ESTÉTICA EDUCATIVA, EMANCIPAÇÃO E ARTESANATO INTELECTUAL: O
QUE LUIZ FERNANDO CARVALHO NOS ENSINA NA TV?
Isabella Ferreira Viana Ribeiro1
Michelle dos Santos (orientador)2
RESUMO
Este Plano Trabalho propõe-se a analisar as relações entre história, educação e imagem, por
meio das minisséries: A Pedra do Reino (2007), Capitu (2008) e Afinal o que querem as
mulheres? (2010), dirigidas por Luiz Fernando Carvalho. Na busca por suprir a carência de
originalidade e romper com os padrões televisivos, o diretor carioca faz uso de elementos
como a metaficção e o anacronismo, propondo uma estética criativa e inovadora, o que não
foi muito bem recebido e reconhecido pelo público. A partir da análise das referidas
minisséries e das reflexões de Charles Wright Mills e Jacques Rancière, sobre o artesanato e a
emancipação intelectual, buscar-se-á discorrer sobre as intenções do diretor-educador em
revolucionar a TV, usando-a para estimular a cidadania, algo que pode ser inclusive
aproveitado nas salas de aula como metodologia de ensino; e discutir acerca das críticas
violentas publicadas sobre sua dramaturgia, o que evidenciará o efeito da massificação
produzida pela indústria cultural sobre os telespectadores, que acostumados com programas
de baixa qualidade, têm seu olhar despreparado para uma programação mais refinada.
PALAVRAS-CHAVE: Estética. TV. Reeducação. Críticas. Massificação.
Luiz Fernando Carvalho (LFC) é um diretor carioca, formado em Letras e
Arquitetura, que desde 1980 integra o núcleo de minisséries da Rede Globo. Após Os Maias
(2001) – sua primeira grande produção – dirigiu Hoje é dia de Maria (2005), adaptação da
obra de Carlos Alberto Soffredini, que contou com duas jornadas.
O principal objetivo de LFC é promover a reeducação do público através da
estética de suas produções. As três minisséries a serem analisadas neste trabalho, A Pedra do
Aluna do curso de História da Universidade Estadual de Goiás – Campus Formosa. Bolsista da modalidade
BIC/UEG, dentro da Iniciação Científica e Tecnológica desta mesma Instituição de Ensino Superior: IC&TUEG. E-mail: [email protected].
2
Graduada em História pela Universidade Estadual de Goiás (2005) e mestre em História Cultural pela
Universidade de Brasília (2008), com trabalhos desenvolvidos sobre o Brasil novecentista e a relação entre
imprensa e história. Foi professora substituta na UnB, lecionando na área de História Social e Política Geral
(séculos XIX e XX). Atualmente é professora titular de História Contemporânea, Estágio Supervisionado I e
Leitura e Produção de Texto na Universidade Estadual de Goiás. Possui experiência em ensino, pesquisa e
extensão, com ênfase nos seguintes temas: história e cidade; história do trabalho no século XX; Literatura,
Cinema e Holocausto; história da estética; uso dos recursos audiovisuais e da ficção no ensino de História. Atuou
em catalogação de Acervos Históricos durante 3 anos. Líder do GPTEC: Grupo de Pesquisa em Imagens
Técnicas. E-mail: [email protected].
1
1
Reino (2007), Capitu (2008) e Afinal, o que querem as mulheres? (2010), revelam a
intensidade de seu trabalho, que pretende revolucionar a televisão brasileira, transmitindo uma
programação de qualidade ao telespectador que, segundo o diretor-educador, está
“emburrecido” pela TV. Tal tarefa encontra grandes obstáculos pelo caminho, pois o público,
acostumado à programação de má qualidade transmitida pela mídia televisiva, não está
preparado para receber e compreender programas mais refinados, o que explica a baixa
audiência de suas minisséries. Isso é visto pelo diretor como um problema de recepção. O
telespectador se acomoda ao que lhe é exposto correntemente e passa a ter dificuldades em
aceitar o diferente.
Esse tipo de produção poderia estar mais ajustado à audiência, na sua visão, se, no
decorrer das décadas, a criação audiovisual como um todo, inclusive o cinema, não
tivesse baixado tanto o nível da linguagem em troca de retorno comercial. Se o
espectador tivesse sido exercitado de outra maneira, de acordo com Luiz Fernando
Carvalho, teríamos não só uma audiência maior para produções estéticas
diferenciadas, como um país melhor.3
As minisséries de LFC trazem às telas de TV elementos ligados ao teatro, cinema
e literatura. O diretor dispõe de grande zelo ao preparar seu elenco e fazê-lo encarnar suas
personagens, para que consigam causar em nós, telespectadores, a emoção que sentimos
quando lemos Ariano Suassuna ou Machado de Assis. A dificuldade de pensar a história para
além do papel, a responsabilidade de transformá-la em imagem é um dos obstáculos
enfrentados por LFC, que faz essa transposição com o intento de estimular a nossa
imaginação.
Suassuna circense/medieval e barroco, Machado anacrônico e impressionista, Freud
despojado e popularizado
Em 2007 a obra de Ariano Suassuna, O Romance d’a Pedra do Reino e O
Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, pôde ser exaltada em forma de minissérie. A Pedra do
Reino mostra a influência da cultura europeia no nordeste brasileiro. Vários elementos
cenográficos, como a grande muralha que cerca a cidade, a lenda de Dom Sebastião (crença
3
CARVALHO, José Reynaldo de Salles. Duas Capitus contemporâneas em teias intersemióticas: uma
mostração rizomática da reescritura na pós-modernidade e na cultura remix. 2011. 161 f. tese (Doutorado em
Literatura) – Programa de Pós-Graduação em Literatura, Universidade de Brasília, Brasília, 2011.
2
que acompanhava os portugueses ao empreenderem suas expedições marítimas), a literatura
de Cordel, o juiz representado como um inquisidor, a carroça de Quaderna feita aos moldes
ciganos, e uma série de outras referências barrocas e medievais, mesclam-se ao mundo
sertanejo, fazem parte da composição estética e simbólica da minissérie.
Figura 1 – Quaderna vestido de palhaço
A história é narrada por Pedro Diniz Ferreira Quaderna que, na figura de um velho
palhaço, narra suas peripécias e sonhos de juventude. Este contador de histórias contribui para
deixar em evidência o aspecto circense que perpassa toda a minissérie que, apesar de
complexa, assim como a obra literária, possui alto teor de comicidade. A produção comoveu o
próprio Ariano Suassuna. O escritor revelou seu apreço nas seguintes palavras:
[...] numa obra extraordinariamente bela que me comoveu como autor e como
pessoa, como espectador. Acho que, como o grande artista que é, ele captou
inteiramente o espírito do romance e meu universo de escritor, cuidando de cada
cena como se fosse um quadro e valendo-se, para a escolha de tais quadros, de
alguns dos Mestres, quase sempre barrocos, que, a meu ver, mais se harmonizam
com o Brasil e nosso grande Povo.4
A Pedra do Reino é a primeira produção do Projeto Quadrante5, sendo seguida de
Capitu. Ao resolver adaptar Dom Casmurro, de Machado de Assis, o diretor escolheu guiar a
obra pelo grande amor de Bento Santiago. Mesmo preservando piamente as falas das
personagens, sem alterar sequer uma linha redigida pelo bruxo do Cosme Velho, LFC
4
CARVALHO, Luiz Fernando (dir.). A Pedra do Reino, Brasil, 2007, 2 vols.
O Projeto Quadrante tem por objetivo adaptar grandes obras da literatura nacional, filmando-as exatamente em
seu local de origem. A Pedra do Reino foi feita em Taperoá e Capitu no Rio de Janeiro. Existem duas produções
a se realizar: Dois Irmãos (Amazonas), de Milton Hatoum, e Dançando Tango (Rio Grande do Sul), de Sérgio
Faraco.
5
3
conseguiu fazer com que Capitu se tornasse ainda mais exuberante na história, atribuindo-lhe
papel de destaque e dando seu nome à minissérie.
A estética utilizada em Capitu é ainda mais ousada que nas minisséries anteriores.
Aqui o diretor usa e abusa do artifício, valendo-se do anacronismo para compor seu cenário,
pois o próprio tempo é tido como um personagem (múltiplo, é claro). Vários elementos da
atualidade mesclam-se a outros da época original da obra. Logo no primeiro capitulo, Dom
Casmurro está à bordo de um metrô contemporâneo todo pichado e podemos vislumbrar
imagens de ferrovias do século XIX misturadas a outras do século XXI. A tatuagem da atriz
Letícia Perciles, que interpreta a Capitu da primeira fase, é mantida e, inclusive, recriada na
Capitu adulta, vivida por Maria Fernanda Cândido. Objetos como câmeras, celulares e
aparelhos de MP3 aparecem em algumas cenas. A trilha sonora, longe de ser composta apenas
pela música instrumental concernente à época, é feita da mistura de ópera, samba e rock.
Além dos aspectos anacrônicos, podemos ressaltar o estimulo à imaginação
proposto pela direção no cenário que constitui a casa de Bento Santiago; ele foi gravado em
um espaço aberto, com cortinas se descerrando a cada entrada de cena e portas que
acompanham os personagens conforme vão se movimentando. O portão da casa de Capitu é
desenhado à giz, assim como a linha que pretende unir as duas pontas da vida de Dom
Casmurro.
Figura 2 – O portão de giz da casa de Capitu
Todos os artifícios empregados por LFC negam a ideia de que Machado de Assis
seria um escritor que se prendeu ao que é real. Sua obra, por ser tão aclamada na época (e
ainda hoje) ganhou status de realista, pois sofreu uma apropriação, pretensiosa, por parte
4
desta escola que estava em advento. Na verdade, o escritor sempre repudiou o realismo,
afirmando que “a realidade é boa, o realismo é que não presta para nada”. A minissérie Capitu
quer deixar em evidência o caráter impressionista de Dom Casmurro, mostrando sua grande
intenção de ser ficcional, não objetivo ou mimético.
Um dos objetivos de LFC, quando busca romper com essa usurpação realista, é
promover a aproximação e apreciação do público, principalmente dos mais jovens, de
Machado de Assis. Ao fazer uma leitura mais atual e despojada de Dom Casmurro intencionase mostrar um escritor moderno e impressionista, não sisudo e solene (porque canônico). O
escritor Gustavo Bernardo fala sobre os problemas causados pela elitização da obra
machadiana, prejudicando suas intenções originais.
A persistência no equivoco é mortal não apenas para a parte supostamente menor de
sua obra, mas também para a parte supostamente maior, monumentalizada ao ponto
de se tornar inócua ou insuportável, em especial para os mais jovens. Atribuir à
literatura de Machado de Assis a condição de realista ajuda o seu processo
canonização exatamente porque o realismo acaba sendo o ponto de vista dominante,
reforçando a perspectiva do status quo.6
A estética de Capitu visa amenizar os prejuízos causados por essa assimilação que
monumentaliza, elitiza, distorce e, por fim, provoca o afastamento dos leitores mais jovens.
Proposta semelhante a essa podemos observar em Afinal, o que querem as mulheres? A
minissérie, contemporânea, trabalha com aspectos ainda mais próximos do grande público. O
título da produção é uma famosa pergunta de Sigmund Freud, que buscava compreender o que
se passava na mente de suas pacientes, tidas por ele, como neuróticas.
A história – diferentemente das outras duas abordagens – não é uma adaptação,
possui roteiro original. Um dos escritores, Michel Melamed, é o protagonista da trama que,
assim como Freud, faz a pergunta que é tema de sua tese de doutorado: Afinal, o que querem
as mulheres? Na obsessão por responder tal interrogação e terminar o seu trabalho, André
Newmann acaba descuidando e perdendo a mulher que ama. Seu texto obtém grande êxito e
acaba por se tornar um livro e depois uma série de TV. Mesmo com toda essa aclamação, o
protagonista se questiona de que adiantava ter “solucionado” o problema que evocou em sua
tese se perdeu, pois não soube valorizar, a única mulher que realmente lhe importava.
6
BERNARDO, Gustavo. O livro da Metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra Bazar Editorial, 2010, p.135.
5
LFC utiliza uma estética contemporânea voltada à pop art de Andy Warhol, na
qual manifesta-se uma crítica à sociedade de consumo e aos estereótipos que nos cercam. O
diálogo com tecnologias cinematográficas também se faz muito presente nos aspectos
artísticos da minissérie. Através do recurso stop motion, uma técnica de movimento quadro a
quadro, foi possível criar o boneco do Dr. Freud, que conversa com André em sua
imaginação.
Figura 3 – Boneco do Dr. Freud
O boneco do pai da psicanálise, concebido pelo protagonista, longe de ser apenas
um recurso estético, serve para agenciar a interação do público com as ideias do famoso
médico, apresentando-as de forma menos formal e mais descontraída, para suavizar seu nível
de complexidade e promover a compreensão dos espectadores que tiveram pouco ou nenhum
contato com o assunto. A própria linguagem de Afinal...? é apresentada de forma livre e
coloquial, e está mais sintonizada com o vocabulário televisivo, até porque não foi adaptada
de nenhum texto literário, como são os casos de A Pedra do Reino e de Capitu.
Promovendo a autonomia do público por meio da TV
Ao longo da história, a TV sempre foi um veículo de informação subjugado e
considerado de baixa qualidade, principalmente nos meios acadêmicos e intelectuais.
Baseando-se nisso alguns padrões de qualidade foram estabelecidos a respeito do que deve-se
assistir ou como assistir aquilo que é transmitido pela TV.
6
Desde que surgiu, a televisão é um inegável sucesso popular. Esse sucesso,
entretanto, vem incomodando muita gente, e ela se tornou a mídia mais criticada
entre a elite intelectual – que é quem realmente lidera essa discussão – e mostra o
que esse grupo sonha assistir.7
O escritor Newton Canitto é doutor em televisão e fala sobre a relação deste meio
com as novas mídias que surgiram e têm alcançado cada vez mais espaço no cenário das
comunicações, como é o caso da internet. O autor defende que nem com o advento dessas
novas mídias, a TV deixaria de ser consumida, pois cada veículo tem suas especificidades e
potencialidades. Dentro das peculiaridades relativas à televisão podemos destacar os padrões
que a definem. Um, em especial, interessa-nos de perto, o Padrão Globo de qualidade, já que,
as 3 minisséries trabalhadas são por essa emissora transmitidas. Ele existe desde 1970 e foi
sendo modificado ao longo dos anos.
Esse padrão poderia ser definido por duas características: apuro técnico e “bom
gosto”. Hoje, depois de a Globo entrar na era Big Brother, esse padrão restringe-se
ao apuro técnico. Esse está na qualidade das imagens, dos figurinos, das locações.
Isso, por um lado é bom; por outro, é obviamente uma tendência centralizadora, por
diferenciar o próprio conteúdo dos demais com o poder financeiro e a possibilidade
de obter os melhores equipamentos e a melhor qualidade técnica. A estratégia atual
da Globo, de tentar “acostumar” o público à imagem em alta definição, faz parte
dessa tendência.8
Não podemos negar a qualidade técnica presente nos equipamentos, locações e
figurinos da Rede Globo. Mas, e quanto a seu uso? Estariam esses recursos técnicos sendo
empregados em programas de qualidade? Contribuindo para trazer ao telespectador elementos
artísticos e literários? Essa é, justamente, a crítica que LFC faz ao que é transmitido
rotineiramente ao público. Suas minisséries buscam suprir a carência de originalidade
presente na programação, principalmente, da TV aberta. A rede de canais por assinatura tem
crescido cada vez mais, possibilitando o acesso à programas mais alternativos como, por
exemplo, filmes e seriados, o que não significa que todos tenham esse privilégio. A maioria
da população só tem disponível a TV aberta – e muitas vezes ainda não tem acesso à internet
– e não merece ser enxovalhada com programas de baixa qualidade. Para LFC, a TV não deve
se preocupar apenas em formar espectadores assíduos (audiência esperada), mas deve,
primeiramente, se preocupar com a formação pessoal e intelectual de cada interlocutor.
7
CANNIDO, Newton Guimarães. A televisão na era digital: iteratividade, convergência e novos modelos de
negócio. São Paulo: Summus, 2010, p.31.
8
Ibidem, p. 32.
7
Ao meu modo, faço esse caminho de buscar uma espécie de reeducação do
espectador a partir das imagens, dos conteúdos, da forma, da narrativa, da luz, das
personagens, da música, enfim, da estética. E, como sabemos, a estética é filha da
ética. Não estou aqui falando mal da televisão. Eu gostaria na verdade é de encontrar
nosso país mais voltado para as questões educacionais, acho que isso já suavizaria
meu esforço em 50%... Porque eu também não gosto de explicar muito o meu
trabalho, nem sei se sou capaz. Mas ele dialoga diretamente com a questão da
educação. A televisão precisa formar espectadores, é certo, faz parte do trabalho
dela, mas ela também precisa assumir uma missão mais nobre, maior, que é a de
formar cidadãos.9
Seguindo essa perspectiva de educação pela TV, LFC busca emancipar o
telespectador fazendo com que ele adquira um olhar crítico diante do que recebe. Com essa
proposta, o diretor-educador age como o artesão que prega a autonomia através de seu
trabalho, prezando sempre pela originalidade em lugar do obsoleto e pela criatividade em
lugar do simplório. Suas ideias vão ao encontro das teorias de Charles Wright Mills (2009)
sobre o artesanato intelectual. O sociólogo americano dirá que o bom artesão não distingue
seu trabalho de sua vida pessoal, ao contrário, procurará o envolvimento mútuo entre ambas,
pois as atividades devem ser feitas com prazer, visando o enriquecimento pessoal do artesão.
O artesanato deve ser encarado como um ideal e não pode ser limitado por fatores
burocráticos ou regras preestabelecidas, deve-se buscar a criatividade mesmo correndo os
riscos do não-reconhecimento. O artesão deve deixar que sua imaginação flua e incentivar
para que os outros assim também procedam diante do que criam ou do que vislumbram.
Estimule a reabilitação do artesão intelectual despretensioso, e tente se tornar você
mesmo tal artesão. Deixe que cada homem seja seu próprio metodologista; deixe
que cada homem seja seu próprio teorizador; deixe que teoria e método se tornem
parte da prática de um ofício [...]. Seja uma mente independente na confrontação dos
problemas do homem sobre a sociedade (MILLS, 2009, p.56). 10
Deixar “que cada homem seja seu próprio metodologista” significa permitir que
ele dê asas à sua imaginação e ouse criar. Esse estimulo ao pensamento criativo é evocado
pelo cenário sem paredes em Capitu. O espaço aberto faz com que possamos imaginar como
seria cada canto da casa onde decorre a cena. O espectador é presenteado com a possibilidade
de criar um espetáculo particular em sua cabeça.
9
CARVALHO, Luiz Fernando (et al). Capitu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008, p. 83.
MILLS, Charles Wright. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2009.
10
8
Figura 4 – Espaço da casa de Bentinho, com cortinas que se abrem e portas que se
movimentam
Essa postura libertária, que dá autonomia ao espectador, faz com que LFC se
assemelhe ao mestre sábio pregado por Jacques Rancière. Segundo ele, enquanto o mestre
ignorante embrutece seus alunos, o mestre sábio busca emancipá-los, pois compreende que
existem tipos diferentes de inteligência e não a falta dela, resta ao bom mestre então, estimular
a criatividade e a imaginação de seus aprendizes. Quanto à isso podemos dizer que “Tudo está
em tudo!”. Na produção de um livro, o homem que fez a pena de escrever dispôs de tanta
inteligência quanto aquele que criou a palavra. Sendo assim, sábio é o mestre que reconhece a
igualdade de inteligências e não se eleva a um status de superioridade. O ser emancipado
torna-se emancipador e fornece “não a chave do saber, mas a consciência daquilo que pode
uma inteligência, quando ela se considera como igual a qualquer outra e considera qualquer
outra como igual à sua”. Rancière reforça que:
A emancipação é a consciência dessa igualdade, dessa reciprocidade que, somente
ela, permite que a inteligência se atualize pela verificação. O que embrutece o povo
não é a falta de instrução, mas a crença na inferioridade de sua inteligência. E o que
embrutece os "inferiores" embrutece, ao mesmo tempo, os "superiores". Pois só
verifica sua inteligência aquele que fala a um semelhante, capaz de verificar a
igualdade das duas inteligências.11
Ao lançar mão de uma estética mais ousada, LFC espera estimular a inteligência
do telespectador “emburrecido” pelos mass media. Esse atrevimento enfrentou muitas
resistências. LFC recebeu críticas espinhosas em relação a seu trabalho emancipador. O
público teve dificuldades para compreender a estética de suas minisséries. A Pedra do Reino
11
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte:
Auténtica, 2002, p. 50.
9
teve em sua exibição uma baixíssima audiência e, quanto a isso, o diretor afirmou que: “Ela é
hermética mesmo, assim como o romance. Ainda tenho as costas cheias de cicatrizes por ter
feito A Pedra do Reino como fiz. Talvez tenha testado radicalmente os limites da TV”
(VIVALBA, 2012)12. E de fato testou! A Rede Globo, antes de LFC, não havia transmitido
nada comparado à estética que vemos nas minisséries aqui abordadas. Aquilo que é
revolucionário costuma despertar a rejeição daqueles que prezam pela continuidade do que
está estabelecido:
Luiz Fernando Carvalho, diretor da série televisiva Capitu, é o mais perfeito Escobar
que surgiu até agora. Seu "Dom Casmurro" tem o nariz de Luiz Fernando Carvalho,
tem o sorriso de Luiz Fernando Carvalho, tem a mentalidade de Luiz Fernando
Carvalho. Nada nele recorda o "Dom Casmurro" de Machado de Assis, apesar de
reproduzir diálogos do romance. Na série, Bentinho aparece estranhamente
caracterizado como Dick Vigarista, do desenho animado Corrida Maluca: nas
roupas, no bigode, na magreza, no temperamento e, acima de tudo, na canastrice do
ator que desempenha seu papel. Qual é o melhor candidato a Muttley? O agregado
José Dias.13
As críticas espinhosas do colunista da revista Veja, Diogo Mainardi, revelam sua
dificuldade (ou má vontade) de compreender as escolhas estéticas de Capitu. Elas dão mostras
também de sua necessidade de atacar o novo, em prol da velha atribuição realista à Machado
de Assis. Ao contrário dele, o estudioso no assunto, Gustavo Bernardo (citado anteriormente),
elogiou a postura de LFC e disse que “A desconstrução da estética realista na minissérie
Capitu, de Luiz Fernando Carvalho, recupera o caráter subversivo da escrita do mestre da
metaficcionalidade”14.
Capitu deixa à luz o caráter sedicioso da obra machadiana e LFC pretende
revolucionar os padrões televisivos atuais. Suas minisséries podem ser introduzidas nos meios
acadêmicos no tocante às relações de interdisciplinaridade entre a história, a literatura e as
artes com os meios de comunicação e com a educação. Podemos falar aqui de um processo de
educomunicação, que trata, justamente, da introdução de mídias como a TV no ambiente
educacional. As minisséries de LFC podem favorecer essa dinâmica que “busca aproximar
professores e estudantes de vivencias típicas dos MC, meios de comunicação, com o intuito
VILLALBA, Patrícia. “Freud Explica”. In http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,freudexplica,635078,0.htm. Acessado em 03/mar/2012.
13
http://veja.abril.com.br/171208/mainardi.shtml
14
http://www.jb.com.br/cultura/noticias/2010/03/13/em-ensaio-gustavo-bernardo-investiga-a-autoreflexaonarrativa/
12
10
de fazer com que os indivíduos se apropriem e se tornem sujeitos dessas linguagens”15.
Observando as pretensões desse processo, veremos que está de acordo com a reeducação
proposta por LFC.
Com relação, especificamente, aos estudos históricos, minisséries ricas como as
de LFC podem ser utilizadas como fontes de pesquisa, pois além de trazerem muitas
informações históricas e literárias revelam uma proposta inovadora de interação entre o
público e a TV. O diretor-educador fez história com suas produções, conseguiu mostrar que
nem só os livros de história podem contar a lenda de Dom Sebastião de Portugal; nem só as
aulas de português nos ensinarão sobre Machado de Assis; e nem só os compêndios de
psicologia conseguem expor as explicações do pai da psicanálise – por meio da Rede Globo
foi possível receber tais ensinamentos.
Fontes:
CARVALHO, Luiz Fernando (dir.). A Pedra do Reino, Brasil, 2007, 2 vols.
CARVALHO, Luiz Fernando (dir.). Capitu, Brasil, 2009, 2 vols.
CARVALHO, Luiz Fernando (dir.). Afinal, o que querem as mulheres?. Brasil, 2011, 3 vols.
Referências bibliográficas
BERNARDO, Gustavo. O livro da Metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra Bazar Editorial,
2010.
CANNIDO, Newton Guimarães. A televisão na era digital: iteratividade, convergência e
novos modelos de negócio. São Paulo: Summus, 2010.
CARVALHO, Luiz Fernando (et al). Capitu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.
CARVALHO, José Reynaldo de Salles. Duas Capitus contemporâneas em teias
intersemióticas: uma mostração rizomática da reescritura na pós-modernidade e na cultura
remix. 2011. 161 f. tese (Doutorado em Literatura) – Programa de Pós-Graduação em
Literatura, Universidade de Brasília, Brasília, 2011.
15
ZANCHETTA JR. Juvenal. Estudos sobre recepção midiática e educação no Brasil. Educ. Soc., Campinas,
vol.
28,
n.
101,
p.
1455-1475,
set./dez.
2007,
p.
1463.
Disponível
em:
http://www.scielo.br/pdf/es/v28n101/a1028101.pdf. Acessado em 17/set/2014.
11
CAVALCANTI, José Antônio. Em ensaio, Gustavo Bernardo investiga a autoreflexão
narrativa. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 mar. 2010. Cultura. Disponível em:
http://www.jb.com.br/cultura/noticias/2010/03/13/em-ensaio-gustavo-bernardo-investiga-aautoreflexao-narrativa/. Acesso em: 19 nov. 2013.
MAINARDI, Diogo. E Machado virou circo... Veja.com, 17 dez. 2008. Televisão – Diogo
Mainardi. Disponível em: http://veja.abril.com.br/171208/mainardi.shtml. Acesso em: 19
nov. 2013.
MILLS, Charles Wright. Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2009.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo
Horizonte: Auténtica, 2002.
VILLALBA,
Patrícia.
“Freud
Explica”.
In
http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,freud-explica,635078,0.htm. Acessado em
03/mar/2012.
ZANCHETTA JR. Juvenal. Estudos sobre recepção midiática e educação no Brasil. Educ.
Soc., Campinas, vol. 28, n. 101, p. 1455-1475, set./dez. 2007. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/es/v28n101/a1028101.pdf. Acessado em 17/set/2014.
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O QUE LUIZ FERNANDO CARVALHO NOS ENSINA NA TV?