ESPAÇO URBANO E MARGINALIZAÇÃO EM MACEIÓ (1895-1905) Osvaldo Batista Acioly Maciel 2 ESPAÇO URBANO E MARGINALIZAÇÃO EM MACEIÓ (1895-1905) Osvaldo Batista Acioly Maciel (professor da SEMED/Maceió e da FFPA - FUNESA/AL) Neste texto procuramos refletir acerca do processo de exclusão social que se apresenta na produção do espaço urbano de Maceió na virada para o século XX. Assim, destacamos tanto o crescente aumento do contingente de habitantes que vem engrossar o grupo dos mais pobres da cidade, como a política de iluminação implementada pelo poder público municipal. Produtores de exclusão em seus diversos sentidos, concentramo-nos no discurso de marginalização que está ligado a tais práticas, tomando como fonte principal a imprensa da época. O MAPA DE MACEIÓ Douglas Apratto Tenório1 indica como momento inicial de modernização da cidade de Maceió – e por extensão do Estado – a segunda metade do século XIX, com a chegada das ferrovias, o aumento dos jornais e dos divertimentos sociais. Craveiro Costa,2 por sua vez, aponta que é com o advento da República que a cidade começa a tomar vulto e sair do marasmo de “uma aldeia crescida ao abandono do poder público” pois só com o novo regime os municípios ganham certa autonomia administrativa e financeira. Manuel Diegues Junior,3 em seu ensaio freireano sobre a Maceió republicana, e Félix Lima Junior,4 em suas crônicas memorialísticas, acompanham, com um tom de saudosismo da velha cidade que se esvaía, a interpretação de Craveiro Costa. 1 TENÓRIO, Douglas Apratto. “O início da modernização na província de Alagoas” In: Revista do CCHLA/UFAL. Maceió: EDUFAL, ano II, nº 4, jun/1987. (pp.66-75) 2 COSTA, Craveiro. Maceió. Maceió: DAC, 1981. p 176. 3 DIEGUES JR., Manuel. “Evolução urbana e social de Maceió no período republicano” In: COSTA, Craveiro. Maceió. Op. cit.. (pp200-219) 4 LIMA JR., Félix. Maceió de outrora- vol 1 (apresent. Por Théo Brandão). Maceió: DAC-MEC/APASENEC. 1976; e Maceió de outrora- vol 2 (org. e apresent. Por Rachel Rocha). Maceió: EDUFAL, 2001. 3 A cidade, em inícios do século XX possuía quatro bairros:5 Maceió, Jaraguá e Levada, que ficavam na parte baixa da cidade, e o Alto do Jacutinga. Indo na direção Norte, arrastando-se preguiçosamente no nível do mar, temos o arrabalde da Mangabeiras e os povoados de Ipioca, Mirin, Garça Torta e Riacho Doce.6 Em direção ao Sul, temos na restinga entre o mar e as lagoas, o arrabalde do Trapiche e o povoado de Pontal da Barra. Ainda na área mais ao Sul, afastando-se do litoral, mas margeando ainda as lagoas, teríamos os arrabaldes de Mutange, Bom Parto, Bebedouro. Neste sentido, saia-se da cidade em direção da Fábrica de Fernão Velho e das outras três, que já ficavam em áreas pertencentes a outros municípios. Já o Alto do Jacutinga, localiza-se num tabuleiro elevado no sentido Oeste da cidade. Contraditoriamente, o lugar é representado na imprensa da época ora como área mal assombrada, matagal que circunda a cidade, para onde corriam marginais, ora como novo bairro chique da gente “abastada”, que buscava paz e sossego em chácaras e sítios. A POPULAÇÃO Para uma melhor visualização do quadro populacional de Maceió e de sua evolução neste período, elaboramos um quadro que compara a capital alagoana com as duas maiores capitais do Nordeste.7 5 Este panorama foi baseado em JOBIM, Hugo. “Geographia” [sic] In: Indicador geral do Estado de Alagoas. Typ. Commercial M. J. Ramalho: Maceió, 1902. pp9-48. 6 Ao que parece a diferença entre arrabaldes (ou subúrbios) e povoados, é que aqueles localizavam-se no continuum do perímetro urbano propriamente dito, enquanto que para se chegar a estes, atravessavase matagais e áreas desabitadas. 7 Fontes: FIBGE – Anuário Estatístico do Brasil Apud GAREIS, Maria da Guia Santos. Industrialização no Nordeste. Rio de Janeiro: Notrya, 1994; SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana: análise da evolução econômica de São Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. 2ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1977; e LIMA, Lúcia Maria Cunha Alves de. Industrialização e organização do espaço urbano: o caso de Maceió. Recife, Dissertação de Mestrado em Geografia, 1982. (mimeo); Verbete Maceió In: Encyclopedia e Dicionario Internacional, Vol II. W. M. Jackson Editor, s/l, s/d. p. 6816. Alguns autores, em especial Craveiro Costa, irão criticar tais dados, reclamando das metodologias empregadas nos censos, e chegando a apontar números diversos para o censo de 1900. Estes números, no entanto, não alteram substancialmente o quadro apresentado acima. Cf. COSTA, Craveiro. Maceió. Maceió: DAC, 1981. pp191-4; e JOBIM, Hugo. “Geographia” In: Indicador Geral do Estado de Alagoas. Op. cit.Typ. pp30-31. Apesar das diversas reservas indicadas, até onde conhecemos, estes censos são a fonte mais segura para se conseguir informações mínimas acerca da população de Maceió e de seu crescimento no período estudado. 4 ANO SALVADOR RECIFE MACEIÓ 1872 129.109 116.671 27.703 1880 174.412 111.556 - 1890 - - 31.498 1900 205.813 113.106 36.427 1910 - - 45.000 1920 283.422 238.843 74.166 Embora Maceió, em números absolutos, esteja num patamar diferenciado em comparação com Salvador e Recife, entre 1872 e 1920, ela insere-se numa curva de crescimento populacional semelhante às destas duas capitais nordestinas. Aproximadamente, em 1872 a população de Maceió correspondia a quase 1/5 da população soteropolitana e a cerca de 1/4 da população recifense. Até 1920, esta proporção chegará a aproximadamente menos de 1/4 em relação à primeira e 1/3 em relação à segunda. No que se refere às taxas de crescimento apresentadas aqui, no entanto, as três capitais formam uma linha de crescimento muito lento numa primeira fase (1872 - 1900) enquanto que, numa segunda fase (1900 – 1920), tal evolução acentua-se, principalmente para os casos de Maceió e Recife. No Estado, Maceió era seguida de perto por Viçosa, vindo logo depois União dos Palmares e Porto Calvo,8 além obviamente de Penedo. Centro comercial e político desde a primeira metade do século XIX, para a cidade afluíam desde comerciantes e representantes de firmas estrangeiras até os pequenos agricultores e miseráveis, expulsos das áreas rurais pela ampliação dos canaviais na mata e pela decadência do algodão no interior do estado. O número de habitantes será aumentado, também, pelos filhos de coronéis que vinham em busca de uma melhor educação e de colocação no quadro do funcionalismo estadual. Parece-nos que é neste período que a população da cidade começa a perder os laços de comunidade, característico dos pequenos núcleos populacionais, incorporando facetas da modernidade. Nas ruas, novos transeuntes 8 LIMA JR., Félix. Maceió de outrora- vol 1. Op. cit. p121. 5 compõem um quadro com elementos estranho. Uma parte dos seus habitantes não mais se reconhece nem sabe de suas origens e vida. Àquela época, nas maiores cidades do país, acontecia o que Olgária Matos chama de passagem do “espaço qualitativo”, onde o homem pode se reconhecer pois a cidade ainda possui um “valor de uso”, para o “espaço quantitativo e abstrato”, onde o “valor-de-troca” determina um estranhamento por conta da “onipresença do trabalho abstrato na sociedade”.9 Em Maceió, este processo estava em seus inícios e ainda não se completara. A cidade, então, mostrava-se com uma impressão singular de transição, resguardando-se uma certa “urbanidade insipiente”, na expressão de Rachel Rocha.10 ILUMINAÇÃO A sociedade capitalista projeta uma necessidade de ordenamento social no que toca a questão do espaço. Esta necessidade projeta-se, também, para o problema do tempo.11 Entendemos que a eletricidade, no conjunto da política de iluminação pública implementada na cidade, sirva de instrumento que avança nos dois sentidos de ordenamento social do espaço e do tempo. Talvez seja possível falar, no longo prazo, de um projeto de “domesticação” da noite, de enquadramento das práticas realizadas durante esta outra metade do dia, em atividades e ocupações que favoreçam o bom ordenamento da sociedade. É interessante, então, perceber a ocupação do escuro pela luz: a necessidade de iluminar as ruas e trajetos das pessoas durante o maior tempo possível. Esta disputa entre a luz e as trevas é composta de avanços e recuos, de facilitações e resistências. Grosso modo, o discurso dos jornais da época acerca desta questão quer fazer corresponder a estes dois estados físicos (de iluminação e escuridão) duas representações distintas acerca da população de Maceió: os ricos e os pobres; o bem e o mal; o trabalhador e o vadio; o cidadão e o marginal. 9 MATOS, Olgária. “A cidade e o tempo: algumas reflexões sobre a função social da lembrança” In: História viajante: notações filosóficas. São Paulo:Estúdio Nobel, 1997. (pp118-127) p118. 10 ROCHA, Rachel. “Apresentação” In: LIMA JR., Félix. Maceió de outrora- vol 2. Maceió: EDUFAL, 2001. p206. 11 A este respeito, ver THOMPSON, Edward P. “Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial” In: Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad. de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. (pp267-304) 6 São constantes os reclamos de moradores e cidadãos, através dos jornais, quanto aos problemas oriundos da falta de iluminação. Em 1897, quando a eletricidade surge na cidade e passa a suplantar aos poucos a iluminação a azeite, querosene e a gás (outra novidade, que termina sendo descartada), tal “melhoramento” passa a ser decantado como progresso civilizacional. Maceió, para muitos de então, era a 1ª capital de Estado a conseguir tal benefício.12 Enquanto novidade, esta tecnologia trará diversos problemas e durante bom tempo não funcionará a contento. Ao longo de todo o período estudado (1895-1905), mas principalmente no primeiro semestre de 1903, haverá na imprensa uma intensa campanha pela melhoria da oferta de energia elétrica na cidade durante o período noturno. O jornal A Tribuna, neste período, associa claramente as constantes falhas na iluminação noturna com o surgimento de ladrões e o aumento de roubos, tendo em vistas que, nas escuras, a guarda policial nada pode fazer e os “amigos do alheio” fogem com tranqüilidade.13 A iluminação ocupa inicialmente o espaço mais nobre da cidade, onde estão as maiores fortunas e bens a serem protegidos. Não alcança todas as ruas por igual, e as vai alcançando com deficiência. Durante alguns anos deste momento de transição, com escadas às costas, de poste em poste, de lampião em lampião, ainda se verá o personagem do famoso soneto de Jorge de Lima circulando pelo traçado urbano. Para além do drama do último terceto, onde anuncia-se que “Ele que doira a noite e ilumina a cidade//Talvez não tenha luz na choupana em que habita”14, vemos um profissional consciente de seu fim, de sua obsolescência, desvalorizado pela inovação tecnológica. Um ofício do século que se encerra, e não do que se abre. 12 Gildo Magalhães indica que Maceió teria inaugurado seus sistema de iluminação pública em 1895. Talvez este ano se refira ao da concessão do serviço que, pelo que confirmam diversos relatos, reportagens e memórias, só seria efetivada dois anos depois(1897). De qualquer forma, pelo menos 3 outras capitais de Estado já teriam esta tecnologia ao seu dispor aquele ano: Porto Alegre, São Paulo e Curitiba. In: Força e Luz: eletricidade e modernização na República Velha. São Paulo: Ed.Unesp/FAPESP, 2000. p68. 13 Ver, por exemplo, A Tribuna, 2 de fevereiro de 1903, p1. 14 LIMA (de), Jorge. Poesias Completas – vol I. Rio de Janeiro/Brasília:J. Aguilar/INL, 1974. p62. 7 MARGINALIZAÇÃO À noite, a cidade inteira vira um convite para os “desclassificados” - pobres, mendigos, vagabundos, errantes e desempregados.15 Algumas causas diretas que contribuem para tal fenômeno são a falta de oportunidade de trabalho, falta de abrigo para passar a noite, o número cada vez maior de pessoas que afluem para a capital, etc. Concorre para isto também uma certa dispersão das áreas de habitação aburguesada da cidade.16 Os núcleos de habitação estão concentrados nos bairros de Maceió e Jaraguá. Entre eles, há interstícios e certos “vazios” de casas/habitações. Isto é mais perceptível, particularmente, nas áreas que margeiam estes bairros e nos arrabaldes do Trapiche, do Poço e do Bebedouro, além da área – então periférica - da Pajuçara. Tais “brechas”, além de emprestarem uma característica suburbana a toda a capital alagoana, terminam por ser ocupadas pelos despossuídos, pelo lupemproletariado, tornando-se verdadeiros “lugares de alteridade.” 17 Motivada por um assassinato ocorrido na Ponta Grossa, uma carta endereçada ao sr. Coronel João Gatto, 1º comissário de polícia da capital, permite-nos ver um desses “lugares de alteridade”. Assinada por “alguns habitantes”, a carta inicia-se com elogios a autoridade e emenda uma reivindicação: Somos pobres, porém o pobre também precisa de paz, também necessita de tranquillidade; por isso é que viemos a V. S. pedir encarecidamente para mandar ou fazer de vez em quando uma visita policial na Ponta Grossa, onde quase sempre assistirmos [sic] desacatos praticados por indivíduos, que munidos de armas procuram embriagar-se para roubar a nossa tranquillidade e a dos transeuntes, como sempre aconteceu. 15 Os membros das elites locais também irão aproveitar o período noturno para encomendar e fazer certos serviços, sendo um dos mais comuns o empastelamento de jornais. O crime e a desordem estão muito presente neste grupo social, até bem mais presentes do que mostram as crônicas e a historiografia local. Para a linha de argumentação que desenvolvemos aqui, no entanto, privilegiaremos na exposição aspectos relacionados àquele outro grupo social, dos pobres. 16 Queremos nos referir, com esta expressão, não necessariamente à burguesia em sentido estrito, muito débil então, mas ao tipo de convívio estabelecido por este setor: de amenidade, de ordem, de recato e de um certo asseio, na medida do que é possível no início do século XX. Parece haver um descompasso entre a formação de uma classe efetivamente burguesa no Nordeste e o surgimento de valores burgueses na região. Estes, ao que parece, vieram antes daqueles, revestidos da noção de “civilização européia” e de “progresso”. 17 A expressão é utilizada por Sandra Jatahy PESAVENTO em seu Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 2001. Ver particularmente o 2° capítulo. 8 Nas imediações da Boca da Levada existe um banheiro denominado Reino encantado, onde reúnem-se quase todas às noites e principalmente nas de sabbado, diversos individuos armados, fazendo assim um alarido enorme, cujo resultado tem sido muitas vezes inconveniente.18 A levada e a confluência entre o Jaraguá e a Pajuçara, no que virá a ser depois a Ponta da Terra, serão outras áreas estigmatizadas pela imprensa contemporânea como foco de problemas. O antigo Biombo do Paulo, chamado rua Paes Pinto, nos fundos da Usina da Luz Elétrica, constitui-se então num “adubado jardim” para “camélias” e prostitutas. Marginais, recém chegados e ciganos juntavam-se naquela redondeza.19 Nem mesmo os Fandangos organizados por donos de tabernas e botequins para melhorar o movimento de seus negócios escapam da repressão policial.20 No entanto, numa perigosa e instituinte proximidade entre marginalidade e aparelho de segurança, era para tais lugares que os policiais acorriam em suas horas de folgas. A arruaça e a desordem também encontravam-se no centro da Cidade, vizinho das casas comerciais e das redações de jornais. A mulata Suzana Maria da Conceição, depois de uma denúncia de que na rua São José existiam umas “crioulas” que incomodavam a vizinhança a noite com algazarras e palavrões, foi chamada a se esclarecer diante do “zelloso” 1º comissário de polícia da capital. Ao que parece, ela trabalhava de doméstica no prédio vizinho ao da redação dA Tribuna, e a suspeita dos distúrbios só caíra sobre ela pela forma como o jornal encaminhara a denúncia. Sendo assim, após se esclarecer com o chefe de polícia, Suzana vai a redação exigir uma reparação do jornal, quando fornece indicações sobre os verdadeiros autores da anarquia noturna. Ela diz “não partir de sua casa os palavrões e as indecencias [...] e sim de umas tantas negras e engraxates que quase todas as noites aboletam-se na esquina da rua...”.21 Incidentes mais graves que estes são comuns: roubos de mercearias e lojas de tecido, de armazéns e, até mesmo, de uma delegacia de polícia estão presentes nos jornais do período. Seria ocioso listar aqui os que conseguimos 18 datada de 12 de março de 1903, a carta também foi endereçada a redação dA Tribuna, que a publicou no dia seguinte, p1. A opinião publica começava a contar como forma de pressão no atendimento de determinados pleitos. 19 A Tribuna, 7 de dezembro de 1904. p2. 20 A Tribuna, 8 de dezembro de 1904. p2. 21 A Tribuna, 25 (p2) e 27 de janeiro de 1903. p3. 9 encontrar nos jornais consultados. Um caso mais bem documentado servirá de exemplo para discutirmos os limites da marginalidade e da exclusão na constituição do mundo do trabalho em Maceió na virada do século XIX. Uma série de artigos publicados n’A Tribuna sobre uma “quadrilha” que cometera diversos furtos nos primeiros meses de 1903 pode dar uma pista acerca da forma como a marginalidade entrelaça a vida dos trabalhadores comuns e vira um problema a ser explicado sob determinada ótica pela elite Maceioense.22 Através de suspeitas e de uma denúncia, Lucio Antonio de Almeida, “negociante ambulante e comprador de jangadas”, de 25 anos e natural do Ceará, é preso na casa de Francisca Maria da Conceição, “mulher de vida pública” e quitandeira, de 30 anos, natural de Pernambuco. Ambos são acusados de serem ladrões e de fazerem parte de uma quadrilha. Nas buscas feitas na residência de Francisca, situada à rua Rego da Mata, foi encontrada boa parte das peças roubadas da “loja de fazenda” de Dona Luiza Souza, negociante em Jaraguá e uma das que sofrera roubo nas últimas semanas. Lucio, estranhamente, foge da polícia depois de preso,23 enquanto que Francisca irá denunciando outros integrantes da “quadrilha”: Joaquim Salvador do Santos, alagoano de 42 anos, lenhador, casado e residente na Levada, “cor morena e má apparencia”; Bellarmino Gomes de Almeida, sem detalhes sobre o mesmo; José Vicente dos Santos, alagoano, 44 anos, casado e morador do Alto do Jacutinga, agricultor, mas atualmente “trabalhando de ganho”; João Francisco de Oliveira, pernambucano, 44 anos, sapateiro e barbeiro, “porém actualmente não usa destas profissões e vive de vender troços na rua”; Manoel Joaquim dos Santos, sergipano, casado e sem profissão, tendo sido expraça; Ezequiel Luthero Bispo, pernambucano, ultimamente “esteve trabalhando de pedreiro na obra do dr. Propicio”; e João Perdido, sem detalhe algum para o personagem de sugestivo nome. Estas pessoas, de modo geral, já haviam tido alguma passagem pela polícia: ou por brigas, distúrbios e embriaguez, ou por pequenos furtos ou ainda por “manchas’ que lhe haviam botado sem merecerem. Alguns declararam 22 Os artigos, verdadeiras reportagens, vêm sempre com o título de “A quadrilha de ladrões” e circulam entre os dias 21, 23, 24, 25 e 26 de abril de 1903, sempre na primeira página, revelando-se o destaque dado à questão. Além de seguir um tom moralista, postura corriqueira no noticiário destes casos à época, os textos são escritos para prender a atenção do leitor e, às vezes, terminam com chamada para o artigo do dia seguinte. Para facilitar a fluência do texto, o que se segue adiante foi retirado desta série de artigos. 23 É estranha a reação do jornal a este fato, pois não exige maiores explicações acerca da fuga! 10 “jogar nos bichos”, enquanto outros disseram “serem jogadores de baralho e felizes nas cartas”, reunindo-se costumeiramente em casa da italiana Magdalena e de Didi, nas proximidades do Mercado Público. Apesar de afirmarem, de modo geral, que não precisavam roubar para viver, todos eles – principalmente os que possuem família – viviam na penúria, de bicos, na incerteza de conseguirem comida para o dia seguinte, na precariedade de ocupações que não lhes garante o sustento. Alguns, como é o caso de Ezequiel Luthero, já perambulara por diversas cidades entre Pernambuco e Alagoas, e mesmo depois de chegado a Maceió já mudara de casa algumas vezes. Tal mobilidade, entre um quartinho e outro, talvez deva-se à falta de pagamento do aluguel, o que faz o senhorio despejá-lo da moradia. Bellarmino, que termina sendo o principal acusador dos outros membros da suposta quadrilha, informa que Joaquim Salvador “ia melhor de sorte depois que entrou neste officio e que ia deixar de tirar sururú e lenha na matta e botar um negocinho”. Ou seja: como a vida de trabalhador honesto não lhe garantia sustento mínimo, este resolve entrar temporariamente no “officio” de ladrão, até conseguir o suficiente para ser um pequeno negociante e abandonar tanto a vida dura de simples trabalhador como a de ladrão. É importante frisar que, devido a forma como o inquérito fora conduzido, provavelmente tenham sido deturpados alguns dados, e que pessoas que não estivessem envolvidas nos roubos mas que convivessem com os ladrões tenham sido incriminadas injustamente pelas suas relações de proximidade. A maneira como os artigos são escritos, com certo moralismo e já uma dose de sensacionalismo, revelam não ser muito confiáveis alguns dos feitos indicados aqui. De qualquer modo, entretanto, esta peça revela aspectos da transitoriedade existente entre o mundo do trabalho e o da marginalidade, o da honestidade e o da gatunagem. Revela também como o espaço urbano de uma cidade se constrói, pela mobilidade das camadas mais pobres, pelo trajeto que une a mata (e a lagoa) com a cidade. A precariedade das condições de vida dos mais pobres termina se refletindo na imprecisão de delimitações sócio-espaciais do espaço urbano da cidade. 11 No final de um dos artigos, o redator das reportagens procura explicar, à maneira da mentalidade dominante, o surgimento de ladrões na cidade: no meio, porém, de toda essa pilhagem, ressalta uma verdade que abonará à nossa gentalha: - os larapios quase todos são adventicios, vem de outros Estados plantar sua escola entre nós e arrebatam os que podem ser seduzidos. (grifo nosso) Estes breves dados, junto com a leitura de memorialistas e cronistas, a análise de relatórios e de debates sobre os intendentes da cidade, sugerem uma contigüidade entre bairros nobres e lugares excluídos, numa convivência diária que revela a dificuldade de se distinguir o trabalhador e o “cidadão” daquilo que se convencionou chamar de “classe perigosa”. O espaço urbano de Maceió, como ele é representado, espelha com clareza a imprecisão na construção da identidade das “camadas menos vistosas” da sociedade. Maceió transmuda-se na feição urbana de seus habitantes. O que é ruim, ou veio de fora ou foi contagiado pelo forasteiros: por sua prática e sua moral. CONCLUSÃO Os resultados apresentados neste trabalho estão inseridos dentro de uma pesquisa mais ampla, e a própria temática que se esboça aqui reflete-se como apenas aproximada aos interesses mais diretos de nossos estudos. Deste modo, só podemos concluir ressaltando a provisoriedade das afirmações apontadas e a necessidade de levarmos adiante novos estudos sobre o assunto, particularmente tão carentes em uma historiografia como a alagoana. 12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COSTA, Craveiro. Maceió. Maceió: DAC, 1981. p 176. DIEGUES JR., Manuel. “Evolução urbana e social de Maceió no período republicano” In: COSTA, Craveiro. Maceió. Op. cit.. (pp200-219) GAREIS, Maria da Guia Santos. Industrialização no Nordeste. Rio de Janeiro: Notrya, 1994 JOBIM, Hugo. “Geographia” [sic] In: Indicador geral do Estado de Alagoas. Typ. Commercial M. J. Ramalho: Maceió, 1902. pp9-48. LIMA (de), Jorge. Poesias Completas – vol I. Rio de Janeiro/Brasília:J. Aguilar/INL, 1974. LIMA JR., Félix. Maceió de outrora- vol 1 (apresent. Por Théo Brandão). Maceió: DACMEC/APA-SENEC. 1976; ________.Maceió de outrora- vol 2 (org. e apresent. Por Rachel Rocha). Maceió: EDUFAL, 2001. LIMA, Lúcia Maria Cunha Alves de. Industrialização e organização do espaço urbano: o caso de Maceió. Recife, Dissertação de Mestrado em Geografia, 1982. (mimeo) MAGALHÃES, Gildo. Força e Luz: eletricidade e modernização na República Velha. São Paulo: Ed.Unesp/FAPESP, 2000. MATOS, Olgária. “A cidade e o tempo: algumas reflexões sobre a função social da lembrança” In: História viajante: notações filosóficas. São Paulo:Estúdio Nobel, 1997. (pp118-127) PESAVENTO Sandra Jatahy. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 2001. SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana: análise da evolução econômica de São Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. 2ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1977 TENÓRIO, Douglas Apratto. “O início da modernização na província de Alagoas” In: Revista do CCHLA/UFAL. Maceió: EDUFAL, ano II, nº 4, jun/1987. (pp.66-75) THOMPSON, Edward P. “Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial” In: Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad. de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. (pp267-304)