (1997), a partícula cê funciona como um clítico em português.
e, por fim, “caindo na boca do povo português”, responsável direto por acelerar o seu desgaste
fonético e semântico, de modo a resultar na forma Você.
Castilho (1997) resenha estudos lingüísticos que versam sobre gramaticalização e constrói
um exame crítico sobre tal fenômeno e sobre as suas manifestações no português, concebendoo como resultado da cristalização das formas discursivas mais produtivas (Castilho 1997:31). Para a
depreensão da mudança de estatuto categorial (recategorização), propõe princípios gerais que
dêem conta desse processo de mudança.
Trata-se da analogia, da reanálise, da
continuidade/gradualismo e da unidirecionalidade. A partir da consideração de que o léxico armazena
os itens lexicais categorizados com base nos traços gramaticais, discursivos e semânticos, o autor admite
que não interessa se é o discurso, como pregam os funcionalistas, ou a gramática, como
defendem os formalistas, as instâncias em que se manifesta efetivamente a gramaticalização.
Considera que os processos cognitivos (metáfora e metonímia) constituem as manifestações
motivadoras da transformação de um item lexical em item gramatical. Assim sendo, sugere que
se ativem investigações lingüísticas acerca de tais processos cognitivos que funcionam como
forças propulsoras da gramaticalização em língua portuguesa. Além disso, Castilho (1997)
propõe que se concentrem os estudos acerca dos fenômenos da gramaticalização, semanticização e
discursivização.
Hopper e Traugott (1993:03-07) concebem os clines como uma noção básica a ser
desenvolvida para a análise da gramaticalização. Considerando que a mudança categorial não se
estabelece de forma abrupta, mas gradual e paulatina, entende-se que os clines, sob uma
perspectiva de análise diacrônica, constituem as fases de transição no processo de mudança
lingüística. A partir de uma perspectiva sincrônica, os clines podem ser entendidos a partir da
noção de continuum através da qual se estabelece uma linha imaginária para se detectar o ponto
no eixo da sincronia em que determinado item da língua se apresenta como um item lexical ou
se mostra como um item gramatical. À luz da diacronia, quais seriam os clines que se deixam
evidenciar no processo de pronominalização de Vossa Mercê investigado através de cartas
oficiais e cartas não-oficiais do Brasil da 2a metade do século XVIII e do século XIX ?
− Aplicação dos princípios de gramaticalização propostos por Hopper ao processo de
pronominalização de Vossa Mercê > Você em língua portuguesa.
Apesar de os parâmetros idealizados por Lehmann (1985) e por Castilho (1997) se
prestarem a depreender os estágios da gramaticalização nas línguas humanas, optou-se por
discutir, em relação ao processo de pronominalização de Vossa Mercê, os princípios da
gramaticalização propostos por Hopper (1991) – layering, divergência, especialização, persistência e
decategorização – porque tais critérios se mostraram pertinentes em relação à depreeensão do
processo de gramaticalização sofrido por a gente > gente, conforme constatou Omena e Braga
(1996).
O conceito de layering faz referência ao fato de novas formas lingüísticas emergirem, num
mesmo domínio funcional, sem necessariamente levarem à exclusão imediata de formas que já
existiam, o que leva a entender que as camadas velhas convivam com as camadas mais recentes num
mesmo campo funcional. As formas novas denotam maior especialização dos itens lexicais,
classes de construções ou registros sociolingüísticos, podendo assumir ainda significados
ligeiramente diferentes ou ser reconhecidos como alternativas estilísticas. Hopper (1991) expõe
as expressões de tempo e aspecto verbais do inglês como evidências de layering. Sutis graduações de
significado em relação ao tempo futuro em inglês – the future tense – podem ser detectadas com
as construções verbais formadas a partir das formas Will, be going + to, be + -ing e be + to verb. O
auxiliar de futuro Will constitui a forma não marcada, isto é, a mais freqüente para a expressão
da noção de futuridade incerta (prediction) – He will be here in five minutes 8. As construções de
futuro expressas a partir de be going + to, be + verb-ing e be + to verb evidenciam, respectivamente,
a noções de um futuro certo – She is going to have a baby 9 –, futuro planejado – The plane is taking of at
5:20 10 – e futuro iminente – An investigation is to take place11.
Omena e Braga (1996) admitem que o comportamento assumido pela forma A gente
constitui um legítimo caso de layering, pois A gente compete com Nós. Tais estratégias de fazer
referência à 1a pessoa do discurso no plural apresentam-se como formas que se mostram
alternantes num mesmo domínio funcional, conforme evidenciam as sentenças apresentadas
pelas autoras.
“F: Porque a única coisa que não vai bem é o seguinte: que nós temos aqui uma dificuldade muito grande de
colocar a documentação do bar em dia.”
“F: Então, a gente tem condições de fazer uma documentação certa para que eles não tenham o direito de
interferir no nosso movimento, entendeu?”
O princípio da divergência remete ao fato de a instauração da gramaticalização licenciar a
convivência da forma em vias de gramaticalização com a forma original que impulsionou o
8
He will be here in five minutes. (Ele estará aqui em cinco minutos).
She is going to have a baby. (Ela terá um bebê)
10
The plane is taking of at 5:20. (O avião decolará às 5:20h.)
11
An investigation is to take place. (Uma investigação está para acontecer.)
9
processo de mudança categorial. A divergência evidencia que as formas comungam da mesma
origem etimológica, apesar de serem funcionalmente divergentes. Hopper (1991) julga que a
divergência possa ser concebida como um caso especial de layering, uma vez que este princípio
envolve diferentes graus de gramaticalização em um mesmo domínio funcional, enquanto
aquele princípio se aplica aos casos em que a forma lexical autônoma transforma-se, em
determinados contextos, numa forma mais gramaticalizada. A fim de ilustrar a expressão de tal
princípio na língua, Hopper (1991) apresenta o fato de o verbo latino habere ter se transformado
em morfema preso de futuro no francês moderno (-ai). A construção verbal latina de expressão
do futuro cantare habeo originou je chanterai (eu cantarei) em francês. A forma verbal lexical avoir
veio a constituir, em francês, um verbo auxiliar do perfeito j’ai chanté12 que, por sua vez, se
apresenta como auxiliar de tempo e aspecto gramaticizado, além de se deixar evidenciar como a
forma verbal lexical não gramaticizada j’ai (eu tenho)13.
Trata-se, pois, de uma camada
secundária de gramaticização, expressa como uma forma perifrástica aspectual de perfeito, em
convivência com o sufixo marcador de futuro em francês -erai. Segundo Hopper, a partir da
observação das diferentes camadas que sobrevivem num mesmo domínio funcional, entende-se
que tais camadas divergem entre si, uma vez que evocam o item lexical autônomo e o item
gramatical proveniente da gramaticalização do primeiro.
No que diz respeito à aplicação do princípio da divergência, Omena e Braga (1996)
observam que a forma gente – forma originadora da forma pronominal A gente – não passou por
tranformações morfofonêmicas. A estratégia inovadora de fazer referência à primeira pessoa
do plural – A gente –, alternando-se, por vezes, com a forma pronominal nós, apresenta-se como
resultado da cristalização do determinante – a – ao item lexical gente.
A especialização consiste na restrição das escolhas que caracterizam uma construção
gramatical emergente.
Esse princípio poderia também corresponder à “obrigatoriedade”,
princípio de gramaticalização pensado por Lehmann (1985), como responsável por detectar a
perda da possibilidade de escolha ocorrida quando uma forma já se apresenta completamente
gramaticalizada. A forma, em processo de gramaticalização, somente ao final do processo de
mudança categorial torna-se obrigatória, já que é possível que a mudança possa conduzir ou
não à gramaticização. Hopper considera a negação no francês moderno como um bom
exemplo da manifestação do princípio da especialização. Historicamente, a negação em francês se
estabelece a partir da anteposição da partícula ne ao verbo que, por sua vez, era seguido da
12
j’ai chanté (eu cantei/eu havia cantado).
Em português, o processo apresenta alguma semelhança. Tem-se a terminação de futuro – cantar-ei –, a presença do verbo haver como
um verbo auxiliar, em havia cantado, e a forma lexical autônoma em, há cadeiras na sala.
13
partícula de reforço – ne + verbo + pas. Os itens gramaticais que se combinavam com ne
dependiam da natureza do verbo – verbos de movimento exigiam pas, em construções do tipo
pas beaucoup14 e verbos do tipo comer/dar determinavam o uso do nome mie como reforço da
negação denotando pequena quantidade. Depois do século XVI, pas e point tornaram-se formas
predominantes como reforços para negação em francês. Pas se propagou como uma partícula
de reforço da negação em francês e, apesar de se constituir como uma forma semanticamente
neutra, participava de uma variada gama de construções, assumindo alta freqüência de uso no
discurso. Na língua falada, já se detecta o ne caindo em desuso – je sais pas15 – deixando a
partícula pas como a marca única que se especializou para determinar a negação. Tal estágio
também poderia ser caracterizada como obrigatoriedade de uso com esse valor. Constata-se,
pois, que pari passu uma construção emergente se especializa, outra parte fica liberada, isto é, a
medida em que o pas deixa de ser restrito para verbos de movimento, aumentam as
possibilidades de utilizá-lo com outros tipos de verbos em que pas se estabeleça como marca
obrigatória da negação.
Com relação à interpretação do princípio de especialização, Omena e Braga (1996)
constatam que a freqüência de uso da forma resultante da gramaticalização – A gente – se
sobrepõe em relação à antiga forma pronominal de referência à 1a pessoa pluralizada do
discurso – Nós –, principalmente quando o falante faz referência a “grupos grandes” (eu + todo
mundo).
O princípio da persistência faz menção à conservação, manutenção, por parte da forma que
sofreu gramaticalização, de alguns traços semânticos da forma fonte.
Essa relação é
completamente opaca no estágio da morfologização, mas num estágio intermediário, tal forma
se evidenciará polissêmica com um ou mais significados que assumirão o significado dominante
mais recente. Hopper faz menção à discussão de Bybee e Pagliuca (1986) acerca da construção
do tempo futuro em inglês – the future tense – como expressão do princípio da persistência. É
possível identificar as possibilidades de manifestação do tempo futuro em inglês através do
típico auxiliar de futuro em inglês – will –, que, por sua vez, é capaz de denotar uma variedade
de distinções semânticas. Segundo Bybee e Pagliuca (1986), diferentes usos dos marcadores de
futuro em inglês – will, shall, be going to – podem ser compreendidos como continuações dos
seus originários significados lexicais. Apesar de a noção de predição constituir o genuíno sentido
de futuridade a partir do auxiliar will – I think the bulk of this year’s studentes will go into industry
14
pas beaucoup (Não muito.)
je sais pas (Eu não sei.)
16
I think the bulk of this year’s students will go into industry. (Acho/Acredito que a maioria dos alunos desse ano irá trabalhar.)
15
16
–,
tal significação representa uma das possibilidades expressivas do will como modalizador do
discurso a expressar as noções de espontaneidade – Give them the name of someone who will sign for it
and take it in if you are not at home
17
– e intencionalidade – I’ll put them in the post today 18. Bybee e
Pagliuca (1986) admitem que a noção de futuro preditivo estabeleceu-se independentemente
das noções de espontaneidade e intencionalidade e que o significado de futuro estava estabelecido no
inglês medieval quando seres inanimados, incapazes de exercerem a capacidade de desejar,
surgem como sujeitos em construções de futuro com o auxiliar will. A ressemantização sofrida
por will legitimou que o futuro preditivo permanecesse como apenas um dos significados
distintos assumidos por tal forma no inglês atual. Acrescentou-se uma nova acepção a já
polissêmica forma will e, conseqüentemente, novas possibilidades distribucionais foram
atribuídas a tal forma.
Segundo Omena e Braga (1996), a idéia de coletividade peculiar ao substantivo gente ainda
persiste na forma pronominal A gente, pois tal forma pronominal, por vezes, pode assumir uma
referência mais indeterminada.
A decategorização se manifesta a partir da perda ou da neutralização de marcas morfológicas
e propriedades sintáticas das categorias plenas (Nome e Verbo) e conseqüente aquisição de traços
característicos das categorias gramaticais secundárias (adjetivo, particípio e preposição). O processo
de gramaticalização pode ser entendido a partir da noção de perda da optimal marca de
categorialidade. A contraparte funcional da decategorização é a perda da autonomia discursiva
da forma: nomes como formas que não mais identificam participantes do discurso e verbos como
formas que não evocam aos eventos – Our thanks were accepted by the mayor – Thanks to his
generosity 19. His face was pale – in (the) face of these new demands 20–, os verbos também, em formas
participiais, podem assumir funções menos centrais – They saw the Northern Lights – Seeing that you
have declared bankrupty, you can hardly make any new investments 21.
Omena e Braga (1996), ao discutirem a gramaticalização de A gente no português, admitem
que a forma gente apresenta a mobilidade peculiar aos substantivos, podendo se desdobrar em
número e originar novos vocábulos a partir da noção de grau – gentinha, gentalha. Além disso, tal
forma pode ser modificada por quantificadores, determinantes, possessivos e locuções prepositivas, como
se observa nos versos de Camões apresentados pelas autoras a título de exemplificação:
17
Give them the name of someone who will sign for it and take it in if you are not at home. (Dê a eles o nome de alguém que assinará por isso e pegueo/receba-o, se você não estiver em casa.)
18
I’ll put them in the post today (Eu as/os colocarei no correio hoje.)
19
Our thanks were accepted by the mayor – Thanks to his generosity. (Nossos agradecimentos foram aceitos pelo prefeito – Obrigada por sua
generosidade.)
20
His face was pale – in (the) face of these new demands. (Sua face estava pálida – diante dessas novas exigências/demandas.)
21
They saw the Northern Lights – Seeing that you have declared bankrupty, you can hardly make any new investments. (Eles viram as Luzes do Norte –
Percebendo que você declarou falência, dificilmente você pode fazer novos investimentos.)
“E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente,”
(Camões 12)
“E tão longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam, (...)”
(Camões, p. 110)
No que diz respeito à forma gramaticalizada A gente, observa-se que, embora tal forma estabeleça
com o verbo a mesma relação de harmonia sintática mantida com o nome gente – relação de
concordância com a 3a pessoa gramatical –, uma outra variante sintática tem-se mostrado funcional
entre os falantes não cultos da língua portuguesa. Trata-se da relação de concordância verbal
estabelecida entre a forma A gente e a 1a pessoa do plural – “A gente começamos a bater papo, A gente
começamos a se conhecer.” –, admitindo-se, pois, que a relação de concordância se dá não com a forma A
gente, mas com a noção de eu-ampliado e de pluralidade que tal item passa a evocar.
4.4 Para a análise da Gramaticalização de Vossa Mercê > Você no português: a discussão dos traços
formais e semântico-discursivos.
Lopes (1999, 2003), ao adaptar a proposta de Rooryck (1994)22, elabora um sistema de
traços que permite detectar propriedades formais e semânticas do substantivo gente, conservadas e
perdidas no seu processo evolutivo, até originar a forma pronominal a gente em português. Ao
ajustar os pressupostos formalistas, levando em conta o princípio chomskyano de que o léxico
deve ser minimamente especificado, a autora considera os traços primitivos de gênero, de número
e de pessoa relevantes à formalização dos traços intrínsecos ao substantivo gente e ao pronome
a gente na língua portuguesa.
Adotando a configuração de traços de Rooryck (1994), Lopes (1999, 2003) optou por
representar o gênero feminino como [+ fem] e o masculino como [- fem]. Com relação ao número
formal tem-se [+ pl] para o plural e [- pl] para o singular. A representação do traço pessoa dá-se a
partir do atributo [eu], que pode ser marcado [+ eu], para a 1a pessoa, [- eu] para a 2a pessoa e
[∅ eu] para a 3a pessoa. Considerando o fato de nem sempre existir uma correspondência
biunívoca entre forma e sentido, a autora optou por admitir que cada atributo seja desmembrado
em traços formais – [fem], [pl] e [eu] – e em traços semânticos para os quais foram estabelecidas
notações em letras maiúsculas – [FEM], [PL], [EU] – com a possibilidade de atribuição de
valores distribuídos entre valores variáveis – (+), (-) ou (α) – e os valores não-variáveis – (∅).
22
O autor estabelece uma diferença entre os traços subespecificados variáveis (traços-α) e os traços subespecificados não-variáveis (traços∅). Enquanto estes traços não apresentam um valor específico, aqueles podem ter os seus valores capturados ou resgatados pela análise
sintática. Ao traço subespecificado variável – traço-α – é possível atribuir um valor positivo – [+x] – ou negativo – [-x] –, ao passo que ao
traço subespecificado não-variável – traço-∅ – não é possível estipular valor específico ao atributo.
4.4.1 Aplicação do sistema de traços às formas pronominais em português
Antes de caracterizar, formal e semanticamente, as formas Mercê, Vossa Mercê e Você,
tentar-se-á aplicar o sistema de traços proposto por Lopes (1999, 2003) ao quadro pronominal
do português.
Com relação ao traço de gênero formal, os pronomes de 1a pessoa – Eu, Nós,
A gente – e
de 2a pessoa – Tu e Vós – poderiam ser interpretados como [∅ fem]. Isso quer dizer que tais
formas pronominais não carregam um valor específico a ser atribuído ao gênero formal, ou seja,
não são nem positiva – [+ fem] –, nem negativamente – [- fem] – marcados. Semanticamente,
no entanto, tais pronomes acionam uma interpretação subespecificada variável – [α FEM] –,
uma vez que a depender da combinação estabelecida com os adjetivos flexionados no masculino
ou feminino em estruturas predicativas, ativa-se a interpretação do gênero semântico, como se
observa nas seguintes sentenças:
Eu me sinto cansado (referente masculino);
Eu me sinto cansada (referente feminino);
Tu estás animado (referente masculino);
Tu estás animada (referente feminino);
Nós estamos exaustos (referente masculino);
Nós estamos exaustas (referente feminino);
Vós estais conservados (referente masculino);
Vós estais conservadas (referente feminino);
A gente está perplexo (referente masculino);
A gente está perplexa (referente feminino).
As únicas formas pronominais que assumiriam subespecificação variável no que se refere
aos traços de gênero formal – [α fem] – e gênero semântico – [α FEM] seriam os pronomes de 3a
pessoa ele/ela (P6):
Ele (s) está/estão faminto(s) – (referente masculino) – [- fem, -FEM];
Ela(s) está/estão faminta(s) – (referente feminino) – [+ fem, + FEM].
No que diz respeito ao traço de número, os pronomes – Eu – e – Tu – são negativamente
marcados tanto formal – [- pl] – quanto semanticamente – [- PL] –, visto que representam uma
única pessoa: a que fala e a pessoa com quem se fala, respectivamente. Ambas as formas
pronominais apresentam-se, pois, em sua expressão no singular – Eu me sinto feliz, Tu fizeste o
trabalho. Em contrapartida, as formas pronominais Nós e Vós seriam positivamente marcadas
em relação ao traço de número formal e semântico – [+ pl], [+ PL] – Nós estamos felizes, Vós
permaneceis saudáveis. Os pronomes de 3a pessoa do discurso – ele (s)/ela (s) – seriam, por sua
vez, subespecificadas, formal e semanticamente, – [α pl] e [α PL] –, pois admitem, diferente
dos pronomes anteriores, flexão de número – “Ele(s)/Ela(s) são inteligente(s)”.
No tocante à noção de pessoa, Lopes (1999, 2003) propõe que os pronomes de 1a pessoa do
singular Eu/Nós seriam formal e semanticamente marcados para o atributo [eu] – [+ eu, + EU]. Os
pronomes de 2a pessoa (“não-eu”) seriam negativamente marcados – [- eu, - EU]: Tu estás muito bem,
Vós fizestes bons trabalhos.
Em conformidade com a concepção de Benveniste (1988), a forma
pronominal de 3a pessoa do discurso evidencia a referência à não-pessoa, já que se apresenta sempre fora
do eixo dialógico falante – receptor. Dessa forma, atribuiu-se valor neutro à 3 a pessoa do discurso – [∅
eu, ∅ EU]. Na sentença Ele/Ela sobreviveu ao naufrágio, verifica-se a referência a um ser que está fora do
eixo dialógico (Eu versus Tu – legítimas formas pronominais), o que leva à interpretação semântica do
pronome de 3a pessoa como a não-pessoa do discurso.
A forma pronominal A gente resguardou do substantivo que lhe deu origem – gente – o traço formal
de pessoa – [∅ eu] – visto que tal forma mantém a relação de concordância com verbos em P3 – A gente
tem as melhores opções de financiamento. Por outro lado, tal forma pronominal apresenta-se positivamente
marcada no que se refere ao traço de pessoa semântica – [+ EU]. O fato de a forma A gente incluir o
próprio falante legitima que a sua interpretação semântica contemple a referência à pesssoa que fala –
[+ EU].
Quando se afirma A gente acredita no ensino de qualidade que tal universidade pública oferece,
pressupõe-se a noção do eu-ampliado, ou seja, a pessoa que fala e outras pessoas (alia) – eu + você, eu + os
estudantes, eu + você + os estudantes + os professores, eu + toda a sociedade.
4.4.2 Os traços de gênero de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em português: a
legitimidade de Você.
Consoante a concepção de Lyons (1979:299) “o termo gênero (...) deriva de uma palavra
extremamente geral que significa ‘classe’ ou ‘tipo’ (lat. genus): os três gêneros do grego e do latim eram as três
grandes classes nominais que a gramática reconhecia. Do ponto de vista gramatical, os substantivos gregos e
latinos eram classificados em três gêneros para dar conta de dois fenômenos distintos:
1) a referência
pronominal; 2) a concordância do adjetivo.” Considerando que Lyons (1979) aponta para a referência
pronominal e para a relação de concordância dos substantivos com o adjetivo como duas
informações gramaticais detectadas a partir do gênero dos substantivos, discute-se, a partir dos
dados a seguir apresentados, o comportamento de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em relação ao
atributo gênero em português.
O item lexical Mercê é positivamente marcado quanto ao traço de gênero formal – [+ fem] –
, uma vez que só pode ser especificado por determinantes cujo gênero formal é feminino.
Semanticamente, no entanto, a forma nominal Mercê com o sentido original de favor, graça não
aciona um valor específico de gênero, pois não faz referência a pessoas do sexo feminino. O
vocábulo Mercê se constitui como um substantivo abstrato [- animado, - humano] como beleza,
graça, diferenciando-se do substantivo gente, que por si só já evoca a noção de um conjunto de
pessoas. Os exemplos (1) e (2) mostram que o mecanismo morfossintático da concordância
com o feminino não aciona interpretação quanto ao gênero semântico do nome mercê.
(1) “(...) A outra cartinha he para a Cunhada do Bonifacio em Respeito a que me escreveo, e como mefallava em Vossa
Senhoria e não sei outro modo de lha fazer Receber, e Vossa Senhoria sabera onde ella mora, ou ella aparecera, por isso
vou a pedir-lhe a mercê de lhe fazer ir amão a Carta. (...)”
(Carta não-oficial (08). Inocêncio A. das Neves. RJ, 08.05.1816.)
(2) “(...) Apezar doque, eu lhefiz ver as razoens emque estava demerecer esta graça, que [[tinha]] lugar, enão era
contraria adisciplina cannonica ávista do conssentimento epostulação do Vigário Collado e Postulação do meu bispo aSua
Magestade eque havião muitos exemplos de [i]guaes mercês. (...)”
(Carta não-oficial (09). João Crysostomo de Oliveira Salgado Brandão. RJ, 06.03.1820.)
O pronome de tratamento Vossa Mercê conserva o traço de gênero [+ fem] peculiar ao item
lexical que lhe originou – Mercê – dada a presença do determinante, o pronome possessivo
Vossa, no feminino. Em termos semânticos, entretanto, passa a assumir uma interpretação
subespecificada – [α FEM] –, uma vez que, nesse caso, é possível a ocorrência de estruturas
predicativas no masculino ou feminino, resgatando o gênero do referente, conforme se verifica em
(3), (4) e (5).
(3) “(...) Este bonito Navio afazer-se com elle mais interessante Comercio em que vossa mercê está contemplado cujas
vantagens não só aos Proprietarios como a vossa mercê eu muito lhe dezejo (...)”
(Carta não-oficial (06). José Luiz Alves. RJ, 06.07.1811.)
(4) “(...) e no S. Thiago que chegou no 1o doCorrente heide remeter-lhe o resto da sua Conta nodito genero no que vossa
mercê pode ficar certo (...)”
(Carta não-oficial (06). José Luiz Alves. RJ, 06.07.1811.)
(5) “(...) Dezejarei queVossamercê esteja mais convalecido, eque tenha todas aquellaz felicidades, queeu muito
verdadeiramente lhedezejo. (...)”
(Carta não-oficial (05). Marquês do Lavradio. RJ, 12.12.1772.)
Divergindo de Mercê e de Vossa Mercê, a forma pronominal Você deixa de ter gênero formal
intrínseco, assumindo a especificação default – [∅ fem] – como ocorre com as formas
pronominais legítimas – Eu, Tu, Nós, Vós – em português. Em relação ao gênero semântico, a
forma pronominal Você conserva a interpretação subespecificada da forma de tratamento Vossa
Mercê, visto que o predicativo que cerca Vossa Mercê, assim como o que circunda o pronome
Você, é capaz de resgatar a interpretação do gênero do referente. É possível analisar de (6) a (7)
que a concordância predicativa com o masculino licencia a interpretação do destinatário como
uma pessoa do sexo masculino.
(6) “(...) dando por prova disto as suas mesmas cautelas na remessa do dito dizendo que se você não tivesse insiumado o
contrario do que dezia os seus officios, (...)”
(Carta não-oficial (12). J. F. da C. Miranda. RJ, 30.07.1835.)
(7) “(...) Você tem sido batido na Camera pelos Hollandezes, e na sessão de 13 deste o Padre Pinto
estudou hum sermão acusatorio (...)”
(Carta não-oficial (12). J. F. da C. Miranda. RJ, 30.07.1835.)
Em síntese, ao relacionar a evolução da forma de tratamento Vossa Mercê para o pronome
Você com os traços atribuídos aos pronomes pessoais em português, constata-se que, o pronome
Você assume comportamento semelhante à legítima forma pronominal da 2a pessoa do discurso
– Tu –, pois perde a especificação de gênero formal, mas mantém-se semanticamente
subespecificada – de [+ fem, α FEM] a [∅ fem, α FEM] – como se verifica nas seguintes
sentenças: Tu estás enciumado/enciumada – Você está enciumado/enciumada.
4.4.3 Os traços de número de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em português: a
ilegitimidade de Você.
Segundo a concepção de Lyons (1979:297), “o número é, portanto, uma categoria do
substantivo; (...) que se combina, de uma maneira especial, com a categoria de pessoa para formar os ‘pronomes
pessoais’, que podem ser considerados como sintaticamente equivalentes aos substantivos.” O traço de número
pode ser entendido a partir da diferenciação que há entre ‘um elemento’ e ‘mais de um elemento’
(Câmara Jr., 1970 apud Lopes 1999:24), o que resultará na diferenciação existente entre singular e
plural em português.
Do ponto de vista formal, o substantivo Mercê (s) apresenta-se subespecificado com relação
ao atributo número – [α pl]. O pronome de tratamento Vossa(s) Mercê(s) assumiu esse valor
subespecificado, que, por sua vez, foi transferido à forma pronominal Você(s). Formalmente, temse um quadro de estabilidade com relação ao atributo número, uma vez que a mudança categorial
de nome para pronome não acarretou transformações com relação ao atributo em questão, como
já foi apontado por Menon (1996). Quando analisado independentemente do traço de pessoa,
atribui-se um valor neutro – [∅ PL] – ao traço de número semântico do item lexical Mercê, em
virtude de a pluralização da forma nominal não acionar um valor específico à sua interpretação.
O item lexical Mercê, flexionado em número ou não – Mercê (s) – possui uma interpretação
genérica – como se observa em (8) e em (9) –, não estabelecendo, pois, oposição entre uma ou
mais de uma graça.
(8) “(...) Na occazião prezente não posso deixar de considerar a Vossa Excelência occupado do maior jubilo, e alegria
pelas Mercez das novas patentes, com que Sua Magestade foi servido premiar os serviços dos Officiaes, que se distinguirão
nas occazioens de honra (...)”
(Carta oficial (09). J. Be. do Rio de Janeiro. RJ, 22.10.1776.)
(9) “(...) A proporção eu me encho de prazer, e consolação; e congratulandome com Vossa Excelência lhe dou mil
parabens pela grande parte que lhe toca; pois que estas mesmas Mercez são evidentes demonstraçoens que Sua Magestade
dá do merecimento de quem dirigio toda a acção (...)”
(Carta oficial (09). J. Be. do Rio de Janeiro. RJ, 22.10.1776.)
A forma nominal de tratamento Vossa Mercê apresenta-se com uma interpretação
subespecificada em relação ao atributo número – [α PL] –, pois a forma de tratamento pode
assumir ou não uma interpretação pluralizada, conforme a presença ou a ausência do traço de
número formal, como é possível observar em (10), ocorrência em que se interpreta que a forma
Vossas Mercês evoque mais de um sujeito de 2a pessoa do discurso em conseqüência da presença
do traço formal de pluralidade em tal forma de tratamento.
(10) “(...) eque adita entrega deveria ser por huma escriptura em que eu o izentasse de todas as circunstancias comerciaes
ejuros que vossas mercês lhe quizessem acumular (...)”
(Carta não-oficial (06). José Luiz Alves. RJ, 06.07.1811.)
A forma Você conserva a subespecificação – [α PL] – atribuída ao número da forma de
tratamento que a motivou, o que pode ser observado nas ocorrências de (11) a (13). O
pronome Você, assim como a forma nominal de tratamento Vossa mercê, mostraram-se isomórficos
com relação ao atributo número nas suas especificidades formal e semântica, uma vez que a
existência ou não do morfe flexional -s será o fator a determinar a sua interpretação pluralizada
ou singularizada. Pode-se considerar que essa isomorfia entre Vossa Mercê e Você, no que se
refere ao atributo número, deve ter sido motivada pelo fato de Vossa Mercê ter surgido em
substituição à forma pronominal de 2a pessoa do plural – Vós – como já mencionado
anteriormente.
(11) “(...) Meo quirido Filho, meo Senhor domeo Coração, são passados ja muitos mezez, em que estamoz na sensadoria
de não termos navio de Lixboa faltandome por esta cauza o gosto denovaz de Voce, edemas dar taobem dobom suceso de
Francisca ahum Pay que os ama aVocez tão cheyo deternura, considere Você quam Tormentuoza meterá sido essa
demora: (...)”
(Carta não-oficial (09). Marquês do Lavradio. RJ, 11.06.1773.)
(12) “(...) Novaz doPays, que eu possa dar não há por hora nenhumas, e quando Vossez asnão achão emLisboa
nãopodera fazer admiração, que haja muito menoz na América: a donde Você terá Sempre aminha Vontade com
omayor gosto para emtudo lhe servir. (...)”
(Carta não-oficial (09). Marquês do Lavradio. RJ, 11.06.1773.)
(13) “Dellepoderão Vocês alcançar todas as miudaz novazque quizerem minhas, que excepto noque
diserem emabono meo, em tudo omais as poderão Vocês ter cheyaz da mayor verdade. (...)”
(Carta não-oficial (12). Marquês do Lavradio. RJ, 02.031774.)
Ao comparar a matriz de traços da forma pronominal Você – [α pl, α PL] – com a matriz
de traços dos pronomes pessoais, percebe-se que o pronome Você apresenta, em relação ao atributo
número nas suas bifurcações formal e semântica, os mesmos traços que o pronome de 3a pessoa –
ele(s), ela(s). Aparentemente, ao se pronominalizar, o item lexical perdeu algumas características
nominais – a interpretação genérica atribuída ao substantivo Mercê no plural [∅ PL] – e assumiu
a subespecificação de número plural – [α PL] – atribuída à forma de tratamento Vossa Mercê e
ao pronome Você.
4.4.4 Os traços de pessoa de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em português: a dupla face do
pronome Você.
O enunciado lingüístico é construído a partir da relação dialógica travada entre
interlocutores no discurso, figurando, necessariamente, no eixo dialógico, o eu e o tu, 1a e 2a
pessoas do discurso. Há, ainda, a possibilidade de fazer referência à pessoa ou coisa que, por sua
vez, não evocam nem o falante, nem o ouvinte. Trata-se da referência a alguém ou algo que
está fora do contexto comunicativo – 3a pessoa – a não-pessoa do discurso, segundo Benveniste
(1988).
‘Eu’ designa aquele que fala e implica ao mesmo tempo um enunciado sobre o ‘eu’: dizendo
‘eu’, não posso deixar de falar de mim. Na segunda pessoa, ‘tu’ é necessariamente designado
por ‘eu’ e não pode ser pensado fora de uma situação proposta a partir do ‘eu’; e, ao mesmo
tempo, ‘eu’ enuncia algo como um predicado de ‘tu’. Da terceira pessoa, porém, um
predicado é bem enunciado somente fora do ‘eu-tu’; essa forma é assim exceptuada da relação
pela qual ‘eu’ e ‘tu’ se especificam. Daí ser questionável a legitimidade dessa forma como
‘pessoa’.
(BENVENISTE, E. 1988:250)
Discute-se, pois, o comportamento de Mercê, de Vossa Mercê e de Você em relação ao
atributo pessoa a partir da configuração dos traços adotada por Lopes (1999).
A autora
contrapõe, em síntese, o eu (falante) – [+eu] – ao não-eu (ouvinte) – [- eu]. A chamada terceira
pessoa, por ser a não-pessoa por excelência e estar fora da relação dialógica falante-ouvinte, seria
não-marcada [∅ eu] como os nomes em geral.
O item lexical Mercê não apresenta um valor específico que possa determiná-lo formal e
semanticamente quanto à noção de pessoa – [∅ eu, ∅ EU] –, o que permite considerá-lo neutro em
oposição às duas outras pessoas – [+ eu] eu/nós e [- eu] tu/vós – como se verifica em (14).
(14) “(...) A outra cartinha he para a Cunhada do Bonifacio em Respeito a que me escreveo, e como mefallava em Vossa
Senhoria e não sei outro modo de lha Receber, e Vossa Senhoria sabera onde ella mora, ou ella aparecera, por isso vou a
pedir-lhe a mercê de lhe fazer ir amão a Carta. (...)”
(Carta não-oficial (08). Inocêncio A. das Neves. RJ, 08.05.1816.)
Ao ser utilizado no composto sintagmático Vossa Mercê como expressão de tratamento,
observa-se que esta conserva, com relação à noção de pessoa formal e semântica, a ausência de
valor específico para esse atributo – [∅ eu, - EU] –, como pode ser evidenciado em (15) e (16).
(15) “(...) Domesmo Continente medarâ Vossa mercê Conta daquillo que for enCarregado, doqueSetiver posto empratica
a este Respeito, edetudo que tiver aContecido naz partez emque Vossa mercê seachar: esta Conta bastará, queseja por
hum Diario muito simplez a fim denão estar embaraçando aVossa mercê Comescriptaz, que lhetomem otempo, esejão
inuteiz(...)”
(Carta oficial (07). Marquês do Lavradio. RJ, 15.02.1774.)
(16) “(...) Entendo que convém que Vossa mercê se entenda com o Senhor Ministro do Império para que não se consinta
na importação d’esses colonos assim enfermos, pois já temos no pais lazaros de sobra, e precisamos de colonos sadios e não
de morpheticos; (...)”
(Carta oficial (14). Marquês do Paraná. RJ, 17.06.1855.)
Entende-se que não há traço formal que permita identificar a pessoa do discurso em
questão, ao evocar-se o sujeito de 2a pessoa do discurso a partir da forma nominal de
tratamento Vossa Mercê, uma vez que o verbo mantém-se na 3a pessoa. No que diz respeito à
sua contraparte gramaticalizada, observa-se que Você conserva, formalmente, o atributo pessoa
– [∅ eu] –, advindo da forma de tratamento, como se verifica em (17) e (18).
(17) “(...) As novidades que aqui há euasdou na Carta daminha Maria, epormenão fazer importuno aVocê por hiço
lhenão repito. Você desculpe opouco extenço que sou, porem otrabalho, comque meacho, eograndissimo defluxo, comque
fico menão permitte demorarmecomodezejava. Você aseite afielamizade, comque sempre metem prompto para emtudo
lhedar gozto. Eu lhedeito aminha benção, ea Deus peço oGuarde muitos anos como muito dezejo eheymister(...)”
(Carta não-oficial. Marquês do Lavradio (14). RJ, 06.05.1774)
(18) “(...) Estimo muito que você e tudo quanto lhe pertence goze saude e todas as venturas que para mim apeteço. Na
carta, que ultimamente lhe escrevi participei o arbitrio que tomei de exceder as suas ordens na encomenda da bomba, que
você me havia encomendado para colocar nhum Poço Publico, que mandara construir, e de prezente asseguro-lhe que esta
obra está quasi concluida a medida do meo dezejo (...)”
(Carta não-oficial (14). J. C. da Miranda. RJ, 28.03.1837.)
Com relação à noção de pessoa semântica, observa-se que a forma Você mantém a sua
especificação [- EU], peculiar também à forma nominal de tratamento que a originou (Vossa
Mercê), o que evidencia que a forma resultante do processo de gramaticalização (Você) resguarda
o caráter de estratégia de referência à 2a pessoa do discurso.
Em suma, ter-se-iam os seguintes quadros:
FORMAS PRONOMINAIS PESSOAIS
RELAÇÃO
FORMA/CONTEÚDO
TRAÇOS
GÊNERO
NÚMERO
PESSOA
EU
TU
ELE/ELA
ELES/
ELAS
NÓS
A GENTE
VÓS
FORMAL
SEMÂNTICO
[∅ fem]
[α FEM]
[∅ fem]
[α FEM]
[α fem]
[α FEM]
[∅ fem]
[α FEM]
[∅ fem]
[α FEM]
[∅ fem]
[α FEM]
FORMAL
SEMÂNTICO
[- pl]
[- PL]
[- pl]
[-PL]
[α pl]
[α PL]
[+ pl]
[+ PL]
[- pl]
[+ PL]
[+ pl]
[+ PL]
FORMAL
SEMÂNTICO
[+ eu]
[+EU]
[- eu]
[- EU]
[ ∅ eu]
[ ∅ EU]
[+ eu]
[+EU]
[∅ eu]
[+ EU]
[- eu]
[- EU]
Quadro 3: Matriz morfo-semântica dos pronomes pessoais do português com base em Lopes (1999), (2003).
FORMA
NOMINAL
FORMA NOMINAL
DE TRATAMENTO
FORMA
PRONOMINAL
MERCÊ
VOSSA MERCÊ
VOCÊ/VOCÊS
GÊNERO
FORMAL
SEMÂNTICO
[+ fem]
[α FEM]
[+ fem]
[α FEM]
[∅ fem]
[α FEM]
NÚMERO
FORMAL
SEMÂNTICO
[α pl]
[∅ PL]
[α pl]
[α PL]
[α pl]
[α PL]
PESSOA
FORMAL
SEMÂNTICO
[ ∅ eu]
[ ∅ EU]
[ ∅ eu]
[- EU]
[ ∅ eu]
[ - EU]
TRAÇOS
RELAÇÃO
FORMA/CONTEÚDO
Quadro 4: Proposta de aplicação do sistema de traços na confecção de matriz morfo-semântica de Mercê, de Vossa Mercê e de Você.
Na passagem de Mercê para Vossa Mercê e para Você, observa-se, a partir do sistema de
traços intrínsecos ao item lexical e ao pronome, algumas perdas e ganhos consideráveis, o que
poderia referendar o princípio da decategorização proposto por Hopper (1991). A análise dos
quadros 3 e 4 permite evidenciar que houve a perda da valorização positiva atribuída ao traço de
gênero formal do substantivo Mercê e da forma nominal Vossa Mercê.
A adoção de
subespecificação não-variável à forma pronominal Você – [∅ fem] –, a ausência de gênero formal
ou o seu valor neutro é também observado nos pronomes pessoais legítimos – Eu, Tu, Nós e Vós
–, o que já assinala, formalmente, a pronominalização de Você em português. Em termos
semânticos, a interpretação neutra do gênero – [∅ FEM] – em Mercê transformou-se em
subespecificada variável – [α FEM] – na forma de tratamento Vossa Mercê.
Ao se
pronominalizar, Você herdou de Vossa Mercê essa subespecificação atribuída ao gênero semântico –
[α FEM], o que evidencia um indício do processo de pronominalização, visto que os legítimos
pronomes pessoais – eu, tu, nós e vós – assumem uma interpretação subespecificada com relação
ao atributo gênero semântico. Interessante comentar que Vossa Mercê mantém o traço formal de
mercê – [+ fem] –, mas adquire um traço semântico inexistente em mercê – [α FEM].
Considerando ainda a análise dos quadros 3 e 4, verifica-se que houve manutenção da
subespecificação formal de número – [α pl]. Semanticamente, o item lexical Mercê perdeu o valor
neutro atribuído à noção de número semântico, passando a ser subespecificado – [α PL]: Vossa
Mercê – referência ao ouvinte – e Vossas Mercês – referência a mais de um ouvinte. Tal
subespecificação variável de Vossa Mercê é conservada pelo pronome Você em português – [α
PL]. Comparando a matriz de traços dos pronomes pessoais e a de Você, percebe-se que a
forma apresenta as mesmas propriedades de número identificadas nos pronomes de 3a pessoa.
Em outras palavras, o pronome Você se identifica, formal e semanticamente, no que toca ao traço
número, com a não-pessoa do discurso, segundo Benveniste (1988), – as formas pronominais de 3a
pessoa – ele(s), ela(s).
Também em relação aos traços de pessoa do produto final da gramaticalização – Você [∅ eu]
–, são identificadas semelhanças formais com o pronome de 3a pessoa do discurso. Lopes
(1993:19), ao analisar o uso de nós e de a gente no português falado culto a partir de corpus do Projeto
NURC, já anuncia que a impessoalidade da 3a pessoa pode estar influenciando as demais – a 2a
pessoa do singular e a 1a pessoa do plural. Essa hipótese da autora é confirmada com a
aplicação do sistema de traços ao quadro pronominal do português, visto que se constatou a
identidade formal existente entre a forma pronominal Você e a 3a pessoa do discurso – ele(s),
ela(s) – em relação ao traço pessoa – [∅ eu] – e de número. Em termos semânticos, a forma Você
faz referência, com relação ao atributo pessoa, à 2a pessoa do discurso – tu, vós –
[- EU].
Trata-se de um pronome um tanto quanto “camaleônico” no que diz respeito ao atributo pessoa, o
que pode senão justificar, estar refletido no fato de o pronome Você fazer referência à 2a pessoa
do discurso (ganho de uma propriedade pronominal), embora estabeleça concordância com a 3a
pessoa gramatical (manutenção de um traço original).
Em síntese, quais traços morfo-semânticos devem ser levados em conta para distinguir a
forma nominal de tratamento Vossa Mercê da forma pronominal pessoal Você ? Constata-se que
Vossa Mercê e Você se distinguem concretamente em relação às noções de gênero formal e de pessoa
semântica. Enquanto a forma nominal de tratamento Vossa Mercê é marcada positivamente em
relação ao seu gênero formal
[+ fem], a forma pronominal pessoal Você assume representação
neutra – [∅ fem]. É interessante constatar que a interpretação neutra assumida pela forma
pronominal Você no que se refere ao seu gênero formal a aproxima das legítimas formas
pronominais de 1a pessoa – Eu, Nós, A gente – e de 2a pessoa – Tu e Vós.
No que diz respeito ao traço de pessoa semântica, observa-se que a forma nominal de
tratamento Vossa Mercê admite, ou não, interpretação neutra – [∅ EU] –, o que a distingue da
forma pronominal Você que, por sua vez, faz referência ao ouvinte – [- EU] –, assemelhando-se
às legítimas formas pronominais de referência à 2a pessoa do discurso – Tu e Vós23.
23
É possível conjecturar a impessoalidade de Você em construções pessoais, conforme Duarte (2003) e Avelar (2003).
5. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS.
5.1 Distribuição dos dados das formas nominais de tratamento e das formas
pronominais nas cartas setecentistas e oitocentistas.
O objetivo principal deste capítulo é expor os resultados quantitativos e qualitativos das
formas nominais de tratamento e das formas pronominais levantadas nos corpora desta
investigação em termos de freqüência de uso. Foram co-relacionados estatisticamente, nesse
sub-item, os seguintes grupos de fatores extralingüísticos: a distribuição temporal (século
XVIII versus século XIX), o tipo de texto (cartas oficiais versus cartas não-oficiais) e as relações
sociais estabelecidas entre o remetente e o destinatário das cartas, adotando-se a perspectiva de
Brown e Gilman (1960) discutida anteriormente. Os dados foram quantificados e submetidos
ao programa estatístico computacional Makecell inserido no pacote de programas Goldvarb para
o cálculo das freqüências brutas.
A quantificação de todas as formas nominais e pronominais de tratamento existentes nas
cartas da segunda metade do século XVIII e do século XIX resultou em um total de 551 dados.
Foram identificados 371 dados – 67% – na amostra relativa à segunda metade do século XVIII
e 180 dados – 33% – em relação ao corpus do século XIX. Apesar de constar da tabela 3 a
seguir apresentada, somente serão analisadas, nesse momento, as freqüências de uso das formas
de tratamento de base nominal e pronominal, excluindo-se os comentários relativos à forma
Você24.
Na segunda metade do século XVIII, detectaram-se ocorrências de Vossa Excelência,
Vossa Mercê e de Senhor.
Em relação às cartas produzidas no decorrer do século XIX,
localizaram-se, além das formas nominais já identificadas na segunda metade do século XVIII,
ocorrências de Vossa Senhoria e Vossa Majestade. No que diz respeito às formas pronominais,
observaram-se, nas cartas dos séculos XVIII e XIX, ocorrências de Tu. Foram identificadas
ocorrências de Vós, nas cartas do século XIX.
A tabela 3 expõe separadamente as ocorrências das formas nominais de tratamento e das
formas pronominais em relação aos tipos de texto que compõem os corpora25 – cartas oficiais
(cartas da administração pública) e cartas não-oficiais (cartas da administração privada → cartas de comércio e
cartas particulares).
24
Adotou-se essa forma de apresentação dos resultados, uma vez que será destinada uma parte desta dissertação – item 5.3 – à abordagem
dos reflexos da pronominalização de Vossa Mercê > Você, na qual se discutirá a mudança categorial em processo nos corpora em análise.
25
Os percentuais de freqüência de uso apresentados na tabela 3 devem ser lidos por coluna (na vertical).
FORMAS PRONOMINAIS E NOMINAIS DE TRATAMENTO EM
CARTAS OFICIAIS E NÃO-OFICIAIS DOS SÉCULOS XVIII E XIX
SÉCULO XVIII
SÉCULO XIX
FORMAS DE
TRATAMENTO
CARTAS
CARTAS
TOTAL
CARTAS
CARTAS
TOTAL
OFICIAIS
NÃO-OFICIAIS
(XVIII)
OFICIAIS
NÃO-OFICIAIS
(XIX)
OCO.
%
OCO.
%
OCO.
%
OCO.
%
OCO.
%
OCO.
%
175/211
83%
20/160
13%
195/371
53%
37/67
55%
09/113
08%
46/143
32%
18/211
8,5%
31/160
19%
49/371
13%
01/67
01%
26/113
23%
27/143
19%
17/211
08%
17/160
11%
34/371
09%
12/67
18%
11/113
09%
23/143
16%
-
-
-
-
-
-
05/67
07%
36/113
32%
41/143
29%
-
-
-
-
-
-
06/67
09%
-
-
06/143
04%
TU
01/211
0,5%
11/160
07%
12/371
03%
-
-
13/113
12%
13/37
35%
VÓS
-
-
-
-
-
-
06/67
09%
-
-
06/37
16%
VOCÊ26
-
-
81/160
50%
81/371
22%
-
-
18/113
16%
18/37
49%
VOSSA
EXCELÊNCIA
VOSSA
MERCÊ
SENHOR
VOSSA
SENHORIA
VOSSA
MAJESTADE
211/371 (57%)
TOTAL
160/371 (43%)
371/551
(67%)
371/371
67/180 (37%)
113/180 (63%)
180/180
180/551
(33%)
Tabela 3: Formas pronominais e nominais de tratamento em cartas oficiais e não-oficiais dos séculos XVIII e XIX.
Confrontando-se as formas nominais de tratamento em relação aos séculos XVIII e XIX,
é possível evidenciar que o século XIX é o período em que se apresentou uma maior
diversidade de formas – Vossa Excelência, Vossa Mercê, Senhor, Vossa Senhoria e Vossa Majestade –
em oposição ao século XVIII – em que as duas últimas fórmulas de tratamento não foram
localizadas na amostra. Dentre as estratégias nominais de tratamento, constata-se que Vossa
Excelência é o recurso mais propagado nos corpora, com maior incidência de uso nas cartas do
século XVIII – 195 ocorrências (53%) – do que no século XIX, 46 ocorrências (32%). Nesse
último período, verifica-se uma concorrência equilibrada entre as estratégias utilizadas. É
interessante observar que tal forma de tratamento apresenta-se com alta produtividade nas
cartas oficiais dos dois períodos analisados – 83% no século XVIII, e 55% no século XIX.
26
Embora a forma Você ainda apresente um comportamento híbrido – forma nominal de tratamento e forma pronominal –, optou-se por
incluí-la no quadro das formas pronominais dos corpora desta investigação com o intuito de apresentar um panorama geral dos dados
levantados.
Apesar de a forma Vossa Excelência manifestar-se tanto nas cartas oficiais quanto nas nãooficiais, constata-se que a sua freqüência de uso é mais significativa nas cartas cujo grau de
formalismo é maior.
No século XVIII, identificaram-se 175 ocorrências – 83% – de tal estratégia nas cartas
oficiais em oposição a 20 ocorrências – 13% – em cartas não-oficiais. Verifica-se, em (01) e
(02), expressões da forma nominal de tratamento Vossa Excelência em carta de circulação
pública, trocada entre o Conde de Resende e Dom Fernando José de Portugal através da qual o autor
solicitava auxílio para enfrentar crise, no Rio de Janeiro, causada pela falta da farinha.
(01) “(...) todos estes objectos dignos da mayor considerasão me obrigão aRecorrer a Vossa Excelência, para que,
Fazendo amais seria Reflexão, que exigem as actuaes circumtancias, emque meacho, queira aplicar assuas vistas para
esta Capitania (...)”
(Carta oficial (02). Conde de Resende. RJ, 18.02.1773.)
(02) “Nesta inteligência confiando nasbem ajustadas providencias, comque Vossa Excelência sehade dignar atender
aestes motivos detanta consequencia, tenho destinado Fazer expedir algumas Embarcaçoens, que se ofereserem, para ese
Porto (...)”
(Carta oficial (02). Conde de Resende. RJ, 18.02.1773.)
É interessante observar que as 20 ocorrências de Vossa Excelência (13%), em cartas
setecentistas não-oficiais, se distribuem em três documentos: 02 ocorrências de Vossa Excelência
aparecem em duas cartas de amizade trocadas entre irmãos, o Marquês do Lavradio e o Conde de
São Vicente, como se observa em (03) e (04), e as demais 18 ocorrências da forma nominal de
tratamento em análise se apresentam em uma única carta de amizade trocada entre amigos – o
Marquês do Lavradio e o seu amigo Manuel da Cunha de Menezes –, conforme evidenciam os
exemplos (05) e (06). Observe-se que, em (03) e (04), um pecado gramatical, prática tão criticada
pelos gramáticos do português, já se dava nas cartas setecentistas. Acredita-se que tal mistura de
pronomes possa ser reflexo da confusão em relação ao fato de que apesar de a forma nominal de
tratamento (Vossa Excelência) fazer referência à 2a pessoa do discurso, assim como o pronome
pessoal Tu o faz, estabelece relação de concordância com a 3a pessoa gramatical.
(03) “ (...) MeuIrmão eSenhordomeuCoração, nasbrevissimas cartas que tive ogosto deReceber suas medás aestimavel
serteza datuaboaSaude edetodaatuaExlentíssima Casa Familia, que eu infinitamente estimo, ete agradeço dezejando que
estaseconserve a todas Vossas Excelências sempre tão felismente como tu opodes ser daminha verdadeira efielamizade.
(...)”
(Carta não-oficial (03). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.)
(04) “(...) eomuito que agora tenhoque fazer menão dá Lugar aduplicar asminhas escritas, ecomo das mais novidades
deste Estado poderá oCommandante informar aelle me [R]efiro; [a este] peço medéz muitas oCazioens de[lhedar] Gosto.
DeozGuarde aVossa Excelência muitos anos. (...)”
(Carta não-oficial (04). Marquês do Lavradio. RJ, 23.12.1770.)
(05) “(...) Meo amavel collega Amigo eSenhor domeucoração Consinta VossaExcelência queeu o felicite, que tão bem
ofaça aos povos da Bahia ea mim mesmo comachegada deVossaExcelência aessa Capitania adar principio ao seu Feliz
Governo. (...)”
(Carta não-oficial (13). Marquês do Lavradio. RJ, 03.03.1774.)
(06) “(...) não creya Vossa Excelência Lizonjeeraz a[s] minhaz expressoensz, quanto a Vossa Excelência repito são
puros sentimentos domeoCoração”
(Carta não-oficial (13). Marquês do Lavradio. RJ, 03.03.1774.)
No século XIX, constata-se que Vossa Excelência se manifesta, preferencialmente, em
documentos com um maior grau de cerimônia, conforme se observa, em (07), na carta do
Visconde do Rio Branco para o Senador José Martiniano de Alencar. É possível detectar essa estratégia
nominal de tratamento em duas cartas não-oficiais: 06 ocorrências numa carta de Joaquim José de
Souza Lobato para o Conde de Palma, versando sobre assuntos familiares, e 03 ocorrências em
carta de Manoel Jacinto Nogueira da Gama para destinatário ignorado, pedindo que o atendesse em
dois favores, conforme se observa em (08) e (09).
(07) “(...) A intervenção de Vossa Excelência a favor da estrada deBaturité não é suspeita, mas legitima, e o seu juizo
do mais alto valor para mim. (...)”
(Carta oficial (15). Visconde do Rio Branco. RJ, 02.08.1873.)
(08) “(...) Eu aestimei como Vossa Excelência póde supôr de minha amizade, pelas boas notícias da suasaude, por vêr
se não esquecia das minhas Recomendaçoens, e pelos interesses que toma benignamente sobre os meus particulares, a
Respeito dos quaes, anão ser a efficacia de Vossa Excelência, seguramente nenhum bem me Rezultaria(...)”
(Carta não-oficial (04). Joaquim José de Souza Lobato. RJ, 13.02.1811.)
(09) “(...) Desejo que Vossa Excelência Goze de perfeita saude e que em algum momento de descanso, se lembre dos seus
Amigos, que vivem na Corte (...)”
(Carta não-oficial (05). Manuel Jacinto Nogueira da Gama. RJ, 20.02.1811)
Com base na análise dos índices percentuais de Vossa Excelência nas cartas setecentistas e
oitocentistas, em suas modalidades oficiais e não-oficiais, verifica-se que as suas maiores
freqüências de uso se dão nas cartas oficiais. Essa constatação expõe Vossa Excelência como
forma nominal de tratamento que ainda resguarda o caráter cortês com que foi instituída nos
séculos XV e XVI para fazer referência à realeza portuguesa, conforme afirmam Nascentes
(1950), Cintra (1972), Wilhelm (1979).
Em relação à forma nominal de tratamento Vossa Mercê, verifica-se uma ligeira diferença
de comportamento, se forem confrontados os dois períodos em análise: no século XVIII, tal
estratégia é a mais produtiva nas cartas não-oficiais com 19% de freqüência, em contrapartida,
no século XIX, Vossa Mercê (23%) concorre com Vossa Senhoria (32%).
No século XVIII, a forma Vossa Mercê apresenta-se nas cartas oficiais com índices
percentuais pouco relevantes – 18 ocorrências (8,5%) em uma única carta oficial de autoria do
Marquês do Lavradio para o Engenheiro Francisco João Roscio, através da qual o autor transmitia
ordens sobre a defesa da região e a passagem do engenheiro Roscio para o Rio Grande, como
se nota em (13) e (14). Nas cartas não-oficiais, tipo de texto em que tal estratégia é mais
freqüente, as 31 ocorrências de Vossa Mercê – 19% dos dados – se deram em três cartas do
Marquês do Lavradio para os seus amigos Padre Baptista (carta comercial), Antonio João de Miranda
(carta pessoal) e João Henrique de Souza (carta comercial), como é possível constatar em (10), (11)
e (12). O fato de Vossa Mercê, nas cartas setecentistas, mostrar-se recorrente na produção escrita
não-oficial permite evidenciar um processo paulatino e gradual de dessemantização pelo qual tal
forma nominal de tratamento perpassa. À medida que Vossa Mercê começa a se disseminar
pelas cartas não-oficiais já no século XVIII, acelera-se esse processo de perda do caráter polido
e cortês com que tal forma de tratamento foi, inicialmente, concebida em fins do século XV,
segundo Santos Luz (1958), Cintra (1972).
(10) “(...) Otrabalho que tenho tido naespedição destes Navioz, e afazer omeu primeiro Estabelecimento nesteGoverno
como vossa mercê Largamente verá por essa Secretaria, todo este embaraço metinha na descosolação detomar isso
detalforma otempo, que eu não podese por este modo continuar asegurar aVossa mercê aminha amizade (...)”
(carta não-oficial (01). Marquês do Lavradio. RJ, 28.07.1768.)
(11) “(...) Tenho Recebido trezCartasde Vossamercê depois dasuapartida, enão me tendo sido possivel escrever-lhe; tenho
pedido aos meos Ajudantes das ordéns, eatodas aspessoaz daminha família hajão desegurar a vossa mercê aminha
amizade eo quanto tenhosentido que Vossa mercê tenha tido tantoz derimentoz nasua Saude. (...)”
(Carta não-oficial (05). Marquês do Lavradio. RJ, 12.12.1772.)
(12) “(...) Eusou avossamercê devedor devarias respostas, talvez confiando dofavor que Vossa mercê mefaz, edeter
procurado mostrar lhe quanto metem sido possível aminha sincera amizade eque por estes motivoz Vossa mercê houvese
dedisculpar esta minha falta depromptualidade; (...)”
(Carta não-oficial (08). Marquês do Lavradio. RJ, 26.03.1773.)
(13) “(...) Devo agradecer aVossa mercê eLouvar-lhe muito o zello, intelligencia, eactividade Comque tem trabalhado
para Sevencerem as difficuldades, que sempreSetinhão emContrado nas marchaz para aquelle Continente (...)”
(Carta oficial (07). Marquez do Lavradio. RJ, 15.02.1774.)
(14) “(...) Agrande Confiança, que faço doprestimo de Vossa mercê, omuito que me esperanceyo que osSeos trabalhoz
Sejão demuita utilidade aoEstado, ogrande perigo, emque Considero prezentemente oContinente do Rio Grande fazendose
aly prezentemente Summamente precizo hum Engenheiro habil, quetenha zello peloServiço, epela Patria, mefazem
indispensavel haja de ordenar a Vossa mercê, pase emediatamente áquelleContinente para nélle fazer dirigir as obraz
(...)”
(Carta oficial (07). Marquez do Lavradio. RJ, 15.02.1774.)
Nas cartas oitocentistas, dentre as 27 ocorrências da forma nominal de tratamento Vossa
Mercê, 26 delas – 23 % dos dados – se distribuem entre duas cartas não-oficiais: uma carta
particular e uma carta comercial cujas autorias pertencem a Joaquim José de Azevedo e José Luís Alves,
respectivamente, como se pode observar de (15) a (18).
Há de se atentar para a
improdutividade de tal forma nominal de tratamento nas cartas oitocentistas de circulação
oficial, já que somente há uma única ocorrência de Vossa Mercê – 01% dos dados – expressa em
uma correspondência de autoria do Marquês do Paraná para o Ministro da Justiça nos corpora em
estudo, conforme é possível constatar em (19).
(15) “(...) Meo querido Amigo doCoração, acuzo haver recebido asua Carta de 26 de Mayo doprezente Anno, aqual me
dêo grande satisfação pelo gesto de têr noticias de Vossa mercê, que todos os dias me lembra, tanto pela Amizade com que
sempre nos tratamos, como para me ajudar na grande lyda de Obras que aqui tem havido e haverá (...)”
(Carta não-oficial (02). Joaquim José de Azevedo. RJ, 16.08.1809.)
(16) “(...)Tive ahonra de beijar a Mao aSua Alteza Real no Nome deVossa Mercê, que aocazião de lha beijar se
mostrou não só agradecido, com bem lembrado do quanto estimava. (...)”
(Carta não-oficial (02). Joaquim José de Azevedo. RJ, 16.08.1809.)
(17) “(...) Pelo meu avizo de 28 de Mayo deve vossa mercê mandar a original Letra de João Pereira de SouzaCaldas e
sem ella nada se pode fazer conforme o parecer do Letrado (...)”
(Carta não-oficial (06). José Luís Alves. RJ, 06.07.1811.)
(18) “(...) Para eu receber as ditas quantias que ordena odito João Barboza mandrá vossa mercê outra procuração como
assima expresso, etãobemmandará aoriginal Letra para deligenciar dodito Izedoro Alves oresto que vossa mercê julgar elle
dever que aporse em caminho judicial deve serperciza (...)”
(Carta não-oficial (06). José Luís Alves. RJ, 06.07.1811.)
(19) “(...) Entendo que convém que Vossa Mercê se entenda com o Senhor Ministro do Império para que não se consinta
na importação d’esses colonos assim enfermos (...)”
(Carta oficial (14). Marquês do Paraná. RJ, 17.06.1855.)
O desgaste semântico sofrido por Vossa Mercê iniciou-se entre os membros da nobreza
portuguesa, uma vez que tal estratégia de tratamento específica para o rei, em 1460 – século XV
–, cf. Cintra (1972), começou a se tornar usual como forma de tratamento entre os nobres da
côrte. Acentuou-se ainda mais esse desgaste semântico à medida que a ascensão social da
burguesia impulsiona a sua difusão entre os comerciantes portugueses, que, por sua vez,
lidavam mais diretamente com o povo, o que acaba por propagar essa forma de tratamento pela
plebe, acelerando ainda mais o seu desgaste fonético e semântico. Com base na análise dos
dados de Vossa Mercê dos corpora, observa-se que essa forma nominal de tratamento apresentase, nos séculos XVIII e XIX, em estágio de dessemantização, visto que assume maior freqüência
de uso nas cartas não-oficiais, tipo de texto dotado de menor grau de formalismo.
Em relação à forma nominal de tratamento Senhor, estratégia pouco produtiva nos corpora,
identificaram-se, tanto no século XVIII (09%), quanto no século XIX (16%), apenas
ocorrências como Vocativos introdutórios em estruturas de cartas. Embora a forma Vossa
Excelência seja o recurso mais produtivo nas cartas oficiais dos dois períodos analisados, Senhor
se comporta também como estratégia de tratamento usual nesse tipo de documento formal,
mesmo com os seus tímidos 08%, no século XVIII, – 17 ocorrências – e 18%, no século XIX,
– 12 ocorrências. Nas cartas não-oficiais dos dois períodos, a forma Senhor apresenta índices
baixíssimos de freqüência – 11% no século XVIII e 09% no século XIX. Observem-se
algumas ocorrências de Senhor apresentadas de (20) a (24).
(20) “Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor Recebi a ultima Carta de Vossa Excelência sem que nella Vossa
Excelência mefizese menção deoutras minhas que tive ahonra dedirigir a Vossa Excelência (...)”
(Carta oficial (01). Joaquim Alves Meneses. RJ, 09.05.1768.)
(21) “MeuqueridoFilho, e Senhor domeuCoração; Grande hé aconsolação, que tenho com asboas novas que Você me dá
suas porem dêvodizer=lhe averdade (...)”
(Carta não-oficial (02). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.)
(22) “Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor Sendoprezente nezteSenado O officio derigidopor Vossa Excelência ao
Dezembargador Juis deFora Presidente com datta de 3 do Corrente para Omesmo Senado proceder ahuma
novademarcação do termo dezta Cidade (...)”
(Carta oficial (02). Dom Fernando José de Portugal. RJ, 15.10.1808.)
(23) “Illustríssimo e Excelentíssimo Senhor Conselheiro José Martiniano d’Alencar Tenho presente a sua carta de 5 de
Julho por findo [espaço] Parece-me ella annunciar que o clima de sua provincia natal lhe vae restaurando as perdidas
forças, o que muito me alegra. (...)”
(Carta oficial (15). Barão de Cotegipe. RJ, 20.08.1873.)
(24) “Illustríssimo eExcelentíssimo Senhor Conde dePalma Não possodeixar deCertificar a Vossa Excelência, dos meus
puros sentimentos, sendome necessario handar buscando noticias suas, edoquanto omeu Coração se achava Recentido;
(...)”
(Carta não-oficial (04). Joaquim José de Souza Lobato. RJ, 13.02.1811.)
Considerando que, segundo Santos Luz (1958), a fórmula de tratamento Senhor conviveu
desde o primeiro quartel do século XIV até o mesmo período do século XV, com Vós, sendo
que ambos foram substituídos, em fins do século XV, por fórmulas específicas para o
tratamento da nobreza portuguesa, constatou-se que tal forma de tratamento ainda perdura nos
séculos XVIII e XIX no Rio de Janeiro como estratégia, preferencialmente vocativa, que,
conforme Said Ali (1937:143), “é nada mais do que pronome de polidez em lugar do grosseiro e familiar
Tu.”
Conforme se observa na tabela 3, as fórmulas nominais de tratamento Vossa Senhoria e
Vossa Majestade foram identificadas apenas nas cartas oitocentistas.
No que diz respeito à Vossa Senhoria, verificou-se que, embora tal estratégia ocorra tanto
nas cartas oficiais, quanto nas não-oficiais, se trata do recurso mais recorrente em textos de
menor grau de formalismo – 36 ocorrências – 32% dos dados que se distribuem por seis cartas
não-oficiais, conforme se observa de (25) a (30).
(25) “(...)Depois de ter escrito a Vossa Senhoria duas Cartas nesta occazião, faço esta para o importunar, pedindo lhe
queira remeterme com abrevidade possivel as encomendas constantes da Relação inclusa, cuja importancia será entregue
apessoa que Vossa Senhoria para este fim authorizar nestaCidade, ou irá emLetra para Lisboa na forma que me
avizar. (...)”
(Carta não-oficial (01). D. Fernando Joze de Portugal RJ, 16.04.1803.)
(26) “(...) Estimarei muito que Vossa Senhoria a ache digna de ser guarda nessa Academia, e ter occazião de
occuparme no seu serviço (...)”
(Carta não-oficial (07). Bernardo Teixeira Coutinho Alvarez de Carvalho. RJ, 11.07.0815.)
(27) “(...) A outra cartinha he para a Cunhada de Bonifacio em Respeito a que me escreveo, e como mefallava em Vossa
Senhoria e não sei outro modo de lha fazer Receber, e Vossa Senhoria sabera onde ella mora ou ella aparecera, (...)”
(Carta não-oficial (08). Inocêncio A. das Neves. RJ, 08.05.1816.)
(28) “(...) Bem persuadido dafranqueza, com que Vossa Senhoria me prometteo seu valimento eprotecção em razão da
amizade com oSenhor Coronel Martin Francisco certificando-me ainda na ultima noite, emque tive ahonra de receber as
suas ordens; que sepor ventura eu achasse algum obstáculo, ou dilação naminha pertenção, não tivesse duvida em
partecipar aVossa Senhoria que mefaria obeneficio de escrever ameufavor para aCorte(...)”
(Carta não-oficial (09). João Crysostomo de Oliveira Salgado Brandão. RJ, 06.03.1820.)
(29)“(...) Meu amigo eSenhor [espaço] Em 3 de Julho passado tive a honra de escrever a Vossa Senhoria dando-lhe
parte da minha chegada a esta, o disgosto que tive em não encontrar a Vossa Senhoria em Casa quando fui procura-lo
para me despedir (...)”
(Carta não-oficial (10). João Ventura Rodrigues. RJ, 27.09.1822)
(30) “(...) com tudo posso assegurar aVossa Senhoria que mesmo havendo extreitas rellações entre nós, elle nunca me
falou em Vossa Senhoria em couza que podesse comprometer, confessamos sempre que lhe hera muito, e muito obrigado,
em vista do que custame a crér o que dicerão a Vossa Senhoria (...)”
(Carta não-oficial (11). João Ventura Rodriguez. RJ, 24.07.1832.)
As pouquíssimas ocorrências de Vossa Senhoria – 05 dados –, nas cartas oitocentistas oficiais,
deixaram-se evidenciar em somente uma única carta confeccionada pelo Visconde de Sepetiba para
o Conselheiro Manoel José Maria da Costa e Sá, enviando-lhe uma carta imperial, como pode se
verificar em (31) e (32).
(31) “(...) Cabendo-me a honra de levar á presença de Vossa Senhoria a inclusa Carta Imperial, pela qual Sua
Majestade o Imperador Houve por bem Conferir a’ Vossa Senhoria o Gráo de Official da Ordem da Roza(...)”
(Carta oficial (11). Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho. RJ, 13.01.1843.)
(32) “(...) como hum testemunho publico da Sua Imperial Magnanimidade, e consideração, que Lhe merecem os serviços
prestados por Vossa Senhoria a’ este Império do Brazil; eu me felicito de ser o primeiro a dar à Vossa Senhoria os
devidos parabens por tão valioza e merecida Graça Imperial; e aproveito a opportunidade para assegurar à Vossa
Senhoria dos sentimentos de minha estima e da attenção (...)”
(Carta oficial (11). Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho. RJ, 13.01.1843.)
Ainda que tal forma nominal de tratamento tenha sido instituída como estratégia
específica para o clero e para autoridades do império português, na sociedade portuguesa do século
XV, conforme Cintra (1972), observou-se a recorrência de Vossa Senhoria em cartas não-oficiais
do século XIX. Além disso, acrescente-se o fato de que, segundo Nascentes (1950), Vossa
Senhoria foi determinada como estratégia de tratamento cortês entre oficiais do Exército e da
Armada, através de decreto, em 1861, generalizando-se com a República Brasileira entre os
cidadãos. No entanto, na amostra oitocentista em análise, observa-se que Vossa Senhoria, em
concorrência com Vossa Mercê, se dissemina com maior índice percentual nas cartas não-oficiais,
o que já a evidencia como recurso produtivo em textos dotados de um menor grau de
cerimônia.
É interessante comentar a intercambialidade das fórmulas Vossa Mercê e Vossa Senhoria
expressas no seguinte trecho de um texto publicado pela imprensa carioca na 1a metade do
século XIX: “O pião sobre a vizão do qual o rico metal não |[exer]cia pouca influencia, (...) não | se pôde
conter, e exclamou - << V.m., quero dizer, | V. S. está muito bom em demasia, esta cousinha | não merece
dois vintens; os sertões estão cheios disto. (...)” Nesse excerto da Revista O Beija Flor27, observe-se que
o redator deixa transparecer que Vossa Mercê não é uma estratégia adequada à situação
comunicativa em questão por estar perdendo o caráter de polidez com que foi idealizada.
27
BARBOSA, Afranio Gonçalves. (Editor.). Revista O Beija Flor. Rio de Janeiro: 1830. Disponível na Seção de Obras
Raras da BN-RJ sob a seguinte indicação: PR-SOR 0083-1.
Vossa Senhoria, por sua vez, parece assumir esse caráter cortês, resguardando o valor de
estratégia de tratamento indicada para as situações de formalidade.
A partir da análise da tabela 3 com as formas nominais de tratamento que se mostraram
freqüentes nos corpora desta investigação, constata-se que Vossa Excelência e Vossa Senhoria foram
concebidas, inicialmente, como estratégias formais de tratamento para com a realeza
portuguesa. Porém, depreende-se que tanto Vossa Excelência quanto Vossa Senhoria têm a sua
freqüência de uso ampliada em textos cujo grau de formalismo é menor. Observou-se que,
dentre essas duas formas de tratamento, Vossa Senhoria parece estar em um estágio mais
avançado de desgaste semântico sofrido por ambas as formas tratamentais.
No que se refere à maior diversidade de formas nominais de tratamento ocorridas no
século XIX, ressalte-se que a presença de Vossa Majestade pode estar condicionada ao fato de se
ter, aleatoriamente, incluído na amostra uma única carta destinada à realeza imperial
portuguesa. As seis únicas ocorrências de Vossa Majestade – 09% dos dados – somente se
deixaram evidenciar em uma única carta remetida pelo decano da Real Academia – Monsenhor
Joaquim Nóbrega Coió d’ Aboim – para Sua Majestade Real, como mostram as ocorrências de (33)
a (38).
(33) “Aos Augustos Pés de Vossa Magestade seprosta Joaquim da Nóbrega Caó’ d’ Aboim Prelado Patriarchal,
Deão daSua Real Capela Fluminense, pedindo primeiro submisso, e Reverente avenia e faculdadeparaofazer.”
(Carta oficial (07). Joaquim Nóbrega Caó d’ Aboim. RJ, 03.01.1819.)
(34) “(...) porque Vossa Magestade, foi servido approvar e Confirmar estes Estatutos, dizendo nofim dele = ibi =
Hei por bem approvar, e Confirmar estes Estatutos, paraque tenhão inviolável, einteira observancia (...)”
(Carta oficial (07). Joaquim Nóbrega Caó d’ Aboim. RJ, 03.01.1819.)
(35) “(...) Ecomo eu não vi, nem ouvi falar no Real Consenso, eConselho de Vossa Magestade; antes pelo contrario
vi violada, e alterada asua observância contra as Reaes ordens Constantes do Alvará, mandei proceder á nova eleição
dePrioste, (...)”
(Carta oficial (07). Joaquim Nóbrega Caó d’ Aboim. RJ, 03.01.1819.)
(36) “(...) rogo a Vossa Magestade se Digne confirmar esta eleição, athe para evitar aenfadonha delonga, que haverá
noPagamento daCapela; evitando assim taobem orisco de affectadas intelligencias”
(Carta oficial (07). Joaquim Nóbrega Caó d’ Aboim. RJ, 03.01.1819.)
(37)
(...)”
“(...) Vossa Magestade mandará oquefôr servido; que obedecer-lhe he, foi, eserá sempre omeo prazer, egloria
(Carta oficial (07). Joaquim Nóbrega Caó d’ Aboim. RJ, 03.01.1819.)
(38) “(...) Deos nos guarde edefenda sempre aPrecioza vidade Vossa Magestade pelos annos doz meos, e Comuns
dezejos.”
(Carta oficial (07). Joaquim Nóbrega Caó d’ Aboim. RJ, 03.01.1819.)
Mesmo que tenham sido localizados poucos dados, Vossa Majestade, aparentemente, se
constitui como a única forma de tratamento existente nos corpora que mantém o valor original
instituído nas Leis de Cortesia de Felipe I, segundo Cintra (1972), pois permanece sendo
utilizado nas cartas para fazer referência, única e exclusivamente, ao rei e à rainha da monarquia
portuguesa.
No que se refere às formas pronominais levantadas nos corpora, identificou-se um número
irrisório de dados, em função do teor impessoal das cartas não-oficiais que constituem a
amostra. O pronome Tu se manifesta tanto no século XVIII, quanto no século XIX, em cartas
não-oficiais. A única ocorrência de Tu, em uma carta oficial, como se observa em (39),
apresenta-se como mais uma evidência da mistura de pronomes. Confunde-se a forma nominal de
tratamento Vossa Excelência com o pronome pessoal – Tu –, já que Vossa Excelência, apesar de
fazer referência à 2a pessoa do discurso, estabelece relação de concordância com a 3a pessoa
gramatical.
(39) “(...) ese Vossa Excelência lheescrever sejão cartas que [aspirão] ver osenhor Marques por que cazo elle tenha sahido
podeos abrir o d.o S.r tambem mediga Vossa Excelência se lhas has de Remeter para Lisboa aquellas que Vossa
Excelência for servido mandar mas de baixo deoutro sobreescrito (...)”
(Carta oficial (06). Raimundo José de Sousa. RJ, 26.03.1773.)
No século XVIII, as 11 ocorrências de Tu foram identificadas em duas cartas nãooficiais escritas pelo Marquês do Lavradio para o seu irmão, Conde de São Vicente. No século XIX,
há ocorrências de Tu em três cartas pessoais: cartas trocadas entre os amigos J. F. da C.
Miranda e o Senador José Martiniano de Alencar, entre os irmãos Martin Francisco Ribeiro de Andrada e
Silva e José Bonifácio de Andrada e Silva e entre Romualdo Antonio Franco de Sá e Felipe, referendando
o caráter de informalidade que Tu deixa transparecer em cartas não-oficiais – cartas com um
menor grau de formalidade, como se observa de (40) a (44).
(40) “(...) Eu tenho sido tam[exten]ço nesta minha Carta, porque quero, que tudo quanto oque digo aeste Respeito, o
Repitas daminha parte aSua Excelência, aquem eu pella Nau deGuerra escreverei com aRemeça dequesepoder ter
cobrado. (...)”
(Carta não-oficial (01). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.)
(41) “(...) Agoraqueroquemedes boas novas tuas, edetoda atuaExcelentíssima Família, aquem peçome Recomendez com
o mayor Respeito (...)”
(Carta não-oficial (04). Marquês do Lavradio. RJ, 23.12.1770.)
(42) “(...) Tu sabes, que, alem de teu irmão, sou realmente teu amigo, e portanto consternei-me em demasia, pensando no
que terás sofrido (...)”
(Carta não-oficial (03). Martin Francisco Ribeiro de Andrada e Silva. RJ, 16.01.1810.)
(43) “(...) Já cansado de esperar noticias dessa foi a 27 deste finante mez que tive o gosto de receber a sua prezada carta
de 8 de Maio deste anno, em que me das noticias, de que tem havido depois da sahida do sucupira (...)”
(Carta não-oficial (12). J. F. da C. Miranda. RJ, 30.07.1835.)
(44) “(...) Acabo de receber uma carta tua, na qual, como nas outras, te mostras muito amigo. Não tens razão, meu
Felipe.(...)”
(Carta não-oficial (15). Romualdo Antônio Franco de Sá. RJ, 2[6].12.1858.)
A presença de Tu nas cartas não-oficiais dos séculos XVIII e XIX reitera o caráter de
informalidade atribuído a tal estratégia pronomimal em língua portuguesa, segundo Said Ali
(1937, 2001), Basto (1932), Luft (1957), Cintra (1972), Biderman (1974), Wilhelm (1979),
Domingos (2001), Soto (2001).
Atente-se para o fato de que as 06 únicas ocorrências de Vós foram levantadas em duas
únicas cartas da amostra, produzidas pelo mesmo autor – Infante Almirante General Pedro Carlos –,
que, por sua vez, as remete para o Conde da Ponte, em 1808, versando sobre o desarranjo do
arsenal da Bahia e para o Conde dos Arcos, em 1812, tratando dos tipos de embarcações
recomendáveis para a defesa da Bahia, como pode ser observado de (45) a (48).
(45) “(...) reconheço, eagradeço ovosso zelo, esperando que das vossas boas qualidades deis cadavez maiores provas perante
a MuitoAugusta Pessoa do Príncipe Regente (...)”
(Carta Oficial (01). Infante Almirante General Pedro Carlos. RJ, 12.08.1808.)
(46) “(...) em conceqüência do que me derijo avos mesmo, para que com omaior segredo possivel façaes devassar emforma
pelo tocante às verdadeiras cauzas, que tem produzido o dezarranjo do Arcenal da Bahia (...)”
(Carta Oficial (01). Infante Almirante General Pedro Carlos. RJ, 12.08.1808.)
(47) “(...) epellas explicações emque entrais na vossa carta, vejo que estais bem instruido na materia, escolhendo
justamente o meio de tirar algum casual partido d’aquella especie de Embarcações sem vos expôr a huma despeza
constante ...”
(Carta Oficial (04). Infante Almirante General Pedro Carlos. RJ, 24.04.1812.)
(48) “(...) Muito folguei que se salva-se a Equipagem do Barco Triunfo do Sul, que me participais na vossa carta de
desessete de Fevereiro”
(Carta Oficial (04). Infante Almirante General Pedro Carlos. RJ, 24.04.1812.)
Considerando que, segundo Cintra (1972), a forma pronominal Vós já assumia, no século
XVIII, caráter arcaizante, constata-se que essas ocorrências de Vós redigidas por um mesmo
remetente parecem evidenciar um traço idiossincrático presente nessas duas cartas oficiais escritas
em nome do Infante Almirante General Pedro Carlos. É inviável conjecturar a hipótese de que o vós,
em inícios do século XIX, esteja ressurgindo como uma usual estratégia de referência à 2 a
pessoa do discurso, uma vez que o baixíssimo número de dados não confere sustentabilidade a
essa hipótese.
No seguinte trecho de uma narrativa sobre a Vida do Padre Belchior de Pontes28,
confirma-se o tom arcaizante e não cortês de vós por ser uma forma utilizada para os escravos:
“Eraõ os complices mais frequentes destes delictos os Paulistas; porque como viviaõ abastados de Indios, que
tinhaõ trazido do Certaõ, e de grande numero de escravos, que com o ouro tinhaõ comprado, se fizeraõ
notavelmente poderosos, chegando alguns a tanta soberania, que fallando com os forasteiros os tratavaõ por vós,
como se fossem escravos (...)”
28
FONSECA, Manoel. VIDA do Veneravel Padre BELCHIOR de Pontes, da Companhia de Jesus da Provincia do Brasil. Lisboa:
Officina de Francisco da Silva, 1752, p. 203-204.
5.2 As relações de Poder e de Solidariedade na sociedade carioca dos séculos XVIII e
XIX.
Segundo Callou (2002:282), “As histórias das línguas, como objetos disponíveis ou criados pelos
lingüistas, são, segundo Lass (1997:5), como todas as histórias, mitos. Mito no sentido de, por um lado,
haver registros de fatos em documentos das várias fases da nossa história, conseqüentemente, da língua
que supostamente refletem, mas, por outro, de não haver condições de saber exatamente o que
significam a não ser indiretamente, por meio de uma interpretação.”
Ponderando sobre as
considerações tecidas por Lass (apud Callou, 2002) acerca do processo de reconstituição da história das
línguas humanas, justifica-se que, quando se tenta interpretar as relações sociais supostamente
estabelecidas entre remetente e destinatário das cartas em análise, com base na Teoria do Poder e da
Solidariedade, se esteja fornecendo indícios para a reconstituição da história da língua portuguesa
disseminada por terras d’aquém mar.
Conforme anunciado nos pressupostos teóricos, adotou-se a proposta de Brown e Gilman (1960)
sobre a Teoria do Poder e Solidariedade. Pretende-se identificar como certos traços lingüísticos deixam
transparecer se as relações sociais evidenciam opressão ou solidariedade. Adotou-se a tipologia pensada
por Lopes (2001) a partir das seguintes relações sociais: 1) de inferior para superior (assimétrica
ascendente); 2) de superior para inferior (assimétrica descendente); 3) entre membros de um mesmo grupo
social – classes altas – (simétricas). A tabela 4 apresenta o confronto entre os tipos de relações sociais
com as freqüências de uso das formas nominais e pronominais de tratamento recorrentes nas cartas
setecentistas e oitocentistas em análise.
TIPOS DE RELAÇÕES SOCIAIS PERCEPTÍVEIS EM CARTAS
MANUSCRITAS NO RIO DE JANEIRO COLONIAL (SÉCULO XVIII)
TIPOS DE
RELAÇÕES
SOCIAIS
FORMAS PRONOMINAIS E
NOMINAIS DE TRATAMENTO
V. EX.
A
S
S
I
M
E
T
R
RELAÇÕES
SOCIAIS DE
INFERIOR PARA
SUPERIOR
RELAÇÕES
SOCIAIS DE
SUPERIOR PARA
INFERIOR
V. M
S.
138/195
(71%)
-
-
TOTAIS
VOCÊ
TU
11/34
(32%)
-
01/12
(08%)
150/371
(40%)
18/49
(37%)
12/34
(35%)
76/81
(94%)
-
106/371
(29%)
57/195
(29%)
31/49
(63%)
12/34
(32%)
05/81
(06%)
11/12
(92%)
115/371
(31%)
195/371
(53%)
49/371
(13%)
34/371
(09%)
81/371
(22%)
12/371
(03%)
371/371
(100%)
A
CE
R
256/371
(69%)
I
A
s
I
M
E
T
R
I
RELAÇÕES
SOCIAIS ENTRE
MEMBROS DE
UM MESMO
GRUPO SOCIAL
(CLASSE ALTA)
A
TOTAIS
TIPOS DE RELAÇÕES SOCIAIS PERCEPTÍVEIS EM CARTAS
MANUSCRITAS NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL (SÉCULO XIX)
TIPOS DE
RELAÇÕES
SOCIAIS
FORMAS PRONOMINAIS E
NOMINAIS DE TRATAMENTO
V. EX.
RELAÇÕES
SOCIAIS DE
INFERIOR
PARA
SUPERIOR
(ASSIMETRIA)
RELAÇÕES SOCIAIS
ENTRE MEMBROS
DE UM MESMO
GRUPO SOCIAL
(CLASSE ALTA)
(SIMETRIA)
TOTAIS
A
V. M
CE
S.
V. S.
11/23
(48%)
22/41
(54%)
R
A
V. MAJ.
TOTAIS
VOCÊ
TU
VÓS
06/06
(100%)
-
-
-
57/180
(32%)
E
18/46
(39%)
-
28/46
(61%)
27/27
(100%)
12/23
(52%)
19/41
(46%)
-
18/18
(100%)
13/13
(100%)
06/06
(100%)
123/180
(68%)
46/180
(26%)
27/180
(15%)
23/180
(13%)
41/180
(22%)
06/180
(03%)
18/180
(10%)
13/180
(07%)
06/180
(07%)
180/180
(100%)
Rumeu (2001) discute que “o exercício do poder conduz a uma assimetria nas relações interpessoais
que, por sua vez, acarreta uma assimetria no tratamento entre os falantes.” A partir da análise da tabela 4,
verifica-se uma mudança de comportamento quanto ao emprego de Vossa Excelência do século
XVIII para o XIX. No século XVIII, observou-se maior produtividade de uso nas relações
sociais de inferior para superior (assimétrica ascendente) com 138 ocorrências – 71% –, já no século
XIX, houve predomínio do emprego de Vossa Excelência nas relações sociais entre membros de um
mesmo grupo social (simétrica) com 28 ocorrências – 61%.
No século XVIII, a maior parte das ocorrências de Vossa Mercê (31 dados - 63%) foi
identificada em duas cartas não-oficiais trocadas entre pessoas pertencentes a um mesmo grupo
social (relações sociais simétricas), como se obseva de (01) a (04).
(01) “(...) Tenho Recebido trezCartazde Vossamercê depois dasuapartida, enão me tendo sido possivel escrever-lhe; tenho
pedido aos meos Ajudantes das ordéns, eatodas aspessoaz daminha familia hajão desegurar a Vossa mercê aminha
amizade eoquanto tenhosentido queVossa mercê tenha tido tantoz detrimentoz nasua Saude. (...)”
(Carta não-oficial do Marquês do Lavradio ao Intendente da Vila de São Félix, Antônio José de
Miranda (05). RJ, 12.12.1772.)
(02) “(...) Vossamercê temsempre muitoCerta aminha vontade para emtudolhedargosto. (...)”
(Carta não-oficial do Marquês do Lavradio ao Intendente da da Vila de São Félix, Antônio José de
Miranda (05). RJ, 12.12.1772.)
(03) “(...) Eusou avossamercê devedor devarias respostas, talvez confiando dofavor que Vossa mercê mefaz, edeter
procurado mostrar lhe quanto metem sido possivel aminha sincera amizade eque por estes motivoz Vossa mercê houvese
dediscupar esta minha falta depromptualidade (...)”
(Carta não-oficial do Marquês do Lavradio a João Henrique de Souza (08). RJ, 26.03.1773.)
(04) “(...) Ao Conselheiro, eThezoureiro Mor Joaquim Ignácio da Cruz escrevo largamente sobre esta matéria, oque
creyo elle comonicará a Vossa mercê (...)”
(Carta não-oficial do Marquês do Lavradio a João Henrique de Souza (08). RJ, 26.03.1773.)
As outras 18 ocorrências de Vossa Mercê se deram em um tipo de relação assimétrica e
foram expressas através de uma única carta oficial redigida pelo Marquês do Lavradio para o
capitão engenheiro Francisco João Roscio, determinando-lhe ordens em relação às obras no
Continente do Rio Grande, como é possível observar em (05) e (06).
(05) “ComaChegada daCurvetta Conceição vinda daIlha deSanta Catharina Receby aCarta deVossa mercê
dandomeaCerteza deterem feito felismente asua viagem, sem embargo deSeteremdemorado nélla mais algunz dias dos que
aquî Sesopunhão (...)”
(Carta oficial do Marquês do Lavradio para Francisco João Roscio (07). RJ, 15.02.1774.)
(06) “Agrande Confiança, que faço doprestimo de Vossa mercê, omuito que me esperanceyo que osSeos trabalhoz Sejão
demuita utilidade aoEstado, ogrande perigo, emque Considero prezentemente oContinente do Rio Grande fazendose aly
prezentemente Summamente precizo hum Engenheiro habil, quetenha zello peloServiço, epela Patria, mefazem
indispensavel haja de ordenar a Vossa mercê, pase emediatamente aquelleContinente para nélle fazer dirigir as obraz
(...)”
(Carta oficial do Marquês do Lavradio para Francisco João Roscio (07). RJ, 15.02.1774.)
O fato de Vossa Mercê apresentar-se para estabelecer assimetria descendente pode sugerir a
perda do caráter de cortesia peculiar ao seu emprego, segundo Santos Luz (1958), Cintra (1972).
Constata-se não se tratar mais de uma forma usada, única e exclusivamente, para evocar o
monarca português, como foi estabelecida, inicialmente, conforme as apreciações de Santos
Luz, 1958; Cintra, 1972; Said Ali, 2001. No que diz respeito à contraparte gramaticalizada de
Vossa Mercê – Você –, verifica-se maior produtividade de uso dessa estratégia de referência à 2a
pessoa do discurso para estabelecimento de assimetria descendente (94%). Esse tipo de
relação assimétrica, a partir da qual Você se mostrou com maior aplicabilidade, deixou-se
evidenciar nas cartas particulares trocadas entre pai e filho como, por exemplo, as cartas de
amizade trocadas entre o Marquês do Lavradio e seus filhos – Conde de Tarouca e o Conde de Vila
Verde –, conforme se observa de (07) a (09).
(07) “MeuqueridoFilho, e Senhor domeuCoração; Grande hé aconsolação, que tenho com asboas novas que Você me dá
suas porem dêvodizer=lhe averdade, eu menão Livro de cuidado, com quanto Você não vive pormais mezes
auzentedeLixboa; (...)”
(Carta não-oficial do Marquês do Lavradio para o seu filho, Conde de Tarouca (02). RJ, 17.11.1770.)
(08) “Meu Filho eSenhor domeucoração: Parece que depropozito se mejuntão os negocios demayor trabalho nas ocazioenz,
emque dezejo escrever aVocê Largamente, para que eu lhenão possa escrever tão extenço como dezejava: (...)”
(Carta não-oficial do Marquês do Lavradio para o seu filho, Conde de Vila Verde (15). RJ, 06.05.1774.)
(09) “Meu Filho e Senhor domeuCoração, ogrande gosto, Comque recebo as novaz de Você faz comque Você receba
agora esta carta minha, (...)”
(Carta não-oficial do Marquês do Lavradio para o seu filho, Conde de Tarouca (14). RJ, 06.05.1774.)
A forma pronominal Tu é praticamente categórica29 (92% - 11/12) em cartas particulares
– tipo de texto dotado de menor grau de cerimônia –, evidenciando maior proximidade entre
remetente e destinatário da carta.
Na amostra oitocentista, observa-se a presença de Vossa Mercê, Você e Tu somente nas
cartas não-oficiais em que se identificam relações sociais entre membros de um mesmo grupo social –
classe alta. O fato de Vossa Mercê mostrar-se freqüente nesse tipo de relação solidária, como se
constata em (10) e (11), evidencia o acelerado processo de dessemantização sofrido por tal forma
na passagem do século XVIII para o século XIX – 63% para 100% dos dados,
respectivamente.
(10) “(...) Tive ahonra de beijar a Mao aSua Alteza Real, no Nome deVossaMercê, que aocazião de lha beijar se
mostrou não só agradecido, como bem lembrado do quanto estimava. (...)”
(Carta não-oficial de Joaquim José de Azevedo para Joaquim José da Costa e Silva (02). RJ,
16.08.1809.)
(11) “(...) Acresce mais outra duvida com que agora se lembrou o dito Izedoro Alves que diz que não deve pagar o risco
por que vossa mercê motivou oficar em Angola aquella quantia embargada, equepor semelhante razão não seguio o
destino quedeclarava a Letra, e que não pode haver direito que o obrigue a pagar o que não deve de trinta por Cento (...)”
(Carta não-oficial de Jozé Luis Alves a Antônio Esteves Costa (06). RJ, 06.07.1811.)
Você e Tu assumem, nas cartas não-oficiais mantidas entre membros de um mesmo grupo
social, um aumento perceptível nas suas freqüências de uso – de 06% para 100% (Você) e de
92% para 100% (Tu) na transição do século XVIII para o século XIX. Essa mudança de
comportamento legitima que se considere tais formas como estratégias de referência à 2 a pessoa
do discurso, em relações sociais movidas pela Solidariedade, conforme se observa de (12) a (15).
(12) “(...) Na carta, que ultimamente lhe escrevi participei o arbitrio que tomei de exceder as suas ordens na encomenda
da bomba, que você me havia encomendado para colocar nhum Poço Publico, que mandara construir, e de prezente
asseguro-lhe que esta obra está quasi concluida a medida do meo dezejo (...)”
(Carta não-oficial de J. F. da C. Miranda ao senador José Martiniano de Alencar (14). RJ, 28.03.1837.)
(13) “(...) Deos queira não haja novidades, e que tanto você e sua família como todos os nossos amigos estejão em paz
com saúde efelicidade (...)”
(Carta não-oficial de J. F. da C. Miranda para o senador José Martiniano de Alencar (13). RJ,
18.02.1836.)
29
Considerou-se como categórica, pois a única ocorrência da forma pronominal Tu numa relação social de inferior para superior apresentou-se
em co-referência com a forma nominal de tratamento Vossa Excelência conforme já apresentado na tabela 1 e exemplificado em (41) –
página 121 deste texto.
(14) “(...) Se esta quantia te não chegar para os teos arranjos, e passagem, julgo, não será difficultoso pagaresapassagem
no fim de viagem, quero dizer, nesta Cidade, onde has de achar ordem para tudo.(...)”
(Carta não-oficial de Martin Francisco Ribeiro de Andrada e Silva para José Bonifácio de Andrada e
Silva (03). RJ, 16.01.1810.)
(15) “(...) Estimei muito saber que fosses approvado plenamente Embarços de saúde [↓a] [ ↑mais] ainda uma vez me
fizeram interromper os meus estudos preparatórios. (...)”
(Carta não-oficial de Romualdo Antônio Franco de Sá para o seu irmão Felipe Franco de Sá. RJ,
2[6].12.1858.)
A forma de tratamento respeitoso Senhor mostra-se como a única estratégia recorrente em
todos os tipos de relações sociais nos corpora em análise com índices de freqüência muito
próximos entre si. Tal comportamento, como observado anteriormente, deve-se ao fato de essa
estratégia se constituir recurso específico nos vocativos que introduzem as missivas.
As formas nominais de tratamento Vossa Senhoria e Vossa Majestade, como mencionado
anteriormente, somente foram identificadas no século XIX. A forma Vossa Senhoria apresentase com maior freqüência de uso nas relações assimétricas ascendentes com 22 ocorrências – 54% –.
Apesar disso, tal estratégia de tratamento também é empregada entre membros de um mesmo
grupo social (classe alta) – 19 ocorrências (46%). Vossa Majestade, por sua vez, se constitui
como um recurso específico nas cartas direcionadas ao rei.
Uma vez que se considere – parafraseando Bakhtin e Voloshinov (1973) – a língua como
o sensor das transformações sociais, há de se atentar para as repercussões desse rearranjo social
nas relações interpessoais, e conseqüentemente, nas formas de tratamento.
Mesmo que
preliminarmente, em conseqüência do baixo número de dados, é possível tecer algumas
considerações acerca das co-relações estabelecidas entre as freqüências de uso das formas de
tratamento de base nominal e pronominal e o tipo de relação social que esses usos lingüísticos
refletem. O controle do papel social assumido entre remetentes e destinatários das cartas
oficiais e não-oficiais produzidas no século XVIII evidenciou uma distribuição em três níveis:
de inferior para superior (40% - 150/371), de superior para inferior (29% - 106/371) e entre membros
de um mesmo grupo social – classe alta – (31% - 115/371). Considerando que os dois primeiros
tipos correspondem a relações assimétricas (ascendente e descendente), perfaz-se um total de 256
ocorrências (69%), o que permite supor-se, através das cartas setecentistas em análise, a
configuração de uma organização social orientada pela semântica do Poder.
Nas cartas oitocentistas em análise, por sua vez, foram identificados apenas dois tipos de
relações interpessoais: de inferior para superior – assimétrica ascendente – e entre membros de um
mesmo grupo social (classe alta) – simétrica. Pelo fato de as relações simétricas constituírem-se
com o maior índice percentual – 68% – em comparação à freqüência das relações assimétricas –
32% – vislumbra-se a possibilidade de se pensar que as missivas do século XIX parecem
denunciar uma organização social calcada na Solidariedade. A reflexão acerca da possibilidade de
uma orientação mais solidária, na passagem do século XVIII para o XIX, parece se mostrar em
conformidade com o pensamento de Biderman (1972) e com o de Oliveira e Silva (1974) que
também previram estar a sociedade brasileira se encaminhando para relações sociais movidas
pela Solidariedade.
5.3 Reflexos da mudança categorial ‘Vossa Mercê’ > ‘Você’ no português à luz dos princípios de
gramaticalização propostos por Hopper.
Pretende-se depreender, neste sub-item, com base na quantificação dos dados, o estágio
da pronominalização assumido por Vossa Mercê (transition problem, cf. Weinreich et alii, 1968), a
partir dos princípios de gramaticalização elaborados por Hopper (1991), nos corpora em análise.
Apresentar-se-ão os resultados relativos a Vossa Mercê, Você, Tu e Vós em função dos seguintes
grupos de fatores lingüísticos: tipo de carta, funções sintáticas, expressão do sujeito, estrutura
do sintagma complementizador, co-referenciabilidade e posição do sujeito.
Naro e Braga (2000) tecem o seguinte comentário acerca dos princípios de
gramaticalização idealizados por Hopper (1991): o autor, dada sua concepção de gramática emergente
(1987), está interessado nas fronteiras frouxas e difusas entre gramática e léxico, vale dizer, no fluxo
intermitente entre uma e outra. Daí sua preocupação com um conjunto de princípios capazes de detectar a
transformação incipiente de um item qualquer. Assim sendo, busca-se reinterpretar o processo de
pronominalização de Vossa Mercê > Você à luz dos cinco princípios de gramaticalização
propostos por Hopper (1991) – layering, divergência, especialização, persistência e decategorização,
discutidos com base na quantificação dos dados de Vossa Mercê, Você, Vós e Tu extraídos das
cartas.
O primeiro princípio faz referência ao fato de que, em processos de gramaticalização, o
velho e o novo convivem em um mesmo domínio funcional – layering (estratificação). As camadas
mais antigas não são necessariamente descartadas, mas podem coexistir e interagir com as
recentes. A convivência simultânea de camadas/variantes não sugere a imediata eliminação das
antigas no uso lingüístico, em virtude do surgimento de novas camadas, mas evidencia a coexistência de formas lingüísticas alternantes a atuarem num mesmo campo funcional. A tabela
5 apresenta o resultado da concorrência entre as estratégias de referência à 2a pessoa do
discurso controladas nas cartas setecentistas e oitocentistas.
DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE ‘VOSSA MERCÊ’, ‘VOCÊ’ , ‘TU’ E ‘VÓS’
EM CARTAS MANUSCRITAS NO RIO DE JANEIRO COLONIAL E IMPERIAL
FORMAS NOMINAIS
E PRONOMINAIS
OFICIAIS
OCO.
VOSSA MERCÊ
VOCÊ
TU
VÓS
TOTAL
SÉCULO XIX
SÉCULO XVIII
CARTAS
CARTAS
%
CARTAS
NÃO-OFICIAIS
OCO.
%
18/19
95%
31/123
25%
81/123
66%
01/19
07%
11/123
09%
19/206
123/206
(09%)
(60%)
142/206
(69%)
OFICIAIS
OCO.
TOTAL
CARTAS
%
NÃO-OFICIAIS
OCO.
%
01/07
14%
26/57
45%
18/57
32%
13/57
23%
06/07
86%
07/206
57/206
(03%)
(28%)
64/206
(31%)
OCO.
%
76/206
99/206
25/206
06/206
37%
48%
12%
03%
206
(100%)
Tabela
5: Distribuição dos dados de Vossa Mercê, Você, Tu e Vós em cartas manuscritas no Rio de
Janeiro colonial e imperial.
Constata-se, a partir da análise da tabela 5, que Você com 99 ocorrências (48%), forma
resultante do processo de gramaticalização de Vossa Mercê, convive e coexiste com o legítimo
pronome de 2a pessoa – Tu com 25 ocorrências (12%). A transformação, paulatina e gradual,
de um item lexical – Vossa Mercê – em um item gramatical – Você – se dá sem que seja
eliminado do sistema da língua portuguesa o pronome de 2a pessoa do discurso – Tu –, como
se observa de (01) a (04), nas cartas não-oficiais dos séculos XVIII e XIX.
(01) “(...) Grande he aconsolação, que tenho com asboas novas que Você me dá suas porem dêvo dizer=lhe averdade, eu
menão Livro de cuidado, com quanto Você não vive pormais mezes auzentedeLixboa (...)”
(Carta não-oficial (02). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.)
(02) “(...) Agoraqueroquemedes boas novas tuas, edetoda atuaExcelentíssima Família, aquém peçome Recomendez com
o maior Respeito (...)”
(Carta não-oficial (04). Marquês do Lavradio. RJ, 23.12.1770)
(03) “(...) Não te demores em vir, foge para os braços de huă familia, que te ama: não [↑há] hum só membro della, que
não suspira pela tua vinda, este he o voto de todos nós, e podes crer-me, que he apropria verdade. (...)”
(Carta não-oficial (03). Martin Francisco Ribeiro de Andrada e Silva. RJ, 16.01.1810.)
(04) “Estimo muito que você e tudo quanto lhe pertence goze saude e todas as venturas que para mim apeteço.”
(Carta não-oficial (14). J. F. da C. Miranda. RJ, 28.03.1837.)
As formas de Você e Tu são estratégias em competição, pois ocorrem quase
exclusivamente nas cartas não-oficiais dos corpora em análise. Nas cartas setecentistas, as 81
ocorrências (66%) de Você se apresentam distribuídas em 09 cartas de amizade, trocadas entre o
Marquês do Lavradio e os seus filhos, Conde de Tarouca e Conde de Vila Verde e entre o Marquês do
Lavradio e seu irmão, Conde de São Vicente. Nas 09 correspondências pessoais em que foram
identificados os dados de Você, observa-se que, em 02 cartas redigidas pelo Marquês do Lavradio
para o seu irmão – Conde de São Vicente – há dados de Você(s) e de Tu num mesmo parágrafo
como se observa em (05) e (06). Tal convivência pode constituir indício para confirmação da
hipótese de que a gramaticalização se tenha dado no plural em substituição à forma Vós que,
por sua vez, se apresentou, nos corpora em análise, com índice percentual de 03%, ratificando,
assim, como afirma Cintra (1972), o seu desuso no português europeu do século XVIII.
(05) “(...) Como esta Carta poderá chegar, com tempo, ó deestares emSalvaterra, ó deteachares deSemana
eneçasoCazioens, pelo que vejo datuaCarta edoConde doPrado, lhesobejaaVocês tampoucotempo, Comoeujulgo dasCartas
queVocês daquelles Lugaresme escrevem, nãooquero Rogar inutilmente Obrigando-os aLer por mais instantes as minhas
impertinências, tu tens Sempre promtissima aminha vontade para em tudo eemtodaaparte teobedeçer comomayorgosto.
(...)”
(Carta não-oficial (03). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.)
(06) “(...) MeuIrmão eSenhor domeuCoração aindaque meachava desobrigado detedarodescomodo daContinuação
daminha ComRespondençia por estarem chegando continuamente Navios sem que Vocês selembrem; ó como parentes ou
Como Amigoz de que me acho neste continente, eque em toda aparte medevem omayor intreçe asnovas devocês com tudo
como este hé oprimeiro Navio que parte, depois que mechegou anotícia dapromoção doSenhor Cardeal, eeudezejo ser
sempre dos primeiroz que felicite pelo grande intereçe que medevetudoquehé felicidade detua Caza, devo guardar este meu
infado para outraoCazião, enesta só tedevo darosparabens daquela nomeação; eutambem os Recebo, eaindaque estou
tamLonge, também cá puzemoz as nosas Luminárias; [espaço] Agoraqueroquemedes boas novas tuas, edetoda
atuaExcelentíssima Família, aquem peçome Recomendez com o mayor Respeito (...)”
(Carta não-oficial (04). Marquês do Lavradio. RJ, 23.12.1770.)
A divergência se constitui como um outro princípio de gramaticalização, segundo Hopper
(1991), através do qual é possível detectar a permanência da forma original como elemento
autônomo ao lado da forma gramaticalizada. Em relação ao processo de pronominalização de
Vossa Mercê, observa-se que a estrutura fonológica do item lexical Mercê é preservada em vários
contextos, porém a forma nominal de tratamento (Vossa Mercê) se desgastou fonética e
semanticamente até originar o pronome (Vossa Mercê > Você). Nas cartas setecentistas e oitocentistas
em análise, a presença de Mercê ao lado de Vossa Mercê e de Você, atuando como um vocábulo
autônomo, aponta para o fato de que tais formas divergem, manifestando-se com um
comportamento mais lexical ou mais gramatical a depender do estágio de gramaticalização em
que estejam. Dentre as cinco ocorrências do item lexical Mercê, duas delas se dão numa única
carta oficial setecentista de J. B.e do Rio de Janeiro destinada a João Henrique Böhm para informar que o
Padre Luís de Medeiros Correa ainda não tinha chegado ao “Continente do Rio Grande”, como se
verifica em (07) e (08). Nas cartas oitocentistas oficiais, a única ocorrência do item lexical Mercê
se dá em uma missiva oficial redigida por José Bonifácio de Andrada e Silva através da qual o autor
concede o Hábito da Ordem de São Bento de Aviz a Joze Francisco de Andrada Almeida Bonjardim,
como se observa em (09). Já nas cartas oitocentistas não-oficiais, o vocábulo Mercê ocorre nas
correspondências redigidas por Inocêncio A. das Neves (carta 08) e por João Crysostomo de
Oliveira Salgado Brandão (carta 09) as quais versavam, por sua vez, sobre assuntos de ordem
pessoal, como se verifica em (10) e (11).
(07) “(...) Na occazião prezente não posso deixar de considerar a Vossa Excelência occupado do maior jubilo, e alegria
pelas Mercez das novas patentes, com que Sua Magestade foi servido premiar os serviços dos Officiaes que se distinguirão
nas occazioens de honra (...)”
(Carta oficial (09). J. Be. do RJ. RJ, 22.10.1776.)
(08) “(...) A proporção eu me encho de prazer, e consolação; e congratulandome com VossaExcelência lhe dou mil
parabens pela grande parte que lhe toca; pois que estas mesmas Mercez são evidentes demonstracoens que Sua Magestade
dá do merecimento de quem dirigio toda a acção (...)”
(Carta oficial (09). J. Be. do RJ. RJ, 22.10.1776.)
(09) “(...) Havendo Sua Alteza Real o Principe Regente feito Merce a Jozé Francisco de Andrade Almeida, Bonjardim,
Capitão da primeira Companhia do Corpo de Tropa de Linha de Província do Espírito Sancto, do Habito da Ordem de
São Bento de Aviz, por despacho de 13 de Maio do corrente; e não se lhe tendo ainda expedido os Despachos necessarios,
para receber, e professar na dita ordem: Há por bem conceder-lhe faculdade, para que por tempo de tres mezes possar
usar livremente da Insignia do Habito da Ordem de São Bento de Aviz (...)”
(Carta oficial (09). Jozê Bonifácio de Andrada e Silva. RJ, 21.06.1822.)
(10) “(...) A outra cartinha he para a Cunhada do Bonifacio em Respeito a que me escreveo, e como mefallava em Vossa
Senhoria e não sei outro modo de lha fazer Receber, e Vossa Senhoria sabera onde ella mora, ou ella aparecera, por isso
vou a pedir-lhe a mercê de lhe fazer ir amão a Carta. (...)”
(Carta não-oficial (08). Inocêncio A. das Neves. RJ, 08.05.1816.)
(11) “(...) Apezar doque, eu lhefiz ver as razoens emque estava demerecer esta graça, que [[tinha]] lugar, enão era
contraria adisciplina cannonica ávista do conssentimento epostulação do Vigário Collado e Postulação do meu bispo aSua
Magestade eque havião muitos exemplos de [i]guaes mercês. (...)”
(Carta não-oficial (09). João Crysostomo de Oliveira Salgado Brandão. RJ, 06.03.1820.)
O princípio da especialização remete ao estreitamento de escolhas sofridas pelas
construções gramaticais. A forma lingüística, em vias de gramaticalização, se torna obrigatória
em alguns contextos, sofrendo, por exemplo, restrições sintagmáticas. A hipótese que embasa
a análise de Vossa Mercê e Você a partir de suas respectivas funções sintáticas é a de que, à
medida que Vossa Mercê começa a se pronominalizar, passa a assumir a função sintática de
sujeito como é próprio dos pronomes pessoais tônicos.
DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE ‘VOSSA MERCÊ’ E ‘VOCÊ’
E
SUAS FUNÇÕES
SINTÁTICAS NAS CARTAS MANUSCRITAS NO
FUNÇÕES SINTÁTICAS
RIO DE JANEIRO COLONIAL (SÉC. XVIII)
VOSSA MERCÊ
VOCÊ
TOTAL
OCO
%
OCO
%
OCO
%
SUJEITO
OBJETO INDIRETO
ADJUNTO ADNOMINAL
COMPLEMENTO NOMINAL
31/49
13/49
04/49
01/49
63%
27%
08%
02%
45/81
26/81
07/81
03/81
56%
32%
09%
03%
76/130
39/130
11/130
04/130
57%
31%
09%
03%
TOTAL
49/130
37%
81/130
62%
130/130
100%
DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE ‘VOSSA MERCÊ’ E ‘VOCÊ’ E SUAS FUNÇÕES
SINTÁTICAS NAS CARTAS MANUSCRITAS NO
FUNÇÕES SINTÁTICAS
RIO DE JANEIRO IMPERIAL (SÉC. XIX)
VOSSA MERCÊ
VOCÊ
TOTAL
OCO
%
OCO
%
OCO
%
SUJEITO
OBJETO INDIRETO
OBJETO DIRETO
COMPLEMENTO NOMINAL
ADJUNTO ADNOMINAL
20/27
04/27
02/27
01/27
74%
15%
07%
04%
17/18
01/18
-
94%
06%
-
37/45
04/45
01/45
02/45
01/45
82%
09%
02%
04%
02%
TOTAL
27/45
60%
18/45
40%
45/45
100%
Tabela 6: Distribuição dos dados de Vossa Mercê e Você em relação às suas funções sintáticas nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial.
Ao analisar as ocorrências de Vossa Mercê e Você na tabela 6, verifica-se que a forma Você
assume, de um século para o outro, maior freqüência de uso no exercício da função sintática de
sujeito: 45 ocorrências – 56% – para o século XVIII e 17 ocorrências – 94% – para o século
XIX, conforme se verifica de (12) a (15). Embora os percentuais de Vossa Mercê aumentem na
passagem do século XVIII – 31 ocorrências (63%) – para o século XIX – 20 ocorrências (74%)
–, percebe-se maior estabilidade em termos de freqüência de uso. Ressalte-se que, nas cartas
setecentistas, as ocorrências de Vossa Mercê e Você, apesar de assumirem maior freqüência de uso
no exercício da função sintática de sujeito, apresentam-se regularmente distribuídas entre as
demais funções sintáticas – objeto direto, objeto indireto, complemento nominal e adjunto adnominal –, o
que as evidencia como formas de natureza muito próximas. Comportamento diferente é o
assumido por Você nas cartas oitocentistas, uma vez que 94% dos dados – 17 ocorrências – se
dão na função sintática de sujeito, comportamento sintático próprio das formas pronominais
pessoais. Além de exercer a função sintática de sujeito, a forma Você somente uma única vez
assume outro comportamento sintático: o papel sintático de objeto direto, como se observa em
(16). Acredita-se que, embora o baixo número de ocorrências restrinja a distribuição dos dados
pelas diversas funções, é possível evidenciar indícios de que, no século XIX, o Você parece
assumir comportamento sintático de forma pronominal pessoal nas cartas em análise.
(12) “(...) fazendo Vossamercê aomesmo tempo todaz as observaçoenz, que lheforem possiveiz para Se haver deformar
humMappa domesmoContinente mais Certo, eCom menos defeito, que osque athegora setemfeito. (...)”
(Carta oficial (07). Marquês do Lavradio. RJ, 15.02.1774.)
(13) “(...) Pelo meu avizo de 28 de Mayo deve vossa mercê mandar a original Letra de João Pereira de SouzaCaldas e
sem ella nada se pode fazer conforme o parecer do Letrado (...)”
(Carta não-oficial (06). José Luiz Alves. RJ, 06.07.1811.)
(14) “(...) Você desculpe o eu não ser mais extenço nesta ocazião, porem omesmo Conde mejustificarâ com o grande
trabalho, emque medeixa (...)”
(Carta não-oficial (11). Marquês do Lavradio. RJ, 02.03.1774.)
(15) “Você tem sido batido na Câmera pelos Hollandezes, e na sessão de 13 deste oPadre Pinto estudou hum sermão
acusatorio, escreveo e deo ao Tachigrafo (...)”
(Carta não-oficial (12). J. F. da C. Miranda. RJ, 30.07.1835.)
(16) “(...) antes disto consulte a algum ahi dos que estão nas circunstancias de reger a Província que não seja de sua
família nem dos Castros; para no Cazo delle aceitar Você nos comunicar (...)”
(Carta não-oficial (12). J. F. da C. Miranda. RJ, 30.07.1835.)
O princípio da persistência pressupõe a conservação, na forma gramaticalizada, de um traço
semântico da forma fonte. Quando um item lexical inicia o processo de gramaticalização,
alguns detalhes da sua história lexical podem refletir-se na sua distribuição gramatical. A
persistência de traços da forma fonte pode explicar as restrições sofridas pela forma
gramaticalizada. Embora o princípio pressuponha a manifestação de propriedades semânticas,
foram analisados três fatores estruturais que indicam, de certa forma, um tipo de persistência: a
expressão do sujeito e a co-referencialidade.
DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE ‘VOSSA MERCÊ’, ‘VOCÊ’ E ‘TU’ QUANTO À
EXPRESSÃO DO SUJEITO DE 2 PESSOA DO DISCURSO NAS CARTAS MANUSCRITAS
A
EXPRESSÃO
DO
SUJEITO
SUJEITO PLENO
SUJEITO NULO
TOTAL
NO
RIO DE JANEIRO COLONIAL (SÉC. XVIII)
VOCÊ
VOSSA MERCÊ
OCO.
%
OCO.
%
OCO.
%
OCO.
%
23/31
08/31
31/88
32/45
13/45
45/88
71%
28%
51%
03/12
09/12
12/88
25%
75%
14%
58/88
30/88
88/88
66%
34%
100%
74%
25%
35%
TU
TOTAL
DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE ‘VOSSA MERCÊ’, ‘VOCÊ’, ‘TU’ E ‘VÓS’ QUANTO À EXPRESSÃO DO SUJEITO
DE
EXPRESSÃO DO
A
NO
SUJEITO
SUJEITO PLENO
SUJEITO NULO
TOTAL
2 PESSOA DO DISCURSO NAS CARTAS MANUSCRITAS
VOSSA MERCÊ
RIO DE JANEIRO IMPERIAL (SÉC. XIX)
VOCÊ
TU
VÓS
OCO.
%
OCO.
%
OCO.
%
OCO.
%
13/20
07/20
20/55
65%
35%
36%
12/17
05/17
17/55
70%
29%
31%
01/13
12/13
13/55
07%
92%
24%
05/05
05/55
100%
09%
TOTAL
OCO.
%
26/55
29/55
55/55
47%
53%
100%
Tabela 7: Distribuição dos dados de Vossa Mercê, Você e Tu quanto à expressão do sujeito de 2a pessoa
do discurso nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial.
Nas cartas setecentistas em análise, observa-se que Vossa Mercê com 23 ocorrências – 74%
dos dados – e Você com 32 ocorrências – 71% dos dados – apresentam-se, preferencialmente,
como sujeitos plenos. O mesmo ocorre nas cartas oitocentistas: Vossa Mercê com 13 ocorrências –
65% dos dados – e Você com 12 ocorrências – 70% dos dados. O comportamento sintático
assumido por Você se assemelha ao da forma nominal que o motivou – Vossa Mercê,
apresentando maiores freqüências de uso como sujeito pleno, nos dois períodos controlados.
Situação diferente é a assumida pelas formas pronominais legítimas – Tu (no século XVIII, 09
ocorrências, 75%, no século XIX, 12 ocorrências, 92%) e Vós (05 ocorrências, 100%, no século
XIX) – que, preferencialmente, se apresentam como sujeitos nulos. Confirma-se, pois, a tese de
Duarte (1995) de que o português brasileiro do século XIX era uma língua de sujeito nulo,
iniciando o seu processo de mudança de parâmetro a partir do século XX. De (15) a (19),
verifica-se a categoria de sujeito preenchida pelas formas Vossa Mercê e Você nas cartas dos
séculos XVIII e XIX.
(15) “(...) Vossamercê metem Sempre muito prompto para emtudo lhemostrar aminha Estimação.”
(Carta oficial (07). Marquês do Lavradio. RJ, 15.02.1774.)
(16) “(...) Domesmo Continente medarâ Vossamercê Conta daquillo que for enCarregado, doqueSetiver posto empratica
aeste Respeito, edetudo que tiver aContecido nas partez emque Vossamercê seachar (...)”
(Carta oficial (07). Marquês do Lavradio. RJ, 15.02.1774.)
(17) “(...) Grande hé aconsolação, que tenho com asboas novas que Você me dá suas porem dêvo dizer=lhe averdade, eu
menão Livro de cuidado, com quanto Você não vive pormais mezes auzentedeLixboa(...)”
(Carta não-oficial (02). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.)
(18) “(...) Deos queira não haja novidades, e que tanto você e sua familia como todos os nossos amigos estejão em paz
com saude efelicidade (...)”
(Carta não-oficial (13). J. F. da C. Miranda. RJ, 18.02.1836.)
(19) “(...) Estimo muito que você e tudo quanto lhe pertence goze saude e todas as venturas que para mim apeteço. (...)”
(Carta não-oficial (14). J. F. da C. Miranda. RJ, 28.03.1837.)
Outra categoria de análise que poderia referendar o princípio da persistência seria o controle
da co-referencialidade entre Vossa Mercê, Você, Tu e Vós e as formas de 2a e 3a pessoas do discurso.
Pretende-se, inicialmente, testar tal fator, a fim de verificar se a “famigerada” mistura de
tratamento (Você – te/tua), tão condenada pelas nossas gramáticas atuais, já se fazia presente nos
corpora em análise. Machado (2003), analisando cartas familiares do final do século XIX,
localiza a combinação de formas pronominais de 3a com formas de 2a pessoa, principalmente
nos fechamentos das cartas, como se pode mostrar no seguinte trecho: “A 12 escrevi a Christiano
| e hoje a voce. Estimei muito | as boas noticias que tive que | voce está muito estudiozo e | que está muito
adiantado (...) Te abraça e a | Christiano (...)” (Carta no 41.)
Nesta investigação, como pode ser depreendido da tabela 8, tais combinações não foram
identificadas.
A CO-REFERENCIALIDADE DE ‘VOSSA MERCÊ’, ‘VOCÊ’ E ‘TU’
NAS CARTAS MANUSCRITAS NO RIO DE JANEIRO COLONIAL (SÉC. XVIII)
PESSOAS GRAMATICAIS EM
CO-REFERÊNCIA
VOSSA MERCÊ
TU
VOCÊ(S)
TOTAL
OCO.
%
OCO.
%
OCO.
%
OCO.
%
(3 PESSOA DO SINGULAR)
P2
29/29
100%
37/38
97%
03/10
30%
69/77
89%
(2 PESSOA DO SINGULAR)
P6
-
-
-
-
07/10
70%
07/77
09%
-
-
01/38
03%
-
-
01/77
01%
29/29
100%
38/38
100%
10/10
100%
77/77
100%
P3
A
A
(3 PESSOA DO PLURAL)
A
TOTAL
A CO-REFERENCIALIDADE DE ‘VOSSA MERCÊ’, ‘VOCÊ’, ‘TU’ E ‘VÓS’
NAS CARTAS MANUSCRITAS NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL (SÉC. XIX)
PESSOAS GRAMATICAIS EM
VOCÊ(S)
VOSSA MERCÊ
TU
VÓS
TOTAL
CO-REFERÊNCIA
P3
(3 PESSOA DO SINGULAR)
P2
(2 PESSOA DO SINGULAR)
OCO.
%
OCO.
%
OCO.
%
OCO.
%
OCO.
%
A
11/11
100%
13/14
93%
-
-
-
-
25/38
66%
A
-
-
-
-
08/08
100%
-
-
08/38
21%
P5
(2 PESSOA DO PLURAL)
P6
-
-
-
-
-
-
04/39
100%
04/38
10%
-
-
01/14
07%
-
-
-
-
01/38
03%
11/11
100%
14/14
100%
08/08
100%
04/39
100%
38/38
100%
A
(3 PESSOA DO PLURAL)
A
TOTAL
Tabela 8: A co-referencialidade de Vossa Mercê, Você e Tu nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial.
Com base nos resultados expostos na tabela 8, verifica-se que a co-referência com formas
de 3a pessoa são categóricas, seja no singular, seja no plural para Vossa Mercê e para Você nos
dois séculos. O fato de Você se combinar apenas com pronomes de 3a pessoa gramatical o
identifica, nesse estágio da sua gramaticalização, com a forma nominal de tratamento que o
derivou, como se nota em (20).
Nas cartas oitocentistas, observou-se o mesmo tipo de
comportamento: Vossa Mercê e Você somente se combinam com a 3a pessoa gramatical, seja no
singular (P3) – Vossa Mercê com 11 ocorrências (100%) e Você com 13 ocorrências (93%) –, seja
no plural (P6), Você com 01 ocorrência (07%). Tais combinações sintáticas acabam por indiciar
que traços morfossintáticos da forma nominal de tratamento – Vossa Mercê – persistem em Você,
como é possível se averiguar em (21) e (22).
(20) “(...) Vossamercê metem Sempre muito prompto para emtudo lhemostrar aminha Estimação. (...)”
(Carta oficial (07). Marquês do Lavradio. RJ, 15.02.1774.)
(21) “(...) ella serve para segurar aVocê omeu amor, e aminha saudade, e o alvoroso comque eztou esperando novaz suas,
que atanto tempo nos faltão.”
(Carta não-oficial (07). Marquês do Lavradio. RJ, 22.02.1773.)
(22) “(...) Na carta, que ultimamente lhe escrevi participei o arbitrio que tomei de exceder as suas ordens na encomenda
da bomba, que você me havia encomendado para colocar n hum Poço Publico (...)”
(Carta não-oficial (14). J. F. da C. Miranda. RJ, 28.03.1837.)
A forma pronominal Tu aparece, preferencialmente, nas cartas setecentistas e oitocentistas, em
co-referência com a 2a pessoa gramatical: 07 ocorrências (70%) e 08 ocorrências (100%),
conforme evidenciam os dados de (23) a (25).
(23) “(...) Agoraqueroquemedes boas novas tuas, edetoda atuaExcelentíssima Família, aquem peçome Recomendez com
o maior Respeito.”
(Carta não-oficial (04). Marquês do Lavradio. RJ, 23.12.1770.)
(24) “(...) Não te demores em vir, foge para os braços de huă familia, que te ama (...)”
(Carta não-oficial (03). Martin Francisco Ribeiro de Andrada e Silva. RJ, 16.01.1810.)
(25) “(...) Tu sabes, que, alem de teu irmão, sou realmente teu amigo, e portanto consternei-me em demasia, pensando no
que terás sofrido (...)”
(Carta não-oficial (03). Martin Francisco Ribeiro de Andrada e Silva. RJ, 16.01.1810.)
Foi possível detectar, entretanto, nas cartas setecentistas, 03 ocorrências do pronome
pessoal Tu em co-referência com P3 – 30% dos dados. Tais ocorrências distribuem-se por uma
carta oficial, em uma única ocorrência, e pelas cartas não-oficiais, em 02 ocorrências, conforme
se observa de (26) a (28), respectivamente.
(26) “(...) esse Vossa Excelência lheescrever sejão cartas que [aspira] ver osenhor Marques por que cazo elle tenha sahido
podeos abrir o d.o S.r tambem mediga Vossa Excelência se lhas has de Remeter para Lisboa aquellas que Vossa
Excelência for servido mandar (...)”
(Carta oficial (06). Raimundo José de Sousa. RJ, 26.03.1773.)
(27) “(...) MeuIrmão eSenhordomeuCoração, nasbrevissimas cartas que tive ogosto deReceber suas medás aestimavel
serteza datuaboaSaude edetodaatuaExlentíssima Casa Familia (...)”
(Carta não-oficial (03). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.)
(28) “(...) MeuIrmão eSenhordomeuCoração, nasbrevissimas cartas que tive ogosto deReceber suas medás aestimavel
serteza datuaboaSaude edetodaatuaExlentíssima Casa Familia, que eu infinitamente estimo, e teagradeço dezejando, que
estaseconserve a todas Vossas Excelências sempre tão felismente como tu opodes ser daminha verdadeira efielamizade.
(...)”
(Carta não-oficial (03). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.)
A partir do princípio da decategorização, conjectura-se que formas, em processo de
gramaticalização, tendem a perder ou neutralizar marcas morfológicas e propriedades sintáticas
das categorias plenas (Nome e Verbo) e a assumir atributos das categorias secundárias
(Adjetivo, Particípio, Preposição). Revelam-se indícios da instauração da mudança categorial
(nome – Vossa Mercê – para pronome – Você) a partir da detecção de traços formais e de
comportamentos sintáticos característicos das formas pronominais. No que diz respeito ao
fenômeno lingüístico em estudo, observa-se que a posição assumida por Vossa Mercê e por Você
pode fornecer indícios de uma maior ou menor aproximação da forma em vias de
gramaticalização – Você – com a forma nominal que a determinou ou com os pronomes
pessoais. Acrescente-se ainda que a discussão do princípio da decategorização idealizado por
Hopper (1991) dialoga com a estabelecida por Lehmann (1982) através do princípio da fixação,
que, segundo este, permite detectar, a partir do grau de variabilidade de uma forma no interior
do sintagma oracional, indícios sintáticos do seu estágio de gramaticalização.
DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE ‘VOSSA MERCÊ’ E ‘VOCÊ’ COMO SUJEITOS
DE
POSIÇÃO DO SUJEITO
2 PESSOA DO DISCURSO EM RELAÇÃO À VARIÁVEL POSIÇÃO DO SUJEITO NAS
A
CARTAS MANUSCRITAS NO RIO DE JANEIRO COLONIAL (SÉC. XVIII)
VOSSA MERCÊ
VOCÊ
TOTAL
OCO.
%
OCO.
%
OCO.
%
PRÉ-VERBAL
PÓS-VERBAL
ENTRE O VERBO AUXILIAR EO
VERBO PRINCIPAL
18/23
05/23
78%
22%
21/32
07/32
66%
22%
39/55
12/55
71%
22%
-
-
04/32
12%
04/55
07%
TOTAL
23/23
100%
32/32
100%
55/55
100%
DISTRIBUIÇÃO DOS DADOS DE ‘VOSSA MERCÊ’ E ‘VOCÊ’ COMO SUJEITOS
DE
2 PESSOA DO DISCURSO EM RELAÇÃO À VARIÁVEL POSIÇÃO DO SUJEITO NAS
A
CARTAS MANUSCRITAS NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL
POSIÇÃO DO SUJEITO
VOSSA MERCÊ
OCO.
%
(SÉC. XIX)
VOCÊ
OCO.
%
PRÉ-VERBAL
PÓS-VERBAL
ENTRE O VERBO AUXILIAR EO
VERBO PRINCIPAL
11/13
01/13
85%
7,5%
11/12
-
92%
-
22/25
01/25
88%
04%
01/13
7,5%
01/12
08%
02/25
08%
TOTAL
13/13
100%
12/12
100%
25/25
100%
TOTAL
OCO.
%
Tabela 9: Distribuição dos dados de Vossa Mercê e Você como sujeitos de 2a pessoa do discurso em relação à variável posição do
sujeito nas cartas manuscritas no Rio de Janeiro colonial e imperial.
Vossa Mercê e Você como sujeitos plenos assumem uma significativa variabilidade
sintagmática nas cartas do século XVIII se comparada com os resultados do século XIX. Vossa
Mercê se deixa evidenciar em posições pré-verbal – 18 ocorrências (78%) – e pós-verbal – 05
ocorrências (22%). Você se manifesta como sujeito expresso em posição pré-verbal – 21
ocorrências (66 %) –, pós-verbal – 07 ocorrências (22%) – e 04 ocorrências entre o verbo
principal e o verbal auxiliar – 12%. A possibilidade de ocorrer antes e depois do verbo e
também entre o verbo auxiliar e o verbo principal parece indiciar que Você ainda funciona
como nome, assemelhando-se à forma nominal de tratamento que o determinou – Vossa Mercê –,
como se verifica de (29) a (32). Nesse caso, o fato de persistirem os traços nominais leva a
admitir que a forma Você ainda não tinha perdido ou neutralizado as propriedades sintáticas
herdadas de Vossa Mercê. Ao discutir o princípio da fixação pensado por Lehmann (1982), em
relação ao processo de pronominalização em análise, constata-se que a forma Você se apresenta,
no século XVIII, com uma maior variabilidade sintagmática, comportando-se de forma menos
fixa no interior da oração, o que parece indiciar que a forma Você se aproxima da forma
nominal de tratamento que a gerou.
(29) “(...) Vosse Receberá a dezagradavel noticia de ter morrido o seu afilhado Domingoz Gomes daCunha muito
percipitadamente porque nem eu soube da Sua molestia. (...)”
(Carta não-oficial (10). Marquês do Lavradio. RJ, 12.06.1773.)
(30) “(...) Meo filho esenhor domeo Coração pormão do Conde de Valladarez, que parte nesta ocazião receberá Você
esta minha carta, (...)”
(Carta não-oficial (12). Marquês do Lavradio. RJ, 02.03.1774.)
(31) “(...) aseite Você esta verdadeira, esincera morteficação assim como as expressoens de gosto, comque recebo boas
novaz suas edos meus quiridos nettos, que muito lheagradeço (...)”
(Carta não-oficial (15). Marquês do Lavradio. RJ, 06.05.1774.)
(32) “(...) De Você tenho recebido algumasCartas de empenho, pode você ficar serto que em tudoque mecouber nopossivel,
farei conheçer aosSeusAfilhadoz, ovalor dasua porteção,(...)”
(Carta não-oficial (02). Marquês do Lavradio. RJ, 17.11.1770.)
Nas cartas oitocentistas, por sua vez, Vossa Mercê e Você como sujeitos começam
timidamente a assumir comportamentos sintáticos diferentes no que se refere à posição em
relação ao verbo. A forma nominal de tratamento Vossa Mercê apresenta-se em 11 ocorrências
– 85% dos dados – como sujeito em posição pré-verbal. Apesar dessas ocorrências, Vossa mercê
se mantém, na amostra de cartas do século XIX, ainda que com baixíssimas ocorrências, em
posição pós-verbal – 01 ocorrência (7,5% dos dados) – e entre o verbo auxiliar e o verbo
principal – 01 ocorrência (7,5% dos dados). Em contrapartida, a forma Você, dentre as suas 12
ocorrências de sujeito expresso, mostra-se em 11 delas – 92% dos dados – na posição préverbal, posição característica de pronomes pessoais legítimos. Assim sendo, ao comparar o
comportamento sintático de Vossa Mercê com o de Você, é possível considerar que enquanto
Vossa Mercê parece se manter, nas cartas do século XIX, com uma certa mobilidade
sintagmática, característica peculiar aos nomes, a forma Você já se mostra com menor
mobilidade sintagmática, deixando-se evidenciar, preferencialmente, em posição pré-verbal,
posição típica de pronome pessoal, como se observa em (33) e (34). Observa-se ainda que, em
somente 01 ocorrência (08% dos dados), Você foi detectado entre o verbo auxiliar e o verbo
principal, conforme se verifica em (35). No século XIX, constata-se, pois, que a forma Você
apresenta-se com menor variabilidade sintagmática, fixando-se, segundo a terminologia teórica
adotada por Lehmann (1982), na posição cânonica de sujeito expresso em língua portuguesa –
posição pré-verbal, o que ratifica as conclusões tecidas por Lopes (2001), Lopes e Duarte, (2003b).
(33) “(...) Na carta, que ultimamente lhe escrevi participei o arbitrio que tomei de exceder as suas ordens na encomenda
da bomba, que você me havia encomendado para colocar n hum Poço Publico, que mandara construir, e de prezente
asseguro-lhe que esta obra está quasi concluida a medida do meo dezejo (...)”
(Carta não-oficial (14). J. F. da C. Miranda. RJ, 28.03.1837.)
(34) “Você não me tem respondido sobre o que tenho pedido acerca de Mariano Gomes. (...)”
(Carta não-oficial (14). J. F. da C. Miranda. RJ, 28.03.1837.)
(35) “(...) como fosse [↑você] novamente arguido por Maciel Monteiro, que esta sendo o defensor do dito Pinto e Ibiapina
filho de Francisco Miguel; a que deu lugar responder o Vieira de huma maneira que não eu esperava, pedi a palavra pela
ordem para tomar a sua defeza e não me deixarão falar (...)”
(Carta não-oficial (12). J. F. da C. Miranda. RJ, 30.07.1835.)
A discussão do processo de pronominalização de Vossa Mercê nas cartas setecentistas e
oitocentistas, a partir dos princípios de gramaticalização pensados por Hopper (1991), permitiu
depreender, através de uma escala, o estágio da pronominalização assumido por Vossa Mercê
(transition problem, cf. Weinreich et alii, 1968) nos corpora em análise.
VOCÊ 2 a Pessoa (+ referencial)
VOCÊ
MERCÊ
VOSSA MERCÊ
VOCÊ
Forma Pronominal de Tratamento
VOCÊ indeterminador em construções
pessoais
VOCÊ expletivo em construções existenciais
Quadro 5: Proposta de Estágios da Pronominalização de Vossa Mercê > Você no português.
A partir do quadro 5, observa-se que o nome Mercê motivou a forma nominal de
tratamento Vossa Mercê – estratégia honorífica concebida para ressaltar a benignidade suprema
do rei português em relação aos súditos da Coroa Portuguesa (cf. Cintra, 1972). Tal forma
nominal de tratamento desgasta-se, fonética e semanticamente, até originar Você que, por sua
vez, se insere no quadro pronominal do português brasileiro como forma pronominal de 2a
pessoa do discurso, segundo Lemos Monteiro (1994). Na realidade atual da língua portuguesa,
atenta-se para a referência indeterminadora assumida por Você em estruturas existenciais com
possível valor expletivo, como evidenciam Duarte (1995, 1999, 2003) e Avelar (2003). No que
diz respeito à forma Você, argumenta-se que tal forma assume, nas cartas oficiais e nas cartas nãooficiais dos séculos XVIII e XIX, um estágio intermediário no seu processo de mudança
categorial. Trata-se, pois, da expressão de um cline (cf. Hopper e Traugott, 1993) que acaba por
evidenciar o Você existente, nos corpora desta investigação, como uma forma medianeira entre a
forma nominal de tratamento que a determinou, no século XV, para referência honorífica,
desgastada semanticamente no século XVIII, e o pronome Você que, atualmente, já se inseriu
no sistema pronominal do português brasileiro, conforme constatou Duarte (1995). Você
apresenta-se, pois, nas cartas setecentistas e oitocentistas, como uma forma pronominal de tratamento,
deixando entrever, traços sintáticos que o aproximam tanto da forma nominal de tratamento
que o impulsionou – Vossa Mercê – como da forma pronominal pessoal Você, o que legitima a
interpretação de tal forma como uma estratégia pronominal de tratamento nos corpora em análise.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base na análise de cartas setecentistas e oitocentistas criteriosamente editadas,
identificaram-se variadas estratégias pronominais e nominais de tratamento e vislumbraram-se,
em suma, as seguintes constatações:
a) Nas cartas setecentistas, localizaram-se ocorrências de Vossa Excelência, Vossa Mercê e Senhor.
Além de tais formas nominais de tratamento, detectaram-se, nas cartas oitocentistas, ocorrências
de Vossa Senhoria e Vossa Majestade;
b) A forma nominal de tratamento Vossa Excelência apresenta-se de forma expressiva nas cartas
oficiais dos séculos XVIII e XIX, conservando-se, pois, como uma estratégia cortês de
tratamento;
c) A estratégia nominal de tratamento Vossa Mercê se deixa evidenciar em um estágio de
dessemantização já que assume maior freqüência de uso nas cartas não-oficiais que, por sua vez, se
constituem como um tipo de texto dotado de um menor grau de formalismo;
d) A fórmula de tratamento Senhor, além de expressar-se como uma estratégia pouco recorrente
nos corpora, manifesta-se tão somente como uma estratégia vocativa introdutória nas cartas
setecentistas e oitocentistas;
e) A expressão nominal de tratamento Vossa Senhoria mostrou-se recorrente em cartas nãooficiais do século XIX, estando em concorrência com Vossa Mercê em textos dotados de um
menor grau de formalismo, o que pode referendar a perda do caráter de cortesia com que foi
idealizada no século XV, conforme Cintra (1972);
f) As pouquíssimas ocorrências de Vossa Majestade, explícitas em somente uma única carta
oitocentista direcionada à Sua Majestade Real Portuguesa, ratificam a conservação do valor
original com o qual foi estabelecida através das Leis de Cortesia instituídas, segundo Cintra
(1972), por Felipe I, em Portugal, na era seiscentista.
Ao estabelecer correspondência entre as formas pronominais e nominais de tratamento e
os tipos de relações sociais travadas entre remetente e destinatário das cartas setecentistas e
oitocentistas, é possível tecer, em síntese, as seguintes considerações:
a) Nas relações sociais assimétricas de inferior para superior, a forma nominal de tratamento Vossa
Excelência apresenta-se, nas cartas setecentistas e oitocentistas como a fórmula de cortesia ascendente
com maior freqüência de uso. No século XIX, por sua vez, Vossa Senhoria concorre com Vossa
Excelência em tal relação social movida pela assimetria;
b) Nas relações sociais assimétricas de superior para inferior, a forma Você mostra-se, no século XVIII,
como uma produtiva estratégia de cortesia descendente;
c) Nas relações sociais simétricas entre membros de um mesmo grupo social (classe alta), as formas Vossa
Excelência e Vossa Mercê se manifestam, nos séculos XVIII e XIX, como fórmulas de tratamento
concorrentes. Ainda em relação ao período oitocentista, observa-se que, entre iguais, Vossa
Senhoria compete com as formas Você, Tu e Senhor.
A correspondência estabelecida quantitativamente entre as formas pronominais e
nominais de tratamento e os tipos de relações sociais – de inferior para superior, de superior para
inferior e entre membros de um mesmo grupo social (classe alta) – identificadas na documentação
analisada permitem supor que as cartas do século XVIII parecem entremostrar uma
estruturação social voltada para o Poder. Tal suposição encontra respaldo no contexto sóciohistórico do Brasil Colônia em que a Corte Portuguesa, orientada pela semântica do Poder,
administra a América Brasileira. Em contrapartida, as cartas do século XIX parecem permitir
entrever-se uma organização social movida pela semântica da Solidariedade em consonância,
pois, com o contexto sócio-histórico do Brasil Imperial.
No que diz respeito à gramaticalização de Vossa Mercê > Você, além da análise de sua
distribuição nos corpora, discutiram-se as propriedades formais e semântico-discursivas
peculiares à forma nominal de tratamento Vossa Mercê perdidas e conservadas no seu processo
evolutivo até originar a forma Você.
a) A forma Você perde o traço de gênero positivamente marcado em relação ao gênero formal – [+
fem] –, assemelhando-se aos legítimos pronomes pessoais do português – Eu, Tu, Nós e Vós –
que também não possuem valor específico a ser atribuído ao gênero. Por outro lado, constata-se
que o Você conserva a possibilidade de ter o seu traço de gênero semântico capturado pela sintaxe,
uma vez que a concordância com o feminino ou masculino em estruturas predicativas do tipo
Você está interessado/interessada aciona diferentes interpretações semânticas (referente do sexo
masculino, referente feminino, respectivamente);
b) A forma Você apresenta-se subespecificada em relação ao traço de número nas suas
bifurcações formal e semântica: você (um único interlocutor) e vocês (mais de um interlocutor –
você+ele(a)(s), você+todo mundo, etc). Ainda no que concerne ao traço de número, constata-se que
Você se assemelha às formas pronominais de 3a pessoa do discurso, pois tais formas
pronominais também podem ter seus valores detectados a partir da presença ou ausência
formal do traço de número (morfe -s) no próprio pronome, segundo a discussão de Menon
(1995);
c) A forma Você preserva a concordância formal com a 3a pessoa – [Ø eu] –, o que constitui
uma característica peculiar não só à fórmula de tratamento Vossa Mercê, como também às
formas ele(s), ela(s) – a “não-pessoa” discutida por Benveniste (1988). Em compensação,
observa-se que Você ao remeter ao interlocutor/ouvinte, assemelha-se, em relação à noção de
pessoa semântica, às legítimas formas pronominais pessoais de 2a pessoa do discurso ([- EU] →
Tu e Vós).
Em virtude do desuso do pronome Vós para o tratamento cerimonioso de interlocutor,
houve a inserção de formas nominais de tratamento no português europeu e entre elas está a
forma nominal de tratamento Vossa Mercê que aportou em terras ameríndias na versão européia
da língua portuguesa do século XVI, evoluindo, lenta e gradualmente, até constituir a forma
pronominal Você em português.
Constatou-se que a forma Você apresentou-se como uma híbrida estratégia de referência
à 2a pessoa do discurso. Apesar de tal forma ainda manter alguns traços sintáticos que a
aproximam da forma nominal de tratamento original (a expressão plena do sujeito e a coreferencialidade com a 3a pessoa gramatical), já assume traços que parecem anunciar a mudança
categorial em curso (o exercício da função sintática de sujeito e a posição do sujeito), o que permite
entendê-la como uma forma pronominal de tratamento em português.
Com relação ao encaixamento da mudança categorial de Vossa Mercê para Você nas
matrizes lingüística e social (embbeding problem, segundo Weinreich et alii, 1968), constatou-se, em
conformidade com as conclusões de Lopes (1999) para a forma
uma transformação lingüística isolada:
a gente, que não se trata de
Há uma emergência gradativa de formas nominais de tratamento que passam a substituir o
tratamento cortês universal vós, num primeiro momento pela ascensão da nobreza e mais
tarde da burguesia que exigia um tratamento diferenciado. Essa propagação, que começa de
cima para baixo, se dissemina pela comunidade como um todo, e as formas perdem sua
concepção semântica inicial, gramaticalizando-se – algumas de forma mais acelerada que
outras, como é o caso de Vossa Mercê > vosmecê > você. Pelo fato de as formas nominais
levarem o verbo para a terceira pessoa do singular, houve a redução do nosso paradigma
flexional, que perdeu, como já apontou Duarte (1995), ‘a propriedade de licenciar e
identificar sujeitos nulos.’
(LOPES, 1999:144)
Verificou-se, pois, que a produtividade de Vossa Mercê deu-se de cima para baixo,
favorecendo o seu desgaste fonético e semântico até formar Você que, por sua vez, carrega,
como um traço da forma original, o fato de estabelecer relação de concordância com a 3a
pessoa gramatical. A inserção de Você no quadro pronominal do português brasileiro conduz à
sua reorganização a partir da perda da riqueza flexional, impulsionando-o a não mais licenciar a
expressão nula do sujeito referencial em português.
O estudo das formas pronominais e nominais de tratamento em missivas oficiais e nãooficiais produzidas no Rio de Janeiro dos séculos XVIII e XIX apresenta um Você em estágio
intermediário do seu processo de mudança categorial (cline intermediário, cf. Hopper e Traugott,
1993, transition problem, cf. Weinreich et alii, 1968). Manifesta-se, assim, um dos estágios do
processo de mudança categorial (Nome > Pronome → Vossa Mercê > Você), que, segundo a fala
do pronome Eu, no texto “Na Casa dos Pronomes” de Monteiro Lobato, trata-se do caminho
trilhado pelo pronome serviçal –Vossa Mercê –, ao originar o legítimo pronome de referência à 2a
pessoa do dicurso – Você.
“(...) No começo, havia o tratamento Vossa Mercê dado aos reis unicamente. Depois
passou a ser dado aos fidalgos e foi mudando de forma. Ficou uns tempos Vossemecê e
depois passou a Vosmecê e finalmente como está hoje – Você, entrando a ser aplicado em vez
do Tu, no tratamento familiar ou caseiro. (...)”
(LOBATO, 1994:22 - 24.)
A ampliação dos corpora, para a retomada de estudos lingüísticos acerca da
gramaticalização de Vossa Mercê em outros tipos de textos literários e não-literários, reconduzirá
a investigação por caminhos lingüísticos ainda não devastados nessa busca por vislumbrar-se
cientificamente o processo de gestação da norma brasileira do português.
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Portuguesa – Curso de Pós-graduação em Letras Vernáculas, Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade
de Letras, 2004, 286 fl. Mimeo.
RESUMO
A discussão do processo de formação histórica das normas lusitana e brasileira do
português tem instigado estudos lingüísticos acerca dos aspectos caracterizadores dessas
variedades da língua portuguesa (Roberts e Kato, 1996; Mattos e Silva, 2001; Alkmin, 2002;
Duarte e Callou, 2002). Dessa forma, a inquietação com a confiabilidade do corpus constitui-se
como um pressuposto para a concretização de investigações lingüísticas fidedignas à realidade
lingüística assumida pelo português em terras d’ aquém mar.
Nesse sentido, estrutura-se este trabalho em duas etapas. Na primeira, procede-se à
organização de corpora para estudo do português no Brasil com base na confecção de uma edição
fac-similar diplomático-interpretativa de sessenta cartas manuscritas no Rio de Janeiro dos séculos
XVIII e XIX. Na segunda, descrevem-se e analisam-se as formas pronominais e nominais de
tratamento utilizadas nessa amostra criteriosamente editada, atentando-se para o processo de
pronominalização de Vossa Mercê em português.
Em síntese, este estudo comprova que, dentre as estratégias de tratamento concorrentes
nas cartas oficiais e não-oficiais do período, Vossa Excelência é aquela que mais conserva o caráter
cortês de tratamento cerimonioso e Vossa Mercê e Vossa Senhoria perdem, em maior e menor
grau, respectivamente, o caráter de cortesia com que foram originalmente utilizadas.
Em relação a gramaticalização de Vossa Mercê > Você no português, constata-se que a
forma Você ainda se apresenta na amostra como uma forma pronominal de tratamento, pois é
possível entreverem-se traços morfossintáticos que tanto a assemelham à forma nominal da
qual se originou (Vossa Mercê), quanto à forma pronominal de referência à 2 a pessoa do
discurso.
Editam-se com fac-símile, em volume anexo, sessenta cartas manuscritas no Rio de Janeiro
colonial e imperial.
RUMEU, Márcia Cristina de Brito. Para uma História do Português no Brasil: Formas Pronominais e
Nominais de Tratamento em Cartas Setecentistas e Oitocentistas. Master´s Dissertation in the
Portuguese Language – Curso de Pós-graduação em Letras Vernáculas, Rio de Janeiro: UFRJ,
Faculdade de Letras, 2004, 286 p. Mimeo.
ABSTRACT
The discussion on the process of the historical formation of the european and brasilian
varieties has sparked linguistic studies concerning Portuguese (Roberts & Kato, 1996; Mattos &
Silva, 2001; Alkmin, 2002; Duarte & Callou, 2002). As a result, a lot of effort was made on the
research and also on the selection of the corpus which could trustfully represent the reality of the
Portuguese language in Brazil.
In order to accomplish that, this work was divided in two parts. In the first part there are
the corpora for the studies related to the Brazilian Portuguese based on a diplomatic-interpretative
facsimile edition of sixty hand-written letters (manuscripts) from the eighteenth and nineteenth
centuries, in Rio de Janeiro. The second part is dedicated to the analysis and description of the
nominal and pronominal address terms identified on the corpora, regarding the process of the
pronominalization of Vossa Mercê > Você (you).
In summary, this study proves that, among the addressing terms registered whether in
official or non-official letters (manuscripts) of the mentioned period, Vossa Excelência (Your
Honor) is the form which preserves the courteous and formal way of treatment. Vossa Mercê
and Vossa Senhoria lose, in higher and lower extents, respectively, the courteous way in which
they were originally used.
Concerning the gramaticalization of Vossa Mercê > Você (you) in Portuguese, it is possible
to assure that Você did not appear as a pronominal form in the sample until that moment, due
to the fact that Você (you) has morphosyntactic features that are similar to the nominal form
(Vossa Mercê) from which it originated and also to its pronominal form. The pronoun Você
refers to the 2nd person singular of discourse.
Sixty hand-written letters (manuscripts) in colonial and imperial Rio de Janeiro are being
edited with facsimile´s help in an attached volume.
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RUMEU, Marcia Cristina de Brito - Faculdade de Letras