A FARMÁCIA SARAIVA NO “QUATRO DE OUTUBRO” António Groen Duarte Loures não é a única localidade portuguesa com referências toponímicas ao dia 4 de Outubro de 1910. Mas quando um jornal intitulado “O Quatro de Outubro”, sedeado no Largo 4 de Outubro, se reivindica o “Orgão do Concelho de Loures” durante vinte e cinco anos, aquela data deixa de poder ser considerada uma simples referência cronológica1. O “Quatro de Outubro”, jornal republicano publicado entre 1912 e 1938, será o meu principal guia nesta retrospectiva sobre Loures, em que recuaremos até finais do século XIX. Com este regresso, pretendo dar a conhecer certos aspectos da participação cívica e política de alguns farmacêuticos do concelho, com destaque para um, de nome António Saraiva2. A causa republicana começou a ganhar expressão política em Loures no último quartel do século XIX. Não parece exacta a referência a “umas eleições camarárias”, datadas de 1883, em que, pela primeira vez, os republicanos aqui teriam apresentado um candidato próprio3. Mas é certo que o primeiro executivo municipal de Loures, que tomou posse em 1887, era dominado por figuras posteriormente conotadas com a causa republicana: para a presidência foi eleito o arqueólogo (e grande proprietário do concelho) Anselmo Braamcamp Freire, cabendo a vice-presidência a um farmacêutico chamado Henrique César Farinha, de quem falarei adiante4. Em 1890-91, o republicanismo soube tirar partido – em Loures, como em todo o país – do descontentamento popular suscitado pela sujeição do governo português ao ultimato inglês, a propósito da delimitação das colónias africanas5. Este foi o ponto de partida para uma viragem de século marcada pela agitação social e política, e pela crescente infiltração republicana, que permeava estruturas tão diversas como as polícias, o exército, as vereações, o funcionalismo público, as associações profissionais e operárias, ou a Maçonaria. O cerco à monarquia contrastava de tal forma com a liberdade de movimentos dos que se lhe opunham, que não houve verdadeira surpresa quando Lisboa assistiu ao assassinato – em pleno Terreiro do Paço, à primeira tentativa, e de uma assentada só – do rei e do príncipe real. Este desfecho foi o culminar de um complexo processo de desacreditação do rei, que contou também com a participação de sectores estranhos (e até hostis) ao Partido Republicano. Mas tendo a execução pertencido a dois seus destacados militantes, foi a respectiva facção – como não poderia deixar de ser – a reivindicar os louros pela façanha6. À data destes acontecimentos, Loures era a sede de uma freguesia com quase cinco mil habitantes, de feição predominantemente agro-pecuária, mas onde começava a fazer-se sentir a influência de uma pequena e média burguesia, mais ligada ao comércio e às profissões. A presença republicana, que como se disse, existia anteriormente, assumia agora formas mais organizadas. Em 1908, funcionavam no concelho diversas comissões 1 Além das referências toponímicas, e jornalísticas, a referência ao 4 de Outubro de 1910 estava também presente na bandeira do concelho de Loures, o que actualmente já não acontece. Cf. Diccionario corographico de Portugal, VI, p. 774 2 Bisavô do autor deste texto. 3 Esta asserção, feita originariamente no Almanaque para o concelho de Loures para 1912, e transcrita em Loures na memória, p. 28, carece de confirmação, porque em 1883 Loures era apenas uma das freguesias que constituíam o município dos Olivais. O concelho de Loures só foi instituído em 1886. 4 Tradição e mudança, I, p. 222 5 Trata-se da célebre “Questão do Mapa Cor-de-Rosa”. Cf. História de Portugal, VI, p. 191. 6 História de Portugal, VI, p. 289-297 1 paroquiais do Partido Republicano, que articulavam a sua acção com a sede, em Lisboa7. Além de exprimir-se politicamente através destas comissões, o ideário republicano consolidava-se por outras vias. Associações como o Centro Escolar Republicano (em Loures), o Centro Escolar Eleitoral Republicano (em Sacavém), a Sociedade Filarmónica União Pinheirense (no Pinheiro de Loures) ou a Sociedade Filarmónica Recreio Zambujalense (no Zambujal), conciliavam os seus objectivos sociais com a doutrinação republicana. Por outro lado, cientes de que a concretização da viragem política só seria possível com uma propaganda eficaz, alguns republicanos do concelho colaboravam activamente na imprensa panfletária. Dessa dedicação, nasceram jornais como o “Lapis e a Penna”, “A Economia” ou o já referido “Quatro de Outubro”, mensageiros de uma cartilha populista, que conciliava a exaltação nacionalista, com a militância anti-monárquica8. No mesmo ano do regicídio, 1908, morria em Loures Joaquim Saraiva, proprietário da principal mercearia da vila9. O defunto deixava viúva Guilhermina Aurélia Seixas, de origem galega, quatro filhas e um único filho, António Saraiva. Foi decerto um momento particularmente dramático para este último: dez dias antes tinha nascido a sua primeira (e única) filha10. António Saraiva nasceu em Loures, em 21 de Janeiro de 1879. Da sua primeira infância, pouco pude apurar, mas é provável que tenha sido passada entre a escola e as mercearias que o pai transaccionava. Loures possuía então uma única escola primária, mas que ainda assim não seria muito concorrida: segundo o censo de 1911, a taxa de analfabetismo no concelho rondava os 75 por cento11. Quanto à mercearia de Joaquim Saraiva, ela situava-se na parte final da Rua Direita, do lado direito antes da bifurcação onde se separavam as estradas para a Malveira, e para Bucelas. Essa rua, que era um troço da Estrada Real n.º 60, foi depois baptizada com o nome de Azevedo Coutinho, e é a actual Rua da República. Três portas acima da “Mercearia do Saraiva”, estava estabelecido o único farmacêutico de Loures, Henrique César Farinha. Dado às letras e à política, “o Farinha” (como lhe chamavam) ensinava francês e espanhol à mocidade, incutindo-lhe simultaneamente os seus princípios republicanos12. Como se disse, Farinha foi vice-presidente do executivo municipal entre 1887 e 1899, o primeiro após a elevação de Loures a concelho. Ainda a propósito deste farmacêutico, falecido em 1906, o “Quatro de Outubro” conta como o seu cortejo fúnebre foi desrespeitado por um automóvel, que pretendeu ultrapassá-lo. Não se tratava de um automóvel qualquer: o veículo transportava os filhos do rei D. Carlos, e foi alvo da indignação dos funerantes, que o apedrejaram13. 7 Em 1908, as comissões paroquiais republicanas estão documentadas em Loures e Sacavém, havendo referências genéricas às “demais comissões do concelho”. Em 1911, elas existiam em Loures, Pinheiro de Loures, Sacavém, Bucelas, Lousa, Santa Iria da Azóia, Santo Antão do Tojal, Fanhões, Póvoa de Santo Adrião, Odivelas e Caneças. Loures na memória, p. 28-29 8 Na redação destes periódicos, distinguiu-se a figura do bucelense Raimundo Alves, que depois da queda da monarquia chegou a Administrador do Concelho de Loures. 9 Joaquim Saraiva nasceu em 19 de Março de 1847, em Ferreira do Zêzere (e não em Loures, como se afirma nas Memórias de Loures, p. 126) e faleceu em Loures, em 10 de Setembro de 1908. Para além da sua ocupação comercial, apenas apurei que foi fundador da Sociedade de Recreio Musical (Subsídios, p. 112), e que foi o sexto subscritor (entre 85) de uma petição que visava (e conseguiu) uma alteração ao calendário da feira anual de Loures. Pelas ruas, p. 68-72. O nome de Joaquim Saraiva designa hoje uma pequena travessa, próxima do local onde se situava a sua mercearia. 10 Emília Guilhermina, minha avó. 11 Tradição e mudança, II, p. 38. Moreira Feyo, p. 43; e Subsídios, p. 89 apresentam mais dados sobre o analfabetismo em Loures. 12 O seu pupilo mais conhecido foi o poeta popular Manuel Francisco Soromenho, autor do célebre Fado Revolucionário. Cf. Memórias, p. 117. Este poema – espécie de manifesto republicano – foi publicado por Soromenho no seu (único) livro Horas de Inspiração, publicado em 1901. 13 Quatro de Outubro, 5 de Maio de 1912, p.1 2 Em dado momento da sua juventude, em data que não me foi possível determinar, o jovem Saraiva começou a frequentar a farmácia de Henrique César Farinha, talvez como aluno, numa primeira fase, e depois como praticante. Recordemos que, até finais do século XIX, a participação do Estado no ensino secundário quase se resumia à organização de exames públicos, dos quais dependia o acesso ao ensino superior. As famílias mais abonadas confiavam a instrução dos seus jovens a professores particulares, sendo esta função frequentemente desempenhada por sacerdotes, advogados, médicos, jornalistas, e também farmacêuticos14. Relativamente ao acesso à profissão farmacêutica, ele fazia-se por uma de duas vias: mediante a frequência de um curso superior, ministrado nas Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto ou na Universidade de Coimbra, com a duração de dois anos; ou através de uma aprendizagem prática, durante um mínimo de oito anos, sob supervisão de um farmacêutico habilitado, a que se seguia um exame final perante o júri das Escolas15. António Saraiva, tal como a grande maioria dos farmacêuticos do seu tempo, habilitou-se por esta segunda via. Praticou na Farmácia Farinha, e também na conhecida Farmácia Franco, em Belém; completou os oito anos de prática que a lei impunha; e apresentou-se a exame na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, em 24 Maio de 1902. Aprovado in extremis, com a pouco auspiciosa qualificação de “suficiente por dez valores”, o agora farmacêutico terá continuado a exercer na Farmácia Farinha, adquirindo-a pouco tempo depois. Não me foi possível esclarecer se a farmácia foi adquirida a Henrique César Farinha no final da sua vida, ou aos seus herdeiros, depois de 1906. Inclino-me mais para a primeira destas possibilidades. À data de 4 de Outubro de 1910, António Saraiva era pois o farmacêutico de Loures. Nesse dia, por volta das duas da tarde, um grupo de republicanos reuniu-se no Centro Escolar Republicano de Loures, onde foram designados oito elementos para constituírem uma “Junta Revolucionária” 16. Encabeçados pelo farmacêutico Augusto Moreira Feio, envolto na bandeira verde-rubra, os elementos da Junta saíram acompanhados pelos seus correligionários, atravessaram a rua, e percorreram os poucos metros que os separavam dos Paços do Concelho17. Aqui, sem luta nem hostilidades, submeteram a guarnição policial do edifício e os funcionários camarários. Pelas três horas da tarde, um dos elementos da Junta Revolucionária içava a bandeira republicana no mastro da fachada principal. De seguida, a partir de uma janela do primeiro andar, declarava-se implantada a República no concelho de Loures, perante os aplausos das gentes que preenchiam a rua e o “Largo do Chafariz”. No dia seguinte, o mesmo acontecia em Lisboa, e um pouco por todo o país, igualmente sem resistência digna de nota. É claro que um tão pronto desenlace, à escala nacional, só foi possível graças ao embarque da família real, rumo ao exílio. Igualmente determinante foi o telégrafo, que permitiu que as ordens das chefias militares e políticas de Lisboa chegassem rapidamente às principais sedes de concelho do país18. 14 História de Portugal, VI, p. 309. Além da instrução primária, e do registo de prática, a lei impunha também que os aspirantes farmacêuticos tivessem obtido previamente aprovação nos exames liceais de Língua Francesa (ou Inglesa), Aritmética e Geometria, Física e Química e História Natural. Cf. História da Farmácia, II, p. 126. 16 É hoje evidente que esta não foi uma iniciativa espontânea e isolada, mas sim parte da sublevação desencadeada em Lisboa na madrugada do dia 4 de Outubro, e planeada desde o dia 2. História de Portugal, VI, p. 380ss 17 Loures na memória, p. 35-39. Para um esboço da biografia de Augusto Herculano Moreira Feio, farmacêutico em Lousa, veja-se Moreira Feyo – O amigo de Loures. 18 História de Portugal, VI, p. 394 e 436 15 3 Implantada a República, era tempo de impôr a ordem pública, que nem todos estavam dispostos a acatar. Aliás, os primeiros tempos após Outubro de 1910 foram férteis em rupturas e traições. Ainda o iate Amélia não desaparecera no horizonte, e já se assistia às primeiras dissenções, dissidências, e ajustes de contas. Entre os visados estavam aqueles poucos que se recusavam a abjurar a monarquia e alguns clérigos desprevenidos, mas também muitos republicanos de facções rivais da que triunfara. Os acontecimentos em Loures corroboram estas considerações. Logo na noite de 4 para 5 de Outubro, só a custo se impediu o linchamento de um padre, apanhado nas refegas populares 19. Por todo o concelho, foram destruídos brasões, derrubados cruzeiros, e queimadas imagens religiosas20. Perante a anarquia que ameaçava instalar-se, alguns republicanos procuravam repôr o funcionamento das instituições, em articulação com o governo provisório central21. Tal como aconteceu noutros concelhos do distrito de Lisboa, também em Loures foi constituída uma Comissão Administrativa provisória, que substituiu de imediato a edilidade “não republicana” e designou um novo Administrador do Concelho22. A Comissão Administrativa foi pouco depois substituída por uma Comissão Municipal, nomeada pelo Governo Civil de Lisboa. Esta redefinição de poderes envolveu três farmacêuticos do concelho: Moreira Feio, que assumiu a presidência da Comissão Administrativa provisória, e foi depois secretário da Comissão Municipal; José Pedro Lourenço, farmacêutico em Sacavém, que presidiu à Comissão Municipal; e António Saraiva, que dirigia a “Comissão Paroquial Republicana de Loures” e presidiu, nessa qualidade, à Junta de Paróquia23. É precisamente na qualidade de presidente da Comissão Paroquial de Loures que António Saraiva redige e assina um documento que nos permite aferir as suas preocupações durante aqueles tempos conturbados. Trata-se de uma carta dirigida pela Comissão Paroquial à Comissão Administrativa do Concelho, em 20 de Novembro de 1910, reclamando diversos melhoramentos para Loures. As medidas propostas incidem sobre a segurança e a higiene públicas, a manutenção da legalidade e da ordem, sem esquecer, obviamente, a homenagem aos protagonistas da proclamação da República24. Depois do período revolucionário, a actividade política de António Saraiva parece ter sofrido um breve interregno. Não que o empenho republicano o tivesse abandonado: veja-se o seu nome no topo da subscrição para os festejos do primeiro aniversário da proclamação da República em Loures, contribuindo com a apreciável quantia de cinco mil réis25. Mas nesta fase, as suas prioridades terão sido outras. Casara alguns anos antes26, tinha uma filha, e as instalações da farmácia seriam já insuficientes para a freguesia. Em 1911, encontramos um primeiro anúncio publicitando a “Pharmacia A. Saraiva”, ainda nas mesmas instalações da Farmácia Farinha. No anúncio, António Saraiva recomendava aos “Ex. mos medicos do Concelho” 19 Loures na memória, p. 37 Subsídios, p. 55 21 Esta articulação é demonstrada pelo telegramas trocados entre Eusébio Leão, Governador Civil de Lisboa, e o Administrador do Concelho de Loures. Cf. Loures na memória (Apêndice Documental) 22 Os Administradores do Concelho eram os representantes do governo central a nível concelhio. 23 As Juntas de Paróquia eram o equivalente às actuais Juntas de Freguesia. 24 No final deste trabalho, encontra-se uma transcrição do documento, da minha responsabilidade. 25 Na lista, surge também a sua mãe, identificada como “Viúva Saraiva”, que ofereceu 500 réis. Cf. Almanaque para o concelho de Loures para 1912. 26 Com Maria Efigénia Saiote. 20 4 a sua farmácia, “que tem 50 annos de existencia”, e onde poderiam encontrar “todas as novidades pharmaceuticas, bem como um completo sortido de empolas e pensos esterilisados”27. Ao tempo desta publicação, já decorriam as obras de construção de um novo prédio, espaçoso e central, para onde António Saraiva transferiu depois a residência da família, e as instalações da farmácia. A partir de Maio de 1912, a “Pharmacia Saraiva” passava a funcionar “em frente da estação telegrapho-postal”, e de acordo com os anúncios inseridos no “Quatro de Outubro”, vendia um pouco de tudo: “especialidades pharmaceuticas, artigos de borracha, pensos, empolas e demais artigos esterelisados, Aguas minero-medicinaes, Vinho do Porto para convalescentes, etc., etc.”28 Esta última rubrica incluía artigos tão improváveis como, por exemplo, os bilhetes para os espectáculos levados à cena por figuras locais, na Sociedade Recreio Musical de Loures29! Pouco depois da mudança de instalações da Farmácia Saraiva, ressurge a actividade política do seu proprietário. Em finais de 1913, integra as listas do Partido Republicano para as eleições municipais, e é eleito vereador. Foi depois eleito vice-presidente deste executivo, a que presidiu outro farmacêutico de que já falei, José Pedro Lourenço. Em Abril de 1914, por motivos que não pude descortinar, Lourenço foi objecto de um voto de desconfiança aprovado pelos restantes vereadores, assumindo António Saraiva a presidência30. À época, a política nacional era dominada por três partidos, todos de inspiração republicana. Eram eles, por ordem decrescente de expressão eleitoral, o Partido Democrático, liderado por Afonso Costa; o Partido Evolucionista, chefiado por António José de Almeida; e a União Republicana, de Manuel Brito Camacho. Com estas forças políticas formais, coexistia uma constelação de “bandos”, mais ou menos armados, que disputavam as ruas de Lisboa, acicatados pelos partidos, pelas lojas maçónicas, e pelos sindicatos, mas que ninguém verdadeiramente controlava31. Com o início da guerra na Europa, em meados de 1914, mais se agravava a crise em Portugal: à instabilidade política, que reinava desde 1910, somavam-se agora um enorme aperto de tesouraria, e a inflação. Esta mais que sucinta contextualização política é necessária para se compreenderem os acontecimentos de 1915, e a sua repercussão em Loures. Em inícios desse ano, a conjuntura descrita no parágrafo anterior, e a relutância de todos em assumirem a participação de Portugal na guerra (ou as consequências de uma decisão contrária), criou um vazio de poder: ninguém governava o país. Manuel de Arriaga, presidente da República desde 1910, viu-se assim na contingência de recorrer a um velho general, Pimenta de Castro, cujos tiques ditatoriais não tardaram a manifestar-se. A maioria dos republicanos de Loures era “democrática”, ou seja, partidária de Afonso Costa. Logo que aqui foi conhecida a decisão de Pimenta de Castro de suspender as eleições previstas para Março de 1915, começou a falar-se de “ditadura”. Com a intensificação das perseguições políticas, e perante os rumores de um 27 O Cinco de Outubro, 13 de Agosto de 1911, p. 4. O primeiro anúncio deste teor foi publicado no “Quatro de Outubro”, de 26 de Maio de 1912. A publicação deste reclamo continuará durante quase dois anos, interrompendo-se em Março de 1914. 29 É digno de nota o espectáculo anunciado no “Quatro de Outubro”, de 1 de Dezembro de 1912, cujos bilhetes (a 12 e 20 centavos) se vendiam na Farmácia Saraiva. O programa incluía oito monólogos, dois duetos, uma canção e duas comédias em um acto. No inesperado papel de “Ensaiador e contra-regra”, surge o farmacêutico Moreira Feio. A edição seguinte do “Quatro de Outubro” comentava o espectáculo, satirizando as “mamãs, papás, irmãos e amigos dos nossos artistas” que “levaram os seus lenços encharcadinhos de baba para casa”! 30 Quatro de Outubro, 12 de Abril de 1914, p. 2 31 História de Portugal, VI, p. 484-486 28 5 atentado contra Afonso Costa, “o povo republicano e liberal de Loures resolveu fazer uma manifestação de protesto contra a reacção, mostrando assim o seu regozijo por ter saído incólume de um miserável atentado (...) o sr. dr. Afonso Costa!”32. A manifestação, agendada para o dia 22 de Fevereiro de 1915, “consistia apenas em dar alguns vivas à República e inaugurar uma placa que daria ao largo fronteiro aos Paços do Concelho, o nome de Praça da Liberdade”. Mas o Administrador do Concelho, o general Félix Anastácio Soeiro, “não consentiu”. Perante a atitude dos republicanos de Loures, que “tinham resolvido fazer a sua manifestação (...) custasse o que custasse”, o “patusco do Administrador do Concelho pede força de cavalaria (...) e ao anoitecer, a pacata vila de Loures é sobressaltada com a chegada de uma numerosa força da Guarda Republicana.” “Aquele estado bélico mantém-se até de madrugada, e enquanto a Guarda Republicana corria em perseguição de alguns republicanos, que pelas hortas, montes e vales faziam estalar muitos foguetes e morteiros, os republicanos de Loures reuniam em assembleia magna.” Ali demonstraram “grande amor à República e à liberdade” e “horas depois, quando ainda a força se encontrava na vila, a placa era afixada na parede do largo que ficará sendo a Praça da Liberdade.”33 Não sei se António Saraiva terá estado presente naquela assembleia de republicanos. Mas terá decerto assistido à afixação da placa, uma vez que a Praça da Liberdade ficava (e ainda fica) exactamente em frente da Farmácia Saraiva. Aliás, a notícia de Raimundo Alves continua, com uma curiosíssima referência à farmácia e ao farmacêutico: Dizem-nos que o quartel general durante a célebre noite de segunda-feira última foi a Farmácia Saraiva, onde esteve o Administrador do Concelho e o tenente comandante da força, tendo aquele apresentado este ao proprietário da farmácia, sr. António Saraiva, para dar a impressão de que alguém havia que concordava com a vinda da força para Loures. Dizem-nos que o sr. António Saraiva não devia ter recebido tais visitas, podendo muito bem tê-los despedido, ainda que delicadamente. Também nos informam que quando o Administrador e o comandante da força entrou [sic] na farmácia, ali se encontrava também o sr. Manuel Marques Raso, que imediatamente saiu, para não trocar com eles quaisquer impressões34. Independentemente destas considerações de Raimundo Alves, e do seu tom viperino, o facto é que no dia seguinte à célebre manifestação, a Comissão Executiva municipal aprovava por unanimidade uma moção de desconfiança ao Administrador do Concelho. A moção é assinada por cinco vereadores, entre os quais António Saraiva e Manuel Marques Raso, e o seu conteúdo lança alguma luz sobre a reunião de que tinha sido palco a Farmácia Saraiva. Os signatários, “velhos republicanos”, confirmam que no passado haviam dado o seu apoio para que o general Anastácio se mantivesse como Administrador do Concelho, mas que igualmente lhe teriam dito: “que lhe retiraríamos essa confiança desde o momento em que V. Ex.ª praticasse qualquer acto que nos 32 O relato deste episódio segue a notícia que se lhe refere, redigida por Raimundo Alves, e publicada no Quatro de Outubro de 28 de Fevereiro de 1915. A grafia e a pontuação foram actualizadas. 33 Quatro de Outubro, 28 de Fevereiro de 1915, p. 1 34 Idem, idem, p. 1 6 melindrasse ou afrontasse nos nossos brios de republicanos e homens de ordem”. Passavam depois a retirar-lhe aquela confiança, aludindo à requisição da força da Guarda “requerida por V. Ex.ª sem nos ouvir”, como facto inédito em Loures, “a não ser no tempo da odiosa monarquia.”35 O tom de Raimundo Alves, e do seu “Quatro de Outubro”, mudam sensivelmente na edição seguinte do jornal, onde elogia “o belo discurso, cheio de entusiasmo” pronunciado por António Saraiva na qualidade de presidente da Comissão Executiva municipal, “protestando contra a ditadura” 36. Esta mudança de registo tem também a sua explicação. Enquanto militante destacado do Partido Democrático, Raimundo Alves tinha chamado a si a organização de um congresso dos parlamentares “democráticos” que, nas suas palavras “a ditadura não deixava funcionar em Lisboa”37. O congresso realizou-se de facto, num antigo palácio situado nos arredores de Loures, no dia 4 de Março de 191538. Exprimindo-se, uma vez mais, através do “Quatro de Outubro”, o seu “Proprietário, Director e Editor” mostrava-se agora um homem grato: “a Câmara de Loures e os republicanos do concelho contribuíram poderosamente para o brilhantismo com que decorreu aquele facto histórico”39. O nome de António Saraiva será presença assídua nos elencos municipais de Loures, pelo menos até 40 1942 . Mas a sua intervenção cívica não se esgotou por essa via. Foi um dos grandes impulsionadores da Sociedade Recreio Musical de Loures, participando em 1913 na comissão responsável pela construção da sua sede e na subscrição para a construção do coreto onde durante muitos anos tocou a banda filarmónica de Loures41. Fez igualmente parte da comissão responsável pela construção do edifício dos Paços do Concelho, inaugurado em 1916. Foi também fundador do Corpo de Bombeiros Auxiliares de Loures, criado em 1925. Os documentos que consultei dão-me da sua pessoa a ideia de um homem de genuína convicção republicana, mas sem evidenciar talvez uma verdadeira militância política. As suas posições públicas traduzem, na minha opinião, um bom senso e um pragmatismo que não se coadunam com o perfil da maioria dos políticos da sua época. Por outro lado, os testemunhos de quem o conheceu confirmam-no um homem ponderado, bondoso, devotado à sua família, aos seus amigos e à harmonia social. Talvez por isso, contrariamente ao que se verificou com outras personalidades referidas neste texto, a sua intervenção cívica tenha continuado ao longo de três décadas, sob circunstâncias políticas tão diferentes como a Primeira República e o Estado Novo. António Saraiva morreu em 3 de Setembro de 1955, e este texto é dedicado à sua memória. 35 Idem, idem, p. 2 Quatro de Outubro, 15 de Março de 1915, p. 2 37 Quatro de Outubro, 15 de Março de 1915, p. 1 38 O local escolhido foi o Palácio da Mitra, situado na freguesia de Santo Antão do Tojal. Loures na memória, p. 44 e doc. XIV do respectivo Apêndice Documental. 39 Quatro de Outubro, 15 de Março de 1915, p. 1. 40 Elementos subsidiários, p. 40 e 64. 41 Quatro de Outubro, 19 de Janeiro de 1913, p. 3; Idem, 21 de Setembro de 1913, p. 2; cit. em Memórias, p. 67-68 36 7 APÊNDICE DOCUMENTAL42 Digníssimos cidadãos da Comissão Administrativa do Concelho de Loures A Comissão Paroquial Republicana de Loures, tomando posse da extinta Junta de Paróquia, entre outros assuntos, tratou de vários alvitres a empregar, a fim de que a vila de Loures, sede do concelho, vergonha de todas as Câmaras transactas, seja expurgada de tanta imundície, a bem da higiene pública e do crédito da digníssima Comissão Administrativa do Concelho de Loures, de que vós sois dignos representantes. Entre muitos assuntos a tratar e que esta Comissão vos irá apresentando à medida que V. Ex as se dignem providenciar, lembramos a urgente transformação dumas ruínas existentes na Rua Direita de Loures, pertencente à casa dos herdeiros do Marquês de Fronteira, ruínas estas que além de prejudicarem a estética, têm tendência a desmoronarem-se, podendo causar graves prejuízos aos transeuntes; e estando previsto no Código Administrativo a imediata intervenção das Câmaras sobre tal assunto, pedimos a V. Exas se dignem procederem [sic] como é de justiça. Pedimos mais à Ex.ma Comissão que peça ao Ministro da Fazenda (?) que a parte da Estrada Real nº 60 e 61, onde está situada a vila de Loures, fique a sua limpeza ao cuidado da Câmara, a fim de que possa haver mais asseio, pois os cantoneiros das Obras Públicas apenas varrem uma vez por semana aqui dentro da vila, estando por isso a sede do concelho sempre num estado lastimável de sujidade. Existindo também um cano de esgoto que foi mandado fazer pelas Obras Públicas, faltando apenas a respectiva fossa, pedimos tambem que a digna Comissão Administrativa recorra aos meios necessários para que as Obras Públicas o acabe [sic], fazendo a fossa, obrigando a Câmara por sua vez os proprietários a fazerem a comunicação parcial das suas propriedades, com o respectivo cano geral; será este um melhoramento que não trazendo encargo algum à Camara, melhora sem dúvida as condições higiénicas desta vila. Pedimos que indaguem onde pára uma porção de madeira que serviu de andaime para os canteiros arranjarem o Chafariz de Loures. Estando sob alçada das Comissões Paroquiais a fiscalização do limite das suas paróquias, esta comissão lembra também a conveniência de se proceder a uma rigorosa fiscalização aos aforamentos de terrenos baldios, pois consta que muitos indivíduos deste concelho se apossaram de terrenos que nunca aforaram e que pertencem à Camara; esperamos tambem que V. Exas chamem a atenção dos arrematantes de iluminação para que cumpram os seus contratos, pois a iluminação é mal cuidada e deficientíssima. Por motivo e em homenagem à Junta Revolucionária, pedimos que o Largo do Chafariz passe a ser Praça da República, pois foi ali, na sede do Centro Republicano que a mesma Junta se reuniu, saindo pouco depois com o grande e intemerato republicano e presidente da Comissão Municipal Republicana, nosso correligionário Ex mo Moreira Feio à frente, envolto na nossa bandeira republicana, içando-a logo na Câmara Municipal, apesar de não se saber ainda de que lado estaria a vitória, não medindo os intemeratos homens que compunham a Junta Revolucionária as grandes e graves responsabilidades que os ameaçava [sic]. Espera pois esta Comissão que V. Exas se dignem atendê-la como é de justiça. A Comissão Paroquial Republicana de Loures Presidente António Saraiva Tesoureiro Joaquim Augusto Dias Secretário José Paulo d’Oliveira Vogal Jacinto Duarte Vogal João Gonçalves 42 Cf. Nota 24. O manuscrito foi reproduzido em Loures na memória (Apêndice Documental, n.º VII), sem referência à localização do original. A data do documento foi acrescentada por outra mão, na margem superior: “20-11-910”. Na minha transcrição, actualizei a ortografia e a pontuação. 8 FONTES E BIBLIOGRAFIA Monografias: Assunção, Ana Paula et al. Loures na memória da República. s/l: Serviços Culturais do Muncípio de Loures, 1985 Assunção, Ana Paula. Moreira Feyo – O amigo de Loures. Loures: Câmara Municipal de Loures, 1993 Assunção, Ana Paula et al. Memórias de Loures: subsídios para a história da freguesia. s/l: Junta de Freguesia de Loures, 1997 Alves, Raimundo (ed.). Almanaque para o concelho de Loures para 1912. Loures, 1911 Costa, Américo (ed.) Diccionario corographico de Portugal continental e insular, Vol. VII. Vila do Conde: Ed. do Autor, 1940 Fonseca, Manuel D. Telo da. História da farmácia através da sua legislação, Porto: Emp. Ind. Gráfica do Porto, 1935 Loures - Tradição e mudança. 2 vols. s/l: Serviços Culturais do Município de Loures, 1986 Madeira, Silva. Elementos subsidiários para a história do concelho de Loures. Lisboa: Ed. do Autor, 1974 Mattoso, José (dir.), Ramos, Rui (red.). História de Portugal, Vol. VI., s/l, Círculo de Leitores, 1994 Pelas ruas e lugares de Loures. s/l. Museu Municipal de Loures, 1996 Proença, Álvaro. Subsídios para a história do concelho de Loures. Loures: Ed. do Autor, 1940 Periódicos: “O Cinco de Outubro”, 1911 “O Quatro de Outubro” (depois intitulado apenas “Quatro de Outubro”), 1912-1915 Redigido em 2005; disponível online desde 2008. © António Groen Duarte Este texto pode ser distribuído, citado e reproduzido, desde que seja creditado de acordo com as convenções usuais. 9