UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE DANIELA PERPÉTUO A MORADA PAULISTA MODERNA: ESPAÇOS INTERIORES NAS RESIDÊNCIAS DE JOÃO BATISTA VILANOVA ARTIGAS. JUNHO 2012 DANIELA PERPETUO A morada paulista moderna: espaços interiores nas residências de João Batista Vilanova Artigas. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito à obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Orientadora: Profa. Dra. Ruth Verde Zein São Paulo 2012 P453 m Perpétuo, Daniela. A morada paulista moderna: espaços interiores nas residências de João Batista Vilanova Artigas. / Daniela Perpétuo – 2012. 251 f. : il. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2012. Bibliografia: f. 249-251. DANIELA PERPETUO A MORADA PAULISTA MODERNA: ESPAÇOS INTERIORES NAS RESIDÊNCIAS DE JOÃO BATISTA VILANOVA ARTIGAS. Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Aprovada em BANCA EXAMINADORA Profa. Dra. Ruth Verde Zein – Orientadora Universidade Prebiteriana Mackenzie Profa. Dra. Marta Silveira Peixoto Uni Ritter - Centro Universitário Ritter dos Reis __________________________________________________________________ Profa. Dra. Cecília Rodrigues dos Santos Universidade Presbiteriana Mackenzie Aos meus amados pais, pelo apoio e incentivo na realização deste trabalho. Ao Márcio, com amor. AGRADECIMENTOS À Profa. Dra. Ruth Verde Zein, pela ajuda e força que me deu durante o percurso de todo o trabalho, como também o imenso aprendizado que tive com ela. À CAPES e ao MackPesquisa, que apoiaram meus estudos neste mestrado. “O maior prazer na vida consiste em fazer aquilo que os outros dizem que não se consegue fazer.” – Walter Bagehot RESUMO Este trabalho pretende tratar o tema da arquitetura paulista moderna, com foco prioritário nos interiores arquitetônicos, e o estudo de caso de quatro residências selecionadas de João Batista Vilanova Artigas, analisando sua arquitetura e configuração interna, ou seja, o conjunto de elementos que criam a “atmosfera” dos ambientes. As quatro casas que serão mais atentamente analisadas são: a “Casinha”, de 1942; a Segunda Casa do Arquiteto, de 1949; a Casa Olga Baeta, de 1957 e a Residência Elza Berquó, de 1967. Outras residências do arquiteto serão mais brevemente estudadas, tais como a Casa Rubens de Mendonça, ou Casa dos Triângulos, de 1959; a Casa Telmo Porto, de 1968 e a Casa Martirani, de 1974. As análises serão realizadas a partir da comparação de fontes fotográficas de diferentes épocas e atuais. Cada conjunto de usuários, em diferentes épocas, ajudou a configurar as ambientações dos cômodos de diferentes maneiras, o que possibilita verificar, indiretamente, suas interferências nos arranjos dos interiores das casas. Palavras-chave: Vilanova Artigas; Arquitetura de interiores; Ambientação. ABSTRACT This research is concentrated on the issue of modern architecture in São Paulo, with primary focus on interior architecture, and a study case of four homes selected of the Brazilian architect João Batista Vilanova Artigas, analyzing its architecture and interior configuration, and the set of elements, which create the "atmosphere" of settings. The four homes that will be more closely analyzed are: the "Cottage" (“Casinha”), from 1942; the Second House of the Architect, from 1949; Olga Beata’s House, from 1957, and Elza Berquó’s House, from 1967. Other homes will also be studied, such as Rubens de Mendonça’s House, or Triangles’s house, from 1959; the Telmo Porto’s house, from 1968, and Martirani’s house, from 1974. The analyzis will be performed from the comparison of photographic sources from different times. Each set of users, at different times, helped set up the arrangement of the rooms in different ways, which allows to indirectly check their interference in the internal arrangements of the houses. Key words: Vilanova Artigas, Interior Architecture; Setting. Sumário Introdução ................................................................................................................ 10 Primeiro Capítulo: Os Interiores Arquitetônicos Modernos. ............................... 15 1.1 As Revistas de Arquitetura e a divulgação da casa moderna. ...................... 16 1.2 Cozinhas, banheiros e áreas de serviço: a busca por higiene e limpeza..... 39 Segundo Capítulo: Casas Paulistas Modernas .................................................... 50 2.1 Gregory Warchavchik e a inauguração da casa modernista em São Paulo. 51 2.2 Lina Bo Bardi, o Studio de Arte Palma e a Casa de Vidro. ............................ 64 2.3 As “Case Study Houses”: o programa americano que modificou paradigmas da arquitetura moderna. ......................................................................................... 75 Terceiro Capítulo: Desenho de mobiliário, quatro casas de Vilanova Artigas e outras casas do arquiteto. ...................................................................................... 82 3.1 Vilanova Artigas: seus métodos de trabalho e a ambientação de interiores moderna. .................................................................................................................. 83 3.2 Artigas e o design de mobiliário. ..................................................................... 99 3.3 A “CASINHA” DE 1942. ................................................................................... 103 3.4 Casa de 1949 – 2ª Casa do Arquiteto ............................................................. 135 3.5 Casa Olga Baeta, 1956-1957. .......................................................................... 163 3.6 Casa Elza Berquó, de 1967. ............................................................................ 191 3.7 Outras Casas de Vilanova Artigas ................................................................. 212 Conclusão .............................................................................................................. 242 Bibliografia............................................................................................................. 249 10 Introdução Este trabalho pretende tratar o tema da arquitetura paulista moderna, com foco prioritário nos interiores arquitetônicos, e o estudo de caso de quatro residências selecionadas de João Batista Vilanova Artigas, analisando sua arquitetura e configuração interna. Casas que correspondem a diferentes momentos de sua produção, de sua primeira residência, a “Casinha” de 1942, até a Casa Elza Berquó, de 1967, considerando suas diferenças e semelhanças, pois em cada residência selecionada Artigas introduziu novos elementos e novas configurações e cada uma delas marcou profundamente seu trabalho. A escolha do tema deve-se ao grande interesse da autora em pesquisar os arranjos interiores das residências, tema desenvolvido em sua especialização, em Design de Interiores, no trabalho profissional cotidiano voltado para esta área, resultando na vontade de aprofundar esses estudos na dissertação de Mestrado. Estudar as residências de um arquiteto consagrado, como Artigas, parece ser um caminho para descobertas importantes, e apesar do extenso número de estudos já existentes sobre sua obra, poucos focam no tema das ambientações internas e arquitetura de interiores de suas residências. Além disso, nunca será demais pesquisar um profissional que nos há legado um conjunto de obras tão rico e cheio de detalhes a serem re-descobertos, que esta dissertação de mestrado quer conhecer e que poderá representar o começo de novos futuros estudos. A análise das obras buscará observar e descrever cada residência em sua composição arquitetônica: estudar as plantas, cortes e fachadas para reconhecer o partido adotado, os materiais empregados, a estrutura portante, a disposição e distribuição interna dos cômodos, das circulações e fluxos, reconhecendo os núcleos de utilidades e áreas molhadas, as áreas íntimas, sociais e de serviços, mas com 11 foco prioritário na arquitetura de interiores das áreas sociais. No estudo desses ambientes, serão analisados os volumes e dimensões, verificadas suas qualidades, o arranjo interno do mobiliário, os materiais de acabamento, a variedade de texturas, a densidade na disposição dos objetos, a iluminação natural e artificial e demais elementos que definem sua ambiência. Entende-se que uma casa habitada é um lar; essa condição que a diferencia pode ser considerada como definição de sua “domesticidade”, ou seja, a qualidade que permite habitá-la e vivenciá-la de maneira confortável. Uma casa habitada – sua arquitetura e sua arquitetura de interiores – pode apresentar variados graus de conforto e de adequação às necessidades correntes da vida cotidiana. Em uma residência cuja arquitetura seja considerada “radical” e cujos interiores são ambientados com o máximo rigor e abstração, conforme proposto pela arquitetura moderna, via de regra os objetos pessoais, familiares e antigos não são permitidos, ou não estão comumente presentes, pois o passado, em princípio, não teria lugar no moderno. Esta casa seria como uma máquina, um mecanismo de moradia, apresentando um baixo grau de domesticidade e ativando, no usuário dos seus ambientes, ou seja, no seu morador, possivelmente um menor grau de conforto – qualidade que é também ativada pelo tato, não apenas pela visão. No que se refere à ambientação dos interiores, será analisado o conjunto de elementos que criam a “atmosfera” dos ambientes, ou seja: a distribuição do mobiliário, fixo ou não, e sua configuração e disposição; as tendências de desenho adotadas na composição desses ambientes; os objetos ali dispostos; a iluminação; as texturas, os materiais de revestimento e os tipos de superfícies utilizadas; as cores; os tecidos, estofamentos e forrações; os materiais utilizados na estrutura e composição da residência. As análises serão realizadas a partir da comparação de fontes fotográficas de diferentes épocas e atuais. Cada conjunto de usuários, em diferentes épocas, ajudou a configurar as ambientações dos cômodos de diferentes maneiras, o que 12 possibilita verificar, indiretamente, suas interferências nos arranjos dos interiores das casas. O foco será nas áreas sociais das residências, como as salas de jantar, de estar, dos estúdios, halls de circulações e varandas; principalmente porque são os cômodos mais bem documentados, sobre os quais é possível conseguir mais material. As quatro casas de Vilanova Artigas que serão mais atentamente analisadas são: a “Casinha”, de 1942; a Segunda Casa do Arquiteto, de 1949; a Casa Olga Baeta, de 1957 e a Residência Elza Berquó, de 1967. Outras residências do arquiteto serão mais brevemente estudadas, tais como a Casa Rubens de Mendonça, ou Casa dos Triângulos, de 1959; a Casa Telmo Porto, de 1968 e a Casa Martirani, de 1974, sobre quais também foi possível conseguir algum material para análise, embora menos amplo. As comparações com outros exemplos contemporâneos de residências, projetadas por outros arquitetos, terão papel de destaque nas análises, pois a comparação permite verificar as riquezas de cada caso e possibilita entender melhor os projetos de Artigas. A ambientação dos interiores modernos é aspecto de extrema importância para a consolidação da arquitetura moderna e foi, provavelmente, um dos patamares mais difíceis que ela precisou alcançar. É nos espaços interiores das residências que os usuários irão viver e estabelecer um estreito relacionamento com a arquitetura; e por isso os moradores se posicionam frequentemente como “autor da ambientação de sua própria casa, ou como participante ativo do projeto”,1 como afirma Marta Peixoto. Na arquitetura moderna, isso “se agrava, uma vez que toda sua abstração parece carecer de uma maior domesticidade”.2 Ainda na arquitetura moderna, o espaço deveria conformar um contínuo unitário, onde exterior e interior fazem parte da residência e se integram em uníssono. Numa arquitetura que se referenciava no novo, na era da máquina e do progresso, a arquitetura de interiores e a ambientação 1 2 Peixoto, Marta Silveira. 2006. P. 2. Idem, p. 2. 13 interna dos cômodos deveria seguir pelo mesmo caminho, o rigor estabelecido na construção deveria ser o mesmo para o arranjo dos móveis, objetos e elementos nos cômodos da casa. A dissertação foi organizada em três partes. A primeira é a de contextualização do tema da arquitetura moderna de interiores brasileira, em especial de São Paulo, tendo como fonte principal as publicações periódicas, ou seja, as revistas de arquitetura divulgadas entre as décadas de 1930 e 1970. Na segunda parte, serão analisadas algumas obras de arquitetos contemporâneos e do Artigas, podendo-se notar as semelhanças de projetos e idéias. A terceira parte é a análise crítica das quatro residências de Vilanova Artigas, complementada por alguns estudos sobre as outras três residências, enfatizando a descrição e buscando compreender as distintas formas com que as ambientações dos interiores modernos de Artigas possam ter sido configuradas e transformadas ao longo de diferentes décadas. O primeiro capítulo irá tratar da contextualização do tema através da análise realizada nas revistas de arquitetura em circulação desde a década de 1930 até a década de 1970, em especial a Revista Acrópole, uma das revistas especializadas em arquitetura e mais importantes daquele momento. As publicações de residências, a configuração dos interiores arquitetônicos e as propagandas de novos produtos sendo introduzidos no mercado dão corpo ao contexto da época, cuja riqueza de detalhes contribui para o embasamento da dissertação. O segundo capítulo apresentará análises de obras de dois arquitetos contemporâneos a Artigas, que tiveram grande destaque para a consolidação da ambientação dos interiores das residências modernas paulistas. Começando pelo pioneiro aqui no Brasil, Gregory Warchavhik, em seguida Lina Bo Bardi. Na sequência, será proposta a análise sobre as Case Study Houses, programa californiano realizado a partir de 1945, que mudou o panorama da arquitetura 14 moderna e serviu de exemplo para arquitetos de vários países, inclusive para os arquitetos daqui e, provavelmente, também para Artigas. O terceiro capítulo tratará das qualidades das obras selecionadas de Artigas: quatro residências, construídas em distintos momentos da carreira do arquiteto, consideradas significativas pela introdução de novas idéias e experimentações que marcaram sua carreira e consolidaram seu trabalho. A análise destas residências terá como ponto focal a ambientação de interiores e os interiores arquitetônicos, bem como seu conjunto de idéias e premissas, tratando a casa como um objeto cultural, no qual as relações entre casa e usuário se conformam na reflexão sobre o morar na modernidade. Em complemento, será apresentada uma análise menos extensa de outras três residências do arquiteto, das quais não se obteve material suficiente para um estudo mais aprofundado para este trabalho. Espera-se, com as pesquisas realizadas, que o tema arquitetura de interiores seja valorizado academicamente, que se mostre verdadeiramente como tema complementar e autônomo, intrínseco tanto para compreensão da obra de Artigas como de outros arquitetos modernos. A ambientação interna das residências mostrase tão importante quanto a sua configuração projetual e construtiva, pois a arquitetura moderna não se propunha reconfigurar os exteriores, mas também os interiores e, inclusive, os hábitos de morar. 15 Primeiro Capítulo: Os Interiores Arquitetônicos Modernos. Este primeiro capítulo tratará de contextualizar o tema da arquitetura de interiores moderna com base em análises realizadas na Revista Acrópole, cujas publicações especializadas em arquitetura e nos interiores arquitetônicos foram importantes na época de sua circulação, de 1930 até 1970. Será apresentada uma análise, realizada com base em fotografias publicadas na mencionada revista, sobre a gradual mudança dos interiores arquitetônicos ao longo dos anos, e como as propagandas de novos produtos inseridos no mercado, principalmente após 1950, influenciaram a introdução e consolidação do morar moderno como hábito na vida das pessoas. As áreas sociais serão o foco dessa contextualização no primeiro subcapítulo, já as cozinhas, banheiros e áreas de serviços serão apresentadoas posteriormente, no segundo subcapítulo. A contextualização com base nessas fotos antigas publicadas revelou-se importante, pois mostrou ambientes com diferentes configurações e as escolhas dos usuários ou de arquitetos da época, cujas mudanças projetuais e de arranjo interno dos ambientes podem ser vistas através dos anos em que os periódicos estavam em circulação. A escolha pela análise da Acrópole se deu pelo fato de ser um importante ponto referencial como revista especializada em arquitetura da época, focando suas publicações em projetos residenciais e de interiores. 16 1.1 As Revistas de Arquitetura e a divulgação da casa moderna. Como rica fonte de estudo e de embasamento teórico para o tema desta monografia, as revistas utilizadas são um ponto referencial da arquitetura corrente em cada época. No Brasil, aumentou o número de revistas de arquitetura em circulação no período após 1945. As principais revistas de arquitetura e decoração que circulavam eram: Acrópole, do período de 1938 a 1971; Habitat, de 1950 a 1965; Módulo, de 1955 a 1964; Arquitetura e Engenharia, de 1946 a 1965; Brasil Arquitetura Contemporânea, de 1953 a 1958; Arquitetura, de 1961 a 1969; Brasília, de 1957 a 1961, além de revistas de decoração, como Casa e Jardim e Casa Vogue. A Revista Acrópole, editada entre o período de 1938 e 1971 no Brasil, foi um importante meio de comunicação específico para a arquitetura, divulgando textos de arquitetos e projetos da época. Também divulgava propagandas de lojas de decoração, materiais inéditos para as casas – como azulejos e louças de cores diferentes – aquecedores, móveis planejados para cozinhas, fogões, geladeiras e todo tipo de aparato que a casa moderna deveria ter. Por meio de suas edições, pode-se constatar como o tema ambientação moderna foi gradativamente ganhando espaço a partir da configuração e desenho dos móveis e dos novos equipamentos nas casas. A leitura dos volumes permite verificar traços que indicam a afirmação da arquitetura moderna, intensificados, principalmente, após os anos de 1940. Considerando-se essas informações, pode-se concluir que só na década de 1950 ela passa a ser hegemônica na revista, indicando sua consolidação de fato. Até a década de 1930, mesmo as primeiras casas modernas construídas em São Paulo ainda eram ambientadas com móveis antigos ou “em estilo”, e os interiores eram organizados de maneira mais conservadora que os exteriores. Certamente é com essa defasagem que a arquitetura moderna precisava lidar, num espaço de trabalho que teria de conquistar. 17 De acordo com Marta Peixoto, O discurso moderno, sempre muito interessado em negar toda e qualquer ligação com o passado é, frequentemente, desmascarado, por revelar uma prática apenas disfarçada, mesmo que habilmente, de ruptura. E é através das ambientações modernas que verifico quais e como as características do século XIX persistem na produção das ambientações da primeira metade do século XX, principalmente. 3 Para se constatar como os hábitos e valores do século XIX ainda persistiam nas ambientações das primeiras décadas do século XX, basta analisarmos alguns interiores publicados nos anos 1930. Nas próximas figuras, publicadas na revista Acrópole, podemos notar os móveis robustos, cujo desenho faz referência a estilos europeus passados, do século XIX, além de paredes e pisos também serem rebuscados e desenhados. Na figura 1, publicada no segundo número da revista, em 1938, podem ser vistos diversos elementos que compõem esse arranjo interno, tais como: as cortinas volumosas; o tecido de desenho rebuscado com franjas sobre o piano e o estofado felpudo sobre a banqueta; o abajur de formas sinuosas, as esculturas e bibelôs nas prateleiras atrás do piano, além do vaso de plantas, um porta retratos e outros dois objetos sobre ele; o tapete de cor clara; o móvel, localizado ao fundo da foto, no hall de circulação, que talvez seja um aparador com um objeto de decoração sobre ele e um espelho pendurado na parede logo acima. Enfim, uma série de objetos e móveis que indicavam o exemplo de ambientação de uma sala para a época e que contrastam com as vergas retas da abertura da parede para a sala, ao se apresentar sem ornamentos ou molduras em sua volta, como requeria a arquitetura moderna. O conforto e a calidez destes ambientes era associado a esta reunião de objetos, móveis e texturas. 3 (Peixoto, 2006, p. 4) 18 Figura 1 - Sala de estar publicada na revista. Fonte: Revista Acrópole n°2, 1938, São Paulo: Edições técnicas brasileiras, p. 27. Na figura 2, a configuração da sala de jantar se apresenta com todos os espaços disponíveis preenchidos por algum elemento; a ornamentação cobre as paredes com papéis de parede floridos, assim como também há nelas nichos de formas arredondadas e molduras em sua volta, além de vários objetos dispostos nas prateleiras deles; o teto é pleno de detalhes, assim como as molduras do rodateto; o lustre com cristais está pendurado sobre a mesa de jantar, que é redonda com quatro cadeiras de espaldar alto e mais duas encostadas em cada lado da entrada da sala. Todos os móveis são de madeira entalhada, robustos, assim como o aparador que está logo atrás da mesa; o tapete é desenhado, e a forma da sala se apresenta irregularmente. Ao fundo da foto, em outro ambiente, pode ser vista uma cadeira no mesmo estilo das da sala. 19 Figura 2 - Sala de Jantar de uma residência. Fonte: Acrópole n°11 de 1939, São Paulo: Edições técnicas brasileiras, p. 11. Este modo de ambientação pode ser comparado a uma descrição que Marta Peixoto faz das primeiras residências realizadas por Le Corbusier, antes de se tornar o mestre da arquitetura moderna, por isso referenciado como Charles Edouard. A autora afirma dessa forma: O primeiro trabalho de arquitetura de Charles Edouard que foi executado é a Villa Falet, de 1906, quando ele está com 19 anos. A casa, que é feita junto com o colega René Chapallaz, é muito ornamentada, em um estilo derivado do Jura regional, com seus motivos de árvores e flores estilizadas. A ornamentação cobre paredes, portas, madeiramento, balaustradas e frisos, dominada pela idéia da síntese das artes, do gesamtkunstwerk, como aquela promovida pelo Art Nouveau. 4 Segundo a autora, outros trabalhos de Le Corbusier ainda seguiram esta linha de projeto, e foi partir de 1915 que ele começou a desenhar móveis em conjunto, “subordinados à idéia de arquitetura interior”5, buscando uma maior 4 5 (Peixoto, 2006, p. 62) Idem, p. 64. 20 simplicidade nas formas dos móveis e objetos, além de sobriedade nas cores e texturas aplicadas, que mais tarde se manifestariam plenamente. Na figura 3, pode ser vista a sala de visitas da residência de Mario Borges Figueiredo, ambiente publicado como propaganda do decorador John Graz na revista em 1939. Há vários elementos compondo o arranjo. A sala está dividida em duas, ao fundo, há um sofá de três lugares, de tecido brilhante, talvez veludo ou cetim; duas mesas laterais, cada uma com uma luminária sobre ela e logo acima um quadro pendurado na parede; duas cadeiras e duas poltronas, em lados opostos, estão simetricamente posicionadas; além das duas cortinas, com tecidos em duas camadas, um sendo mais escuro e brilhante, cobrindo cada uma das janelas existentes. Mais à frente, na foto, há um sofá também de tecido brilhante e acabamento em capitonê; duas mesas laterais com as luminárias sobre cada uma delas; um quadro com uma pintura de paisagem pendurado na parede logo acima do sofá e uma mesa de centro à frente do sofá. Do lado oposto do ambiente, há um móvel, um aparador com objetos sobre ele e um espelho pendurado na parede, além de duas poltronas, posicionadas em lados opostos. O piso parece ser revestido de carpete, de cor clara; os tecidos, em sua maioria, são brilhantes, sendo o cetim ou o veludo os mais usados, as cores são mais escuras, contrastando com as paredes claras, sem ornamentos, e a disposição dos móveis e objetos, nos dois ambientes, está simetricamente organizada. 21 Figura 3 - Propaganda de John Graz, decorador. Fonte: Acrópole n° 8, de 1939, São Paulo: Edições técnicas brasileiras, p. 28. A figura 4, publicada numa edição de 1939, mostra um ambiente de sala de estar da residência de Cassio Ramalho da Silva, por onde se apresenta a decoração realizada pelo professor Felipe Dinucci, que está configurada com uma quantidade menor de móveis e estofados volumosos e brilhantes do que os que costumavam ser publicados, como na foto anterior. Há um sofá de três lugares de um lado e duas poltronas no lado oposto, uma lareira com objetos sobre ela e alguns detalhes desenhados na grade em sua frente, logo abaixo; duas cortinas cobrindo as janelas, que parecem ser amplas; um tapete desenhado; o teto ornamentado com um lustre pendente, e as vergas das paredes possuem o mesmo tipo de desenho do espaldar das poltronas. Este ambiente está descrito desta forma na revista: 22 Living-room – poltronas e divâ cobertos de veludo ouro antigo, com filetes de couro beje. Cortinas do mesmo veludo, com haste e suporte de ferro batido. Mesa consol (sic), com tampa preta, candelabro de madeira dourada e colorido antigo. Movel bar com dobradiças de ferro batido e outras decorações. Arca com decorações douradas coloridas.[...] Este ambiente é inspirado ao estilo Tudor Inglez, sentido com espírito pessoal, adequado ao nosso tempo. Sem copias, nem servilismo algum. 6 É importante notar a referência a que o autor do ambiente fez para compor o projeto, o “Tudor Inglez”, que ele comenta como não sendo uma cópia, mas uma interpretação pessoal, e quando ele se refere a “adequada ao nosso tempo”, é provavelmente para que as pessoas vejam que a inspiração é de um estilo, mas a essência do projeto é moderna, adequada conforme os hábitos cotidianos à época. Vários cômodos publicados nas revistas possuem um nome para a ambientação, sempre com referências de países Europeus, como a Inglaterra ou a França. 6 “Decorações pelo professor Dinucci”. In: Acrópole n° 8, 1939, São Paulo: Edições técnicas brasileiras, p. 20. 23 Figura 4 – "Decorações pelo professor Dinucci". Fonte: Acrópole n° °8, de 1939, São Paulo: Edições técnicas brasileiras, p. 20. Na próxima sala (fig. 5), também de 1939, é possível ver móveis menos ornamentados, sem entalhes na madeira, e a presença do vidro na mesa central. Apesar dos detalhes em madeira nas portas e poucos objetos, como uma pequena estátua à direita e as flores na mesa, é um ambiente diferente dos demais, por apresentar os tetos e as paredes sem ornamentos e as duas portas localizadas nas paredes laterais, também sem ornamentos. A poltrona, no lado esquerdo, e o móvel que está ao lado direito da foto possuem um desenho de forma quadrada, com linhas mais retas, diferentemente das formas arredondadas dos móveis, com pernas torneadas, que apareciam frequentemente nas fotos do ano de 1938. Na descrição da foto, na revista, esta ambientação também realizada pelo prof. Felipe Dinucci, na residência de Carlos Rusco e possui a seguinte explicação: Tapetes bege claro e marrom vermelho, escada de mármore marfim e preto belga. Grade da mesma, cobre lúcido (sic) e cromo. Portas de jacarandá, com faixas pirografadas, cor preta e zarcon e chapa de alumínio. Luz indireta. Pavimento mármore marfim. 7 “Decorações do Prof. Dinucci”. In: Acrópole n°8, 1939, p. 16. 7 24 Figura 5 - Decorações do Prof. Dinucci. Fonte: Acrópole n°10, 1939, p. 16. Ao descrever a trajetória da evolução do móvel moderno, Maria Cecília nos explica que foi depois dos anos 30, Com a emergência da arquitetura moderna, com a ressonância e o assentamento das principais idéias e polêmicas levantadas pelo Modernismo no âmbito da literatura e das artes plásticas, do decênio anterior, enfim, com o desejo de modernização geral do país, configurou-se um conjunto de fatores que desempenhou importante papel no processo de modernização da mobília brasileira. 8 Esta afirmação nos confirma entrada gradual do morar moderno, proposto pelas vanguardas do século XX, como hábito na vida das pessoas. 8 (Santos, p. 21) 25 Em 1939, também começam a aparecer propagandas de lojas que vendem móveis modernos, como a do “Studio Casa e Jardim (fig. 6), que apresenta um móvel branco sem ornamento, de forma quadrada, um “armário tocador em acer, revestido com couro branco”9. Figura 6 - Propaganda da loja Studio Casa e Jardim. Fonte: Acrópole n° 12, 1939, p. 30. Os móveis que entrarão na composição das ambientações, a partir dos anos 40, são de grande importância para o começo da consolidação do interior moderno, pois, como comenta Maria Cecília Santos, acompanhavam, mesmo que com certo atraso, as: Principais trajetórias das vanguardas européias. Primeiro, a fase de produção de um móvel dentro das tendências internacionais das artes decorativas industriais: despojado, linhas retas, seguindo os padrões ArtDéco. As linhas puras e a ausência de ornamento passam a nortear a 9 Acrópole n°12, 1939, São Paulo: Edições técnicas brasileiras, p. 30. 26 concepção da mobília. Depois vieram os móveis dos arquitetos-designers, que seguiram a trilha da modernização internacional da mobília, do DeStijl a 10 Bauhaus, entre outros. Considerando-se as páginas da Acrópole, porém, a ambientação mais ornamentada continuou, por vários anos, sendo a preferida, e ao mostrar referências européias, pareciam querer dar ao ambiente a ilusão de um maior grau de importância, já que a reunião de variados elementos de diversos estilos e épocas (e países), como móveis, tecidos, texturas, lustres, papéis de parede e etc, parecia outorgar o sentido de um ambiente mais rico. Para que a ambientação de interiores moderna, proposta pelas vanguardas, empregando menos móveis e objetos de desenho moderno, de linhas mais quadradas e perfis mais finos, entrasse nas residências do Brasil, foi preciso um certo esforço dos arquitetos modernos para mostrar às pessoas – inclusive por meio das revistas de arquitetura e decoração – como deveria ser uma casa moderna. Há, em várias edições da Acrópole, artigos publicados por Henrique Mindlin, nos quais ele escreve sobre a “análise racional do projeto”, esclarecendo como os móveis deveriam ser dispostos nos interiores das residências. Ele exemplifica com vários desenhos, uns com a distribuição dos móveis em plantas de apartamentos, outros com áreas livres sem os móveis e as sombras projetadas no piso, esclarecendo que: O conceito moderno da habitação caracteriza por uma oposição quase total às ideias predominantes no século passado e nos princípios do século XX. Ao passo que a habitação desse tempo representa, de forma concreta, as aspirações, a mentalidade, o modo de vida da burguesia na sua fase histórica de ascendência, a casa de nosso tempo é o produto da investigação mais profunda, em todos os sentidos, dos problemas da arquitetura residencial.11 10 11 (Santos, p. 22) (Mindlin, 1938) In. Revista Acrópole, Novembro de 1938. P.39. 27 Mindlin esclarece nesses textos que a residência precisava ser adaptada de acordo com as necessidades do homem contemporâneo, sob pontos de vista técnicos, à luz da psicologia e sociologia, tendo em vista ainda a situação econômica resultante da Primeira Guerra Mundial. Até final dos anos 1940 (fig. 7), a maioria das residências publicadas ainda apresenta interiores repletos de ornamentos: cortinas com babados, papéis de parede floridos e estofados de cetim, todos à “moda Européia”, como se dizia nas referências. Nas figuras 7 e 8, de 1946, há a publicação de outras ambientações realizadas pela loja Dinucci, que explicita claramente a referência “francesa” aos estofados, aos tapetes, aos revestimentos, aos espelhos e às cortinas rebuscadas. O arranjo dos móveis, no quarto (fig. 7), apresenta duas camas em lados opostos do ambiente, entre elas uma mesa com uma cadeira, uma luminária de pé, uma mesa de cabeceira ao lado de uma das camas, uma mesa de centro e os tapetes desenhados. Os móveis são claros, laqueados de branco, repletos de detalhes e desenhos sinuosos. Porém, a frequência destas ambientações nas publicações foi diminuindo e as que apresentavam móveis e elementos modernos foram se tornando mais presentes dali em diante. 28 Figura 7 - Decorações pelo Prof. Dinucci - quarto de dormir. Fonte: Acrópole n°93, 1946, p. 16 . Figura 8- Decorações pelo Prof. Dinucci - sala de jantar. Fonte: Acrópole n°93, 1946, p. 17. 29 É a partir de 1950 que podemos notar uma significativa mudança nos interiores publicados, bem como na oferta de serviços, equipamentos e produtos lançados para a casa e para a construção civil. No começo dos anos 50, o design de móveis sofreu profundas transformações, pois acompanhou a prosperidade em que os Estados Unidos se encontrava no pós Segunda Guerra e o aumento do consumo: O design dos anos 50, ao provocar a abertura dos mercados e das fronteiras culturais – além da proliferação dos canais de comunicação de massa em forma de revistas, jornais, filmes e televisão – encorajou a troca de idéias, talentos e éticas em todo o mundo capitalista. 12 Aqui, no Brasil, será nessa década que se começa a ter uma maior oferta de lojas com móveis modernos, com linhas mais quadradas e limpeza no desenho, como a Branco & Preto, inaugurada em 1952 (fig. 9). Foi uma loja em que um grupo de arquitetos (Carlos Millan, Jacob Ruchti, Miguel Forte e Roberto Aflalo) se reuniu e adotou, segundo Marlene Acayaba, um processo de trabalho referenciado ao das instituições norte-americanas, o Institute of Design de Chicago e o Museu de Arte Moderna de Nova York, cujo processo de trabalho entrava em contato com o design, “com a herança cultural européia do “Arts & Crafts” propugnado por William Morris e revisto por Walter Gropius na Bauhaus”.13 12 13 (Acayaba, 1994, p. 17) (Acayaba, 1994, p. 6) 30 Figura 9 - Propaganda da Loja Preto & Branco. Acrópole n° 170, 1953, p. 27. A “Branco & Preto” foi uma das lojas que se destacou no período, por causa dos móveis de design apurado e acabamento artesanal. Os arquitetos projetavam os ambientes como um todo – além dos móveis, as luminárias também eram projetadas. Estava na proposta de ambientação a disposição de todos os objetos, os revestimentos e as cores. Por esse método de trabalho, “a loja representou uma novidade no Brasil daqueles anos. Foi um empreendimento precursor na questão da arquitetura de interiores”.14 Os móveis modernos tinham como premissa reforçar a horizontalidade do ambiente interno e esse efeito acontecia com o uso de cadeiras, poltronas e sofás de espaldar baixo, além de mesas e armários de pouca altura. Podemos notar essa tendência pelas imagens, que fazem com que o cômodo pareça ter o pé direito mais alto. A limpeza formal dos ambientes propostos pelo grupo de arquitetos em muito contrasta com as decorações realizadas pela loja Dinucci, como vimos anteriormente numa propaganda de 1946. 14 Idem, p. 68. 31 Até mesmo na década de 60, a ambientação plenamente moderna ainda não era frequente na maioria das casas publicadas, sendo comum ambientes com maior número de objetos e móveis, mais ornamentados. Mas isso não necessariamente se devia à dificuldade das pessoas em aceitar o morar moderno, pois em muitos casos os móveis poderiam ter sido herdados de família, portanto sua presença trazia a familiaridade e sensação de conforto que as pessoas precisam para se sentir “em casa”, pois cada objeto estaria carregado de valor sentimental, particular à vivência do morador. Enquanto em uma ambientação rigorosamente moderna, calcada nos princípios de recusa do passado, essa história pessoal talvez não tivesse lugar. Muitos arquitetos modernos aceitavam, na decoração dos seus interiores, a mistura de elementos de diferentes épocas, que algumas revistas, principalmente no pós Segunda Guerra, divulgavam. A idéia não era mais fazer com que a casa fosse um mecanismo de uma máquina, mas que fosse moderna, tanto em sua construção, quanto em sua ambientação interna, levando em conta os objetos pessoais dos usuários e seus gostos pessoais. Os fatores que mais contribuíram para a consolidação desse morar moderno foram os apartamentos, pois o tamanho reduzido destes, frente às maiores dimensões das residências, colaboraram tanto para a diminuição do número de elementos de decoração para compor uma ambientação, quanto para a diminuição do tamanho dos móveis. Também nesse caso, era mais fácil a aceitação de móveis modernos, mais compactos, já que os antigos geralmente tinham dimensões maiores e ocupavam mais espaço. Além de compacto, o móvel moderno, muitas vezes, poderia ser dobrável, feito para economizar espaço, ou incorporar mais de uma função, como ser uma poltrona ou um sofá, que por sua vez poderia vir a ser uma cama. Assim, a arquitetura moderna não foi assimilada apenas nos exteriores; de fato, a foi também pelos móveis e utensílios domésticos. O espaço das residências 32 foi se modernizando, simultaneamente readquirindo novos hábitos ao adaptar as casas ao uso de equipamentos elétricos e, daí, para os ambientes mais livres, com menos densidade de móveis, objetos, ornamentos, volume de estofados e cortinas, portanto, mais práticos para manutenção do dia a dia. Em muitos casos, para que o móvel moderno pudesse seduzir os consumidores, sua utilidade era associada à mulher moderna: uma nova geração que trabalhava fora e não tinha mais tanto tempo disponível aos afazeres domésticos, ou não mais dispunha de auxiliares domésticos. Por isso, os equipamentos elétricos, como os utensílios para cozinha e limpeza da casa, ou também o rádio e a televisão, modificaram a organização da ambientação interna da residência. Mesmo assim, é em 1960 que podemos ver significativas mudanças nos interiores das residências publicadas. A ampla oferta de lojas de móveis modernos, de materiais como azulejos e pisos, equipamentos de cozinha, louças para banheiros, objetos de decoração como luminárias, tapetes e cortinas, transformou o ambiente residencial brasileiro. Ainda na década de 60, a propaganda da loja Mobília Contemporânea, recém aberta, mostra como os móveis modernos foram se incorporando aos ambientes, com a proposta de serem funcionais, de preço acessível e bom acabamento (figs. 10 e 11). A propaganda, intitulada “Em busca de uma mobília racional”, diz o seguinte: De há muito, vinha nos impressionando o fato de que, no Brasil, terra das mais adiantadas realizações arquitetônicas, o problema do equipamento interno da habitação não havia sido resolvido.[...] Em dois anos de pesquisas e experiências, criaram uma série de 33 móveis – elementos padronizados, desenhados para permitir, em super ou justaposição, os mais 33 variados arranjos, procurando sempre, por uma fabricação racionalizada, os 15 melhores acabamentos dentro dos melhores preços. Figura 10 - Propaganda da “Mobília Contemporânea”. Acrópole n°260, 1960, p. 12. 15 Acrópole, edição de 1960. 34 Figura 11- Propaganda da "Mobília Contemporânea". Acrópole, n°260, 1960, p. 14. Pelas imagens (figs. 10 e 11), pode ser visto como era o desenho destas propostas de móveis funcionais: acabamento simples, sem muitos detalhes ou ornamentos, com desenho retilíneo e racionalizado, podendo assumir variadas funções, permitindo flexibilidade ajustada conforme a necessidade. Os ambientes começam a ser integrados, portanto mais flexíveis: a sala de estar poderia se transformar em uma sala de jantar ou vice-versa. Nas residências da década de 1930, a sala de estar tinha o seu lugar fixo desde o projeto arquitetônico e não poderia ser mudada. Já a sala de estar, da década de 1960, não só poderia ser integrada à cozinha e à sala de jantar, quando essa existisse, como também mudar de cômodo, ou de localização, na “planta livre”, que foi um dos fatores preponderantes para também permitir esta mudança. 35 O número de edifícios habitacionais verticais começou a aumentar significativamente a partir dessa década nas grandes cidades e, com isso, a dimensão da moradia (apartamentos) e dos seus cômodos também se modificou, pois eram ambientes de dimensões reduzidas se comparados às residências unifamiliares. Os móveis foram ficando cada vez menores, inclusive para atingir um preço acessível para a classe média em ascensão. Em 1969, é publicada na Acrópole uma reportagem especial sobre Ruy Ohtake, em que o arquiteto escreve um texto sobre a habitação e aparecem algumas de suas obras residenciais. No texto, ele discorre sobre os problemas das habitações e as possibilidades de solução, que devem ser procuradas para a racionalização da construção. Ele afirma que os projetos publicados “pretendem dois aspectos básicos”: a) É desejável que, mesmo numa única habitação, tenha como preocupação sua implantação no urbano, agindo potencialmente como fator corretivo e, às vezes, até denunciados, no emaranhado da cidade, cujo desenvolvimento caótico, sem critérios, já é plenamente reconhecido. b) Embora tenham particularidades em função de determinadas famílias, os programas e principalmente os espaços resultantes são sempre uma tentativa de colocar aspectos generalizadores de uma habitação, 16 qualquer que seja o morador. Ohtake afirma que essas generalizações aplicadas às residências são o resultado da produção industrial, mas o aspecto mais importante disso é conciliar esse fator com o da habitação, realizada para cada família que morará nela. Nesse artigo, importantes mudanças nas plantas residenciais são apontadas, como, por exemplo, a redução dos dormitórios para “dormitórios-gaveta”, pois são espaços somente para descanso e a redução das áreas de serviço e valorização das áreas sociais, estas últimas ampliadas e alçadas ao status de espaço coletivo por 16 Rui Ohtake. In Acrópole n° 361, 1969, p. 38. 36 excelência. Para o arquiteto, as escolhas dos materiais são definidas em função do projeto, e não o contrário. É importante que os materiais venham servir à arquitetura e não devam, jamais, desfigurar o caráter do projeto. Em contraponto com a busca de racionalização da construção e o aspecto de produção industrial das residências, está a ambientação dos interiores, responsável pela personalização dos ambientes. Isto pode ser percebido nas imagens publicadas, como, por exemplo, as figuras 12 e 13, onde aparecem dois ambientes da residência Tomie Ohtake, em que a estrutura é de “laje nervurada, apoiada nas paredes laterais, que são as divisas. A vedação é de concreto e bloco. Há também a questão do mobiliário de concreto: camas, mesas, bancos armários”.17 A estrutura seria suficientemente “genérica”, podendo ser repetida para outras casas. Já a ambientação é única, adapta-se ao uso efetivo que o morador desejar dar a esses espaços flexíveis, cabendo ao mobiliário e seu arranjo a definição dos usos, que não mais são definidos por “cômodos” isolados, mas se mostram integrados. Estes recursos foram largamente utilizados por arquitetos do brutalismo paulista, principalmente os dos móveis de concreto, pois com eles certas características no ambiente não podiam ser modificadas. Com isso, eles perdem a aura de flexibilidade, despojamento e leveza, para se tornarem imóveis, parte da construção. Os mobiliários “fixos” podiam ser mesas, bancos, lareiras, até a estrutura de sofás e camas, enquanto que os “móveis” eram as cadeiras, poltronas, mesas de centro e laterais, já os que podiam se encaixar em ambos os casos eram as luminárias (fixas e móveis), equipamentos elétricos (fogão, geladeira) e objetos de decoração e pessoais. Nas figuras 12 e 13, podem ser vistas as ambientações das salas de estar e jantar. Em ambas, o arquiteto Ohtake procurou contrabalancear a rudeza do concreto armado e a leveza dos móveis, todos com perfis finos de aço e até mesmo poltronas 17 Idem, 1969, p. 38. 37 que sugerem informalidade ao sentar, como é o caso da poltrona “Mole”, projetada por Sérgio Rodrigues, de couro com detalhes em capitonê. Figuras 12 e 13 - Residência Tomie Ohtake. Fonte: Acrópole n°361, 1969, p. 39. Também em 1969, a revista Acrópole publica a Residência Elza Berquó, de 1965-1968, de Artigas. Nesta residência, segundo Marlene Acayaba, Artigas “se autorizou à poesia”. Mas ela será analisada pormenorizadamente no último capítulo. 38 Para concluir, nesta análise das edições da Acrópole, podemos notar as inúmeras facetas com que as ambientações dos interiores modernos foram se apresentando ao longo dos anos. Não só a construção moderna se fazia vigente, mas os materiais, móveis e elementos a serem inseridos na ambientação tiveram que mudar para que a residência se tornasse, de fato, moderna. Por isso, a indústria, ao poder fabricar estes diversos elementos, fez com que o morar moderno fosse possível. Porém, sua consolidação não teria tal força, não fosse por todas as divulgações publicitárias e os esforços levados a cabo por parte dos arquitetos modernos e das revistas de arquitetura, que buscavam convencer as pessoas de que aquele jeito de morar era o mais adequado aos tempos de então. 39 1.2 Cozinhas, banheiros e áreas de serviço: a busca por higiene e limpeza. Pode-se notar, pela leitura das revistas da época, em especial as edições da revista Acrópole, que, desde a década de 1930, outros cômodos da residência passaram a ganhar relevância e receber mais atenção, como é o caso da cozinha e dos banheiros. A gradual mudança desses espaços de serviço deve-se ao crescimento da classe média e à diminuição da presença de empregados, e também porque esses ambientes passam por profundas transformações culturais, pois deveriam harmonizar-se com as premissas da casa moderna, que teria de ser higiênica e asséptica, ou seja, assumindo que “a principal função da casa era ser uma fonte de bem estar físico e de saúde”.18 Figura 14 - Cozinha Planejada. Fonte: Acrópole n° 5 , 1938, p. 10. Assim, enquanto os ambientes sociais mantinham a decoração e arranjo mais tradicionais, os ambientes de serviço e higiene se “modernizaram” mais rapidamente. 18 Acrópole n° 5, 1938, p. 11. 40 Em 1938, já se encontra na Acrópole a propaganda de uma cozinha planejada (fig. 15). O desenho está de acordo com as exigências da cozinha moderna: os armários brancos, de cantos arredondados e aberturas para ventilação, com pés que permitiam a limpeza do chão; a geladeira (uma novidade) também branca, e ainda não elétrica; as paredes revestidas de azulejo; o piso revestido de cerâmica; a luminosidade proporcionada pela janela mais ampla, com um vaso de plantas no peitoril, indicando um local fresco e arejado, onde também há uma cortina e uma persiana; e o relógio na parede, acima da geladeira, que não é muito alta, assim como o outro armário. Esta composição mostra um ambiente limpo, higiênico, arejado, prático, funcional e claro. Em uma edição da Acrópole n° 3 de 1938, há um artig o publicado por Henrique Mindlin, intitulado “Organização racional da Cozinha”, em que o arquiteto afirma a importância da organização eficiente da cozinha de uma residência: No projeto geral da casa, o objetivo é de atingir as três condições fundamentais da habitação moderna: - muita luz, muito ar, e circulação fácil, clara, entre as peças cujas funções se relacionem. No da cozinha o fim colimado (sic) é a disposição de todos os aparelhos, armários, etc., de modo a estarem, no momento de sua utilização, no lugar mais cômodo para a pessoa que trabalha. 19 No decorrer do texto, Mindlin discorre sobre como deve ser o projeto da cozinha e como os “centros de trabalho”20 devem ser dispostos (fig. 16). Ele afirma que há três centros de trabalho, o de “armazenagem e preparação dos alimentos”, o de “lavagem e limpeza” e o “fogão e o lugar onde são dispostos os pratos a serem servidos”. E, nesta organização dos três centros, ele os subdivide de acordo com as funções de cada um. O primeiro centro se comporia da geladeira, armário-despensa e, sobre o armário, uma “superfície de trabalho para a preparação dos alimentos que 19 20 Mindlin, Henrique. “Organização Racional da Cosinha”. In: Acrópole n° 3 de 1938, pág. 25. Idem, p. 25. 41 devem ir ao fogão. A pia, portanto, deve estar perto, pois a água é necessária em muitas operações”. Também os utensílios deveriam se encontrar perto para facilitar o serviço. O segundo centro se comporia da pia, um “despejo” e armário para utensílios de limpeza, na parte inferior, que “deve ser localizado em frente à janela e entre os dois outros centros”. O terceiro consiste “no fogão, que deve ter, de um lado, uma superfície complementar para a preparação dos alimentos e, de outro, um lugar onde os pratos a serem servidos possam ser arrumados”. Neste centro, ficariam armazenados os pães, biscoitos, “e se deve encontrar a tábua de cortar pão”. 42 Figura 15 - Planta racional e vistas da cozinha proposta por Mindlin. Fonte: Acrópole n° 3, 1938, p. 26. Mais adiante, o autor afirma que é preciso um estudo das capacidades necessárias para o dimensionamento da cozinha e dos centros de trabalho. Isto poderia ser feito de acordo com o número de utensílios e seria importante não pelo número de pessoas as quais se destina a casa, mas “ao número máximo de leitos admissível, de acordo com a planta”, ou seja, a dimensão deveria prever uma “folga de grande importância, que não só atende à possibilidade de crescimento da família, como também à eventualidade de venda da propriedade a uma família mais numerosa”.21 Mindlin continua seu artigo descrevendo como deveria ser a planta ideal para a cozinha, em L ou em U, sendo a última preferível, “pois é a que proporciona um arranjo mais compacto das várias partes, reduzindo as distâncias ao mínimo possível”.22 A primeira disposição, em L, seria somente para cozinhas muito pequenas. Ele coloca um esquema da planta ideal como exemplo, ilustrando como a circulação seria racionalizada e prática se estivesse de acordo com o desenho (fig. 15). Este texto tem importância fundamental para a formação do pensamento moderno sobre uma cozinha. São diretrizes, como as propostas por Mindlin, que irão consolidar o modelo de cozinha moderna nas residências, perdurando por muitas décadas depois. Em uma edição da Acrópole n°11 de 1939, foi publica da uma reportagem de uma residência de autoria do arquiteto Eduardo Knesse de Mello, que mostra mais imagens dos banheiros e da cozinha funcionais do que de outros cômodos da residência. A ambientação interna da casa é moderna, como podemos ver pela 21 22 Idem, p. 25. Idem, p. 25. 43 ambientação da sala de estar (fig. 16), que não possui ornamentos exagerados, bem como poucos móveis, de desenho quadrado, e os tapetes de cores claras. Mas a cozinha é um exemplo de modernidade e funcionalidade (figs.17 e 18), pois é espaçosa, repleta de armários planejados embutidos, com espaços planejados para a geladeira, o fogão e as bancadas de trabalho, com alturas e proporções ideais. Um projeto racionalizado, como Mindlin havia propagado anteriormente. Figura 16 - Residência projetada por Eduardo Knesse de Mello – Sala de Estar. Fonte: Acrópole n°11, 1939, p. 15. 44 Figuras 17 e 18 - Imagens da cozinha da residência. Fonte: Acrópole, n°11, 1939, p. 15. A partir de 1944, podemos notar como a cozinha e o banheiro foram ganhando mais importância nas publicações, devido ao número de propagandas encontradas em cada edição. Inúmeros equipamentos para a cozinha e para os banheiros foram sendo lançados: os chamados “gabinetes de aço”, fabricados em série, além de serem econômicos, simbolizavam a eficiência na limpeza doméstica. Se a cozinha já vinha sofrendo significativas mudanças desde a década de 1930, a partir dos anos de 1950 as ofertas de diferentes materiais, como azulejos, pias de inox, equipamentos elétricos de cozinha e tipos de armários aumentaram significativamente. A partir da década de 1950, nota-se nas publicações que os equipamentos para os banheiros, na revista Acrópole, agora também têm o intuído de “sofisticar” esse ambiente, e o mesmo acontecia com a cozinha. Começaram a ser produzidos equipamentos coloridos, como pias, vasos sanitários e banheiras, marcando a década de 50 como a dos banheiros de diversas cores. Havia também várias opções de azulejos decorados surgindo no mercado, e os banheiros que antes eram somente brancos foram ganhando outros tons. A referência de eficiência a partir dessa época não era mais apenas a utilização de peças e revestimentos brancos, mas as superfícies fáceis de limpar. A cor começava a ser associada à moda, acompanhando e harmonizando-se com aquelas utilizadas nas paredes da residência, nos estofados e nos tecidos que compunham as ambientações. É possível ser vista a configuração proposta, na próxima imagem (fig. 19), através de uma propaganda da “Celite”, marca que fabrica louças sanitárias para banheiros até os dias de hoje. As cores disponíveis eram: “azul-hortênsia, marfim, azul-pastel, verde-jade, amarelo-canario e verde-esmeralda”. Estas cores, em tons pastéis, características da década de 1950, aparecem formando o conjunto do ambiente, pois não só as louças são coloridas como também os azulejos e objetos. A primeira propaganda declara: 45 Também em outras lindas e modernas tonalidades. Fabricados com primorosa perfeição técnica, em linhas modernas e nas cores mais encantadoras, os conjuntos sanitários CELITE definem tendências e são indispensáveis nos ambientes de requintado bom gosto. 23 Acrópole n°205, 1955, p. 12. 23 46 Figura 19 - Anúncio de Conjuntos Sanitários Coloridos da Celite. Fonte: Acrópole n° 205, 1955, p. 12. O mesmo acontecia com as cozinhas, como podemos ver na figura n° 20, propaganda da “Fiel-Copa”, marca que estava disponibilizando gabinetes de cozinha em aço, modulares, nas cores: branco, “creme”, “verde mar” e “azul marinho”, que declara: Concentra as tarefas da Dona de Casa numa pequena área, poupando energias e acelerando o trabalho. Mais bela, higiênica e durável. Permite maior aproveitamento da cozinha. 24 Acrópole n° 205, 1955, p. 23. 24 47 Figura 20 - Propaganda de uma fabricante de gabinetes para cozinha. Acrópole n° 205, 1955, p. 23. Anos mais tarde, a Celite (fig. 21) também começava a produzir pias para cozinhas, feitas de porcelana “cozidas a mais de 1.000 graus”. A importância de instalar essas pias se dava porque, segundo a propaganda, “não riscam, resistem ao atrito e à água fervendo e são imunes aos ácidos. Fabricados em 4 tamanhos, em todas as cores CELITE”25. A mistura de diferentes cores na cozinha proposta para esta propaganda é característica da época, começo dos anos 1960. 25 Acrópole n° 263, 1960, p. 17. 48 Figura 21 - Anúncio de pias para cozinha da Celite. Fonte: Acrópole n°263, 1960, p. 17. Podemos notar diante de todas essas imagens como os banheiros e as cozinhas tem sua modernização aceita de forma mais rápida do que as propostas de modernização de outros cômodos da residência. Enquanto os objetos de decoração, móveis e equipamentos para a casa vão se modernizando gradativamente, já desde a década de 1930, e com muito mais força a partir dos anos 1950, as cozinhas e os banheiros tomam a dianteira do moderno e, partir da década de 1950, já eram tão bem aceitas que as indústrias começam a introduzir variações de cores e diferentes acabamentos e texturas. Após 1950, a casa moderna e os hábitos modernos tornam-se gradativamente o “padrão”, com a busca incessante pela estética higiênica, manifestada por meio dos equipamentos, cores, revestimentos e utensílios, e ainda os espaços integrados, mais arejados e amplos, sem muitos móveis e sem ornamentos, conformando a racionalização da ambientação interna proposta. 49 Fatores que se consolidaram e passaram a fazer parte da vida cotidiana das pessoas. 50 Segundo Capítulo: Casas Paulistas Modernas Este capítulo irá apresentar as análises de obras de dois arquitetos contemporâneos a Artigas: Gregory Warchavchik, escolhido por sua idéia precursora de projeto da Casa Modernista da Rua Itápolis em 1930, na qual ele apresenta os interiores arquitetônicos de forma inédita para a época, unindo arquitetura e arte, ao promover a exposição que marcaria o começo da divulgação da casa e as ambientações modernas; e Lina Bo Bardi, arquiteta que escreveu significativos textos sobre a obra de Artigas, além de ter trabalhado em conjunto com o arquiteto na fabricação de alguns móveis desenhados por ele e pelo estúdio Arte Palma, e escolhida também por sua Casa de Vidro, uma das mais significativas obras que exemplificam a arquitetura da década de 50, com seus interiores repletos de misturas de elementos, texturas e móveis de variados estilos. Por fim, abordará o programa das Case Study Houses, divulgado pela revista Arts e Architecture, que modificou o panorama da arquitetura moderna americana no pós Segunda Guerra, a partir de 1945, modificando também os paradigmas do morar moderno e servindo de exemplo para arquitetos de vários países, inclusive aqui no Brasil. Suas publicações de interiores arquitetônicos, além de servirem de modelo de ambientação moderna, sugeriram certo comportamento das pessoas. 51 2.1 Gregory Warchavchik e a inauguração da casa modernista em São Paulo. Gregory Warchavchik, em 1930, promoveu uma atitude pioneira: abrir uma casa modernista para exposição, uma casa-manifesto. Arquiteto ucraniano, nascido em Odessa, em 1896, e radicado no Brasil desde 1923, foi um dos precursores da arquitetura moderna no Brasil, trazendo referências da arquitetura moderna da Europa, da Bauhaus, e de mestres como Walter Gropius e Mies Van der Rohe. Segundo Agnaldo Farias, Warchavchik Construiu e divulgou, sempre de forma sistemática, um mosaico de idéias amplo e eclético, constituído por fragmentos de temas gestados na nova ordem industrial [...] Warchavchik montou com todo o rigor que lhe seria uma marca característica, um painel e um corpo de idéias particulares. 26 É importante observar que, enquanto a casa moderna presente na matriz das vanguardas européias queria definir o espaço da existência mínima e destinar-se à classe operária, a casa moderna, na vanguarda arquitetônica brasileira, antecede a modernidade européia do pós-guerra ao mostrar sua outra face, tão relevante quanto aquela: o morar da classe média, os responsáveis pela consolidação do morar moderno após 1950, como já foi dito anteriormente. Artigas teve contato com Warchavchik em 1939, por ocasião do concurso para o Novo Paço Municipal. Antes, Artigas já tinha conhecimento da linguagem racionalista de Warchavchik, por ele ter se tornado um dos principais arquitetos na instauração da arquitetura modernista em São Paulo. É por ser uma figura importante para a arquitetura moderna e por causa da relevância de seu trabalho sobre o tema que Warchavchik está aqui referenciado. 26 (Farias, 1990, p. 17) 52 Sua Casa Modernista (fig. 22), localizada na Rua Itápolis, no bairro do Pacaembu, na cidade de São Paulo, apresentou em 1930 um pioneirismo de fachada, mostrando-se híbrida quando se consideram as “formas de viver” que suas ambientações interiores sugerem ou preconizam. De acordo com as afirmações de Iñaki Ábalos sobre a casa positivista, a residência da Rua Itápolis, com sua fachada austera e impessoal, representa uma [...] estrita moralidade calvinista, que interpreta o progresso material como uma consequência direta da sua moralidade e como um destino, o da felicidade material que virá a culminar em um futuro já próximo, tal como promete o programa positivista, ao qual se sacrifica, em parte, presente. Para chegar a esse futuro de progresso é necessário submeter o indivíduo. (Para Comte, fundados da sociologia, o individual é algo abstrato – na Unidade de tudo e de todos). 27 Figura 22 - Residência na Rua Itápolis. Fonte: Acervo da Família Warchavchik. Esta residência não foi, a princípio, destinada a um cliente definido, sendo inaugurada como uma exposição artística de si mesma, para dar testemunho da nova fé moderna, exibindo-se num filme cujos fotogramas mostravam a visitação dos melhores representantes da sociedade da época. 27 (Ábalos, 2008, pp. 71-72) 53 Ninguém morava na casa da Rua Itápolis na ocasião da inauguração da exposição, em 1930, ,noticiada em jornais impressos e no cinema, causando furor na sociedade, além de opiniões prós e contras sobre sua arquitetura. Tal impacto era exatamente o que Warchavchik queria: tornar a casa um manifesto em prol da arquitetura moderna e, por meio dela, divulgar o novo espírito à sociedade paulistana e brasileira. Assim, embora a fachada da casa de Warchavchik adeque-se à ausência de ornamentos e limpeza das linhas arquitetônicas, consequência do plano racional da distribuição interna e características dos preceitos modernos na composição da ambientação dos interiores, isso muda, pois elas representariam a “alma” da casa, como explicava seu autor: A beleza da fachada tem que resultar da racionalidade do plano da disposição interior, como a forma da máquina é determinada pelo mecanismo que é sua alma. 28 Estas ambientações se manifestaram em contraponto às linhas puras e limpeza do desenho da fachada, numa menor austeridade; enquanto o exterior se revelava racional, exibindo o progresso e os tempos atuais (da época), os interiores mostravam valores atemporais, acolhendo e conciliando variadas tradições. Sobre os detalhes desses interiores, entende Marta Peixoto que o objetivo da casa era demonstrar “o que era a nova obra de arte total”, assim descrevendo-os: Ao invés de apresentar a todos a casa vazia, [Warchavchik] abriu espaço para a participação de seus colegas modernistas. Era possível visitar o interior da casa e as obras da literatura, aquarelas, postais, esculturas, tapetes, colchas, almofadas e luminárias de artistas modernos, que estão lá dentro. [...] Havia peças de coleções particulares, um bronze de Lipschitz, almofadas de Sonia Delaunay e Dominique, um tapete da Bauhaus, molduras de Pierre Legrain, além de peças de Tarsila, Lasar Segall, Gomide, 28 (Warchavchik, 1925 [in] Xavier, 2003, p. 37). 54 Di Cavalcanti, Cícero Dias, Anita Malfatti, Celso Antonio, Brecheret, entre outros. Ainda havia os livros de escritores como Manuel Bandeira, Graça Aranha, Augusto Meyer, Álvaro Moreyra, Mario de Andrade e Menotti del Picchia. 29 Como a casa de Warchavchik não foi projetada e construída para um cliente específico, tampouco possuía traços particulares de moradia, bastando-se ao papel de casa-manifesto. Era uma residência impessoal, uma maquete em escala 1:1, que seria habitada por alguém que se dispunha a aceitar o modo de vida que ela pretendia conter; para pessoas que quisessem se engajar no pensamento do progresso e que valorizassem as artes novas (literatura, música e obras de arte). Ao se observar a composição de móveis e objetos da casa de Warchavchik, pode-se perceber que a sala de estar tampouco parece ser para descanso, pois os cômodos foram ambientados para serem vistos, não vividos. A cozinha de Warchavchik é um ambiente reduzido, racionalizado e proposto a ser eficiente, equipado com fogão e geladeira disponíveis no mercado e com móveis embutidos de desenho simples e pintados de branco. A casa-manifesto de Warchavchik pode também ser referenciada como impessoal pela ausência de materiais particulares, por isso ela pode ser comparada à casa positivista que Ábalos menciona: Toda memória tem uma qualidade inferior: assim como estão proibidas as lembranças dos antepassados, está proibido qualquer mobiliário que evoque alguma memória – observemos os interiores das casas positivistas mais ortodoxas divulgadas pelos meios de comunicação – está proibida a construção com materiais que não possuam, em si mesmos, uma condição moderna. 29 30 (Peixoto, 2006, p. 140). (Idem, p. 77). 30 55 Dos materiais mais empregados, pode-se notar que o vidro, com sua transparência, e o aço eram os mais preconizados. O vidro, por ser um material industrial, produzido em série, e por permitir a passagem da radiação solar, foi um dos materiais símbolo da modernidade. Com ele, permitiu-se que os ambientes se integrassem, o dentro e o fora podiam ser vistos, além de fazerem parte um do outro. Ao se reparar nas propagandas direcionadas à casa modernista, é possível se perguntar por que, sendo moderna, esta casa se proclamava localizada em um bairro “fidalgo” – já que o bairro estava, até então, praticamente virgem, e aquela seria uma das primeiras casas a serem construídas. Propagar um bairro como “fidalgo”, ou seja, para pessoas abastadas, é uma forma de tentar dar maior importância a ele, portanto, de dizer que a casa, além de sua arquitetura modelo, estava localizada num bairro que seria símbolo de prestígio para quem viesse a construir nele. Mas, apesar da aparente “fidalguia”, tratava-se de uma casa compacta para os padrões da época; este fator e sua excessiva limpeza formal eram os pontos de maior debate nas opiniões (contrastantes) dos visitantes e críticos. Se alguns a consideravam “tumular”, como Christiano das Neves, outros, como Menotti del Picchia, a acharam uma pequena maravilha: “Sua fachada geométrica é de uma eloqüente beleza dentro da rigorosa e absoluta simplicidade de suas linhas. Suas acomodações interiores são esplêndidas. A impressão que dá é de higiene, conforto e bom gosto”. 31 Há uma busca de harmonia nos interiores de Warchavchik que visa caracterizar o espírito da época, afinado com a crença positivista do progresso maquinista e industrial, permeando todos os campos, inclusive a casa – comparada a uma máquina de morar por Le Corbusier. 31 Ferraz, 1965. P. 90. 56 Porém, a casa de 1930 de Warchavchik é plenamente, mas não homogeneamente, moderna. Apesar do rigor formal das fachadas, os interiores se configuram com menos austeridade. Embora Warchavchik procurasse se apoiar no rigor da então recém nascida ortodoxia moderna, os interiores são singularmente mais ousados, lançando mão de uma paleta de cores, objetos, obras de arte, materiais e tecidos. Talvez neles resida a importância maior desta casa, pois sua distribuição interna não trazia “inovações significativas” (fig. 23), como afirma Marta Peixoto: Sua organização espacial, porém, continua não trazendo inovações significativas. Sua planta coincide com o arranjo típico dos sobrados da classe média, largamente difundidos em São Paulo. Sua importância é consequência do fato de ter sediado a exposição, e da decorrente demonstração do princípio da integração entre arquitetura, artes plásticas e artes aplicadas. 32 O projeto arquitetônico se distribuiu da seguinte forma: a porta principal de entrada situa-se na lateral direita da residência, juntamente com a passagem dos carros para a garagem. Ao entrar por esta porta principal, o visitante se depara com um hall de circulação, à esquerda o living e a sala de estar. À direita encontra-se uma porta para um banheiro e a porta de acesso à cozinha. Logo à frente está a escada que leva ao pavimento superior. Na sala de estar, há uma porta de correr de vidro que se abre para uma varanda e para o jardim externo, do lado oposto encontra-se a sala de jantar, na qual também há uma porta que a conecta à cozinha, também há uma porta de correr de vidro ampla que se abre para a outra varanda, dos fundos, por onde é possível ir ao jardim externo ou à edícula com a garagem aos fundos. A edícula abriga, além da garagem, um dormitório de empregados. 32 (Peixoto, 2006, p. 141). 57 No pavimento superior há três dormitórios, um banheiro e o acesso a uma varanda, que é a cobertura da porta de entrada localizada no pavimento térreo. Figura 23 - Planta do pavimento térreo e primeiro pavimento da casa da Rua Itápolis. Fonte: Ferraz Alguns móveis que compunham o interior da casa eram de autoria de Warchavchik. Da mesma forma, Le Corbusier realizava a composição dos ambientes de suas casas, onde os móveis eram escolhidos ou desenhados”33 por ele. Se, na condição ideal, a casa moderna devia valer-se de materiais e objetos industriais, inclusive para o mobiliário, estes ainda eram inexistentes ou insuficientes, de 33 Idem, p. 81. 58 maneira que, para materializar a casa – pensando no futuro, positivamente – Warchavchik precisou aproveitar os materiais e a mão-de-obra disponíveis e convencionais, sempre que possível atribuindo-lhes um papel que lhes excedia; buscou atender ao ideal estético e funcional do projeto ao regular a luminosidade e compor formalmente o espaço; utilizou os recursos que tinha para fabricar os móveis, as janelas e as luminárias, tendo montado uma oficina somente para este fim específico. Marta Peixoto constata que os interiores de casas modernas do começo do século XX frequentemente eram ecléticos. O mesmo poderia ser dito da Rua Itápolis, que provavelmente pode ser chamada de eclética por ser sua descrição muito parecida a que Marta Peixoto realizou ao estudar uma casa de Le Corbusier: A maneira de compor o ambiente interno é criar uma constelação de objetos, obras de arte e algumas peças de artesanato, e colocá-las ocupando o espaço central, contra um fundo colorido, como se fossem 34 modelos numa foto posada, ou em um quadro de natureza morta. Sobre a “constelação de objetos” da casa da Rua Itápolis, na sala de estar “os móveis eram prateados à duco, de formas inéditas. O quadro dos fundos é de Tarsila do Amaral, e o da direita a “Colina Vermelha”, de Lasar Segall. O tapete é um original das oficinas do “Bauhaus” de Dessau, Alemanha”.35 Todas as paredes dos interiores tinham cor. A casa era branca somente por fora, mas por dentro se mostrava um arsenal de referências. A sala de estar tinha as paredes de cor verde claro e teto branco; a parede que separa a sala da escada é vermelha. Pela foto (fig. 24) podem ser observadas: duas poltronas com estrutura de madeira, pintadas de branco e estofado mais escuro, talvez veludo; uma mesa redonda no centro das duas poltronas, também com estrutura de madeira, pintada de 34 35 Idem, p. 82 (Ferraz, pág. 95). 59 cor prateada com um tampo de vidro e alguns objetos sobre ela; as luminárias de formas geométricas no canto direito da foto; ao fundo, um sofá de três lugares, com o mesmo desenho das poltronas; uma mesa lateral ao lado do sofá, com um vaso de plantas e uma escultura sobre ela; os quadros de pintores modernistas nas paredes e na passagem entre a sala de estar e a de jantar uma cortina, de cor mais escura, que talvez fosse de veludo. A maioria dos móveis não era de embutir, e sim solto, seus desenhos compunham formas geométricas. No lado oposto da sala de estar, há o living, à esquerda da entrada – ambos ambientes se diferenciam apenas pela disposição dos móveis. Segundo Ferraz, o living tinha: Suas paredes verde claro e fôrro branco marfim. Os móveis prateados, os estofos de veludo violeta, em tapete original do “Bauhaus” de Dessau, um quadro de Anita Malfatti, um bronze de Menotti del Picchia, uma escultura de mármore negro Victor Brecheret. Todos os móveis foram desenhados por Warchavchik e executados em suas oficinas. 36 Ferraz, 1965, pág 96. 36 60 Figura 24 - Sala de Estar da residência da Rua Itápolis. Fonte: Acervo Família Warchavchik, cedido por Camila de Oliveira. Na foto da sala de jantar (fig. 25), outro espaço é organizado em função de seu caráter expositivo, ambientando-o como sala de leitura: Sala de jantar. Paredes revestidas de placas de madeira compensada, embúia natural, polido à boneca. Cortinas em tons alaranjados. À direita, sôbre a prateleira, o busto de Graça Aranha por Celso Antônio. A sala, durante a exposição, foi transformada em sala de leitura, com as obras dos autores modernos da época, espalhadas sôbre os móveis e nas prateleiras. 37 .Ferraz, 1965, p. 96. 37 61 Nesta sala há uma mesa com quatro cadeiras de madeira, ao lado um aparador com uma escultura sobre ele; uma cadeira ao fundo; a luminária pendente, com um desenho parecido com o da mesa de apoio que está na sala de estar, entre as poltronas, (fig. 24); uma cortina encobrindo a porta de correr de vidro e revestimentos de madeira nas paredes. Figura 25 - Sala de Jantar. Fonte: Ferraz, 1965, p. 97. A próxima imagem mostra o dormitório do casal (fig. 26), também composto por móveis e cores definidos por Warchavchik; é possível ver uma cama de casal com uma colcha sobre ela, um quadro sobre a cama (como se fosse a cabeceira), mas parece haver uma cabeceira baixa atrás da cama, por onde se sustentam os dois móveis laterais a ela. Este ambiente está descrito desta forma por Ferraz: 62 Dormitório do casal. Móveis de imbuia polida, paredes lilás claro, colcha de veludo pintada por Regina Graz. Na parede um quadro de Tarsila do Amaral. 38 Figura 26 - Dormitório do casal. Fonte: Ferraz, 1965, p. 97. Compostos por uma complexa reunião de materiais escolhidos por Warchavchik, as ambientações dos cômodos da residência conciliavam móveis, objetos, obras de arte, tecidos e cores, que compunham uma paleta específica do arquiteto e que, posteriormente, se repetiu em vários outros projetos. Alguns móveis fabricados por Warchavchik eram pintados com tinta prateada. Muitos móveis modernos da Europa, da Bauhaus, de Mies Van der Rohe, eram de aço, portanto um material carregado da essência moderna. Nesta época, 38 Op. cit. p. 96. 63 aqui no Brasil, ainda não havia indústrias que fabricassem este tipo de móvel com certo grau de sofisticação, então precisavam ser importados. A importação fazia com que o valor dos móveis subisse muito, fator que tornava difícil a compra destes pela maioria das pessoas. Talvez por esse motivo Warchavchik decidiu fabricar seus móveis, ou ainda, pelo desejo de poder desenhá-los originalmente e poder mostrar seu trabalho de forma completa. Acima de tudo, o desejo de expor uma casa moderna por fora e por dentro foi mais forte; a imagem que se desejava transmitir era de progresso e modernidade, que não obstante permitia uma mistura eclética de sofisticação tecnológica e objetos artesanais. A Casa Modernista foi o ponto de partida e de inspiração para muitos outros projetos modernos que viriam a se concretizar. O pioneirismo de Warchavchik serviu para encorajar os arquitetos e também como referência do que mais moderno acontecia fora do país, aliado à arte brasileira modernista de vanguarda. A reunião da arquitetura moderna com a arte resultou numa intenção plástica que equilibrou ambas as partes, transformando a residência em um manifesto construído. 64 2.2 Lina Bo Bardi, o Studio de Arte Palma e a Casa de Vidro. Lina Bo Bardi formou-se na Escola Superior de Roma em 1939 e veio da Itália para o Brasil em 1946. Aqui, a arquiteta também atuou e contribuiu significativamente para a consolidação do morar moderno, porém com outro foco em seu trabalho, pois ela aliava o design de móveis com objetos artesanais ao criar ambientações modernas que ela própria iria divulgar na Revista Habitat, pela qual foi pioneira na construção da crítica da arquitetura moderna. No Brasil, Lina soube valorizar o artesanato nacional, ao mesmo tempo em que buscou a introdução e divulgação dos móveis modernos de fabricação brasileira nas ambientações modernas das residências. Lina estabeleceu, aqui no Brasil, um diálogo com as artes entre as décadas de 1950 e 1960, juntamente com os artistas que começavam a se destacar, como Lygia Clarck, Hélio Oiticica, Glauber Rocha, José Celso Martinez e Flávio Império, pois “sua obra extrapola os limites da arquitetura para atingir outros domínios disciplinares tal como o das artes, da filosofia, da antropologia, da literatura”.39 Ao articular as inúmeras facetas das artes, Lina incorporou a arquitetura e a cultura brasileiras na busca pelo artesanato local, pelo design de móveis e pela ambientação de interiores, não só residenciais, mas também de museus e espaços cenográficos. Em 1948, ela inaugura, junto com Pietro M. Bardi e Giancarlo Palanti, o Studio de Arte Palma e a fábrica de móveis Pau Brasil Ltda, diante da necessidade de criar móveis e objetos que acompanhassem a rápida ascensão da construção moderna no Brasil. De acordo com Maria Cecília Santos, No Studio de Arte Palma foi feita uma tentativa de produção manufatureira de móveis de madeira compensada, cortada em pé, não 39 Idem, p. 15. 65 dobrada, seguindo os princípios de Alvar Aalto. Não utilizaram nenhum tipo de estofamento. Para o assento e o encosto das cadeiras eram usados lona, couro e até chitas das casas Pernambucanas, o que foi revolucionário diante dos costumes e gosto da época. 40 Lina pesquisou os vários tipos de materiais provenientes da cultura brasileira e disponíveis no mercado que melhor se adaptassem a seu propósito: fundamentar uma ambientação moderna calcada em elementos culturais locais e ao tipo de clima, sendo feitos estudos sobre as madeiras brasileiras e os tipos de revestimentos que evitassem o mofo. Mas o foco de seu trabalho sempre foi a simplicidade de formas aliada ao cuidado na fabricação dos móveis e objetos (fig. 27). Figura 27 - Cadeiras do Studio Palma. Fonte: Lina Bo Bardi, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Podemos dizer que Artigas partilhava das mesmas idéias que Lina, tanto que, em um de seus projetos, a Residência Mario Bittencourt em São Paulo, o Studio de Arte Palma realizou a ambientação da sala de estar. Lina refere-se à arquitetura do interior da residência como sendo: 40 (Santos, p. 96) 66 Tarefa da mais séria responsabilidade de nossos dias: a disposição do interior da casa, a formação do “habitat” por excelência, onde os homens se desenvolvem e formam sua mentalidade e de onde partem para iniciar sua própria vida individual, para pensar, trabalhar e, também, infelizmente, para guerrear. 41 Na ambientação proposta na residência (fig. 28), Lina dispõe a sala com móveis modernos, projetados e executados no Studio. São cadeiras que também teriam sido expostas no Museu de Arte. Esta residência tem configuração semelhante à da Segunda Casa do Arquiteto, de 1949 (ver a análise no Cap. 3 sobre esta casa), os móveis são dispostos de maneira despojada, na sala de estar não há sofás, mas somente as poltronas, as mesas de centro e a estante, todos projetados pela arquiteta. Neste ambiente, propositalmente arrumado, não há nenhum objeto antigo, pessoal ou de artesanato inserido. Por isso, mais parece uma exposição para mostrar os móveis em um contexto moderno do que uma ambientação para uma residência de fato. Talvez tenha sido este o propósito, mas Lina optou por esse tipo de ambientação porque a residência projetada por Artigas, sem exageros nem excessos, permitia que os móveis se integrassem à arquitetura. Há, na foto, várias cadeiras e poltronas – de espaldar baixo afim de reforçarem a horizontalidade da arquitetura interior – dispostas a formarem ambientes, como uma sala de jantar e uma área para descanso no terraço; também há um móvel de madeira que parece ter diferentes opções de posição das prateleiras e uma outra mesa, no canto direito da foto, com uma cadeira. 41 Lina Bo Bardi. Instituto Lina Bo. 67 Figura 28 - Residência Mario Bittencourt em São Paulo. Projeto de Vilanova Artigas. Móveis do Studio Palma em compensado e material plástico branco, preto e amarelo limao. Fonte: Lina Bo Bardi, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. O Studio de Arte Palma durou dois anos, pois a fabricação de móveis com design e qualidade mostrou-se inviável frente à indústria que produzia móveis parecidos, com menor qualidade, mas com preços mais acessíveis. Além disso, a parcela de pessoas que adquiria tais móveis era minoria, a maioria ainda desejava móveis ornamentados, como foi demonstrado previamente, através da análise realizada nas edições da Revista Acrópole. A aceitação do móvel moderno e da ambientação moderna aconteceu gradualmente e Lina conseguiu dar sua contribuição para esse movimento. Ela propôs, em sua própria residência, a Casa de Vidro (fig. 29), de 1952, uma de suas mais consagradas obras, a criação de ambientes vivenciais, ou seja, arrumados de forma despropositada, cotidiana e particular dos usuários (geralmente uma 68 arrumação assimétrica). Nesta residência, a caixa de vidro organiza-se em dois blocos, porém em um só volume, formando o diálogo entre construção e natureza. Estabelecida no bairro do Morumbi, em São Paulo, quase inabitado na época, a residência apoia-se no terreno através dos pilotis delgados do térreo, que fazem com que o volume pareça não só transparente, por causa da cortina de vidro, como também flutuante. Lina utilizou-se do recurso dos painéis de vidro, que revelam tudo, permitindo a visão tanto de quem está dentro da casa, como quem está fora, mas com a transparência relativa proporcionada pelas cortinas. Figura 29 - Imagens da residência - foto da fachada principal e foto de Lina na escada localizada no térreo. Fonte: Oliveira, 2006, pp. 43 e 50. A área social é exibida plenamente, já as áreas privativa e de serviço estão resguardadas, localizadas na parte dos fundos da casa. A natureza se faz presente à volta de toda a residência e é visível da escada e do salão. Inclusive, o primeiro elemento que o visitante encontra quando sobe as escadarias – e pelo qual a planta foi organizada em volta, em forma de “U” (ver figs. 30 e 31) – é a árvore que ocupa o pátio central. 69 A cozinha, nessa residência, dispõe-se como a principal ligação entre os dois blocos, destinados à area social e à de serviços e empregados. Os quartos, comparados ao tamanho da casa, são de proporções reduzidas, com espaço somente para o necessário e, como foi dito, estão localizados no ponto mais privativo da residência, entre o bloco do salão principal e o dos empregados, este último separado dos quartos por um pátio externo. O espaço privado bem definido e resguardado contrapõe-se à transparência da fachada principal de vidro. O bloco dos empregados fica voltado para os fundos do terreno e, como observado acima, encontra-se interligado ao bloco principal por meio da cozinha, que faz, portanto, a ponte entre esses dois setores. Figura 30 - Planta do Pavimento Térreo. Fonte: Oliveira, 2006, p. 51. 70 Figura 31 - Planta Pavimento Superior. Fonte: Oliveira, 2006, p. 52. No painel de imagens (fig. 32), as fotos em preto e branco são de 1952, enquanto que as coloridas são de 2002. As originais, retiradas para a divulgação da casa, na época, mostram uma residência ampla, moderna, aberta para o exterior e muito transparente. A paisagem está livre e é como se a casa estivesse suspensa no ar. As imagens coloridas mostram a residência já consolidada, com os objetos que Lina foi inserindo ao longo dos anos, e envolvida pela vegetação. Cada móvel e objeto inserido nesta ambientação cria uma sensação de história pessoal. Os móveis modernos dialogam com os antigos, enquanto os objetos de artesanato se contrapõem aos de arte. A vegetação completa essa atmosfera do ambiente. O piso de pastilhas azuis dispensa o uso de tapetes ou qualquer revestimento que venha a escondê-lo. 71 Os móveis são, em sua maioria, “móveis”, ou seja, não há mobiliário fixo ou embutido. Nas fotos antigas, a sala apresenta-se com uma densidade menor de móveis e objetos, já nas fotos coloridas uma reunião de objetos pessoais, de artesanato e de arte se fazem presentes. De acordo com Marta Peixoto, nesta sala principal, Os móveis alternam-se entre peças antigas de valor, móveis comuns da época e outros, de desenho contemporâneo, de diferentes autores e da própria Lina. Além dos móveis, há muitas obras de arte, por toda a casa, como estátuas barrocas e cassoni renascentistas, que convivem com peças de artesanato popular, artefatos coloniais, vasos art nouveau e potes de barro nordestinos. Estes objetos, de tão diferentes procedências, convivem, naturalmente, sem nenhum tipo de separação por ambientes, como nas ensemblages tradicionais. Não existe uma síntese; 42 cada peça mantém sua integridade, como objetos em um museu. A ambientação de toda a sala da casa de Lina Bo Bardi se dá conforme um ambiente de colecionador, onde os objetos representativos estão dispostos e cada um conta uma história. 42 (Peixoto, 2006, p. 171) 72 Figura 32 - Painel de Imagens. As fotos em preto e branco datam de 1952, enquanto as coloridas datam de 2002. Fonte: Oliveira, 2006, p. 53. 73 Além de reunir obras de arte, em outras fotos antigas, também da data de 1952, é possível ver Lina na cozinha (fig. 33) arrumando uma garrafa em um refrigerador e despejando o que parece ser um alimento na pia. Há ainda outra imagem onde ela está colocando uma roupa na máquina de lavar (fig. 34). Estas imagens são significativas se notarmos como os ambientes são modernos para a época, comparando-se às propagandas vistas nas revistas de arquitetura (ver Cap. 1). O azulejo branco, a bancada de inox, o refrigerador e a própria máquina de lavar roupas são elementos que transformam a área em uma cozinha-modelo. Figura 33 - Lina na cozinha da Casa de Vidro. Foto de 1952. Fonte: Oliveira, 2006, p. 54. 74 Figura 34 - Lina colocando uma roupa na máquina de lavar. Foto de 1952. Fonte: Oliveira, 2006, p. 55. A figura 34, acima, mostra a foto de Lina colocando um tecido para lavar. É interessante notar a pose construída especialmente para a foto, pois é colocada na máquina de lavar uma roupa limpa, dobrada e passada. Nesta residência, portanto, Lina reúne todas suas idéias sobre o morar moderno e alia arte e arquitetura de uma forma que a torna uma casa vivencial e personalizada, de acordo com seus preceitos particulares. 75 2.3 As “Case Study Houses”: o programa americano que modificou paradigmas da arquitetura moderna. A vontade de expandir a arquitetura moderna e, concomitantemente, incentivar a aplicação de materiais de construção e de mobiliário industrializados, parece ter sido um dos principais motes para o estabelecimento do programa “Case Study Houses” (CSH), que nasce em Los Angeles, Califórnia, na costa oeste norteamericana, em 1945, por iniciativa de John Entenza, então editor da revista “Arts & Architecture”; programa até hoje considerado um dos mais importantes marcos da arquitetura moderna norte-americana. Durante a publicação da revista, de 1938 a 1962, o programa das “Case Study Houses” singularizou-se como referência para arquitetos de vários países. De acordo com Elisabeth Smith,43 a casa como laboratório de experimentação de materiais, técnicas construtivas e formas estéticas tem sido um tema persistente durante a história da arquitetura moderna. Em Los Angeles, o programa é claramente parte de um contínuo processo experimental de projeto residencial característico do século XX e o programa Case Study Houses é resultado da convergência histórica, econômica, tecnológica, social e de fatores culturais de meados daquele século em Los Angeles. Propôs inovações trazidas pelos arquitetos modernos do pós Segunda Guerra, que buscavam conciliar um estilo de vida moderno e informal, próximo da natureza e da cultura, embora já distante das limitações severas e puritanas das propostas modernistas do começo do século. Ao mesmo tempo, o programa era também profundamente inspirado pelas premissas sociais e formais do Estilo Internacional proliferado na Europa. As trinta residências elaboradas para o programa CSH deviam empregar e desenvolver o idioma moderno, eram destinadas a famílias da classe média americana, situadas em áreas de expansão urbana e nascidas do intenso processo 43 (Smith, 2009, p. 9) 76 de suburbanização pelo qual vinham passando as cidades norte-americanas. Além disso, deviam ser projetadas como protótipos experimentais de baixo custo, para fornecer ao público em geral (ou aos futuros possíveis clientes), e à indústria da construção, modelos habitacionais de baixo custo. O interesse da revista e de seu editor, Entenza, era o de estimular a participação da arquitetura moderna no intenso momento de construção civil daquele pós-guerra, propondo residências que empregassem materiais que já fossem ou pudessem vir a ser industrializados, garantindo-se seu baixo custo. Ao menos, era o que se pretendia em princípio – embora, na prática, esse ideal de industrialização não tenha sido então plenamente alcançado. Alguns dos arquitetos selecionados não tiveram seus projetos construídos; mas os que foram edificados “são freqüentemente muito diferentes da visão original dos arquitetos, devido à escassez de materiais ou outras dificuldades que envolviam a execução da construção nos anos imediatamente após a guerra”44. Assim, somente alguns projetos, já bem entrada a década de 1950, foram efetivamente executados com os materiais industriais e tecnológicos conforme originariamente idealizados. De qualquer maneira, o programa teve grande sucesso, obtendo também o interesse das classes mais abastadas. Vale também ressaltar que o programa não se limitava apenas a propor a arquitetura das casas ou sua industrialização, mas visava igualmente sugerir a maneira de habitá-las, ocupando-as com mobiliário produzido (ou passível de ser produzido) industrialmente, sendo plenamente ocupadas por todos e quaisquer equipamentos tecnológicos então existentes, cuja presença e uso igualmente as qualificavam. Foram ambientes divulgados por fotografias que se tornaram canônicas, mostrando-se sempre mobiliadas e em uso – mesmo se tratando de fotos evidentemente posadas. 44 (Smith, 2006, p. 6). 77 A próxima imagem é da Case Study n° 22, a “Stahl Ho use”, de 1959-60, de Pierre Koening. Carregando uma das mais icônicas imagens divulgadas pelo programa (fig. 35), a casa é um simples bloco situado na beira da encosta de Hollywood Hills. A planta, em forma de L, está organizada ao longo da piscina, que tem face voltada para os banheiros e espaços privativos. A ambientação da sala de estar, integrada à sala de jantar e à cozinha, se compõe de móveis modernos aliados aos materiais industriais da construção. Ao fundo, encontra-se um casal, o homem sentado à mesa enquanto a mulher prepara algo, talvez a refeição. Estas imagens, da mulher preparando alimentos, arrumando a casa e servindo o marido e a família aparecem com frequência nas fotos divulgadas pela revista. Usando somente componentes de aço para o fechamento da estrutura e armação das molduras dos vidros, de seis metros e dez centímetros (6,1 m.) de comprimento, o arquiteto obteve o máximo potencial do espaço para um ambiente tão reduzido. No interior, os quartos ocupam um lado da planta, com o closet e o banheiro da suíte principal ocupando o canto central do L da planta, e incorpora-se à zona de serviços e à cozinha. A sala de estar está situada para o lado de fora da encosta, suportada por ferros e concreto, sendo inteiramente aberta, com colunas de aço e paredes de vidro, como um mirante da paisagem, somente interrompida pelos equipamentos de cozinha e gabinetes e uma lareira autoportante vazada que domina todo o espaço do salão. 78 Figura 35 - Foto do interior da Case Study House n° ° 22. Fonte: Smith, p. 305. A Case Study House n°8 (fig. 36) foi inicialmente p rojetada por Charles Eames e Eero Saarinen em 1945, sendo “substancialmente modificada por Eames e por sua mulher Ray, uma artista e designer, para maximizar a área espacial”45. A proposta era mostrar como seria possível realizar uma casa a partir dos elementos construtivos industrializados existentes, embora normalmente usados para edificações não residenciais; e que mesmo assim, tal casa poderia ter várias vantagens, não apenas de ser econômica, mas, inclusive, de se poder morar nela confortavelmente – o que era sugerido pela maneira explícita e intencional dos interiores propostos. 45 Smith, 2006, p.23. 79 As fotos dos interiores das CHS, em especial a casa de Ray e Charles, compõem uma imagem sem dúvida moderna: a reunião de vegetação com objetos folclóricos de diversas origens geográficas, as superfícies de diferentes texturas, desde tecidos mais rústicos e de cores quentes a peças de couro negro de design ultra-moderno, além dos pequenos objetos afetivos espalhados sobre as mesas e pisos ou decorando as paredes – sem deixar de ser possível e agradável sentar-se ao chão. Exemplarmente, essa CSH sugere um modo de morar moderno que mostra ser perfeitamente possível conciliar a construção moderna e o interior moderno e personalizado, que tenha a “cara” do morador, que possa agregar suas referências pessoais e onde ele possa se sentir à vontade e confortável. Na imagem (fig. 36), a postura do casal é outra, o interior sugere uma constelação de objetos que simbolizam a história pessoal desse casal e o gosto particular de cada um. As diferentes cores e texturas, a claridade do ambiente e a noção de casa ventilada, aliada à composição de objetos que indicam conforto, como os tapetes felpudos, as almofadas e os castiçais sobre o chão e o banco em forma de animal – todo o conjunto sugere uma informalidade que só pode ser conseguida de acordo com o estilo de vida morador. 80 Figura 36 - Sala de Estar da Eames House. Fonte: Smith, p. 23 A imagem da casa mais como manifesto do que espaço do cotidiano, propagada no começo do século passado, divulgava para o público em geral a ideia de que os arquitetos modernos estavam mais interessados na eficiência dos 81 ambientes, sugerindo uma imagem do morar moderno que tendia ao desconfortável e ao despersonalizado. Estas premissas das décadas de 20 e 30 nasciam de uma fé maquinista no progresso e na indústria, mas pouco se preocuparam com as necessidades da vida cotidiana e pessoal de seus moradores, sendo, com frequência, mais espetaculares do que vivenciáveis. Mas a sensibilidade do pós 1945 mudaria esse quadro. Foi incorporado ao projeto moderno a importância dos objetos pessoais do usuário, que ativava uma noção de conforto que não era apenas quantitativa ou funcional, mas impregnava a residência com memórias singulares dos que a iriam habitar, e trazia à residência um estado de casa vivida e confortável. Aqui no Brasil, as Case Study Houses influenciaram muitos arquitetos modernos. Os desenhos icônicos das residências publicados na Arts & Architecture serviram de exemplo e referência para as residências e para a configuração das ambientações internas. Podemos ver em inúmeros trabalhos brasileiros, de 1945 até bem depois da publicação da revista ter terminado, após 1960, residências inspiradas nas propostas das CSH. 82 Terceiro Capítulo: Desenho de mobiliário, quatro casas de Vilanova Artigas e outras casas do arquiteto. Este terceiro capítulo irá tratar do foco da pesquisa, que são as obras de Vilanova Artigas. Será apresentada, primeiramente, a contextualização de sua obra e as principais fases pelas quais seus métodos de trabalho foram se modificando ao longo dos anos. O segundo subcapítulo tratará de apresentar os mobiliários projetados pelo arquiteto. É a partir do terceiro subcapítulo que começarão as análises das residências, a primeira será a “Casinha”, de 1942, seguida da Segunda Casa do Arquiteto, de 1949, logo após virá a Casa Olga Baeta, de 1957 e por último a Residência Elza Berquó, de 1967. No subcapítulo final, serão apresentadas mais brevemente outras quatro residências de Artigas, tais como a Casa Rubens de Mendonça, ou Casa dos Triângulos, de 1959, ainda a Casa Telmo Porto, de 1968, além da Casa Martirani, de 1974, sobre as quais também foi possível conseguir material para análise, embora menos amplo do que o das primeiras. As comparações com outros exemplos contemporâneos de residências, projetadas por outros arquitetos, terão papel de destaque nas análises, pois a comparação permite verificar as riquezas de cada caso e possibilita entender melhor os projetos de Artigas. A análise das obras buscará observar e descrever cada residência em sua composição arquitetônica, estudar as plantas, cortes e fachadas para reconhecer o partido adotado, os materiais empregados, a estrutura portante, a disposição e distribuição interna dos cômodos, das circulações e fluxos, reconhecendo os núcleos de utilidades e áreas molhadas, as áreas íntimas, sociais e de serviços, dando foco prioritário à arquitetura de interiores das áreas sociais. No estudo desses ambientes, serão analisados os volumes e dimensões, verificadas suas qualidades, o arranjo interno do mobiliário, os materiais de acabamento, a variedade de texturas, a densidade na disposição dos objetos, a iluminação natural e artificial e os demais elementos que definem sua ambiência. 83 3.1 Vilanova Artigas: seus métodos de trabalho e a ambientação de interiores moderna. João Batista Vilanova Artigas (1915-1985) e outros arquitetos paulistas passam a defender, principalmente no período pós 2ª Guerra Mundial, a arquitetura como profissão independente, assumindo um papel de coordenação nos esforços conjuntos da engenharia e da construção, inclusive da ambientação dos interiores das residências. A arquitetura moderna transformou o repertório formal existente, suas propostas não modificaram somente os exteriores das residências e edifícios, como também as configurações interiores das casas e sua ambientação, ou seja, a composição dos móveis e objetos – o arranjo interno dos cômodos. Como afirma Marta Peixoto, “não são apenas modificações estruturais ou de composição do espaço, como a fluidez e a transparência, a permeabilidade, as novas proporções ou o tratamento da luz”46. Com os novos objetos, móveis e equipamentos, a vida doméstica se transformou por completo. A casa moderna também possui uma arquitetura de interiores moderna, ela expressa algo inédito. Assim como outros arquitetos atuantes desde a década de 1930, Artigas se destacou por articular sua produção ao contexto do período político-social em que atuou, mas sempre manteve sua autonomia profissional. Sua obra representa não só as manifestações de seus princípios e idéias, como também a originalidade na busca da plasticidade dos materiais que eram introduzidos no mercado, como, por exemplo, o concreto armado. Suas obras foram projetadas de maneira completa, desde a configuração do exterior do edifício em conformidade com seu entorno, até a configuração interna, a distribuição dos cômodos e a ambientação dos mesmos. O estudo desses espaços possibilitará a ampliação da percepção e do entendimento 46 Peixoto, 2006, p. 3. 84 dos projetos arquitetônicos, compreendendo sob outras dimensões os métodos de trabalho do arquiteto e sua obra. Ao longo de sua intensa e profícua carreira profissional, o trabalho do arquiteto João Baptista Vilanova Artigas acumulou e articulou experiências e vivências pessoais a partir de sua criatividade e inventividade, dialogando de maneira aberta com as diversas referências de sua época, partindo sempre do conhecimento tectônico e construtivo como base, além da adaptação, de certa maneira, e da reinvenção das fontes eruditas modernas tidas como meta, que são por ele apropriadas e sintetizadas de modo particular e distinto. Formado engenheiro-arquiteto em 1937, pela Escola Politécnica de São Paulo, sendo um criador inquieto e inclusivo, as casas de Artigas mostram-se primeiramente voltadas para uma arquitetura organicista, inspirada nos princípios de Frank Lloyd Wright. Mas por volta de 1945, o arquiteto passa a orientar seus projetos residenciais inspirado na arquitetura racionalista de Le Corbusier e estabelece um diálogo com a arquitetura brasileira carioca, até chegar à linguagem “brutalista” em seu momento de maturidade. Para Artigas, como para a maioria dos arquitetos modernos, a arquitetura deveria expressar a realidade da prática construtiva e a “verdade dos materiais”, deixando de lado elementos decorativos; e mesmo quando o decorativo se fazia presente, ele adotava como postura – parafraseando a Alberti – que este deveria ser incorporado apenas por ser essencial à fatura estrutural da obra; a qual, por imperativo de natureza moral, precisava ser o que ela realmente era e mostrar-se cruamente em seu lugar. Essa postura manifesta-se nos materiais que o arquiteto empregava: o tijolo, o ferro, a madeira e o concreto deveriam apresentar-se de maneira aparente e sem disfarces, de preferência não ocultos por revestimentos. A ambientação de suas casas se caracteriza pelo envolvimento visível de materiais que definem os ambientes e configuram detalhes e objetos fixos (estantes, 85 bancos, etc), dispostos em contraponto com o arranjo dos móveis, outros objetos, iluminação natural e artificial, combinados de maneira a garantir um certo grau de informalidade e conforto. Na primeira casa que desenha para si, com apenas três anos de formado, a “Casinha”, de 1942, suas idéias já estão fortemente presentes. Essa fase de sua arquitetura é dita “wrightiana”. Embora essa atitude combine construção e detalhe, seu momento “corbusiano” (ou de alinhamento com a escola carioca, entre 19461956) comparece em uma fase posterior de seu trabalho, de linguagem “brutalista”. A maneira como os projetos residenciais de Artigas se apropriam dos espaços interiores mescla simplicidade e intenso trabalho intelectual, qualidades perceptíveis na busca pela plasticidade dos detalhes, em contraponto com a concisão da composição espacial dos partidos adotados. Seus projetos residenciais incluíam elementos mais freqüentemente encontrados em edifícios públicos, tais como as rampas de circulação, a compactação das áreas molhadas, as aberturas zenitais e outras grandes aberturas. O arquiteto parece dar preferência por trabalhar materiais que transmitam uma aparência de peso e massa, mais leves embaixo e pesados em cima, característica que confere à sua obra, inclusive residencial, uma certa dimensão monumental, que se apresenta em contraponto com a fluidez dos ambientes internos e evitam a excessiva compartimentação em favor de uma maior integração espacial das áreas de estar, de serviço e íntimas. No começo de sua carreira, atuando em sua sociedade com o colega de turma e engenheiro Marone, Artigas ganha uma ampla experiência da prática da construção, tendo projetado mais de 80 obras, a maioria realizada sob a direção de ambos os sócios. Seu esforço criativo é, nesse momento, direcionado à racionalização do saber-fazer construtivo corrente, com a progressiva incorporação de referências e inspirações advindas dos ideais modernos, bebidos em fontes literárias, e na convivência com outros profissionais mais experientes e filtrados por 86 seus próprios princípios e ideais. Naturalmente, foi preciso atender à imposição pragmática das condições cotidianas da primeira metade dos anos 1940, em plena 2ª Guerra, aproveitando os parcos materiais disponíveis e as vantagens e limitações da mão de obra também disponível, para realizar obras destinadas a uma clientela ainda limitada, pouco afeita aos arroubos formais da modernidade. A ambientação dos interiores arquitetônicos deveria ser parte integrante e inseparável do projeto, pois, além de buscarem uma imagem de modernidade, atitude freqüente dos arquitetos de seu momento, também era trabalhada a necessidade de promover e implantar a imersão total da moradia na arquitetura e hábitos modernos. Para isso, Artigas, como muitos de seus contemporâneos nas décadas de 1940-50, também projetou alguns móveis “móveis”, armários “embutidos”, além de móveis fixos, como bancos e mesas de alvenaria, definindo e/ou sugerindo arranjos internos, além de cuidar da definição dos diferentes tipos de piso e da disposição e iluminação lateral e zenital; sempre aproximando a residência a um estado de arte, como será visto na análise das casas mais adiante, e comprovado por seus textos. Todo esse conjunto era planejado de maneira a buscar atingir os ideais de uma casa moderna. Em seu período de maturidade, a arquitetura brutalista foi um ponto forte em sua obra. O termo “arquitetura brutalista” surge entre os anos 1950-1970, primeiro pela revista Architectural Review, em 1954, que publica obras intituladas “new brutalism”, depois por inúmeros trabalhos na Europa e Estados Unidos, que irão ligar o nome ao estilo arquitetônico. Segundo Bastos e Zein, “no contexto político do imediato pós Segunda Guerra, a questão da identidade nacional se coloca como tema de grande relevância no debate intelectual das esquerdas, no Brasil e em outras partes”.47 Porém, a questão da identidade será buscada diferentemente nos primeiros debates 47 (Bastos & Zein ,Brasil: Arquiteturas após 1950., 2010) 87 posteriores à Segunda Guerra. Entre os anos de 1930 a 1940, os arquitetos da escola carioca, liderados por Lúcio Costa, tinham como inspiração os ensinamentos de Le Corbusier, mas tinham em mente que era preciso ter inspiração, mas projetar com idéias próprias, mantendo o espírito de identidade nacional, a versão brasileira da arquitetura moderna. Porém, depois dos anos 50, isso se modifica, e O panorama se revela mais maniqueísta, tensionado por polaridades esquerda-direita, dependência-independêndia; de maneira que boa parte dos intelectuais brasileiros que se alinham, ou ao menos simpatizam, com o pensamento de esquerda, encontra problemas em lidar 48 com essas relações de trocas culturais e internacionais”. E Artigas, fazendo parte do grupo de mestres da arquitetura moderna paulista, juntamente com Rino Levi e Miguel Forte, que desde os anos 40 vinham contribuindo para a consolidação da arquitetura paulista moderna, nos sugere, em seus artigos dos anos de 1950, “uma atitude crítica em face da realidade”, pois a única saída para aquele impasse – o momento politico crítico em que o Brasil começava a se encontrar – era conectar a arquitetura às “raízes brasileiras do universo”, defendendo a autonomia artística e a busca da criatividade arquitetônica frente à “Liberdade sem limites no que tange ao uso formal”[...] “Em outros termos, Artigas validava o recurso a quaisquer fontes de influência e inspiração como condição sine qua non da criação artística, arquitetura 49 incluída; mesmo se não pudesse, ideologicamente, aceitá-la abertamente”. Por isso, podemos ver as inúmeras referências e inspirações de trabalhos de outros arquitetos e premissas da arquitetura moderna na obra de Artigas, que as articulou de acordo com seus próprios princípios e ideais, além da vasta experiência em projetos e construção que vinha adquirindo desde o início de sua carreira. Mas 48 49 (Bastos & Zein ,Brasil: Arquiteturas após 1950., 2010, p. 76) Idem, p. 77. 88 não se pode simplificar sua obra como sendo o reflexo do período crítico na ditadura militar, ou como um questionamento político da época, já que ele mesmo defendia a autonomia da arquitetura e a busca pela arte. Os interiores arquitetônicos eram parte do exterior, a residência precisava estar completamente imersa na arquitetura e nos hábitos modernos. Foi por essa razão que muitos arquitetos não só cuidavam do projeto e da construção, como também estendiam seu trabalho para as ambientações dos cômodos das residências. A maioria, até mesmo Artigas, chegavam a planejar a disposição e local de móveis embutidos, a sugerir arranjos internos, diferentes tipos de piso, iluminação zenital, tudo planejado em conjunto para a casa moderna. Como Artigas foi um dos precursores do movimento brutalista na arquitetura paulista, e muitos de seus projetos residenciais possuem essas características, devemos entender as mais comuns, apontadas por Bastos e Zein: 1. pelo partido arquitetônico: a “preferência pela solução em monobloco, ou em volume único, abrigando todas as atividades e funções do programa atendido”, a relação do entorno com “contraste visual”, a “horizontalidade da solução volumétrica do edifício”, e a “franqueza dos acessos”; 2. a composição em planta e em elevação: “preferência pela solução em caixa portante” (Citrohan, Le Cobusier)”, preferência pela planta livre, e pelo “teto homogêneo em grelha uni e bidirecional (a maneira miesiana)”, os vazios verticais internos e a “valorizar visuais e percursos voltados para os espaços interiores comuns, cobertos, de uso indefinido; os espaços internos são geralmente organizados de maneira flexível, interconectada e não compartimentada”; 3. elevações: poucas aberturas ou “aberturas protegidas por balanços de extensões das lajes”, a opção pela “iluminação natural zenital complementar ou exclusiva”; “inserção ou aposição de elementos complementares de caráter 89 funcional-decorativo, como sheds, gárgulas, buzinotes, vigas-calha, canhões de luz, realizados quase sempre em concreto aparente”; 4. sistema construtivo: estruturas de concreto armado ou protendido, utilização de lajes nervuradas, uso de pórticos rígidos ou articulados, e preferência por vãos livres e balanços amplos, “emprego constante de fechamentos em concreto armado fundido in loco, eventualmente aproveitado também em paredes e divisórias internas”; 5. texturas e ambiência lumínica: as superfícies dos materiais construtivos são deixadas aparentes, “valorizando a rugosidade de textura obtida por manufatura, algumas vezes recebendo proteção por pintura, algumas vezes colorida”, é comum a ausência de cor nas aberturas, sempre protegidas por brises; 6. características simbólico-conceituais: “ênfase na austeridade e homogeneidade da solução arquitetônica obtidas por meio do uso de uma paleta bastante restrita de materiais”, e a “ênfase na idéia de pré-fabricação como método ideal para a construção, apesar da rara possibilidade de sua realização efetiva”, e a “ênfase no caráter experimental de cada exercício arquitetônico, tanto construtiva quanto programaticamente”.50 Segundo nos explica as autoras, a razão de Artigas para se utilizar das técnicas mencionadas se dá porque As possibilidades tecnológicas do concreto armado reuniram-se ao desejo de revelar a originalidade das raízes culturais brasileiras, partindo da essência universal do homem para resultar numa arquitetura que se lança para a utopia, o vir-a-ser da sociedade. 50 51 51 Idem, pp. 78, 79. (Zein, O lugar da crítica: ensaios oportunos de arquitetura, 2001) p. 184. 90 A arquitetura paulista brutalista adota uma posição estrutural utilizada como definidora da forma, na qual o uso extensivo do concreto armado ou protendido revela uma volumetria única, com uma cobertura por onde se abre iluminações zenitais, com paredes cegas predominando no conjunto por onde as aberturas diretas entre exterior e interior são obstruídas, diminuindo essa relação da construção, mas a ênfase na criação de uma espacialidade interior contínua integrada, através de jardins, pátios e grandes espaços vazios, que incorporam o elemento externo ao interno. Do grupo de arquitetos paulistas que mais se destacaram na produção da escola paulista brutalista, além de Vilanova Artigas, podem ser citados: Paulo Mendes da Rocha, Joaquim Guedes, Carlos Millan, Fábio Penteado, Pedro Paulo Saraiva, Abrahão Sanovicz, Jon Maintrejean, Ruy Ohtake, Giancarlo Gasperini, Marcelo Fragelli, Décio Tozzi, Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèbvre, João Walter Toscano e Lina Bo Bardi. Esses edifícios brutalistas, construídos na cidade de São Paulo, que cresceu rapidamente com a força da industrialização e da especulação imobiliária, deram respaldo à trama urbana, com o intento de reconstruir, em seus interiores, os espaços de uma nova sociedade coletivista e também austera. Mais do que em edifícios públicos e monumentais, a arquitetura brutalista se manifestou em residências, resultando em um tratamento plástico que une as possibilidades do concreto armado e outros materiais, com a difícil tarefa de fazer com que os interiores dessa residência parecessem confortáveis. O conforto, na casa moderna, é um ponto central de discussão. Marlene Acayaba nos coloca que, em relação ao seu estudo da casa moderna, havia Queixas do chão de asfalto da cozinha, da falta de privacidade e luz, da opressão das grandes estruturas que se acomodavam partindo os 91 vidros e negando aconchego, dos móveis fixos, dos ambientes sombrios em concreto aparente, do frio e do calor quase sempre excessivos e 52 inoportunos . Por isso, os estudos das ambientações internas e disposições arquitetônicas também levam em conta a influência do modo de vida do usuário e são importantes no sentido de estabelecer a relação da casa com a proposta arquitetônica do arquiteto. A aceitação do modo de vida moderno ocorreu ao longo das décadas em que se foi tentando estabelecer o contato entre o arquiteto e o cliente, a arte e a vida privada. As obras de Artigas podem ser identificadas em quatro fases, nas quais se pode ver mudanças significativas no trabalho do arquiteto. Zein as classifica como: fase inicial, de 1938 a 1946; fase intermediária, de 1946 a 1955; a maturidade, de 1956 a 1966; e a consagração, de 1967 a 1985. Em sua fase inicial, Artigas realizou muitos projetos residenciais, alguns pequenos edifícios de escritórios e duas lojas. Os projetos são, em sua maioria, “experiências produtivas do ponto de vista construtivo e de organização dos espaços”. São idéias que amadurecerão em sua obra na fase seguinte, Tais como o emprego dos materiais de maneira franca, a distribuição dos ambientes de forma a evitar áreas mortas ou simetrias desnecessárias, a concentração dos serviços, o cuidadoso detalhamento, a preocupação com a insolação correta, o emprego cada vez mais costumeiro de amplos vãos envidraçados. 53 Estas experimentações fazem parte da preocupação do arquiteto frente à soluções construtivas diferentes, que eram coordenadas por ele na própria construção, uma vez que ela procurava estabelecer uma linguagem comum entre os 52 53 Acayaba, Marlene. 2011, p. 14. (Zein, O lugar da crítica: ensaios oportunos de arquitetura, 2001, p. 124) 92 mestres de obras, pragmática, porém popular, mais distante de formalismos acadêmicos e intimamente ligada ao moderno. A primeira residência do arquiteto, a “Casinha”, de 1942, que será tratada pormenorizadamente adiante, é um dos projetos de destaque desta fase. Em sua fase intermediária, Artigas irá se inspirar na arquitetura da escola carioca, que vinha sendo desenvolvida desde os anos 40, A partir da re-leitura dos paradigmas corbusianos, muitas vezes filtrados por outras releituras americanas; os quais, somados às características construtivas e plásticas do primeiro período, vão permitir o aparecimento de uma série de projetos preocupados com um número relativamente reduzido de variáveis, exaustivamente estudadas. 54 Nesta fase, a construção em volume único, abrigando todas as funções e seus limites, bem definidos, é uma característica corrente; na fase seguinte, esse partido irá amadurecer para a arquitetura brutalista. Também é a fase em que ele se preocupa mais com o projeto do que com o canteiro de obras; a utilização de materiais, como o tijolo e o vidro, começa a aparecer frequentemente; também o concreto começa a se fazer presente. Zein afirma que, Apesar de aproveitar detalhes de soluções de origem corbusiana filtradas pelos exemplos cariocas, tais como brises verticais e horizontais, elementos vazados cerâmicos, marquises de formas curvas, coberturas em asa-de-borboleta, Artigas nunca é formalista, ou gratuito: a construtividade do edifício, organizada pelo partido – conceito que engloba intenções estéticas e filosóficas – , é dominante, ordenadora. 55 Outro partido que aparece com mais freqüência é o constituído por “dois blocos com coberturas em meia-água, separados, mas interligados, às vezes 54 55 Idem, p. 127. Idem, p 127. 93 contraponteados com um terceiro volume transversal”56, como a Casa J. Czapski , de 1949 (fig. 37), e a Segunda Casa do Arquiteto, de 1949, pormenorizadamente analisada adiante. Figura 37 - Casa Czapski, 1949. Foto: Vilanova Artigas, 1997, p. 61. Há ainda uma terceira variante apontada por Zein, que se inicia nessa fase, na qual “o volume principal estreita-se, desenvolvendo-se longitudinalmente, sendo interrompido pelo volume transversal, que é enfatizado plasticamente, além de resultar num aproveitamento melhor do lote”.57 Destaca-se, aqui, um número maior de edifícios públicos, como o Edifício Louveira, de 1948 e o Estádio Municipal de Londrina, de 1953, pois ambos possuem programas mais Complexos e diversificados, permitindo o estudo de grandes estruturas em soluções que acompanham tipologias modernas, mas que são 56 Idem, p. 127. 57 Idem, p. 128. 94 sempre marcadamente originais na apropriação dos espaços, no tratamento dos materiais, nas soluções técnicas e construtivas empregadas. 58 O projeto do Estádio do Morumbi, de 1952, com estrutura de concreto armado aparente, prenuncia a fase seguinte das obras do arquiteto, qual seja a fase da maturidade, periodizada entre 1956 e 1966. É neste período que Artigas, após 20 anos de atividade profissional, irá atingir O veio artístico que caracterizará profundamente sua obra: as possibilidades plásticas, espaciais e conceituais do concreto armado; esteticamente, caminha no sentido de uma gradual simplificação e ênfase da relação de contraste entre edifício e natureza, da construção como trabalho humano, desafio. 59 Nesta fase, as características da arquitetura brutalista, como os volumes únicos, o uso franco do concreto armado, os vazios interiores com iluminação zenital, a distribuição da planta em níveis separados por rampas, tomam os espaços definitivamente. A residência Olga Baeta e Elza Berquó, que serão também tratadas mais adiante, pertencem a essa fase. Segundo Frampton, o concreto utilizado não era somente uma solução mais econômica, como também respondia a necessidade de encontrar meios de expressão artística utilizando a estrutura do edifício, sua parte mais digna. Para Artigas, a estrutura não devia desempenhar o papel humilde de esqueleto, mas, sim, expressar a graça com que novos materiais permitem dominar as formas, com a elegância de luzes mais amplas.60 Os projetos de edifícios públicos são a maioria, ficando os residenciais restritos a alguns projetos de destaque, como a Casa Olga Baeta, de 1956, na qual Artigas utilizou extensivamente o concreto armado, e a J. Mário Bittencourt, de 1959, 58 Idem, p. 129. Idem, p. 130. 60 (Frampton & Wisnik, 2010, p. 9) 59 95 em que “o franco uso do concreto armado vai definir o partido por meio das duas empenas longitudinais/vigas que tocam o solo em quatro pontos, diretamente sobre as fundações”61, sendo, esta última, definitivamente um exemplo “brutalista paulista”, que o arquiteto continuará aperfeiçoando após 1967. Em muitos edifícios, o caráter de volume monumental que se apóia gentilmente no terreno é um tema recorrente; um dos recursos utilizados por Artigas para conseguir esse efeito foi colocar os pilares em forma de V, que aparecem não só em edifícios públicos como também em residências. Pilares referenciados por Lina em um comentário, feito em 1957, sobre a importância de se invocar a história: “os pilares em forma de V, tão na moda hoje em dia, embora usados, em nossa época, por primeira vez por Le Corbusier, haviam sido projetados por Viollet-le-Duc em 1872”.62 O Edifício da FAU, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo, de 1961-1968, considerado por muitos como a obra mestra do arquiteto, é um exemplo. Nesse edifício, as paredes de concreto que o cercam pelos quatro lados conduzem a carga a grandes pilares de concreto, cuja seção diminui até o solo, de forma que toda a estrutura descansa sobre quatorze pontos, cinco pilares em cada uma das fachadas largas e dois em cada uma das menores. A cobertura do edifício está constituída em ferro “em retícula bidireccional” de concreto, fechado por “lucernários”, que permitem a iluminação zenital do espaço. 63 Esse edifício teve como projeto precursor a casa José Bittencourt, de 1960 (fig. 38). Residência projetada a partir de um pátio central, assim como a casa Elza Berquó, é implantada em meios níveis por onde as áreas sociais, íntimas e de serviço se alinham com o terreno. As interligações entre os pavimentos ocorrem por rampas e se abrem para o pátio central, onde há um jardim. Na planta do subsolo 61 (Zein & Bastos, Brasil: Arquiteturas após 1950., 2010, p. 131). (Bardi, Contribuição propedêutica ao ensino da Teoria da Arquitetura, 2002) 63 Framptom, p. 7. 62 96 está a área destinada aos serviços e também aos aposentos dos empregados. A iluminação ocorre por janelas pequenas que se alinham em faixas. Figura 38 - Residência José Bittencourt. Fonte: Acayaba, 2011. A planta térrea, alinhada ao nível da rua, abriga a garagem para carros, separada da entrada principal por uma parede de vidro, e da cozinha por uma parede revestida por cerâmica de Francisco Brennand. A integração interna da sala de estar com o pátio externo e o pátio central é acentuada pela utilização de paredes de vidro. A sala de jantar está integrada à cozinha, como no modelo americano que integra os dois ambientes e os define por meio de um balcão; logo após está a área de serviço que se interliga ao subsolo por meio de uma escada. A rampa faz a conexão entre o andar térreo e o primeiro e está localizada ao lado do pátio central, pelo qual se organizam os cômodos e se definem as funções (de um lado, área social, de outro, cozinha e serviços). Na planta do primeiro pavimento, de um lado do pátio central (fig. 38) estão os quatro dormitórios e os dois banheiros, de outro está o estúdio e o lavabo. Na fachada sudoeste, que dá para os fundos do terreno, a sala de estar do pavimento 97 térreo com o estúdio do primeiro pavimento são superpostos, e suas janelas amplas, que vão de uma extremidade a outra, estão voltadas para o pátio externo. A próxima imagem (fig. 39) é do estúdio, está sem data, mas provavelmente é da década de 80 – época em que Marlene Acayaba estava pesquisando as residências de São Paulo para sua monografia e, mais tarde, para editar seu livro – por ela, é possível ver o pátio central e a rampa ao fundo. Há duas poltronas com estrutura de madeira e encosto de tecido (uma está com uma almofada colorida sobre o assento); uma mesa lateral com alguns papéis; no centro da foto uma mesa de escritório, com outros papéis e objetos sobre ela e com uma cadeira que parece ser de tecido. Ao fundo, há uma estante com muitos livros e algumas plantas (samambaias) sobre ela. Do teto desce uma luminária pendente. Figura 39 - Estúdio da Residência José Bittencourt, 1960. Fonte: Acayaba, Marlene, 2011. 98 A última fase de Artigas definida por Zein é a da Consagração do arquiteto. Depois de passar por momentos difíceis, por causa da repressão política durante a ditadura militar no país, os trabalhos realizados nesse período são os menos conhecidos, fazendo parte de uma época em que o arquiteto ficou mais recluso, com poucas publicações realizadas sobre seus projetos. Porém, esse fator não alterou de modo algum a criatividade e inventividade de Artigas, que deu ao emprego do concreto armado soluções Bastante peculiares: a experimentação parece ser a intenção implícita nestas obras, colocando como tema inescapável a liberdade do arquiteto enquanto artista frente às necessidades funcionais prosaicas, destacando as contradições e continuidades entre arte e técnica – tema 64 também presente em seus textos. Artigas realizará, nesses anos, “projetos empregando o bloco de concreto estrutural, tesouras de madeira – sua intimidade com estas remonta aos primeiros anos de seu exercício profissional –, em soluções simples e belas”.65 Porém, é nos interiores destes edifícios e residências que iremos encontrar a vida acontecendo: são os usuários que dão a vida a eles e, apesar da austeridade e severidade da construção, os ambientes compartilham de amplitude e iluminação. É no interior destas residências, portanto, que encontraremos a alma da vida doméstica, os pertences íntimos, as memórias e os objetos particulares tornam o ambiente plenamente “moderno”. 64 65 (Zein, O lugar da crítica: ensaios oportunos de arquitetura, 2001, p. 135) Idem, p. 136. 99 3.2 Artigas e o design de mobiliário. Como premissa importante a ser incorporada à ambientação de interiores, o mobiliário moderno foi de grande importância para que as ambientações das residências pudessem ser possíveis. Por isso, vários arquitetos desenharam móveis modernos, como Lina Bo Bardi, Sérgio Bernardes, Sérgio Rodrigues, os arquitetos da “Branco & Preto”, além de Paulo Mendes da Rocha, Oswaldo Arthur Bratke, Rino Levi, Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Joaquim Tenreiro, entre outros. Os móveis projetados por estes arquitetos acabaram por se tornar uma extensão da arquitetura de cada um, além de serem parte integrante e essencial nos projetos. Ao fazer parte do grupo de arquitetos que também se empenharam em projetar móveis para que o ambiente interior pudesse ser uma extensão de sua arquitetura, Artigas desenhou, em 1948, um modelo de poltrona que, segundo Maria Cecília dos Santos, foi inspirado em Richard Neutra. A cadeira era feita de compensado revestido de peroba, com assento e encosto de tecido (fig. 40). Também desenhou outra, chamada de linha “Bauhaus”, que tinha como material o compensado de pinho, “com assento e encosto em borracha revestida de tecido. No setor imobiliário institucional, Artigas projetou uma cadeira giratória em metal pintado, com assento e encosto estofados e recoberto por couro natural”.66 Segundo a autora, Para Artigas, o que importava com relação ao móvel no Brasil é recuperar o afeto especial que o homem brasileiro sempre teve pela madeira, redescobrir a origem dos nomes das essências vegetais e das diversas madeiras, “só assim sairemos de nossas raízes, partiremos para o plano universal da forma moderna e, depois, reencontraremos na nossa 66 (Santos, p. 69) 100 própria terra os principais elementos que compõem o passado de nosso 67 gosto”. Figura 40 - Cadeiras desenhadas por Artigas em 1948. Fonte: Santos, p.70. Artigas projetou móveis que dialogam diretamente com suas idéias e propostas arquitetônicas. Está manifestado neles o uso franco dos materiais, do couro e da madeira, o sentido de recuperação da cultura, da consciência sobre “as nossas raízes”, a conciliação entre o “plano universal da forma moderna”68 e o resgate dos elementos do passado que tragam boas lembranças. Nestas poltronas, Artigas inspirou-se em um desenho simples, porém detalhado (fig. 41). Segundo Maria Cecília, Na área do mobiliário, Artigas desenhou, em 1943, uma cadeira em compensado recortado, com couro. Em 1948, desenhou uma cadeira 67 68 Idem, p. 69 Idem, p. 69. 101 para os vários projetos de residência executados à época, incluindo sua própria, à rua Barão de Jaceguai, São Paulo. Trata-se de uma cadeira de braços, assento e encosto estruturados em madeira, almofada em algodão revestida em tecido azul mescla. Projetou também móveis para cozinha, em compensado revestido de mogno, em 1982. Nesse mesmo ano, desenhou estante em compensado encerado, com portas revestidas em fórmica brilhante nas cores azul, amarela e vermelha, numa alusão cromática à 69 cadeira Red and Blue de Gerrit Rietveld. Figura 41 - Projeto do Mobiliário de "A Equitativa". Fonte: Vilanova Artigas, 1997, p. 48. A próxima fotografia (fig. 42) mostra essa cadeira em uma imagem que recorda as propagandas vistas nas revistas de arquitetura, com uma mulher (que talvez seja a esposa de Artigas) sentada na cadeira, lendo um livro. 69 Idem, p. 69. 102 Figura 42 - Mulher sentada na cadeira desenhada por Artigas. Foto sem data. Fonte: Vilanova Artigas, 1997, p. 48. Artigas não chegou a desenhar só cadeiras, pois em vários de seus projetos nota-se que os armários embutidos de madeira também faziam parte da obra, como os guarda-roupas e os armários dos banheiros, quartos e cozinhas; assim como os móveis fixos de concreto, como bancos e mesas, que apareciam frequentemente em várias de suas casas e edifícios públicos. 103 3.3 A “CASINHA” DE 1942. A primeira residência que o arquiteto projeta para si e sua família é conhecida como “Casinha”, que foi projetada e construída em 1942. Situada no bairro de Campo Belo, distante 10 km do centro da cidade de São Paulo, estava próxima da parada “Piraquara” da linha de bondes que ligavam a Praça João Mendes ao então município, hoje bairro, de Santo Amaro, na zona sul. O lote em esquina recebeu também, na sua porção posterior, a Segunda Casa do Arquiteto, projeto de 1949. O projeto da “Casinha” foi o campo de experimento das idéias de Artigas. É nesse projeto que ele incorpora sala de jantar, estar e cozinha no mesmo ambiente, além de inserir a área de serviço no corpo da residência e não em uma edícula, como era comum na época. É um projeto compacto, cujos cômodos se alinham em uma sequência na planta de forma quadrada. Nessa primeira casa do arquiteto, o programa era para apenas um casal morar; com a vinda dos filhos, mais tarde, ele construiu sua segunda casa no mesmo terreno (que será analisada posteriormente), ao lado da primeira. Atualmente, a casa está sendo ocupada por uma floricultura. Por isso, várias imagens, tiradas recentemente pela autora desta dissertação, mostram vasos de plantas e objetos de jardinagem em exposição para venda. Apesar da dificuldade em achar fotos que possam mostrar como era a ambientação inicial proposta, foi possível encontrar algumas imagens que podem indicar como a casa foi ambientada numa época posterior, quando Artigas já não morava mais nela. Imagens que mostram a casa já sem muitos móveis e objetos pessoais, mais parecendo com um estúdio de trabalho. Talvez elas sejam da década de 90, quando a residência foi alugada para um escritório de arquitetura. 104 Mesmo assim, essa residência parece quase prescindir da existência de móveis para completar a ambientação interna, pois, exceto por camas, cadeiras e sofas, os demais móveis foram incorporados em sua construção, definindo espaços e cômodos. As fachadas da residência faceiam os pontos cardeais e, por isso, a casa está girada em 45 graus em relação ao alinhamento da rua (fig. 43), rompendo com a disposição comum de 90 graus com as frentes do terreno. Não há fachada principal, pois as quatro fachadas são visíveis e trabalhadas simultaneamente, rompendo a hierarquia entre elas; nenhuma é renegada à condição de menos importante ou menos nobre. A construção é em alvenaria de tijolos aparentes pintados de branco, com o resguardo de sua textura, com alguns poucos apoios em madeira nas pérgolas e nas estruturas do mezanino, sendo também de madeira a estrutura do telhado, em quarto águas, coberto com telhas de barro. 105 Figura 43 - Planta da residência. Desenho feito pela autora. Fonte: Croqui original dos arquivos da FAU USP. A planta, inserida na posição de 45° em relação ao terreno, mantém as posições das paredes no mesmo ângulo de inclinação, porém os cômodos se arranjam de forma desalinhada dentro deste esquadro, ou seja, é como se as paredes fossem se encaixando e formando a posição dos ambientes a partir de um ponto central: o banheiro. Assim, a planta da residência é definida por um núcleo 106 conformado pelo posicionamento central do único banheiro, iluminado apenas zenitalmente, ao redor do qual os outros cômodos se justapõem em sequência, conformando a planta em espiral, acessada pela porta da varanda ou pela porta da cozinha. A porção entre ambas, quando percorrida no sentido horário, define o nível térreo, englobando o acesso à sala de estar, jantar e cozinha; da entrada da varanda e girando em sentido anti-horário situa-se o estúdio, a meio nível abaixo; meio nível acima deste, situa-se o dormitório, como em “mezanino” (loft), sobre o estúdio, ao qual se chega pelo pequeno hall ou antecâmara de acesso ao banheiro. Pelos próximos desenhos (fig. 44), realizado a partir de um croqui encontrado nos arquivos da FAU USP, é possível ver a configuração das fachadas e alguns cortes da casa. Figura 44 – Fachada lateral esquerda, fachada dos fundos e corte longitudinal. Desenho sem escala, realizado pela autora. Fonte: Croqui original dos arquivos FAU USP. Os detalhes construtivos são fundamentais na própria definição tectônica da casa. Não são agregados, mas “nascem” com ela. Incluem a criteriosa escolha de materiais e desenho das janelas, das duas únicas portas, das colunas que sustentam o maior balanço do telhado sobre a varanda de acesso, entre outros detalhamentos, cada qual merecendo seu destaque. Como, por exemplo, a janela de canto da sala: 107 além de suas proporções maiores do que as usadas na época, foi adotado um caixilho típico “de serviços”, empregado em uma sala, requerendo um especial reforço na estrutura para poder se viabilizar (ou ele próprio é parte dessa estrutura). Assim como essa, todas as janelas da casa são de chapas de ferro dobradas e pintadas por serralheiro, solução barata à época devido à ampla oferta de mão de obra desse tipo em São Paulo. Outro detalhe sutil é as três colunas de madeira que apoiam o madeiramento do telhado, em balanço sobre a varanda (fig. 45). Nesta residência, a invenção viabilizou a construção, e o fez pela expressão de uma vontade de forma plástica dos materiais – a partir desse trabalho, foi formado um conjunto coeso de texturas e efeitos que combinam unidade e variedade. Com a integração dos ambientes internos, a noção de privacidade é modificada, inclusive nas áreas em que, mesmo no arranjo residencial moderno, admite-se como reservadas, por exemplo o dormitório – que na “Casinha” fica aberto, ou, pelo menos, não é um cômodo estanque. Esse único dormitório está separado dos outros ambientes apenas pelo armário-parede, projetado como parte da arquitetura e, simultaneamente, do arranjo dos interiores: ele se debruça sobre o estúdio, no nível superior, apenas com um guarda-corpo, separando-os. A cozinha integrada à sala é moderna e racionalizada, em muito nos lembra os modelos de já então amplamente publicados nas revistas; mas contém um elemento inusitado a essa “modernidade” e que a insere diretamente na tradição da cozinha brasileira: o fogão a lenha. Apesar da rusticidade dos materiais, há uma delicadeza de definição dos pontos de encontro entre pilar e terreno (fig. 45), ou entre pilar e telhado, ou entre duas paredes – que não apenas se juntam, mas se “amarram”. Os pontos de união se fazem sem se chocar. 108 Figura 45 - Imagem mostrando o detalhe do ponto de encontro do telhado com a parede abaixo, sendo dois pilares delgados o intermediário entre os dois materiais. Fonte: Artigas, 1997, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, p. 37. Foto de Nelson Kon. A Casinha provavelmente é o primeiro experimento do arquiteto com liberdade de projetar a planta, escolher os materiais e configurar os ambientes e as fachadas, chega a criar uma atmosfera de “obra de arte total”. As ideias introduzidas nessa casa inauguram pautas que irão mais tarde se acumular, transformar e evoluir em outras tantas experimentações do arquiteto: Foi um rompimento formal meio grande. A partir dela, que foi a primeira vez que fiz e tive coragem de fazer porque era para mim, me libertei inteiramente das formas que vinham vindo. Me libertei da planta porque a cozinha passou a se integrar na sala. Marcou uma nova fase em todo tratamento volumétrico e formal daquilo que podia se chamar fachada, porque a fachada desapareceu. 109 Transferi algumas vivências minhas, de menino paranaense, do sul do Brasil, que tem sala e não sabe para quê. A convivência da família brasileira era na cozinha. Enquanto, na casa tradicional paulista, a sala de jantar se dirigiu na direção do “living-room”, pelo processo de transformar duas salas em uma, eu fui para a tradição brasileira de integrar a cozinha à sala. Segui caminho diverso. Sei que perdi a parada. Mas a minha casa está 70 lá . As próximas três imagens (figs. 46, 47 e 48) apresentam a fachada da residência em diferentes épocas. A primeira é mais recente, provavelmente da década de 90, quando um livro sobre Artigas foi editado pelo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. As outras duas são mais antigas, mas não se tem a data precisa de quando foram tiradas. Por elas é possível notar as diferentes texturas dos materiais empregados na construção – a parede de tijolos, as janelas de ferro, o telhado com forro de madeira, os pilares de madeira e os pergolados – dialogando com o jardim externo que, na foto mais recente, está mais alto e com um número maior de plantas. Um ponto interessante nesta residência é que, se vista pelo lado de fora, parece ser térrea e pequena (fig. 46), já por dentro o espaço revela-se mais amplo, por causa do pé direito mais alto, do forro de madeira na sala e por haver um pavimento a meio nível abaixo, abrigando o estúdio, com pé direito duplo, em cujo mezanino situava-se o dormitório. A janela do estúdio, entretanto, posiciona-se para fora e é vista sem revelar essa altura maior. 70 Artigas V., 1997 110 Figura 46 - Foto da fachada frontal da "Casinha". Fonte: Artigas, 1997, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, p. 37. Foto de Nelson Kon. Na próxima imagem, mais antiga (fig. 47), porém sem data, podemos ver a área externa quase sem vegetação e o trabalho de detalhamento dos diferentes materiais: a janela de canto de ferro, a parede de tijolos e o telhado com o forro de madeira, estendido até mais à frente da porta da entrada. 111 Figura 47 - Foto de época, sem data, da residência. Fonte: Artigas, 1997, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, p. 37. A próxima imagem (fig. 48), também mais antiga, nos mostra a residência e seu entorno quase sem vegetação e ainda sem a segunda residência, que foi construída posteriormente, em 1949. Talvez esta foto seja de uma época próxima à construção (década de 50), pois há somente uma casa vizinha ao fundo e se formos compará-la com o entorno atual, podem ser vistos os prédios vizinhos circundando as duas laterais do terreno. Aqui o pergolado está com uma planta trepadeira e há algumas plantas mais ao fundo, delimitando a área do jardim. 112 Figura 48 - Foto de época, sem data, da residência. Fonte: Artigas, 1997, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, p. 37. Na próxima fotografia (fig. 49), é possível ver o estúdio proposto a meio nível abaixo do térreo, e seu mezanino, a meio nível acima, que, nesta foto, já perdeu sua função original de dormitório, pois não há camas ou objetos que denotem esse uso no ambiente. Talvez esta foto seja da década de 90; nela, pode-se ver duas mesas grandes, provavelmente de desenho, e um tapete ao centro. No mezanino, há uma mesa com uma cadeira e alguns objetos sobre uma prateleira. A iluminação foi ampliada, com dois grandes spots de luz (que podem ter sido colocados propositalmente para as fotos). Ainda no mezanino, ambiente inicialmente desenhado para dormitório, está o guarda-roupa, projetado junto com a residência e que serve como divisor dos ambientes, parcialmente garantindo a privacidade do quarto. Justapõem-se diferentes materiais, como o forro de madeira e a parede de tijolos, além das vigas de madeira que servem de guarda-corpo ao mezanino e 113 podem ter papel estrutural também. O pé direito de cada um dos ambientes é mais baixo que o habitual, o que é compensado pelo vazio de dupla altura. Figura 49 - Foto tirada a partir do estúdio. Fonte: Artigas, 1997, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, p. 39. A próxima imagem (fig. 50), tirada recentemente (novembro de 2011), nos mostra a divisão que o guarda-roupas realiza, separando o corredor, que se estende desde o estúdio até a cozinha. 114 Figura 50 - Foto tirada recentemente a partir do corredor lateral. À esquerda encontra-se o quarto e logo à frente o estúdio. Fonte: foto da autora, novembro de 2011. A próxima imagem, que também pode ser da década de 90 (fig. 51), está com a sala praticamente sem móveis e objetos. Podem ser vistas as paredes estruturais com detalhes especiais de tijolos; a madeira utilizada para fechamento do telhado, as prateleiras incrustradas nas paredes, sendo a prateleira superior mais saliente, criando um nicho em que, nesta foto, situa-se um foco de iluminação que destaca o ambiente. 115 Figura 51 - Sala de Estar da "Casinha" de Artigas. Foto sem data. Fonte: Arquivo FAU USP. Na próxima imagem (fig. 52), pode-se ver como os tijolos se entrelaçam no encontro das duas paredes. Outro ponto incomum nesta sala é a posição da lareira no canto da parede e não centralizada no ambiente. As paredes de tijolos recuam a uma certa distância do canto, abrindo o espaço para a lareira. 116 Figura 52 - Foto tirada pela autora da monografia na “Casinha”, Novembro de 2011. Porém, há uma curiosidade sobre esta lareira quando a olhamos de perto, por baixo, como podemos notar na próxima foto (fig. 53). Para uma lareira conseguir fazer a exaustão da fumaça, é necessario haver uma abertura suficientemente proporcional que possa funcionar para o que ela se destina. Mas esta lareira, hoje, possui uma abertura muito reduzida. Caso ela já tenha sido construída assim, somente pode ser usada poucas vezes, ou nem foi usada. Mas, talvez, ela tenha sido fechada depois, conservando somente sua presença no ambiente. 117 Figura 53 - Abertura da lareira vista por baixo. Fotos da autora, novembro de 2011. A próxima foto (fig. 54), mostra a casa funcionando como floricultura (nov. 2011), cheia de vasos, plantas e objetos da loja ocupando as prateleiras que Artigas projetou e até a lareira. É interessante notar como essa residência transformou-se em local comercial, mas mesmo assim manteve seu contexto de casa. Apesar das plantas, vasos e objetos espalhados pela loja, a essência dela continua a mesma. Por causa dos móveis incorporados à contrução, pode-se ainda perceber os usos inicialmente definidos para cada cômodo, quando a casa foi projetada para ser a residência do arquiteto. 118 Figura 54 - Foto tirada da “Casinha” pela autora, em novembro de 2011. Por exemplo, as próximas duas imagens (figs. 55 e 56) – a primeira tirada com vista a partir do estúdio para o quarto, e a segunda no quarto – aparecem cheias de objetos da loja. O quarto não tem mais a função de dormitório e o estúdio também não tem mais a mesma função, mas a essência arquitetônica continua. Podemos ver as estruturas de madeira do forro, o piso do mezanino e os guardaroupas embutidos que servem como parede divisória. 119 Figuras 55 e 56 - Fotos tiradas da Casinha pela autora em novembro de 2011. O local hoje funciona como floricultura. A foto da esquerda foi tirada no estúdio com vista para o quarto acima. A foto da direita foi tirada no que antes era o quarto. Fonte: fotos da autora, novembro de 2011. Nas fotos abaixo (figs. 57 e 58), é possível ver a área da cozinha, que no projeto inicial tinha um fogão a lenha. A estrutura da chaminé que funcionava como exaustor acima do fogão permanence, além da estrutura de madeira que percorre desde a cozinha até a outra extremidade da sala de estar, e se constitui como uma faixa ininterrupta que reforça a impressão de continuidade entre os ambientes. No detalhamento chaminé do fogão a lenha, pode-se ver os tijolos entrelaçados nos cantos, assim como na lareira. 120 Figura 57 e 58 – Cozinha da residência. Fonte: Fotos tiradas na Casinha de Artigas pela autora em novembro de 2011. A presença da lareira, segundo Adriana Irigoyen, introduz no projeto: A composição centrífuga, onde a lareira atua como pivô. Ela permite uma leitura dinâmica da casa, relegando a idéia de uma frente principal para dar lugar a uma idéia de fachadas múltiplas.71 Mas na “Casinha”, assim como o protagonismo tradicional e wrightiano de colocar o “lar” – ou seja, o fogo – também o ponto central é, em parte, substituído pelo protagonismo do banho, da água: é o banheiro que assume a posição central e torna-se o pivô ao redor do qual giram os ambientes; enquanto a lareira, também importante e destacada, situa-se na borda sul mais “fria” desse núcleo molhado central. 71 Irigoyen, 2002, p. 140 121 Uma comparação pode ser feita entre esta casa e a North Kings Road (fig. 59) de 1921-22, de R. M. Schindler (1887-1953), arquiteto nascido em Viena que estudou com os arquitetos Otto Wagner e Adolf Loos. Inspirado pelo trabalho de Frank Lloyd Wright na década de 1920, Schindler foi para Chicago em 1914 e começou a trabalhar com Wright em 1918. Mas Schindler estabeleceu sua prática projetual em Los Angeles a partir da “Kings Road House”, uma residência projetada com um ambiente integrado entre casa e trabalho para dois casais com uma cozinha compartilhada e um quarto para hóspedes. O arquiteto sempre trabalhou intensamente os espaços interiores de suas residências, de modo a integrá-los com o exterior, usando complexos sistemas de intercomunicação, conectando os volumes arquitetônicos e fortes seções articuladas nas estruturas. Esta residência tornou-se um de seus mais significativos trabalhos, pois expressava claramente seus princípios ao contextualizar os espaços interiores com os exteriores, apresentando os materiais em sua maioria sem revestimentos, mostrando do que são feitos. Além disso, era econômica e eficiente, fatores que a tornaram como modelo para o programa das Case Study Houses – casas que no Pós Segunda Guerra Mundial serviram de modelo para concretizar o desejo Americano de um estilo de vida mais informal e ao ar livre (ver a análise deste programa no Cap. 2). Assim como a “Casinha” foi projetada como moradia para Artigas, também a “North Kings Road” foi a residência de Schindler e tornou-se um campo de experimentação de idéias do arquiteto (como ocorreu com Artigas). Concebida como residência-estúdio, seu exterior alia à construção o jardim em seu entorno. O uso intenso da madeira pode ser visto no desenho dos caixilhos, nos detalhamentos acima das vigas e até acima do telhado, onde algumas vigas de madeira se entrelaçam organizando os terraços localizados na cobertura. 122 Figura 59 - Casa "North Kings Road", de Rudolph M. Schindler. Fonte: Steele, 2001; Taschen, p. 52. Na residência de Schindler (assim como ocorre em todos os trabalhos desse arquiteto), muitos móveis estão incorporados à construção (assim como Artigas realizou na Casinha e em muitos de seus projetos posteriors) e fazem parte da residência, definindo os ambientes e configurando a disposição do restante do mobiliário. A planta se configura de maneira que os cômodos se esparramam sobre o terreno, em pátios relativamente privados, distribuídos de forma que os quartos tenham vista para o jardim, – como ocorre na “Casinha”. A planta possui um complexo central principal: a area da cozinha, de serviço e o banheiro, pelo qual todos os cômodos se encontram. Assim como na “Casinha” o núcleo central é o banheiro, na “Kings Road” ele foi realizado a partir da cozinha e dos banheiros, portanto sua planta também se desenvolve em forma de espiral em torno de um ponto central que agrega as áreas molhadas. 123 A casa possui uma entrada para a garagem (fig. 60), à direita há outra entrada para o quarto de hóspedes e, à direita desta, a entrada social, onde há a sala de estar e a sala de jantar, que possuem vista para um terraço. Entrando pelo acesso do quarto de hóspedes, há um espaço projetado como um pequeno escritório, logo à frente, e o banheiro abre-se para outra porta de acesso, pois é compartilhado com o outro quarto. Entrando pela cozinha, há a área de serviço e, a partir daí, pode-se ter acesso ao interior da residência, à área social e à sala de jantar. Pela entrada principal, logo à esquerda há uma escada que conduz ao primeiro terraço, localizado na cobertura; já à direita encontra-se um banheiro social e a sala de estar. Na área privativa estão os dois dormitórios, sendo o mais ao fundo uma suite principal; ambos abrem-se para um pátio localizado à esquerda. Todos os cômodos da residência, exceto o núcleo central de áreas frias (a cozinha, a área de serviço e o banheiro), possuem uma lareira. Também é possível ver, nas plantas da casa (figs. 60 e 61), a definição de diversos detalhamentos: os realizados nas paredes de concreto (as aberturas verticais que serão vistas nas próximas fotos e que ocorrem na maioria das paredes externas); as áreas destinadas às lareiras; os pontos de iluminação; os móveis fixos que se incorporaram ao detalhamento da construção, como os guarda-roupas, que também possuem a função de parede divisória; os armários da cozinha; a área de serviço; os banheiros e finalmente os terraços localizados na cobertura. No terreno retangular em que está construída, a Kings Road foi projetada de forma a ficar centralizada e cercada de jardins por todos os lados, inclusive nas duas laterais, pelas quais os cômodos compartilham aberturas para os terraços. Cada quarto tem amplas portas de correr que possibilitam a abertura ao seu respectivo pátio, protegido por um beiral suspenso, suportado por vigas salientes que servem de suporte para as luminárias corrediças e para alguns painéis móveis, por exemplo as aberturas dos quartos, que são portas de correr de três folhas e podem ser removidas. 124 Figura 60- Pavimento térreo da residência. Fonte: Steel, 2001, Taschen, p. 55 (modificações realizadas pela autora). Figura 61– Planta de Cobertura da residência. Fonte: Steel, 2001, Taschen, p. 55. 125 Nesta residência, as divisões dos ambientes, a relação destes com os patios externos e os níveis de telhado alternados definem distintas relações entre o interior e o exterior. Na figura 62, pode-se ver as elevações, os cortes, o detalhamento das paredes de concreto e a perspectiva. Aqui, assim como na “Casinha”, as quarto fachadas são trabalhadas sem definer uma hierarquia; as aberturas verticais das paredes de concreto se contrapõem às madeiras dispostas em sentido horizontal, ambas se complementando em um conjunto coeso de estrutura e detalhamento que é, ao mesmo tempo, estético e funcional. Há, nesta figura, a elevação frontal, a elevação dos fundos e uma elevação lateral; e abaixo dois cortes longitudinais. No detalhamento à direita da imagem, pode-se ver o detalhe do concreto utilizado nas aberturas verticais e nas vigas. Figura 62 – Elevação frontal, elevação dos fundos e elevação lateral; cortes longitudinais, detalhamento das paredes e perspectiva da residência. Fonte. Steele, 2001, Taschen, p. 59. Nas próximas duas imagens (figs. 63 e 64) da sala de estar da residência, pode-se ver a ambientação proposta. Os materiais não possuem revestimentos, o 126 concreto no piso e nas paredes apresenta-se de forma crua, talvez somente com um selante para proteção, a madeira utilizada nas vigas e nas esquadrias também parece estar protegida apenas por um selante. As prateleiras integram-se à lareira, revestida com uma chapa de cobre. Os móveis são poucos, um sofa com uma lateral estendida, uma poltrona de madeira e um banco mais baixo ao lado. Há poucos objetos, alguns livros nas prateleiras, um quadro que parece ser uma gravura japonesa e algumas frutas sobre o banco que está entre a lareira e a poltrona. O desenho dos móveis é moderno, o sofá e a poltrona possuem o espaldar baixo e a madeira predomina na composição destes, já que o estofado não é muito volumoso – o interessante é notar que a poltrona só tem um tecido como assento. Não se pode dizer que é uma sala de uma casa que está sendo habitada, pois atualmente a residência é a sede do MAK Center of Art and Architecture em Los Angeles, cujo objetivo é proteger e promover a herança deixada pelos arquitetos austríacos que trabalharam na cidade. Então, nessa foto, a sala está propositalmente arrumada para a exposição da casa, para mostrar os ambientes e os móveis originais. 127 Figura 63 e 64 - Fotos da sala de estar da Kings Road House, de R. M. Schindler. Fonte: Steele, 2001, Taschen, p. 56 e 57. Talvez a maior semelhança com a sala da “Casinha” de Artigas seja o tratamento dado aos materiais, que se apresentam tal como são, sem muitos revestimentos, com apenas uma proteção e, por isso, as texturas ficam resguardadas e aparentes, revelando os diferentes materiais que dialogam entre si e formam um conjunto coeso e consistente. Tanto os interiores como os exteriores revelam-se com diferentes tipos de texturas naturais, provenientes dos próprios materiais, e fazem com que a residência tenha unidade estética, que nasce do próprio uso destes materiais. Na casa de Schindler, a madeira é trabalhada nas esquadrias e nos interiores da residência; no teto e nos móveis, o concreto também é empregado, trabalhado com recortes nas paredes para a entrada de iluminação (fig. 65). Na “Casinha”, Artigas trabalhou a textura dos tijolos aparentes na maioria das paredes e em alguns detalhamentos internos, como na lareira, também trabalhou as 128 janelas de ferro de canto da sala, certamente inovadoras para sua época, a madeira do forro do telhado, dos móveis embutidos e das prateleiras, que parecem incorporadas ao forro da sala; ainda elaborou em alguns detalhes de acabamentos, como nas colunas e no ponto de encontro entre a parede de tijolos e o telhado. Figura 65 - Área Extena da Kings Road House, de R. M. Schindler. Fonte: Steele, 2001; Taschen, p. 58. Na residência de Schindler, as estruturas de madeira que têm a função de uma janela fixa, como pode-se ver na próxima imagem, em muito se parece com a janela de canto que Artigas inseriu em sua sala na “Casinha”. Mas, nos dois casos, a abertura está lá para trazer intensa luminosidade ao ambiente, além de integrar o espaço interior com o exterior. Na imagem da suite principal (fig. 66), as duas cadeiras integram-se ao desenho da madeira realizado nos caixilhos e no forro. 129 Figura 66 - Área de descanso localizada na suíte principal. Fonte: Steel, 2001, Taschen, p. 23. Em uma foto de época da residência (fig. 67), é possível notar como a casa era ambientada quando habitada. A foto está sem data, mas há objetos que podem dar informações sobre isso. Tirada a partir da sala de jantar, com vista para a sala de estar, podem ser vistas as cortinas de varetas de bambu naturais, um cesto de roupas e um tecido ao chão. No jardim, há uma poltrona com uma almofada sobre ela, duas almofadas na grama e uma cadeira ao fundo. A vegetação é mais densa e há vários tipos de plantas convivendo juntas. Ao fundo, perto da porta de correr, há dois bancos, um em cada lado, e pode ser visto através do vidro alguns livros e revistas no interior desse cômodo, provavelmente uma mesa e armários. Talvez ali ficasse o escritório, projetado inicialmente. Um ponto de grande importância e contraste entre esta foto e as recentes da residência, é que a madeira empregada 130 nos caixilhos, forros e outros detalhamentos está pintada de cor clara. Como não se sabe a data desta foto, não se pode afirmar se a pintura dos caixilhos foi definida no projeto inicial ou se foi feita posteriormente, talvez por causa da manutenção da madeira ou pelo gosto de algum morador, que viveu na casa antes de sua restauração. Nesta foto, a casa já tinha alguns bons anos, revelados pelo desgaste da madeira externa que está na parte superior e serve como platibanda. Figura 67 - Foto de época, sem data, da "North Kings Road" House. Fonte: Steel, 2001, Taschen, p. 53. Esta residência de Schindler, assim como todas as que ele irá projetar posteriormente, apresenta um elevado cuidado no detalhamento e escolha dos materiais, uma intenção de aliar arquitetura à arte, de incorporar espaços interiores e 131 exteriores, numa conjunção de elementos que configuram seu intenso trabalho intelectual, e um intuído de experimento, de novas ideias. Esta casa pode ter servido ou não de referência para Artigas na “Casinha”, mas as duas possuem inegáveis pontos em comum, as ideias que configuram uma época traduzida em espaço, em que se procurava manter um equilíbrio entre a arte e as exigências práticas, em que se projetava uma residência não somente como abrigo, mas para melhorar a vida dos moradores. Provavelmente, tanto Schildler quanto Artigas eram leitores e admiradores de Frank Lloyd Wright, e isto é notado nessa residência, com a preocupação de integração com a natureza e a vegetação externa; a aposta na rusticidade dos materiais e no caráter quase rural ou provinciano, típico da inspiração wrightiana. Mas, é na arquitetura, mais do que nos conceitos, que essa admiração se expressa. Segundo Ruth Verde Zein, “no caso da arquitetura wrightiana e de sua ascendência no meio paulista esse vínculo parece estar muito mais ao nível das imagens do que das essências, da construção do que das doutrinas”72. Nos anos 1940, talvez a questão mais fundamental para Artigas e os demais arquitetos modernos era a de como conseguir construir uma arquitetura moderna com os recursos disponíveis, sem o emprego de dispositivos falsos para simular a modernidade. Para atingir essa meta, não isenta de contrariedades práticas, era preciso que o arquiteto soubesse interpretar mais a partir das imagens do que diretamente a partir dos métodos projetuais e construtivos propostos pelos mestres, como Wright e Corbusier, dando vida ao que percebiam por meio de fotos diminutas, em preto e branco, publicadas nem sempre com grande qualidade de impressão por livros ou revistas. Ruth Verde Zein afirma que, nessas obras, é nas superfícies, e não 72 Zein, 2005. 132 nas essências, que podem ser encontradas maiores referências à arquitetura de Wright73. Na “Casinha”, Artigas opta por uma residência em que a vida seja simplificada, de fácil acesso, com uma planta integrada. Nesse sentido, lembrando também as plantas e premissas propostas pelas “Usonian Houses”, protótipos de casas de baixo custo desenhadas por Wright. E se observarmos os interiores da Jacobs House, de 1936, podemos notar diversas semelhanças com a “Casinha”, como o teto de madeira, as paredes de tijolos, as faixas de madeira inseridas horizontalmente, a janela de canto e a casa integrada com a natureza. Também a implantação da casa em 45º remete às casas usonianas, como a “Marcus House” no Texas, de 1935. Porém, a resolução de Artigas na “Casinha” é mais auspiciosa ao unir o inesperado com o esperado, ou seja, a casa está implantada no terreno em 45 graus, mas internamente as paredes estão a 90 graus, tornando os ambientes mais funcionais, facilitando a composição e articulação dos móveis. Lina Bo Bardi, no primeiro número da revista Habitat, pode nos esclarecer melhor a questão sobre a obra de Artigas e a referência a Frank Lloyd Wright, sobre a qual ela comenta: Artigas iniciou-se na corrente que teve origem em Wright, dedicando-se ao estudo dos materiais e das formas como submissão à natureza, material à vista, nenhum revestimento, telhado aparente em sua totalidade e aquele típico adaptar-se da forma ao terreno, aquela procura de se confundir o mais possível com a paisagem que a rodeia. Lina afirma que Artigas, mais do que se inspirar em Wright e seguir seus exemplos de escolhas de materiais, seguiu por suas próprias experiências e ideias, ficando somente a continuidade espacial como resquício daquela referência a Wright. Nos anos seguintes de sua carreira, seus projetos irão por caminhos opostos aos de 73 op.cit.p.82. 133 integração da casa com a natureza ou à adaptação da mesma ao terreno – é em sua fase brutalista que se manifestará sua arquitetura “óssea” e “seca”, distinta da paisagem, mas inteiramente humana, como se referiu Lina: A sua moral arquitetônica o levou a formas extremamente secas, ósseas, completamente independentes da paisagem que as rodeia, sinceramente humanas. Dos postulados enunciados pela tendência wrightiana, e que nem sempre podem ser verificados nos exemplos norteamericanos construídos, Artigas reteve um só, mas dando-lhe outras leis: a continuidade espacial. 74 Em várias residências de Artigas, no período de construção da “Casinha”, podem ser vistas as referências a Wright, como na residência Rio Branco Paranhos (fig. 68), de 1943. Das que apresentam referência ao sistema “Usonia”, assim como a “Casinha”, podemos citar a “Rivadávia Mendonça”, de 1944, e segundo as referências mais generalizadas de Wright, podemos citar a Ottoni Arruda Castanho, de 1939; a Alcides Lara Campos, de 1940; e a Berta Gift Stirner, de 1940. 74 Habitat, 1950, Lina Bo Bardi. 134 Figura 68 - Casa Rio Branco Paranhos, de 1943. Fonte: Vilanova Artigas. Os resultados de Artigas devem-se a um processo de projeto complexo, em que o arquiteto trabalha, adota e articula as obras, atendendo aos seus ideais e propósitos, experimentando como quem coloca tudo à prova. Nelas, não se pode, uma vez prontas, separar o que é a arquitetura do que são os ambientes, o que é a estrutura do que é a volumetria, o que são os materiais do que são os espaços. Sua “Casinha” foi uma primeira audácia dentre tantas outras que estariam por vir. 135 3.4 Casa de 1949 – 2ª Casa do Arquiteto A segunda casa que Artigas projeta para moradia própria é a residência de 1949, construída no mesmo terreno de esquina e em sequência à primeira casa do arquiteto, de 1942. Embora disposta paralelamente às divisas, relaciona-se com a disposição da primeira casa por meio do acesso principal e garagem, girados a 45 graus. A casa propriamente dita é abrigada em um único volume, com cobertura em “borboleta” (duas águas convergendo-se para o centro), e apresenta amplas aberturas na sala de estar, voltada para o terraço e para o estúdio (fig. 69). Figura 69 - Segunda residência do Arquiteto. Fonte: Vilanova Artigas, 63. A composição volumétrica desta residência organiza-se de forma extensa e horizontal, e as alas confluentes pelas “asas” da borboleta abrigam, respectivamente, os usos privados e sociais da residência, definindo o partido adotado. De acordo com 136 Zein, sua segunda residência inclui-se na fase intermediária de trabalho do arquiteto, que corresponde ao período de 1946 a 1955, caracterizada pela (...) Franca aceitação do repertório que vinha sendo desenvolvido pela escola carioca, desde o início dos anos 1940, a partir da re-leitura dos paradigmas corbusianos, muitas vezes filtrados por outras re-leituras americanas; os quais, somados às características construtivas e plásticas do primeiro período, vão permitir o aparecimento de uma série de projetos preocupados com um número relativamente reduzido de variáveis, exaustivamente estudadas. Também nesta fase, o arquiteto se interessa mais pelo projeto e menos por participar no canteiro de obras. Os materiais que mais foram empregados são o tilojo, o vidro e parcimoniosamente, ainda, o concreto. As coberturas são sempre em telhas de fibrocimento sobre lajes, num compromisso entre a ortodoxia moderna e a viabilidade prática. (...) Apesar de aproveitar detalhes de soluções de origem corbusiana filtradas pelos exemplos cariocas, tais como brises verticais e horizontais, elementos vazados cerâmicos, marquises de formas curvas, coberturas em asa-de-borboleta, Artigas nunca é formalista, ou gratuito: a construtividade do edifício, organizada pelo partido – conceito que engloba intenções estéticas e filosóficas -, é dominante, ordenadora. 75 O que Zein nos explica é que, mesmo que Artigas inspir-see em soluções modernas adotadas pela escola carioca, ele se organiza a partir de conceitos e experimentações próprias, pois a forma peculiar com ele se apropriava dos espaços por meio de seus projetos mesclava simplicidade, resultante de seu intenso trabalho intelectual na busca pela plasticidade e definição estética das obras. A construção em volume único, abrigando todas as funções e os limites bem definidos, são uma característica corrente de sua arquitetura, que na fase seguinte de seu trabalho irá amadurecer plenamente. 75 Zein,Ruth Verde. O Lugar da crítica: ensaios oportunos de arquitetura; Ritter dos Reis, 2001, São Paulo; p. 127. 137 Na residência de 1949, cada ala da cobertura em borboleta marca a disposição dos usos da residência, distinguindo o lado social do lado privado e íntimo, ambos convivendo num mesmo corpo arquitetônico, permitindo que a volumetria concilie, assim, “exuberância plástica com franqueza funcional”.76 Outra residência que também adota o mesmo partido e volumetria, com um bloco com coberturas em duas meias-água (“borboleta”), na qual os usos estão bastante compactados e acompanham o desenho das rampas, que definem as áreas de acesso e circulação, com pé direito duplo, é a Casa J. Czapski, também de 1949. Nessa casa, o telhado inclinado é destacado exteriormente pelos pilotis delgados que conferem leveza à construção. Esta solução também está presente na segunda casa de Artigas, na qual o ponto mais alto da cobertura coincide com o espaço suspenso por pilotis, onde se abriga o estúdio, sob o qual se dispõe o terraço, e em continuidade com a sala de pé direito mais alto. Na planta da residência de 1949, o núcleo central concentra-se (fig. 70), assim como na primeira casa, nos dois banheiros, iluminados zenitalmente, que definem internamente a distinção de usos da planta: os setores social e privativo – já externamente definidos pela cobertura. Na casinha de 1942, o banheiro é o centro da composição da residência, que é quadrada, enquanto que na segunda residência os banheiros conformam-se na porção central do retângulo estendido, de forma retangular, portanto. 76 Kamita, 2003, p. 12 138 Figura 70 - Planta da Residência e implantação. Desenho realizado pela autora da monografia com base em desenho publicado na Revista 2G, Vilanova Artigas, 2010. Diferentemente da primeira casa de Artigas, de 1942, que tem uma disposição centrípeta e em espiral, na qual os espaços se interligam ao redor de um ponto central (o banheiro) e abolem a hierarquia da distinção entre a área social e a área privativa, na segunda residência do arquiteto, a planta é organizada de forma linear e retangular e a hierarquia é bem marcada. Na primeira residência, a proporção dos espaços é menor que na segunda, que possui um programa de necessidades maior, abrigando três quartos, dois banheiros, uma cozinha, a sala de estar, o terraço e o estúdio. A segunda casa foi projetada para uma família com mais pessoas, um casal com dois filhos, enquanto que a primeira era apenas para um casal. A primeira residência apresenta mais simplicidade de usos, caracterizados como cômodos integrados; já a segunda distingue, por meio dos espaços, a vida 139 íntima da vida social, definindo para os dormitórios uma área reservada, inclusive com diferentes aparências e texturas externas nas fachadas: a área íntima com fechamento externo de tijolos e janelas com venezianas, enquanto a área social com fechamento que combina paredes de tijolos e amplas aberturas de vidro (fig. 71). Na sala de estar uma meia parede de tijolos tem fechamento na parte superior com vidro por toda sua extensão, vidros que se prolongam até o estúdio. Este espaço com pé direito duplo que abriga a sala de estar e o estúdio (na ala inclinada mais alta da construção, apoiado sobre pilotis, cobre o terraço que realiza a transação entre o exterior e o interior da residência. Figura 71 – Foto de uma maquete da residência. Fonte: trabalho realizado pelas alunas da graduação Amanda Jardim e Maria F. Boccuto, em 2012, na disciplina Arquitetura Brasileira, ministrada pela profa. Ruth Verde Zein. A proporção entre a área privativa e a social define um retângulo conformado pela justaposição de quatro quadrados (fig. 72), um deles abrigando os três quartos, a cozinha e os banheiros; o outro, exatamente proporcional, incluindo a sala de estar, o terraço e o estúdio. 140 Figure 72 - Planta da residência de 1949. Desenho realizado pela autora a partir de projeto encontrado na revista 2G Vilanova Artigas, 2010. Ao entrar na residência pelo caminho paralelo à cobertura abobadada da garagem, chega-se à uma área externa (fig. 73), com uma marquise com pequenas aberturas retangulares zenitais, iluminando o espaço e resguardando a entrada, que dá para a sala de estar. Entrando nessa sala de estar, à direita e à frente está a lareira, que delimita um espaço entre a sala e o hall de entrada, mais à frente, situase a sala de jantar. Ainda na sala de estar, com seus duplos caixilhos de vidro voltados para o terraço, está situada, e no canto direito, a escada que leva ao estúdio, localizado um nível acima do piso térreo; a elevação da cobertura permite que a sala tenha o pé direito mais alto que o habitual, ampliando visualmente seu espaço. 141 Figura 73 - Entrada da 2° Casa do Arquiteto. Fonte: Foto tirada pela autora, dezembro de 2011. A cobertura é uma laje em duas águas em forma de asa de borboleta, com pouca inclinação e com acabamento em telhas de fibrocimento, escondidas sob a platibanda discreta. O piso da área social é de grandes lajotas de cerâmica na cor marrom avermelhado. Além do caixilho com fechamento em painéis de vidro, que ocupa toda a extensão da área social, há duas colunas pintadas de azul que sustentam a cobertura e se destacam no arranjo do ambiente. Os caixilhos de vidro envolvem o lance de escadas que acessa o estúdio e protege, parcialmente, o terraço coberto, situado entre o estúdio e a sala. Os panos de vidro superiores são, na sua maioria, fixos; entre a sala de estar e a varanda há o terraço abrigado; as portas podem ser abertas, assim como somente alguns dos painéis que estão na parte superior das paredes laterais e que possuem o recurso de abertura basculante, enquanto os 142 painéis acima das portas, que seguem pela escadaria até o estúdio, são fixos. Já os painéis verticais estreitos, na parede do estúdio voltada para o terraço, podem ser abertos pivotando no plano vertical, como se fossem uma parede com brises de vidro, enquanto alguns painéis da outra parede envidraçada do cômodo possuem a opção de abertura basculante. Se compararmos fotos de diferentes épocas, poderemos notar significativas mudanças no arranjo do mobiliário ao longo do tempo. A próxima imagem, que não possui data (fig. 74), parece ser a mais antiga, se se considerar a configuração e forma dos móveis, além do indício da vegetação de pequeno tamanho, ainda não tão exuberante e avantajada quanto se pode perceber nas fotos mais recentes, em que os painéis de vidro foram recebendo maior sombreamento à medida em que a vegetação e as árvores cresciam. Quanto aos móveis e à configuração da ambiência interna da sala, nota-se, à esquerda, um sofá com estrutura de madeira, revestido com tecido listrado e por cima um estofado mais fino, sem muita espuma. Ao centro está uma mesa de madeira com um violão e alguns papéis em cima. Logo à frente, há um móvel que parece ser um rádio e, ao lado, há um outro móvel, que pela configuração mais parece um piano, por causa do pé torneado que aparece no canto esquerdo da foto. Um pouco mais próximas, as duas poltronas com assento de tiras entrelaçadas de couro são cadeiras que Artigas desenhou em 1948, com braços, assento e encosto estruturados em madeira. O quadro, situado atrás do sofá, é uma pintura moderna, sem molduras, pendurada a uma altura mais baixa que o habitual, talvez para ser apreciado sentado, ou porque estivesse centralizado em relação à altura da parede de tijolos, não muito alta porque, logo acima, estão os painéis de vidro. A cortina, localizada atrás do móvel do rádio, garante o isolamento do ambiente, bem como bloqueia, em parte, a proposta de área transparente. O tapete está disposto de maneira informal, pois nota-se que não está bem esticado. A atitude 143 desta ambiencia, ou seja, a pose fotográfica, sugere um ambiente moderno e informal. 144 . Figura 74 - Sala da 2° Casa do Arquiteto. Fonte: Ar quivos da FAU USP. 145 Ao comparar a primeira imagem com a segunda (fig. 75), é possível ver que nesta o ambiente está mais propositalmente arrumado e posado para uma foto de um periódico ou revista de decoração, por exemplo. Talvez esta foto tenha sido tirada primeiro, não é possível saber, mas é possível perceber que ambas possuem data próxima, por causa do sofá e da dimensão da vegetação externa ao fundo. Nesta imagem, a configuração dos móveis já encontra-se diferente, ela parece mais estrategicamente arrumada, com a mesa de vidro ao fundo apoiando os objetos arrumados sobre ela: um vaso de plantas, uma estátua sob um tecido decorativo e um outro objeto de forma retangular. Na mesinha de centro também há alguns objetos: um vaso pequeno de flores sobre uma tapeçaria e um outro objeto que se parece com um prato de cerâmica decorado. O sofá está com um manta por cima do assento e há uma cadeira do lado oposto. Essa cadeira é, provavelmente, aquela que Artigas projetou, com estrutura de madeira e encosto feito de tiras de couro entrelaçadas (apresentada no subcapítulo 3.2) e está com duas almofadas arrumadas sobre ela. Um ponto interessante da fotografia, que traz essa sensação mais forte de ambiente arrumado, é o carpete que envolve os degraus da escada, item que não estava na foto anterior, além do quadro atrás do sofá e do tapete no chão da sala, que também não aparecem nesta foto. 146 Figura 75 - Sala de Estar da 2ª Casa do Arquiteto. Fonte: Arquivos Fau USP. Ambas as fotos trazem diferentes sensações de aconchego, a primeira retrata a vivência cotidiana, a residência arrumada ao gosto e intimidade dos moradores, de acordo com a vivência do usuário, enquanto que a segunda sugere um tipo de decoração para casas modernas. A primeira é mais intimista e, da forma como foi tirada, aparecendo uma parte da parede de tijolos, faz com que, ao olharmos para ela, nos tornemos expectadores da vida que acontecia ali, como um testemunho; enquanto a segunda apresenta um aspecto mais formal, um modelo que poderia ser seguido. 147 A próxima foto (fig. 76), também sem data, retirada dos arquivos da FAU USP, é provavelmente mais recente, pelo fato da configuração dos móveis ser muito parecida com a que está atualmente na residência. Nesta foto, as poltronas sugerem outro tipo de atitude ao se sentar. Enquanto nas duas primeiras os sofás e as poltronas não tinham estofados volumosos, nesta eles aparecem maiores, e isso faz com que a sala pareça mais confortável, pois sugerem um modo mais despojado de se sentar, como se a pessoa pudesse se esparramar sobre eles. Figura 76 - Foto da sala de estar da 2° Casa. Fonte : Arquivos FAU USP. A configuração que aparece da sala de estar (fig. 76) é de duas poltronas com uma mesa entre elas, a mesa de centro de vidro com um tecido decorativo sobre ela e duas cadeiras de madeira. Não há objetos sobre as mesas, somente no canto direito da foto há um objeto que não podemos saber de fato o que é. No terraço, pode ser notada uma mesa de madeira com quatro cadeiras, à direita um 148 suporte com duas samambaias e, à esquerda, uma rede pendurada entre os pilotis, com uma gaiola de madeira logo acima. Mais ao centro, pendurado no teto, há um enfeite que se configura como se fosse um móbile, como nos mostra a próxima fotografia (fig. 77), que revela o outro lado do ambiente, com a lareira e a sala de jantar ao fundo. Figura 77- Sala de estar da 2° residência. Fonte: A rquivos FAU USP. A próxima imagem (fig. 78), da sala de jantar, retirada dos arquivos da FAU USP, encontra-se sem data, mas é possível ver que a sala compõe-se de uma mesa de jantar de um pé só, sendo a outra extremidade apoiada na parede, e três cadeiras Thonet. Mais à esquerda, há um móvel pequeno e baixo com alguns objetos sobre ele, compondo um aparador, e mais à frente está a lareira, que ao mesmo tempo tem prateleiras de um lado e de outro uma porta para guardar casacos e deixá-los aquecidos. Nas paredes, vemos alguns quadros, que estão colocados numa altura mais baixa que o habitual e não estão alinhados, mas sim pendurados de maneira 149 despropositada. Há, um pouco acima dos quadros, uma luminária de parede com forma redonda. Figura 78 - Foto da sala de jantar da 2° Casa do Ar quiteto. Fonte: Arquivos FAU USP. Na próxima foto (fig. 79), mais recente que a última, datada por volta do ano de 2010 (ano da publicação da Revista 2G), é possível ter uma visão geral de toda a ambientação interna, bem parecida com a penúltima foto, mas com alguns objetos a mais e outros móveis a menos. Aqui, o sofá de três lugares e as poltronas, todos com o mesmo desenho e tipo de estofado, contrastam com as duas cadeiras de madeira. A mesa de centro encontra-se com alguns objetos decorativos sobre ela, e não somente o tecido, como na foto anteriormente analisada da sala. Entre as poltronas, não há mais a mesa de madeira, mas atrás delas há um aparador com alguns objetos também sobre ele. Ao fundo, o terraço está livre, há somente uma mesa pequena com um objeto sobre ela (talvez essa fosse a mesa de centro antiga que agora está lá no fundo compondo a foto). Também o estúdio, ao fundo, compõe 150 a fotografia, pois percebe-se o volume transparente do cômodo no qual um instrumento musical, uma bateria, se sobressai; mesmo assim não é o elemento principal da foto. Figura 79 - Foto da Sala de Jantar. Ano de 2010. Fonte: Revista 2G, Vilanova Artigas, 37. As próximas imagens (figs. 80 e 81), são sequências desta última descrita, e talvez o mais importante nessas fotos seja a intenção de protagonizar a arquitetura, a estrutura e os revestimentos da casa. A ambientação faz parte da fotografia, é o elemento principal que traz o indício de que ali é uma residência. Na próxima foto, em que se destaca o terraço, quase não há a presença de móveis, somente no canto direito estão os móveis da sala. Aqui podemos perceber os pilotis, que hoje são pintados de azul, mas que inicialmente eram brancos, como podemos ver nas fotos mais antigas já analisadas, e os painéis de vidro, que trazem transparência à casa. 151 Figura 80 - Imagem do Terraço. Fonte: Revista 2G, Vilanova Artigas, 2010, p.35. Mas na próxima foto (fig. 81), tirada também a partir do terraço, pode ser visto outro ângulo da sala de estar, com a lareira à esquerda e a sala de jantar com três cadeiras à direita. Há ainda o contraste das cores das paredes laterais, pintadas de marrom avermelhado, com a lareira branca, a parede ao fundo e os pilotis em azul. Também podemos ver alguns quadros pendurados nas paredes e outros móveis e objetos ao lado da lareira. 152 Figura 81 - Foto tirada a partir do terraço. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 35. Na próxima imagem, ainda mais recente (fig. 82), de 2011, podemos notar poucas diferenças com a foto mais antiga da sala de jantar (fig. 78). A mesa com as cadeiras é a mesma, além do móvel baixo ao fundo. Os quadros são diferentes, mas também estão pendurados de forma aleatória, sem preocupações com alinhamento. Podemos ver com maior nitidez livros e objetos na estante embutida na lareira. 153 Figura 82 - Foto da sala de jantar. Foto tirada pela autora da monografia, em dezembro de 2011. Nas próximas duas figuras (figs. 83 e 84), podemos notar como o corpo da lareira se constitui: de um lado é lareira, do outro uma estante embutida com livros e um quadro pendurado, e do outro uma pequena porta com um armário embutido para guardar os casados em dias frios e mantê-los aquecidos. Em cima da lareira vemos alguns objetos decorativos e, nos dois lados, tanto o da lareira quanto o oposto, há luminárias de parede inserida, que ajudam a iluminar o ambiente, pois há somente um ponto de luz no teto. Próxima às prateleiras, há ainda uma pequena mesa com porta-retratos. 154 Figuras 83 e 84 - Área da lareira. Fonte: Fotos tiradas pela autora da monografia em dezembro de 2011. A imagem adiante (fig. 85) é uma visão geral da sala e da lareira, podemos notar o arranjo dos quadros e dos móveis já descrito. Por todas estas fotos, de diferentes épocas, é possível notar o quanto o usuário modificou a ambiência de sua casa, mesmo ela sendo um exemplo de projeto e tendo sido fotografada ao longo dos anos, ela configura-se com uma ambientação moderna, mas que contêm a história dos moradores, contada a partir dos objetos e porta-retratos, e também pela maneira como esses móveis e objetos são dispostos, pois retrata a maneira particular de viver de cada um. É o usuário que dá vida aos ambientes da residência, justamente com seus próprios objetos e na maneira de arrumá-los. 155 Figura 85 - Sala de Estar. Fonte: Foto tirada pela autora da monografia em dezembro de 2011. Lina Bo Bardi dizia que as casas de Artigas tinham a continuidade entre o exterior e o interior, pois “o observador não sofre uma brusca interrupção por ter entrado na casa, mas aí, ele tem a percepção exata de que a continuidade de espaço se produz solitária com o rigor constante que as formas externas denunciavam”. Para Lina, a arquitetura “humana” de Artigas é definida como “doméstica, no sentido mais claro da palavra”, isto porque, para ela, as casas dele impõem à rotina do homem “uma lei vital, uma moral que é sempre severa, quase puritana”. O sentido de “doméstico” que Lina tenta definir à obra de Artigas é o da casa projetada para o morador, por meio da continuidade dos espaços, e “límpidos”, é a expressão arquitetônica que significa que não “desacamba para o decorativo”, como na arquitetura norte-americana.77 Assim, ao considerar essas casas de Artigas, Lina quer mostrá-las não como o resultado de razões funcionais, nem como 77 Habitat nº1. Dez, 1950. Pp.2-16. In: (Bardi, Lina Por Escrito, 2009, pp. 68-70) 156 repetição de usos e costumes já caducos, mas como exemplos de uma domesticidade renovada pelos esforços da modernidade – que seja severa, quase puritana, e também feita para viver, para ser vital. Por isso, podemos relacionar a atenção especial à dimensão da área social na segunda casa de Artigas ao comentário de Lina, que pode explicar melhor o sentido do doméstico na obra do arquiteto, a busca pelo conforto e pela vivência do morador. Estas características domésticas irão se manifestar melhor na ambientação interna da residência, na configuração dos móveis e objetos nos cômodos. Apesar da rusticidade dos materiais empregados, Artigas os trabalha a fim de se encontrarem e não parecer que se chocam – o vidro, o tijolo e o concreto convivem de maneira a trazer para a construção a idéia tipológica de residência. As paredes de tijolo aparente parecem ser a ponte de conexão entre a segunda e a primeira residência, esta construída em sua maior parte com tijolos aparentes e pintura branca. Na segunda casa, porém, os tijolos são pintados de uma cor marrom avermelhada, que se destaca da estrutura da construção, feita de concreto pintado de branco. Um outro ponto que pode ser referenciado ao projeto desta casa de 1949 de Artigas é as propostas arquitetônicas de Marcel Breuer (1902-1981), que a partir de 1937 tornaram-se referência para muitos arquitetos de sua geração, inclusive a partir do espaço de reflexão do habitar e a preocupação com o espaço doméstico. Marcel Breuer, segundo Ruth Verde Zein, foi um arquiteto que teve grande relevância em suas contribuições para a arquitetura moderna, pois não somente trabalhou ativamente no desenho de móveis e objetos, como também seus projetos 157 arquitetônicos são exemplares, e serviram de modelo para outros trilharem novos caminhos.78 Zein afirma: De permeio, Breuer passa por distintas fases de trabalho e diferentes propostas plásticas e arquitetônicas, cuja variedade e abrangência parecem realizar, na sua pessoa, o mito do arquiteto que desenhou “da colher à cidade” governamentais. – no caso, de cadeiras a grandes edifícios 79 Entre a casa de 1949 de Artigas e a casa de Breuer exposta no MoMA – Museu de Arte Moderno de Nova York, também em 1949 – nota-se certa aproximação formal que merece ser destacada. A casa de Breuer era um protótipo expansível “an expandable house”, de custo baixo. Ela ficou em exposição por 6 meses e sua intenção era ser construída por qualquer construtor local. A casa era um protótipo de construção econômica, com o intuito de ser fabricada em massa. A residência foi exposta no museu como o melhor e mais prático desenho arquitetônico (assim como a proposta das Case Study Houses) e como exemplo da utilização racional de materiais, equipamentos e móveis. A proposta do museu era mostrar, perante os altíssimos preços das construções no mercado, como se poderia construir de modo econômico e moderno.80 Para sua divulgação, foi lançado um catálogo, que continha estimativas de custos de construção para a mesma casa em outras localidades, além de serem sugeridas alternativas de materiais com diferentes custos, tudo especificado pelo arquiteto. 78 Zein, Ruth Verde. “O último Marcel Breuer: sua muito divulgada e pouco conhecida fase brutalista.”, 2003, UFRJ. 79 Idem, p.03. 80 De acordo com texto explicativo da época, 12 de janeiro de 1949, encontrado em: http://moma.org/docs/press_archives/1287/releases/MOMA_1949_0001_1949-01-04_144951.pdf?2010 158 De acordo com a descrição de Breuer, a casa poderia ser expansível, mas a primeira fase, ou seja, o projeto base (fig. 86), incluía uma sala de estar integrada à sala de jantar, dois quartos, um para crianças, um banheiro, uma cozinha e um quarto de serviços e de apoio, que poderia ser entendido como o estúdio. Mais tarde, caso o morador desejasse, poderia ser adicionada a garagem e, acima desta, um quarto adicional com banheiro e um terraço, que seria o novo “master bedroom”, separado da área das crianças. Figura 86- Planta da residência de Marcel Breuer. Fonte: MOMA. Breuer também ressalta que a cozinha é o ponto central do projeto, controlando todas as atividades, devendo ser parcialmente aberta, com portas de correr por toda sua extensão e com vista para a área das crianças. Também é apontada a importância da escolha dos acabamentos e materiais, especialmente 159 para o piso, paredes e móveis, sendo que o destaque está para o sistema de controle de calor do Sol no piso durante o inverno, que manteria os ambientes quentes. As crianças têm consideração especial no projeto, com a eliminação dos degraus na primeira fase. O quarto, destinado a elas está perto da sala e da cozinha “easily supervised, and yet they are separated”. A Casa de Breuer tinha o telhado em borboleta, assim como a Segunda Casa de Artigas (fig. 87). Figura 87 - Casa para exposição no MOMA, de 1949, de Marcel Breuer. Fonte: www.moma.org.br Nos interiores desta residência do MOMA (fig. 88), podemos notar as similaridades com os da residência de Artigas, como, por exemplo, a lareira como centro da convivência, os diferentes revestimentos convivendo no mesmo ambiente, pois na casa de Breuer há a pedra na lareira, o tijolo nas paredes e a madeira no teto, enquanto na casa de Artigas convivem os tijolos, os vidros e o concreto armado. Nas ambientações internas da sala de estar de ambas as residências, predominam os móveis de espaldar baixo, como o sofá, as poltronas e a mesinha de centro. Outra similaridade é a integração da sala de estar com a de jantar e a luminosidade do 160 ambiente, mesmo que seja realizada de forma diferente, pois enquanto na casa de Breuer a iluminação se dá por grandes portas de vidro, na casa de Artigas as aberturas das portas da sala de estar são grandes, mas o recurso das paredes de vidro mais altas garantem maior luminosidade. Figura 88 - Casa do MOMA de 1949, Living room. Fonte: Marcel Breuer, Taschen. A maior diferença entre a casa de Breuer e a de Artigas é que a segunda não foi projetada para ser um protótipo de baixo custo, tampouco foi construída com materiais pré-fabricados ou tinha intenção de ser fabricada em larga escala. Outra diferença a ser notada está na configuração dos móveis das salas de ambas as casas: o espaldar baixo é um ponto em comum, mas a forma e a disposição com que eles estão no ambiente é diferente. Na casa de Breuer, os móveis são o exemplo de móveis modernos, já que a residência era um protótipo. O sofá caracteriza-se por ser 161 compacto, com a assinatura de Eero Saarinen, e o estofado não é volumoso, fator que indica a postura com que a pessoa deve se sentar, enquanto a poltrona também possui o desenho moderno com braços sem estofado. A mesinha de centro, que é o rádio (radio coffe-table81), e o móvel da televisão, são o ponto central que configura a sala como exemplo moderno. O toque aconchegante fica por conta da lareira, que, acesa, traz a sensação de casa aquecida, acolhedora. Poucos objetos estão espalhados pela sala, algumas xícaras sobre o móvel do rádio, uma peça de decoração sobre lareira e outra acima da televisão. Na sala de estar da casa de Artigas, os móveis sugerem outro tipo de postura e outro tipo de convivência. Por ser uma sala para uma família, uma sala real e não um protótipo, o sofá e as poltronas, são também de desenho moderno, porém o estofado é mais confortável, parece mais macio porque tem maior volume. O arranjo da sala compõe-se de um sofá, duas poltronas e duas cadeiras, uma mesa de centro e um aparador atrás das duas poltronas, e, ao menos na foto, também não há muitos objetos espalhados. Os móveis de espaldar baixo reforçam o pé direito mais alto e a horizontalidade da residência, enquanto que na sala de Breuer a parede baixa da lareira e a de divisão da escada quebram, em parte, esta horizontalidade e dividem o ambiente em duas partes. Enquanto em Artigas vemos, na sala, certa continuidade entre os materiais, como, por exemplo, os painéis de vidro, que vão de baixo até em cima em volta do terraço, garantindo a continuidade de espaço e a amplitude do ambiente, na sala de Breuer, a combinação dos materiais divide o ambiente, o piso de pedra, a lareira revestida com pedra, a coluna de tijolos e o teto revestido de madeira garantem a mistura de materiais que quebram a continuidade e a altura do pé direito. Na sala de Artigas, esta amplitude de espaço e a utilização dos painéis de vidro garantem à sala a fluidez e continuidade do interior com o exterior da casa, com o jardim. Outro ponto 81 Breuer, Taschen, p. 144. 162 é que, enquanto em Breuer o setor mais alto, que é o quarto extra, está integrado à sala, em Artigas este setor, que é o estúdio, está ao fundo, claramente separado. Porém, tanto os recursos utilizados na residência de Breuer, quanto os utilizados na de Artigas, são escolhas de projetos que unem as ideias da casa moderna, a construção da ideia do morar moderno, do interior de uma residência sendo tão importante quanto seu exterior. 163 3.5 Casa Olga Baeta, 1956-1957. A Casa Olga Baeta está implantada num terreno retangular, com recuos em todos os lados, e caracteriza-se pela parede cega de concreto das fachadas, voltadas para a rua e para os fundos e apoiada em duas colunas. A partir desta residência, Artigas passa a utilizar o concreto com mais intensidade em obras residenciais, pois o material era usado até então preferencialmente em obras públicas e de caráter essencialmente urbano, ao mesmo tempo o arquiteto amplia os espaços internos de circulação, que também podem ser considerados como espaços públicos de passagem. Esta parece ser a proposta da Casa Baeta: a residência como parte da cidade, do ambiente urbano, do público por excelência – qualidades sobre-enfatizadas após sua recente restauração, quando também seus interiores foram transformados e vão enfatizar uma radicalidade que talvez estivesse menos presente, ou talvez nem fosse tão desejada, no momento de sua inauguração. A estrutura portante é definida por seis pilares, dispostos dois a dois em três eixos; as extremidades suportam empenas assimétricas elevadas com 4 metros em balanço. As marcas verticais das formas de concreto na superfície fazem referência, segundo o arquiteto, às casas de sua infância, a casa paranaense, uma referência às empenas de madeira empregadas nas construções daquela região. (...) É o tipo de casa que eu julgo inspirada na casa paranaense. É apoiada em 6 colunas e essas duas empenas proporcionam levar 4 metros de balanço. Mas a inspiração é da casa paranaense. Aqui, ponho as tábuas da empena na vertical, como se fosse a concepção estrutural da casinha da minha infância. Foi a primeira vez que se fez uma empena desse tamanho. 164 Isso me tirava o sono porque, quando nós tiramos a madeira grossa o que resultou foi um concreto desesperado. 82 Os pilares das extremidades sustentam duas paredes-viga, que fecham as duas fachadas no nível do pavimento superior, apoiando a cobertura e configurando um balanço assimétrico. O pilar central, o sétimo, que inicialmente localizava-se próximo à parede da sala e do estúdio, apoiando a laje na parte externa da residência por meio de duas colunas delgadas, foi substituído pelo tirante central, inserido posteriormente em restauração realizada pelo arquiteto Angelo Bucci, em 1998. Esse tirante segue verticalmente até a cobertura e se lança, inclinado em 30°, para aliviar o balanço da cobertura no trecho central. Com pavimentos a meio-nível e alturas livres variáveis, esta residência, assim como a segunda residência do arquiteto, possui um estúdio localizado em um nível mais alto, como se pode ver na planta arquitetônica (figs. 89 e 90), mas que não é isolado, e sim configura um patamar intermediário estendido. A planta arquitetônica possui forma aproximadamente quadrada, a cobertura, em duas águas, é assimétrica e a cumeeira está centralizada sobre os dormitórios. A planta se divide em dois lados, um social, do lado esquerdo de quem entra, e outro de serviços, do lado direito. Ao entrar, passa-se pela garagem, incorporada ao corpo da residência; a entrada principal dá acesso à sala de estar com pé direito duplo, aberta para o recuo lateral, separada do jardim pela parede e pela porta de correr de vidro com caixilhos de ferro. A sala de jantar, incorporada ao ambiente da sala de estar, está mais próxima da cozinha e da área de serviço. O setor de serviços ocupa a outra metade longitudinal da planta arquitetônica, que inclui também um banheiro e o dormitório de 82 Vilanova Artigas, 1997, p. 72. 165 empregada, ambos ocupam a posição central da área de serviço. A cozinha e a copa estão delimitadas por uma bancada em L e por bancos e mesa fixos. Logo à esquerda da porta principal de entrada está a escada que, no primeiro lance, leva a meio nível acima, onde fica o estúdio, que partilha do pé-direito duplo da sala de estar e dos fechamentos em painéis de vidro; no segundo lance, dá acesso ao pavimento superior. No pavimento superior, encontra-se a área íntima da casa, com quatro quartos e dois banheiros. Como as fachadas de frente e fundos são cegas, as janelas e aberturas desses ambientes voltam-se para a fachada lateral; as aberturas laterais, as janelas dos quartos, a fachada envidraçada da sala de estar e até o estúdio, compensam o bloqueio de luz e ar das fachadas cegas. Segundo Artigas, esta residência propõe a resolução de um problema, que para o arquiteto era uma questão de “intelectualidade”, um aposento destinado a um escritório, que fosse também um espaço para diversas atividades e não apenas uma sala extra, que recebeu o nome de estúdio.83 Sendo um estúdio, portanto, haveria uma biblioteca e “seria possível se refugiar para determinadas atividades”. Em sua definição de espaço, o estúdio não precisaria ter portas, pois sua intenção era ser um espaço aberto e convidativo, “múltiplo de maneira que estabelecesse uma relação de visualidade do total do espaço com uma intenção de educação da família”. Implantada no terreno de 480,00 m2, com uma área útil de 185,25 m2, a residência encontra os setores bem delimitados, enquanto o pé direito duplo é um elemento importante no projeto porque abre o espaço da área social e integra a sala de estar, a de jantar e o estúdio. Os outros cômodos são mais reservados e delimitados, e não possuem das grandes janelas encontradas na área social, nem necessitam delas. 83 Artigas, 1997. P. 72. Instituto Lina Bo. e P. M. Bardi. 166 Na área em que estão a garagem, a sala de jantar e as dependências de serviços, o teto é a laje de piso dos dormitórios localizados no pavimento superior. O estúdio, localizado a meio nível, realiza a transição entre a área social e a área íntima, também marcada por meio da escada assimétrica de dois lances, que conecta os três níveis. Segundo a descrição de Marlene Acayaba: O programa organiza-se em planta livre com a estrutura independente: seis pilares de concreto igualmente espaçados e soltos da alvenaria sustentam a laje nervurada e as vigas da cobertura. Os pilares, mais grossos em cima, vão-se adelgando em direção ao chão. As vigas, com balanço maior para a sala, apoiam outras vigas longitudinais e os caibros do telhado. As empenas laterais penduradas na cobertura são independentes das alvenarias do térreo e da laje do primeiro pavimento. As alvenarias foram construídas de forma a evidenciar os usos que encerram. Assim, a parede que fecha o bloco de serviço tem o mesmo respaldo da que define o estúdio, onde a mudança de nível faz com que aí assuma a função de peitoril. 84 Acayaba, 2012, p. 91. 84 167 168 Figuras 89 e 90 - Plantas do pavimento terreo e superior da Casa Baeta. Desenho realizado pela autora da monografia (com base em desenho publicado na Revista 2G, Vilanova Artigas, 2010). A paginação do piso da sala segue, segundo Artigas, o desenho de um quadro de Mondrian, “um trecho é azul, um pedaço branco, um amarelo e um risco preto. A escada é de cimento preto. São ladrilhos de cimento encerado. A sala de jantar é azul”.85 Como uma das premissas mais importantes era o espaço integrado, a divisão dos ambientes seria dada por meio da delimitação no piso: “pode-se sentar no sofá dentro do branco e a entrada é um quadrado vermelho que encaixa no conjunto. Tudo está ligado a esse ideário em relação ao espaço e à apropriação de 85 Vilanova Artigas, p. 72, 1997. Instituto Lina Bo. e P. M. Bardi. 169 cada usuário segundo seu julgamento sobre a visualidade, e não às limitações das paredes”.86 As paredes internas também recebem cores fortes e contrastantes, e estabelecem-se como um tratamento pictórico que também se referencia a Mondrian. Talvez Artigas quisesse incorporar, nesta residência, o ideal neoplasticista no qual a ideia fundamental era partir de elementos bidimensionais e justapô-los a fim de formar uma “nova plasticidade”, e encontrar um método para tornar sistemática essa operação para construir um novo mundo de formas coerentes e organizadas. Estabelecendo os elementos de expressão primários e universais, chegaria-se a um método para formar uma nova harmonia. A base dessa harmonia está no conhecimento dos contrastes, de seus complexos e suas dissonâncias, que tornam visível tudo aquilo que nos circunda. A multiplicidade destes contrastes resultam em tensões enormes, que quando suprimidas reciprocamente, criam um equilíbrio e um repouso. É este equilíbrio das tensões que forma a quintessência da nova unidade arquitetônica. Depois da reforma e restauro, realizados em 1998 pelo arquiteto Angelo Bucci, os interiores da residência, bem como os exteriores, retomaram as cores mais saturadas da proposta original. Hoje a casa ajusta ainda mais o modelo neoplasticista do que antes, no contraste intenso de cores primárias, buscando estabelecer uma nova harmonia arquitetônica. Ao compararmos as fotos de diferentes épocas, podemos perceber nitidamente essa diferença. A próxima imagem (fig. 91) evidencia como a casa era ambientada e mobiliada. Esta foto é do arquivo da FAU USP e está sem data. Mas aqui ela será considerada como referência de imagem provavelmente mais antiga, considerandose o que é revelado nessa disposição dos móveis e objetos, bem como pelos 86 Idem. p. 72. 170 revestimentos internos, que parecem estar mais novos, podendo fazer supor que sua data seja próxima à da conclusão da obra, por volta de finais dos anos 50 e começo dos anos 60. Na foto, vemos a sala de estar mobiliada, duas poltronas de madeira ao lado direito, uma almofada ao chão logo mais à esquerda e uma poltrona de madeira e couro ao lado. Na lateral da escada, há vários objetos, um mais ao fundo, atrás da poltrona, com um móvel baixo ao lado e alguns objetos sobre ele. Do lado deste, um outro móvel pequeno, uma espécie de nicho com talvez alguns papéis ou revistas dentro dele e objetos sobre ele, inclusive um vaso de plantas. Pode-se ver, nesta foto, a luminosidade que entra nos ambientes da sala de estar e jantar e também no estúdio, localizado a meio nível acima do pavimento térreo. O painel de vidro que percorre toda esta extensão da sala e do estúdio, aliado à porta de correr de vidro da sala, trazem o jardim externo para o interior da residência, além de luz e ventilação. Nessa foto também podemos perceber alguns quadros na parede, próximos à escada, mais ao fundo; uma luminária pendente de tecido branco no centro da imagem e, no canto esquerdo da foto, uma cadeira que provavelmente faz parte do conjunto com a mesa da sala de jantar. 171 Figura 91 - Foto da sala de estar da Casa Baeta. Foto sem data. Fonte: Arquivo FAU USP. A próxima imagem (fig. 92), revela outro ângulo da sala, a partir da visão do patamar intermediário da escada. Pode-se ver, nas paredes ao fundo, quadros pendurados e, na saliência da parede, estão alguns objetos e plantas. A luminária pendente branca é um elemento que se destaca novamente nesta foto e oculta a visão do pilar número sete. Mesmo que a foto esteja em preto e branco podemos notar as diferenças de cores existentes nas paredes da sala, algumas são mais escuras, outras mais claras. 172 Figura 92 - Foto da sala de estar da Casa Baeta. Foto sem data. Fonte: FAU USP. A próxima foto (fig. 93), tirada da fachada lateral direita, nos mostra o contraste entre a fachada cega e as janelas dos quartos. Esta foto está publicada no livro sobre a obra de Artigas pelo Instituto Lina Bo Bardi, e também está sem data. No entanto, esta é talvez ainda mais antiga que as anteriores, ou de uma data próxima à das imagens encontradas nos arquivos da FAU USP, o que se pode inferir pela vegetação, um pouco mais baixa, e também por parecer ainda sem muita vizinhança ao redor. 173 Figura 93 - Foto da Casa Baeta. Fachada lateral esquerda. Fonte: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. 1997, p. 73. Foto sem data. Outras duas fotos interessantes para a análise são as da cozinha (figs. 94 e 95) da residência, também encontradas nos arquivos da FAU USP e sem data. Porém, pode-se notar como os revestimentos e armários estão novos, a cozinha está como que recentemente inaugurada, por isso talvez essas fotos sejam de uma data próxima à conclusão da obra, que foi no final da década de 50. Como foi visto anteriormente na análise das revistas de arquitetura (1º capítulo), é a partir de 1960 que podemos notar significativas mudanças nos interiores modernos, os cômodos passaram a ser ambientados em sua maioria com móveis e equipamentos modernos. Nas imagens, pode-se notar os armários, a pia e o fogão brancos, as janelas amplas e tudo se integrando para indicar que ali é um local arejado, limpo e prático. Esta cozinha encontra-se integrada à área de serviço e está posicionada na planta da residência na área em que se encontram os serviços e as dependências 174 dos empregados. É interessante notar como, na segunda foto, tirada talvez no mesmo dia, a imagem a ser passada é de organização e eficiência, relacionada às duas mulheres uniformizadas que estão trabalhando, uma passando as roupas e a outra cozinhando. Um detalhe também importante nessa cozinha é a abertura acima do fogão, funcionando como coifa, e também os revestimentos de azulejo branco que recobrem a maioria das paredes, senão todas. Figura 94 e 95 - Cozinha da Casa Baeta. Fonte: Arquivos FAU USP, sem data. A próxima foto (fig. 96), talvez da década de 70 – como indica o automóvel na garagem, uma Brasília, que começou a ser fabricada a partir dessa década – nos mostra a fachada frontal da residência. Nesta foto, podemos perceber as cores utilizadas na parede cega, as paredes do nível térreo e as colunas. O jardim possui aqui uma profusão de plantas altas e volumosas. 175 Figura 96 - Foto Fachada Frontal Casa Baeta. Fonte: Artigas, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1994, p. 73. A próxima foto (fig. 97) parece ter data próxima da anterior com a fachada colorida e também encontra-se no livro editado pelo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Nela, podemos notar uma diferença em relação às duas primeiras fotos analisadas. Aqui a disposição da sala ainda está dividida entre sala de jantar e estar, mas os móveis são diferentes e a ambientação é outra. As paredes não estão com muitos quadros, como na primeira, e a sala tem menos móveis, há uma poltrona de madeira no canto direito da foto e, próximo ao piano, estão dois vasos de plantas tropicais, dois bancos e uma cadeira baixa de madeira. Há também uma cortina, uma mesinha ao fundo ao lado direito da foto, com dois vasos de plantas sobre ela e a mesa da sala de jantar, com tampo de vidro e cadeiras de palhinha. A iluminação é parcialmente encoberta pela cortina e, no teto, há somente um spot de luz direcionada. Pode-se notar que a divisão do piso delimita os ambientes: a sala de 176 jantar, a de estar (com o piano) e uma outra área com a poltrona. Comparando-se esta foto com as mais antigas, podemos notar a diferença entre as ambientações. Enquanto nesta foto (talvez da década de 70 ou começo dos anos 80), a ambientação possui menos móveis de desenho, mais simples e rústico, como a cadeira de palhinha e os bancos de madeira, nas fotos mais antigas a ambientação incluia móveis de desenho moderno, como as cadeiras e poltronas de madeira da sala de estar; também o arranjo dos quadros nas paredes e demais detalhes parecem indicar que a ambientação é mais planejada e que foi arranjada de acordo com o projeto moderno da residência. Através das duas podemos ver os diferentes usuários que moraram na residência ou a variação de gostos dos mesmos usuários ao longo das décadas, além de como a ambientação pode mudar conforme o estilo de vida e gosto pessoal de cada um. A construção, em si, continua sendo moderna, mas os interiores manifestam diferentes posturas relativas à vida íntima doméstica dos moradores da casa. Figura 97 - Foto da Sala de Estar da Casa Baeta. Fonte: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1997, p. 73. 177 A próxima imagem, em preto e branco (fig. 98), está nos arquivos da FAU USP e parece ter sido tirada na mesma época da foto anterior analisada, porque a cortina e os móveis parecem ser uma continuação daqueles, assim como a poltrona de madeira, à esquerda da foto, parece ser a mesma que aparece no centro da imagem anterior, bem como o banco de madeira que está próximo à porta de vidro. Nesta imagem, o corrimão da escada encontra-se com alguns preenchimentos diagonais e não está mais totalmente livre, como nas duas primeiras fotos mais antigas já analisadas. A cortina encobre toda a porta da sala, o que faz com que o exterior perca a integração com o interior, já que pouco se pode ver do jardim. Aliás, o jardim, nesta foto, parece nem existir, pois as árvores mais altas que aparecem mesmo através dos vidros mais altos das primeiras fotos não aparecem aqui. Nesta sala de estar, há mais duas cadeiras de madeira, um banco próximo à escada e um móvel embaixo do patamar, com alguns objetos sobre ele. Talvez esta seja a ambientação com o menor número de móveis e objetos. 178 Figura 98 - Foto da Casa Baeta. Fonte: Arquivos FAU USP. A próxima imagem (fig. 99) também está sem data e encontra-se nos arquivos da FAU USP, talvez ela esteja numa época intermediária, provavelmente da década de 80, entre as primeiras fotos (década de 70) já analisadas e as últimas que serão analisadas, da década de 90. Isto porque o corrimão da escada está fechado por uma rede de proteção, portanto não está livre como nas primeiras fotos, nem modificado como nas últimas. Também o jardim, que aparece parcialmente no lado direito da foto, ainda existe e pode-se perceber algumas plantas mais altas. Poucos móveis podem ser vistos, somente uma mesa de madeira com um vaso de plantas sobre ela, um móvel com alguns objetos embaixo do patamar da escada, uma luminária pendente branca e, ao fundo no estúdio, há prateleiras com livros, outra luminária pendente, um sofa e alguns objetos. Aqui a cortina não aparece. 179 Figura 99 - Foto da Casa Baeta. Fonte: Arquivos FAU USP. Foto sem data. A próxima imagem (fig. 100), também encontrada nos arquivos da FAU USP, nos mostra o jardim lateral da residência, a profusão de plantas tropicais, palmeiras e árvores. Plantas de pequeno e médio porte integram-se ao jardim moderno da residência, que está ali arranjado para fazer parte da área interna, através do vidro, que deixa o jardim entrar nas salas. Como a vegetação está bem densa, esta imagem talvez seja da mesma época que a anterior, começo dos anos 80. 180 Figura 100 - Imagem do jardim da Casa Olga Baeta. Foto sem data. Fonte: Arquivos FAU USP. As próximas cinco fotos estão no livro de Marlene Acayaba, Residências em São Paulo, 1947-1975, e foram tiradas por Jorge Irata. Estão também sem data, mas provavelmente estas fotos, que foram tiradas para a pesquisa de Marlene, datam da década de 80, quando a primeira edição do livro foi editada (1986). Na próxima imagem (fig. 101), com vista para a sala de estar e estúdio, pode-se notar outra configuração dos ambientes. Na sala de estar, há um sofá com estrutura de madeira e estofados pouco volumosos sobre ele. Ao fundo, do lado esquerdo da foto, entre a porta de entrada e a da cozinha, há uma mesinha de telefone e um banquinho de estilo mais antigo. Há plantas e samambaias pendentes e posicionadas ao longo da escada, uma orquídea acima da mesa de centro. A simplicidade é evocada pela lâmpada pendente somente pelo bocal, no lugar de uma luminária. 181 Figura 101 - Sala de Estar e Estúdio da Casa Baeta. Foto sem data. Fonte: Acayaba, 2011, Romano Guerra Editora, p. 93. Na próxima imagem (fig. 102), tirada a partir da escada, com vista para a sala de estar, vê-se alguns quadros espalhados nas paredes, um outro banco de madeira, mais rústico à direita e, à frente do sofá (que é visto melhor na foto anterior), há duas poltronas, que parecem ter o mesmo desenho do sofá, com estrutura de madeira e estofado pouco volumoso. Na parede atrás dessas poltronas, há algumas prateleiras com vasos de plantas e, ao lado, um móvel baixo também com plantas. Porém, há espaço livre suficiente para uma boa circulação, pois são poucos os móveis e objetos. Também pode-se notar o corredor do pavimento 182 superior, que faz o acesso aos dormitórios, há alguns quadros nas paredes e também um móvel baixo de madeira, como uma cômoda. Figura 102 - Escada e sala de estar. Foto sem data. Fonte: Acayaba, 2011, p. 94. No estúdio (fig. 103), objetos exóticos e indígenas misturam-se às prateleiras baixas embutidas nas duas paredes. Do lado direito, há um sofá também embutido, que parece ser de concreto com acabamento em madeira. Mais ao fundo, há uma poltrona de estrutura de madeira e estofado claro. Esse sofá embutido está muito próximo à altura do chão, além disso, os estofados que fazem com que ele pareça um sofá são, na verdade, as duas grandes almofadas, uma para o assento e outra para o encosto, de tecido listado e volumosas, que, portanto, sugerem uma forma de sentar mais despojada que a do sofá da sala de estar, que sugere um sentar mais formal. Duas almofadas, no chão do lado oposto deste sofá, complementam o 183 ambiente, como também a mesa de centro, que é um baú antigo. Sobre este baú, há alguns objetos que complementam a ambientação exótica. Esse estúdio aparenta um local íntimo, misturando as referências e experiências do morador. Figura 103 - Estúdio. Foto sem data. Fonte: Acayaba, 2011, p. 94. A próxima imagem (fig. 104) é a de um dormitório, nela podemos notar uma ambientação íntima, repleta de particularidades do morador. Alguns quadros com pinturas étnicas estão pendurados na parede, ao lado da porta estão alguns objetos pessoais pendurados, como bolsas e um chapéu, na estante estão dispostos alguns livros e papéis, sobre a cama de solteiro há duas almofadas e, próximo a ela, está um móvel com alguns objetos sobre ele, mas não dá para saber se este móvel é de madeira ou é fixo, de concreto. 184 Figura 104 - Dormitório. Foto sem data. Fonte: Acayaba, 2011, p. 94. Já a próxima foto (fig. 105) mostra a fachada norte, na qual estão os quartos no pavimento superior e a área dos serviços no pavimento térreo. Pode-se perceber as vegetações mais altas e volumosas, a vizinhança e os detalhamentos de madeira entre as janelas dos dormitories, com a caixa d’agua ao fundo, acima do telhado. 185 Figura 105 - Fachada Lateral. Foto sem data. Fonte: Acayaba, 2011, p. 94. Recentemente a residência passou por uma reforma de restauro e algumas modificações estruturais e internas foram realizadas, as cores ficaram mais saturadas e contrastantes nas paredes, tanto interna quanto externamente. Na sala, o painel de vidro que percorre a parede toda foi aumentado, enquanto o tirante foi inclinado em 30º, como podemos ver nas próximas imagens. As fotos mais antigas revelam uma ambientação mais à vontade, relaxada, vivencial, menos dura. A casa de hoje revela-se como uma proposta cenográfica, como se estivesse em busca de um estado original que parece nunca ter existido antes, tornando-se, de fato, uma casa “modelo”, com a ambientação interna condizente com essa condição arquitetônica “exemplar”. Com a restauração, as evidências brutalistas da residência ficaram mais exacerbadas, o contraste excessivo tinha esmaecido no projeto inicial. A casa foi 186 restaurada a ponto de se tornar quase uma outra casa, sem alterá-la, mas apenas ressaltando suas características que se tornaram mais fortes, agora colocadas em maior evidência. Na fachada (fig. 106) o desenho das formas do concreto estão mais aparentes hoje do que nas fotos antigas, bem como as cores contrastantes mostramse saturadas e os painéis de vidro da sala, que foram ampliados. A restauração tentou valorizar a arquitetura e a essência do projeto da residência. Figura 106 - Casa Olga Baeta. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p.47. A próxima imagem (fig. 107) é a da sala de estar. A primeira modificação que podemos notar é a parede de concreto aparente ao fundo, que originalmente era uma parede como as outras, com revestimento e pintura. Esta parede encontra-se com as mesmas texturas das formas no concreto utilizadas na fachada, mas sem pintura, porém essa parede não vai até o teto, comportando-se como uma parede divisória. Aqui, a sala de jantar ocupa outro lugar, mais ao fundo, onde originalmente era a área da cozinha, e não divide mais o espaço com a sala de estar. Na sala de 187 estar, há um quadro pendurado na parede de concreto e um móvel ao lado com alguns objetos e livros. Há também, no canto direito da foto, dois violões, assim como um banco de madeira ao centro, um tapete redondo e uma mesa de centro de vidro. Os corrimãos da escada ficaram parecidos, mas não identicos, aos da proposta original, mais delgados e livres. Figura 107- Sala da Casa Baeta. Foto de 2010. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 50. A próxima foto (fig. 108), tirada a partir do estúdio, mostra o intenso contraste entre as cores amarelo, vermelho e azul das paredes, mais o preto da escada, o 188 branco do teto e das paredes do fundo dos quartos (as cores de Mondrian). Evidencia o tirante-apoio inclinado em 30º para aliviar o balanço da cobertura no trecho central, além dos painéis de vidro, que aumentaram, pois antes, entre o piso do meio nível do estúdio, o patamar da escada e a esquadria existia uma parede. A parede foi tirada e as esquadrias aumentaram. O resultado, apesar de modificar o projeto original, resultou em melhor iluminação: um maior plano envidraçado percorre toda a extensão da sala, fazendo com que o jardim externo faça parte da área interna. O jardim também encontra-se mais organizado e planejado. Figura 108 - Foto da sala da Casa Baeta, 2010. Fonte: Revista 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 51. Tirada a partir do jardim, a próxima foto (fig. 109) traduz melhor como a transparência da sala se modificou com a mudança nas esquadrias de vidro. 189 Figura 109- Foto da Casa Baeta a partir do jardim, 2010. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 49. Por outro ângulo da sala, como na próxima foto (fig. 110), pode-se notar novamente a amplitude gerada pelo aumento das esquadrias de vidro e o contraste entre as cores das paredes e do piso. Os poucos móveis existentes estão ali para se aliarem à valorização da arquitetura e dos diferentes planos, do pé direito duplo e da ambientação que as cores delimitam. 190 Figura 110 - Foto da Sala da Casa Baeta, 2010. Fonte: 2G, Vilanona Artigas, 2010, p. 51. Nesta residência, a existência de fotos de diferentes épocas, mesmo havendo certa dificuldade de datação exata, permitiu uma análise mais abrangente da modificação da ambientação interna com o passar dos anos, e também com, provavelmente, diferentes usuários. Mas a arquitetura é tão predominante que determina, em boa medida, como ela deve ser ambientada. Em todas as fotografias, cada ambiente continuou sendo o que foi planejado para ser desde o início, com exceção da sala de jantar, que no projeto de restauração ocupa o lugar que antes era da cozinha. Mas o estúdio e a sala de estar continuam sendo os protagonistas do projeto, associados à área externa e compartilhando a proposta arquitetônica moderna de integrar o exterior ao interior da residência, através da transparência do vidro. 191 3.6 Casa Elza Berquó, de 1967. O projeto desta residência foi realizado em um momento difícil na vida pessoal de Artigas, momento da implantação da ditadura militar no país e quando o arquiteto encontrava-se sob investigação e com seus direitos civis suspensos. Artigas declara o seguinte sobre essa casa: É meu projeto de residência meio “pop”, meio irônico e eu gosto muito de vê-la sobre qualquer forma. São pedaços de troncos de árvores que apoiam toda a estrutura de concreto da cobertura. Mas o que é o avanço técnico! Danei a descobrir que era possível colocar laje de concreto sobre uma coluna de madeira e experimentei, pela primeira vez, na casa de praia de meu irmão, Giocondo. Com o surgimento de um material chamado “neoprene” foi possível fazer com que a carga do telhado se distribuísse pela área de coluna e, dali, para as fundações. Mas fiz essa estrutura de concreto apoiada sobre troncos para dizer, nessa ocasião, que essa técnica toda de concreto armado, que fez essa magnífica Arquitetura que nós conhecemos, não passava de uma tolice irremediável em face das condições políticas que vivíamos naquele momento. A casa tem o piso com toda sorte de materiais diferentes e é inspirada num modelo espanhol, que tem um pátio no meio. Quando estava construindo essa casa, o mestre de obras, um homem inteligente e rude, disse: - “Doutor, essa casa que o senhor está construindo parece casa do povo. A casa que a gente fazia lá na Bahia”. Ele sentiu na organização, meio desorganizada, que não era a casa elitista. Era igualzinha a uma desordem com a qual é possível construir a casa popular. Me senti compreendido e capaz de usar uma linguagem que o meu pedreiro 87 sempre entende, de uma maneira ou de outra. 87 Vilanova Artigas, 1997, p. 138. 192 Mesmo que sua declaração tenha sido realizada anos depois da construção da residência, em uma entrevista, e depois publicada para a realização de um livro sobre sua obra, podemos entender como ele considerava vários pontos centrais desse projeto, por exemplo a utilização das colunas de madeira, a conciliação entre a construção de concreto e os pilares em tronco, as relações entre a arquitetura e a natureza, ou talvez da natureza apoiando a arquitetura; e que talvez tudo isso, baseando-se em suas palavras, indicava a tolice de fazer uma construção pesada em concreto armado se ela poderia ser apoiada por troncos de madeira, mais uma vez ressaltando a leveza dos encontros entre o pilar, o teto e o chão em seu projeto. Na casa Berquó, a divisão entre as áreas social e privativa, assim como o exterior e o interior, confundem-se. O pátio é o ponto central do projeto, e não os banheiros ou a lareira, como nos outros dois projetos anteriores que estudamos. O exterior entra na residência sem impedimentos pela abertura central e o arremate é feito pelos troncos de árvores que são os pilares. O jardim está no mesmo plano do piso e é iluminado zenitalmente. A luz entra com liberdade na residência, que se torna clara graças a esta abertura no teto e também às laterais, por meio de amplas janelas e portas. No pátio central, Artigas projetou uma espécie de armário-parede de concreto, que não vai até a altura do teto, mas divide o espaço da sala de jantar. É como se ele delimitasse a área da sala de jantar, já que o espaço é integrado, com uma parede utilitária de concreto – útil porque divide o ambiente ao mesmo tempo em que pode ser usada para guardar objetos e encaixar móveis. Este pátio central, como afirma Zein, Poderia ser descrito como um espaço central conector iluminado por uma abertura zenital, detalhada tal qual uma janela, já que pode ser aberta e fechada, permitindo o acesso não só de ar e luz como de sol e 193 mesmo de chuva (se esquecida aberta em dia de tempestade provocaria uma pequena inundação em meio dos móveis da casa). 88 Na planta da residência (fig. 111), podemos ver os cômodos integrados e organizados em forma de espiral (como na Casinha de 1942) a partir de um elemento principal, que aqui é o pátio central. Em sua volta, organiza-se, na parte posterior, a entrada da residência, onde está a sala de jantar e estar. Acima, do lado da entrada principal, há outra entrada, pela qual se tem acesso a uma área de serviço e à cozinha. Ao lado, seguindo para os fundos da casa, estão as duas suítes, abaixo, logo depois dos dois quartos, há um espaço para um escritório. Todos os ambientes dão acesso ao pátio central, como se fosse a varanda da casa, mas colocada de forma invertida, ou seja, no interior da residência ao invés de estar no exterior. Talvez Artigas tenha projetado essa inversão para exprimir um propósito de integração do exterior com o interior, pois não há, nesse pátio, paredes que o fechem ou janelas com vidro – não há nada que limite seu acesso – é um jardim que não está lá somente para apreciação visual, mas também para ser usufruído. 88 Ruth Verde Zein. Artigas Pop-Cult: Considerações sobre a cabana primitiva, a casa pátio e as quatro colunas de madeira. 194 Figura 111 - Planta da residência. Fonte: Desenho realizado pela autora, a partir de uma publicação da Revista 2G, Vilanova Artigas, 2010. No interior da residência, a composição dos móveis é diversificada, alia objetos rústicos a tapetes coloridos e diferentes tipos de materiais e texturas. Como afirma Marta Peixoto, Os tapetes são orientais; além de peças de mobiliário dos anos, 50, há cadeiras Thonet, móveis antigos e rústicos; entre eles, chama a atenção uma bancada, feita com uma grossa prancha de madeira, apoiada em uma peça de moinho; isto é, não é um móvel, mas uma peça de trabalho 89 usada, tirada de seu contexto e transformada por um novo uso. 89 Peixoto, 2006, p. 187 195 As quatro colunas de madeira são outro fator de importância no projeto. Ao comporem o elemento central da residência, que é o pátio central, elas substituem as colunas de concreto, “cujo lugar ocupariam ‘ao invés de’”, segundo Zein, que em sua pesquisa viu, nas legendas laterais da foto de 1969, essa afirmação, na qual o “natural” a ser empregado seria o concreto, enquanto que a “substituição” foi a madeira. Mas o que mais chama atenção nestas colunas não é somente o fato de elas serem de madeira em meio a uma construção de concreto, e sim O fato de não serem colunas “abstratas”, e sim troncos de madeira, cuidadosamente escolhidos, cortados e tratados de maneira a manter ao máximo sua aparência “natural”: texturas, imperfeições rugosidades, e mesmo a forquilha de um galho eliminado. superficiais, 90 Nota-se, então, a curiosa forma destas colunas, que trazem o elemento rústico (mesmo que escolhido e tratado), sinuoso, com suas rugosidades e texturas naturais, não simétrico e liso como o concreto, para dentro da residência. A composição do piso da residência (fig. 112) é outro fator de relevância, pois é ele que irá delimitar as áreas internas, já que a composição dos cômodos é integrada. Conforme podemos ver em um croqui desenhado pelo arquiteto, os diferentes pisos formam um mosaico colorido. Segundo Zein, este jogo de pisos da casa Berquó Aproxima a solução de Artigas das memórias de alguma ruína de uma mansão romana, onde a ausência das paredes originais ressalta uma continuidade originalmente inexistente, definindo a localização dos ambientes pelos “tapetes” de mosaicos coloridos, agora vistos em continuidade espacial. 90 Zein, Artigas pop-cult. 91 Zein, Artigas pop-cult 91 196 Figura 112 - Croqui com o esquema para o piso. Fonte: Vilanova Artigas, 1997, p. 138. O croqui colorido, de autoria de Artigas, mostra a composição dos pisos que fazem o zoneamento dos espaços internos. Talvez essa composição aproxime a residência da afirmação que o arquiteto fez, transcrita anteriormente, de que esse é seu projeto “meio pop, meio irônico”, pois faz com que a planta pareça uma colcha de retalhos, que é um artigo popular, e segundo Zein: Lembra também a arte popular, essencialmente feminina, dos acolchoados, quase sempre formados por muitos pequenos pedaços de pano, coloridos e variados, acentuando a heterogeneidade do arranjo dos 92 espaços internos da casa. No entanto, talvez a inspiração de Artigas também tenha sido na ironia da arte pop, pois, segundo Zein, no ano do projeto desta casa, em 1967, a 9ª Bienal de 92 ZEIN, R. V. . Artigas Pop-Cult: considerações sobre a cabana primitiva, a casa pátio e quatro colunas de madeira. In: 3º Seminário Docomomo Sul - Madeira: primitivismo e inovação na arquitetura do cone sul latino-americano 1930-1970, 2010, Porto Alegre. Anais do 3º Seminário Docomomo Sul. Porto Alegre : PROPAR-UFRGS, 2010. v. CD. 197 Arte de São Paulo apresentou expressivos trabalhos de “arte pop”, como Jasper Johns, Andy Warhol, Edward Hopper, entre outros, e possivelmente a referência à ironia pop também se encaixaria nas “suas tinturas políticas [...] mas cujo foco principal era justamente o de confundir e equiparar a arte “cult” e a cultura popular de massas”93. Esta última afirmação de Zein pode esclarecer melhor os dois pontos mencionados anteriormente, pois a colcha de retalhos a que o piso se conforma traduziria-se exatamente na arte “cult” e “pop” das massas – seria, talvez, a manifestação do desejo de liberdade de expressão e valorização da cultura brasileira por Artigas, questões pelas quais ele participou ativamente em São Paulo naquela mesma época. Mas não se pode resumir a proposta do arquiteto em popular ou de referência à arte pop, pois são suposições para se tentar entender o projeto, talvez sejam referências, talvez não, pois apesar da afirmação de que esse era seu projeto “meio pop, meio irônico”, ele passou pela inspiração do arquiteto e a busca de uma poética manifestada em suas obras. A composição dos pisos também influi diretamente na disposição dos móveis, objetos e vegetação, que tornam a residência um espaço livre, apesar das delimitações dos espaços, eles são mutáveis, pois não há paredes, então eles podem ser organizados como o morador desejar, dispostos de diferentes maneiras. O espaço proposto, no projeto, para a sala de jantar não precisa ser, necessariamente, destinado a ela se o morador não quiser. O mais importante é que todos os cômodos estão reunidos a partir do elemento central, que traz o exterior e a luminosidade para o interior da residência. Esta liberdade no espaço o torna, segundo Zein, Um espaço a ser intensamente vivido, mais do que uma máquina de morar. Uma casa para o cotidiano, talvez uma casa pragmática, talvez uma casa “para a mulher liberal e ativa; é uma mirada, e sua luta [de 93 Zein, Artigas Pop-Cult. 198 libertação] de mais de um século que construiu essa idéia de domesticidade. [...] Sua domesticidade foi deduzida empiricamente: nem é demasiado grande – não preocupa a representatividade do espaço e sim sua manutenção – nem demasiado pequena, pois nela deve haver espaço para que cada membro da família leve uma vida autônoma.” 94 Na fachada frontal da residência (fig. 113), pode ser vista a porta de entrada do lado esquerdo da foto, um objeto decorativo pendurado ao lado direito da porta e, logo mais a direita, um objeto maior que parece ter forma de animal. Os detalhamentos de projeto podem ser vistos pela platibanda de concreto recortada, que faz a sombra na parede logo atrás. Nota-se o uso do tijolo como revestimento das paredes da residência, pintados de branco (como na “Casinha), e a coluna de tijolos, à esquerda da foto, que possui o cuidado do encontro entre ela e o teto de concreto através de um material mais delgado, assim como Artigas realizou em sua primeira casa. Há pouca vegetação nesta fotografia, somente algumas plantas entre a escada que dá para a porta de entrada e para a garagem, que se encontra no subsolo. 94 Zein, Artigas Pop Cult. 199 Figura 113 - Foto da fachada da residência. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, p. 98. A próxima imagem (fig. 114) mostra a varanda localizada na fachada da frente, que aqui encontra-se com uma mesa com oito cadeiras e um castiçal com velas sobre ela. Podemos perceber como a platibanda de concreto, também recortada, funciona como um bloqueio solar, pois sem esse detalhe o sol entraria diretamente na residência e na varanda. 200 Figura 114 - Varanda da Residência. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 99. Na próxima imagem (fig. 115), uma visão geral interna, é possível ver os móveis e objetos convivendo com os móveis fixos de concreto, projetados por Artigas, além do pilar de madeira que parece estar somente apoiado, quando na verdade está ali como sustentação da grande área integrada que se conforma nesta área. Começando pelo lado direto da foto, há um sofá branco de três lugares, de estofado volumoso e, na lateral, há um baú que parece ser um móvel mais antigo com alguns objetos e uma luminária sobre ele. Adiante, está uma mesa de centro, feita de madeira com alguns objetos sobre ela e, mais à frente, outra mesa também suportando alguns objetos. À esquerda, encontra-se outro sofá igual ao primeiro descrito, de três lugares, cor clara, que compõe e delimita o que seria a sala de estar. Na lateral deste, há outra mesa de madeira com alguns objetos dispostos sobre ela. Na parede, ao fundo, podemos notar vários quadros pendurados, uma mesa que serve de aparador também com vários objetos sobre ela e um espelho pendurado logo acima. Mais à esquerda, há outro móvel de madeira com duas portas. À esquerda da foto vemos um outro aparador, que delimita a área da sala de 201 jantar, que será a próxima foto descrita. Também aparece, nesta imagem, as diferentes paginações de piso, a delimitação das áreas pela diferença entre o piso de madeira e o de concreto com lajotas simulando um corredor de passagem. Vários tapetes coloridos estão dispostos no piso. Bem à frente e abaixo da foto, podemos ver um outro sofá branco com uma manta coloria por cima e algumas almofadas sobre ele, além de um objeto que parece de artesanato brasileiro situado logo ao seu lado. A composição dos móveis, objetos e tapetes está disposta de maneira simétrica, os quadros estão alinhados e os os objetos parecem repousar sobre as mesas e aparadores numa cuidadosa arrumação. Figura 115 - Foto da sala de estar. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 101. A próxima imagem (fig. 116) mostra a sala de jantar, delimitada pelo aparador e pelo móvel fixo de concreto desenhado por Artigas. Nela vemos os mesmos tipos de móveis, de madeira com desenho tradicionais, como se fossem móveis de família ou comprados em um antiquário. Nesta foto, também vemos uma mesa com seis cadeiras do tipo Thonet. Ao fundo, na estrutura de concreto que divide o ambiente de jantar da área do pátio central, foram colocadas algumas 202 prateleiras com objetos sobre elas. No centro, há um móvel que está colocado servindo de aparador e, sobre ele, há alguns objetos arrumados: uma estátua e uma luminária, e um espelho emoldurado logo acima, pendurado no concreto. Figura 116 - Foto da sala de jantar. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 102. A próxima foto (fig. 117), mais antiga, nos mostra como o usuário modifica os ambientes ao longo dos anos e de acordo com o uso. Pode-se notar que o espaço já não está mais ambientado como uma sala de jantar e, sim, como um espaço de lazer e talvez de estudos. Nas divisórias de concreto, estão colocadas prateleiras forradas de livros e, no centro, há um piano. Há muitas plantas nesta foto, ou, ao menos, há mais do que na foto mais recente, os troncos de árvore que são os pilares da sala têm diversas plantas e até trepadeiras penduradas neles. No canto direito da foto podemos ver uma mesa que parece ser como uma mesa de escritório, para estudos. 203 Figura 117 - Foto antiga da sala. Fonte: Arquivos FAU USP. Nas fotos mais antigas, há uma certa informalidade na disposição dos móveis e na arrumação dos objetos, fator que as aproxima mais da idéia de casa habitada e não precisamente arranjada para uma foto de publicação em um livro ou periódico. Enquanto talvez a composição do ambiente das fotos mais recentes tenha sido propositalmente arranjada para as fotos. A próxima imagem (fig. 118) é uma vista da sala da residência e está na mesma sequência de imagens daquele ambiente discutido anteriormente, onde se encontra o piano. Aqui podemos ver, ao fundo da foto, a mesa de escritório com uma cadeira, alguns quadros pendurados nas paredes, uma luminária pendente no teto fazendo referência a luminárias tradicionais japonesas, de papel de arroz como material. No primeiro plano da foto, podemos ver duas banquetas e logo atrás uma divisória de ferro vazada, que na foto recente não existe mais. Esta divisória não era original do projeto, foi colocada posteriormente, talvez com o intuito de separar a sala do espaço destinado ao escritório. 204 Figura 118 - Foto da sala e pátio central. Fonte; Arquivos FAU USP. Na próxima foto (fig. 119), também antiga, da mesma sequência das anteriores, podemos ver o outro ângulo da sala de estar, com vista para a varanda. Há, no primeiro plano da foto, duas cadeiras de madeira com um mesa redonda pequena entre elas e uma luminária de chão no canto esquerdo. A varanda, diferentemente da foto mais recente em que havia uma mesa com cadeiras, agora possui duas poltronas de áreas externas, feitas de madeira e pintadas de branco, com revestimento acolchoado por cima, além de um vaso de plantas pequeno. Dois cachorros grandes estão ali, em pé, a espera de alguma coisa. Os cachorros reforçam a idéia de casa de família, de aconchego do lar. 205 Figura 119 - Foto da sala e varanda. Fonte: Arquivos FAU USP. Em fotos recentes do jardim (figs. 120 e 121), pode ser visto, como no interior da residência, que ele encontra-se simetricamente organizado, como se tivesse passado por um projeto de paisagismo. Na foto anterior, podemos ver que há uma vasta vegetação ao fundo, enquanto nesta próxima vemos uma área externa organizada, na qual as plantas têm seu lugar, assim como a grama é delimitada pela paginação do piso. Com a vegetação organizada, a construção se sobressai e convive com todos os objetos e texturas. 206 Figura 120 - Jardim da residência. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 100. Figura 121- Jardim da residência. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 100. 207 A próxima foto (fig. 122) nos mostra o pátio central, que é um ponto de destaque na planta da residência, pois ele é o núcleo central pelo qual a planta se desenvolve. É por ele que o exterior entra na residência e se torna presente. Os espaços interiores precisam conviver com este núcleo externo, pois a abertura no teto encontra-se livre, hoje com uma grade, mas com ventilação e luz entrando sem barreiras. Na foto, podemos ver um jardim organizado, uma fonte no lado esquerdo da com algumas vegetações, umas plantas mais altas e outras enfileiradas no chão; o piso é forrado com pedregulhos. No canto direito da foto, ao fundo, há uma cadeira com um móvel e alguns objetos sobre ele, no piso um tapete desenhado e, nos nichos do concreto, mais alguns objetos estão dispostos. É possível ver ainda outras aberturas neste painel de concreto, também com alguns objetos. Os troncos das árvores, que são os pilares, estão livres, sem plantas penduradas ou outros elementos (como vimos nas fotos antigas analisadas anteriormente). Figura 122 - Pátio central. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 102. 208 Na próxima foto (fig. 123) podemos ver como o pátio central está livre, sem muitos objetos ou divisórias, como era a proposta inicial, e também como a vista para o jardim é permitida com esta passagem mais livre. Aqui o pátio funciona como passagem, por causa das lajotas no piso que formam um caminho, ou local para lazer e contemplação. Figura 123 - Sala e Pátio Central. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 100. Mas isso não significa que nas fotos mais antigas (fig. 124) o pátio central não era um local de contemplação. O que se pode ver, porém, é que ele era, antes de tudo, um jardim interno e cumpria essa função. A abertura no teto está sem as grades e o que vemos é uma concentração de plantas, todas altas e fartas, com os troncos das árvores abrigando outras plantas e vegetações. Aqui o pátio não funciona como passagem, nem a vista torna-se livre de um ponto a outro, mas ele traz a natureza para a ambientação interior. São momentos diferentes que a casa viveu. 209 Figura 124 - Pátio Central. Fonte: Arquivos FAU USP. A próxima figura (fig. 125) é uma foto recente da área próxima ao pátio central, que funciona como espaço de lazer e descanso. À esquerda, encontra-se uma poltrona de madeira com estofado colorido no assento e algumas almofadas. Logo acima, na parede, estão pendurados muitos quadros. Já ao fundo, há uma estante com livros e uma cadeira de madeira com os pés torneados. 210 Figura 125 - Pilares de tronco de madeira. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 103. A ambientação interior presente nos espaços das casas de Artigas parece ser uma questão relevante em suas obras. Na casa Berquó, essa preocupação irá se manifestar com mais força, como se nota por todos os elementos já mencionados: os troncos, a paginação do piso, o pátio central, etc.; que conformam a residência como uma casa para se morar e potencializam a liberdade de composição e arranjo dos móveis nessa residência, através da flexibilidade de uso ao longo do tempo, sem perda de seu conceito original. Na casa Berquó, essas mudanças são possíveis e efetivadas, como também se nota pelas sutis alterações que nela foram introduzidas ao longo dos anos, e que 211 podem ser percebidas por uma mirada intensiva sobre as sucessivas fotos que a registram em variados momentos. 212 3.7 Outras Casas de Vilanova Artigas Neste último subcapítulo, algumas outras casas de Vilanova Artigas serão mencionadas, não com tanto detalhes descritivos como as quatro casas analisadas anteriormente, devido à dificuldade encontrada em obter maior material iconográfico durante esta pesquisa. Mas também são casas importantes para a análise dos interiores arquitetônicos e ambientações internas. De fato, nenhuma residência de Artigas poderia ser considerada menos relevante, pois todos os seus projetos contribuíram para a formação da arquitetura paulista, são dotados de uma forte linguagem estética e de experimento arquitetônico na busca por fazer uma arquitetura que contribuísse para algum fim maior, não somente atendesse sua função de abrigo. A primeira residência a ser mencionada aqui é a Casa Rubens de Mendonça (1958-1959), ou Casa dos Triângulos. Sua planta é organizada em uma séria de níveis intermediários (figs. 126 e 127), com um o arranjo dos espaços similar ao da Casa Baeta, mas com um pavimento extra contendo a sala de jantar e a cozinha. É nesta casa que Artigas projetou, pela primeira vez, colunas que não eram retangulares ou trapezoidais, mas com desenho complexo formado pela combinação de trechos em seção triangular – pilares de seção crescente em altura. A forma triangular torna-se, ali, um tema geométrico abstrato, que será repetido na pintura da parede cega da fachada. Por isso o nome Casa dos Triângulos. 213 Figura 126- Planta do Pavimento térreo da Casa dos Triângulos. Fonte: Revista 2G, Vilanova Artigas, 2010. Figura 127 - Planta do Pavimento Superior. Fonte: Revista 2G, Vilanova Artigas, 2010. Esta residência marca uma aproximação de Artigas ao repertório de arte concreta. Artigas a descreveu desta forma: Gosto imensamente desta casa. As cores começaram a me impressionar. Esses triângulos concretistas são azuis. A minha intenção era, inicialmente, fazer as pinturas com operários comuns. Uma pintura que não fosse pintada, mas que fosse um afresco como Michelângelo fazia. [...] O desenho abstrato que se forma tem a finalidade de romper, de transformar o 214 volume em superfície, rompendo, com esses volumes, usando uma nova linguagem. Acho que a contribuição que eu pude dar para a história da forma na nossa Arquitetura, foi com essa casa. Ela foi publicada em revistas italianas com sobrenomes: Artigas: uma ricerca brutalista. Tive uma “satisfação napolitana”. 95 Quem realizou a pintura, os afrescos, foi o pintor brasileiro Rebolo Gonsales (1902-1980), de origem popular. Conhecido como pintor de paisagens e naturezas mortas, é considerado um dos membros mais importantes do chamado Grupo Santa Helena, no qual Vilanova Artigas chegou a participar. A pintura foi executada sobre um estudo realizado com Mario Gruber Correia (1927), que também era pintor e escultor brasileiro. As próximas duas imagens (figs. 128 e 129) são os desenhos e estudos para os painéis e pisos que seriam inseridos na residência. Figura 128- Estudos de painel para elevação lateral. Fonte: Vilanova Artigas, Instituto Lina Bo. e P. M. Bardi., 1997, p. 166. 95 Vilanova Artigas, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1997, p. 78. 215 Figura 129 - Estudos para os pisos. Fonte: Vilanova Artigas, Instituto Lina Bo. e P. M. Bardi., 1997, p. 166. A próxima imagem (fig. 130) nos mostra a fachada da residência numa época mais antiga, está sem data, mas talvez seja de um período mais próximo da construção, a década de 60. Como a vegetação está alta, a data seria mais para o final da década. Nesta residência, diferentemente da Casa Baeta na qual a fachada cega não era revestida, apenas pintada, pois a intenção era mostrar as marcas das formas do concreto, na Casa dos Triângulos, Artigas reveste a fachada com as pinturas “concretistas” que, em parte, atenuam as características brutalistas da obra, diminuindo o protagonismo do concreto em favor dessas pinturas. 216 Figura 130 - Fachada Frontal da Casa dos Triângulos. Foto sem data. Fonte: Vilanova Artigas, Instituto Lina Bo. e P. M. Bardi., 1997, p. 166. A próxima foto (fig. 131), também sem data, nos mostra uma perspectiva da residência desde a fachada dos fundos. Podem ser vistos os painéis das pinturas, ou seja, as quatro fachadas foram trabalhadas com as pinturas nas paredes referentes ao piso superior, sendo que, na parede cega da fachada dos fundos, a pintura é espelhada em relação à fachada frontal (ou a foto pode ter sido publicada invertida). 217 Figura 131 - Fachada dos Fundos da Casa dos Triângulos. Fonte: Vilanova Artigas, Instituto Lina Bo. e P. M. Bardi., 1997, p. 166. A próxima foto (fig. 132) nos mostra uma sala de estar da residência ao nível do piso térreo e outra sala a meio nível abaixo daquela. Na primeira, vê-se um sofá de dois lugares próximo ao plano de vidro, onde há uma cortina envolvendo toda a parede, ao lado uma mesa lateral, uma luminária e uma poltrona. Ao lado dessa poltrona há um piano e, mais próximo ao lance de escada que desce para o meio nível, há um banco fixo de concreto, com revestimento de madeira em seu assento. Na segunda sala, vê-se uma ambientação com quatro poltronas, três são iguais, com estrutura e braços de madeira e estofado mais fino, de tecido, e uma diferente, de modelo mais antigo, de couro com um pufe próximo a ela. Atrás, há um móvel baixo com uma luminária e alguns objetos sobre ele. Há também um tapete envolvendo a área ocupada pelas poltronas, delimitando o espaço de uma sala de estar. Na parede mais baixa, atrás das duas poltronas à esquerda, pode-se notar um 218 detalhamento em madeira, uma textura, já do lado oposto, há a cortina que encobre o plano de vidro. Figura 132 - Foto da sala de Estar. Fonte: Arquivos FAU USP, dezembro de 2011. Na próxima imagem (fig. 133), uma outra perpectiva da sala de estar, podese perceber a predominância da arquitetura sobre os ambientes internos. Os ângulos triangulares do concreto, além de delimitarem os espaços, demarcam fortes desenhos no interior da residência. Enquanto no lado externo são as pinturas que predominam para definir o arranjo estético arquitetônico, nos interiores são as estruturas de concreto que o fazem. Também nesta foto podem ser vistos os meio níveis pelos quais a residência se divide e os acabamentos em madeira nos bancos fixos de concreto e nas escadas, que dão a impressão de emoldurarem as estruturas. A ambientação interna, na sala localizada no meio nível abaixo, compõe-se, além das poltronas e móveis vistos na foto anterior, de um móvel com uma televisão sobre ele. Mais atrás, há uma sala de jantar, com uma mesa redonda com tampo de 219 vidro e quatro lugares, sendo as cadeiras de estrutura de madeira. Atrás dela, há um móvel, um aparador talvez, com alguns objetos sobre ele. No meio nível acima, há um sofá situado do lado oposto do banco de concreto com acabamento em madeira. Atrás deste, um vaso de plantas, próximo à escada. A iluminação precisa ajustar-se às estruturas, alguns pontos de luz foram colocados nas paredes da sala meio nível abaixo, já na sala de jantar há uma luminária pendente. No meio nível acima, no primeiro plano da foto, à esquerda, há outra luminária de parede com duas lâmpadas. Perto da porta de vidro, no canto direito da foto, há um plafon. Figura 133 - Foto da sala de estar. Foto sem data. Fonte: Arquivo FAU USP, dezembro de 2011. A próxima foto (fig. 134), tirada a partir da sala de estar, situada meio nível abaixo, mostra outro ângulo do desenho das estruturas em concreto, além dos acabamentos em madeira e as esquadrias com vidro. Grandes aberturas com portas de correr fazem com que os ambientes tornem-se iluminados e arejados. 220 Figura 134 - Foto das salas. Foco nas estruturas e iluminação internas. Foto sem data. Fonte: Arquivo FAU USP, dezembro de 2011. As próximas imagens são mais recentes, publicadas na Revista 2G, na edição especial sobre Vilanova Artigas, em 2010, e talvez as fotos sejam deste ano ou outro próximo a ele. Nelas, pode-se ver a casa como está atualmente, restaurada, com novos moradores. Se as fotos antigas forem da década de 60 ou 70, em comparação com as atuais, veremos diferenças nos tipos de móveis e na composição da ambientação interna. Na próxima imagem (fig. 135), da fachada frontal, tirada de um ângulo diferente da foto antiga analisada (a primeira), podem ser melhor vistos os pilares em seção triangular; também o jardim, com alguns vasos de plantas mais baixos e locais com grama, porém sem vegetações mais altas, como na foto mais antiga. Desta perspectiva, também podemos ver a continuação das pinturas na fachada lateral e a abertura para a sala de estar. 221 Figura 135 - Foto da perspectiva da fachada frontal. Fonte: Revista 2G, Vilanova Artigas, 2010. Uma melhor perspectiva da vista exterior da sala de estar pode ser apreciada na próxima foto (fig. 136), na qual também aparece a garagem, situada no subsolo. Na sala, há um piano com a banqueta e alguns objetos sobre ele, além de um quadro pendurado na parede; logo atrás, há duas poltronas com estrutura de madeira, uma mesa de centro, um sofá e alguns vasos, um com uma planta e outro decorativo, próximos ao plano de vidro fixo. 222 Figure 136 - Foto da perspectiva da fachada frontal. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010. Tirada a partir da sala situada no pavimento superior, a próxima foto (fig. 137) mostra outra perspectiva das salas do pavimento térreo. Diferentemente da ambientação das fotos antigas, esta sala é ambientada com um sofá de três lugares de cor clara (o sofá que na foto anterior pouco aparecia), a mesa de centro, os vasos e uma poltrona com estrutura em aço. Na parte de baixo da foto, ao lado oposto do banco fixo, há uma poltronas com estrutura em madeira e estofado em couro. Também pode ser visto um quadro com uma pintura em vermelho na parede que se localiza no pavimento superior. Neste pavimento, vê-se que há outro banco fixo projetado por Artigas, de estrutura de madeira, com função dupla de guarda-corpo e local para se sentar. 223 Figura 137 - Foto tirada da perspectiva da sala. Fonte: Revista 2G, Vilanova Artigas, 2011. A próxima foto (fig. 138), tirada a partir do hall de circulação situado no pavimento superior, mostra o banco de madeira, o corredor que faz o acesso aos dormitórios e, à esquerda, o estúdio situado meio nível abaixo deste pavimento. O plano de vidro que percorre a extensão da parede do estúdio talvez não existisse originalmente, já que a estrutura é diferente das esquadrias de ferro que estão na parede que dá para o lado externo da residência. Talvez tenha sido aberto para que pudesse entrar mais luz no ambiente, como ocorreu na reforma da Casa Baeta, na qual também foram aumentados os planos de vidro da sala. É interessante notar que há um vaso colorido atrás deste plano de vidro do estúdio, acima da laje da porta. 224 Figura 138 - Foto do pavimento superior. Fonte. 2G, Vilanova Artigas, 2011. Na próxima imagem (fig. 139), tirada da sala de estar, na mesma perspectiva de uma foto antiga analisada, podemos comparar várias diferenças na ambientação e entre os móveis dispostos. Na foto atual, os pilares em seção triangular foram pintados de vermelho, o que faz com que eles predominem com mais força no espaço interno, além da estrutura de concreto do banco, situado no pavimento terréo e superior, também ter sido pintadas, mas de azul. Na sala situada meio nível abaixo, há um sofá com três lugares, uma mesa de centro, uma poltrona e, no lado oposto, um móvel mais baixo que não se consegue ver, mas há uma televisão sobre ele. Mais ao fundo está a sala de jantar, onde há uma mesa com tampo de vidro e quatro cadeiras com estrutura de aço e estofado em couro, além de um tapete de cor clara abaixo da mesa; na parede atrás, há um aparador com um objeto sobre ele e um quadro pendurado na parede. Nesta foto não há cortinas nas esquadrias e nas portas de vidro, como nas fotos antigas. Aqui o piso desenhado da sala de estar pode ser visto, enquanto nas fotos antigas não se conseguia vê-lo. Também as luminárias são diferentes, porém estão dispostas no mesmo lugar. 225 Figure 139 - Foto da sala de estar. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010. A materialidade, presente na geometria espacial interior desta residência, nos detalhes dos pilares, dos degraus, do teto e dos móveis fixos, cria uma intenção de elaboração artística por meio da arquitetura e seu ambiente interno. A segunda casa a ser observada, aqui, será a Casa Telmo Porto (1968), que foi construída numa época crítica da represão militar, na qual o arquiteto foi duramente perseguido. Talvez por isso, ou não, ela teve as janelas dos dormitórios eliminadas. Apesar de vários autores afirmarem que Artigas expressava em seus projetos manifestações políticas, como se suas obras fossem o reflexo da opressão pela qual o arquiteto sofria durante os anos da ditadura, essas afirmações apresentam fortes contradições e talvez sejam interpretações generalizadas da obra do arquiteto. Elas simplificam o que não é fácil de descrever e impossível de saber: 226 suas intenções reais. Por seus textos, podemos constatar que sua obra tinha mais o propósito de experimento e laboratório de idéias, na construção de novos símbolos, do que serem manifestações políticas de fato. De qualquer maneira, a preocupação social é, de fato, um tema recorrente encontrado em seus artigos: A cidade industrial é a casa da sociedade nova. Elas criam-se mutuamente aos poucos. Vemos, em quase todos, a cidade como obra de arte. Discordo das posições que escondem o lado artístico e criador do urbanismo e aceitam uma espécie de colonização pela ciência, revelada no processo de limitar à coleta de dados na “natureza” social a organização dos padrões para a forma urbana. Acabam num estruturalismo imobilista. Estão para a cidade, como a construção para a casa. A construção só existe como tal, enquanto a humanidade não pode desenvolver plenamente sua criatividade. Certamente os obstáculos para transformar uma atitude em prática, em ação, são grandes. Mas, importante é a atitude. As cidades como as casas. As casas como as cidades. 96 No trecho acima, Artigas descreve como a habitação se universaliza com as obras arquitetônicas que não são habitações, como aeroportos, estações e pontes, ou seja, os edifícios públicos. Na Casa Telmo Porto, a iluminação zenital irá aparecer como elemento importante no segundo pavimento, bem como o grande espaço aberto da sala de estar, com pé direito duplo (fig. 140). A rampa é o elemento de circulação principal da casa, seu percurso faz a ligação entre o pavimento térreo e o superior. O mezanino abre-se para o pé direito duplo da sala de estar localizada no térreo. Os dois lados da residência possuem também os domus de iluminação zenital. O concreto armado 96 (Artigas J. B., 2004, p. 121) Trecho extraído do texto “Arquitetura e Construção”, de 1969. 227 é o material que destaca o caráter rude da residência, mas é a ambientação interna, o arranjo dos móveis e objetos, que trazem vivência a ela. Quanto aos pisos, nota-se que a rampa apresenta revestimento próprio para evitar escorregões – uma borracha texturizada antiderrapante. Enquanto no piso da sala de estar, são empregados diferentes tipos de revestimentos, assim como ocorre na Casa Baeta. A paginação desse piso define ou sugere as diferentes funções da sala, integrada à sala de jantar e ao jardim, compensando a ausência de compartimentação dos cômodos. No ambiente em que se situa a mesa de jantar com as cadeiras, o piso é diferente em relação ao outro lado, onde fica o piano. Os tapetes delimitam a área de estar, com dois jogos de sofá e mesas de centro. Os móveis são modernos, uns parecem ter estrutura de madeira e outros estrutura de aço, sempre com espaldar baixo, enquanto os estofados não são muito volumosos. O jardim, por sua vez, possui plantas tropicais, cactos, bromélias. Outros jardins fazem parte da residência, no pavimento térreo e em sua área externa. Figura 140 - Residência Telmo Porto, 1968. Fonte: Kamita, 2003, p. 43. 228 Outro projeto importante é o da Casa Martirani (1969-1974), mas sua análise não foi incluída entre as principais porque não foi possível obter fotos antigas das ambientações internas para que a comparação pudesse ser feita a contento. Há mais fotos novas e somente uma mais antiga, do exterior da residência, além do croqui desenhado pelo arquiteto pelo qual se pode analisar o layout proposto para a disposição interna de móveis. No projeto da Casa Martirani, assim como na casa Telmo Porto, Artigas apresenta uma arquitetura voltada para o interior da residência. Para isso, ele utilizase de grandes vãos e amplas aberturas internas, enquanto que, em seu exterior, a residência é mais fechada e reservada – uma casa resguardada, como uma proteção para os moradores. Muitos elementos utilizados neste projeto, como os fechamentos de concreto ao longo das janelas e as rampas, o aproximam dos projetos de edifícios públicos realizados pelo arquiteto. Por causa do grande muro de concreto que desce da laje superior, a casa parece não ter janelas e, de fato, todas elas dão vista à monumental barreira de concreto que envolve a residência, como se pode ver na próxima imagem – somente algumas aberturas no concreto permitem que a luz o atravesse. O interior da residência não dialoga com o exterior, não há a interação dos espaços internos com a paisagem e com o meio circundante. Na fachada principal, Artigas projetou um enorme muro de pedra, de textura áspera, por onde é possível ver a entrada principal, com acesso por meio de uma rampa e das escadas situadas ao lado. Mas esta entrada não é convidativa, pois se conforma como uma fenda no muro de pedras, coberta por um grande peso de concreto, pela qual a pessoa entra através de um corredor até chegar à porta principal. O subsolo, que está a meio nível abaixo do primeiro pavimento, abriga a garagem coberta, que se prolonga pela parte central em quase toda da extensão da 229 residência. Há também, neste pavimento, a área de serviço e um cômodo que serve como armazém. Na planta térrea está a entrada principal, uma pequena sala reservada, um ambiente integrado, feito para sala de estar e jantar, com pé direito duplo. por meio da rampa pode-se ter acesso ao segundo pavimento. A cozinha está ao fundo e, por ela, há o acesso à escadaria externa. Neste pavimento, é possível perceber a integração dos ambientes, das salas com a cozinha, feita por meio de um balcão, delimitando a passagem do interior para o exterior da residência. A primeira foto, e mais antiga (fig. 141), é da fachada da residência. Está sem data, mas parece ser do final da época da construção (1974), por estar com os revestimentos recém colocados, portanto novos, sem o jardim frontal, além da presença da escada de obras na lateral, ao lado direito da imagem. É possível ver as aberturas laterais no grande volume de concreto que envolve a residência desde sua cobertura: aberturas que servirão de passagem de ar e luz para seu interior, para os dormitórios. A cor azul da parede cega, localizada na frente, é mais escura do que a cor atual, que está com um azul mais forte, como se verá nas próximas fotos. 230 Figura 141 - Foto antiga da Casa Martirani. Foto sem data. Fonte: Vilanova Artigas, Instituto Lina Bo. e P. M. Bardi., 1997, p. 165. A próxima imagem (fig. 142) apresenta o desenho das empenas de concreto, o grande volume que envolve as duas laterais da residência, mostrando como são as aberturas no concreto e como é o desenho destas laterais. As empenas não são estruturais; o peso da laje está sendo descarregado nos quatro pilares e as empenas estão “pesando” ou descendo a partir dela. 231 Figura 142 - Estudo das Empenas. Fonte: Vilanova Artigas, Instituto Lina Bo. e P. M. Bardi., 1997, p. 164. As próximas imagens também são desenhos (figs. 143, 144 e 145), croquis da residência, que apresentam uma forma peculiar de esboço. Talvez esses desenhos não tenham sido realizado exclusivamente por Artigas, mas é interessante notar como o layout apresenta uma casa vivencial, sem a aspereza dos materiais e o fechamento excessivo das empenas de concreto. 232 Figura 143 - Desenho do paviment superior. Sem data. Fonte: Vilanova Artigas, Instituto Lina Bo. e P. M. Bardi., 1997, p. 164. Figura 144 - Desenho do pavimento térreo. Sem data. Fonte: Vilanova Artigas, Instituto Lina Bo. e P. M. Bardi., 1997, p. 164. 233 Figura 145 - Desenho do subsolo. Sem data. Fonte: Vilanova Artigas, Instituto Lina Bo. e P. M. Bardi., 1997, p. 164. O próximo desenho (fig. 146), um corte da residência, apresenta uma casa ainda mais vivencial, não somente pelo desenho dos móveis, mas pelas pessoas que estão nele – há situações criadas, vários grupos de pessoas nos cômodos, umas conversando nos dormitórios, outras na sala de estar, no estúdio, na cozinha e até mesmo no subsolo, andando de bicicleta, parecendo muito felizes, com os braços levantados (dando pulos de alegria) e na companhia de um animal (que parece ser um cachorro). Figura 146- Desenho do corte da residência. Fonte: Vilanova Artigas, Instituto Lina Bo. e P. M. Bardi., 1997, p. 166. 234 As próximas duas fotos (figs. 147 e 148) são: a primeira da fachada frontal da residência e a segunda do corredor que dá acesso à porta principal. A primeira apresenta a casa com constrastes excessivos entre os materiais, as pedras, o concreto e a parede pintada de azul, tornando suas características brutalistas exacerbadas, enquanto a vegetação mais alta encobre o volume em quase sua totalidade. A porta de entrada principal está resguardada, como se pode ver na segunda foto, na qual há o corredor de acesso. Assim como na primeira imagem, nota-se o contraste entre as texturas dos materiais e as aberturas no concreto para entrada de luz e ar. Figura 147 - Fachada Frontal da Casa Martirani. Fonte: Revista 2G, Vilanova Artigas, G. Gilli, 2010, p. 110. 235 Figura 148 - Entrada Principal da Casa Martirani. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, G. Gilli, 2010, p. 111. A próxima imagem (fig. 149) apresenta a sala de estar e o estúdio meio nível acima do pavimento térreo. Na sala, há um sofá com espaldar baixo e estrutura de madeira, duas poltronas no lado oposto, um móvel de rodinhas com uma televisão e alguns aparelhos. Atrás, um móvel que parece ser antigo e alguns objetos, gravuras e garrafas de bebida. Ao lado esquerdo deste, há uma passagem, que permite o acesso a uma pequena sala e à escada que interliga o térreo ao subsolo. A pequena sala é resguardada do restante da residência, não há aberturas nela, a não ser a entrada, que quase passa despercebida. No estúdio, acima, pode-se notar uma estante com vários livros e um armário com duas portas. 236 Figura 149 - Sala De Estar da Casa Martirani. Fonte: Revista 2G. A próxima imagem (fig. 150) apresenta outra perspectiva da sala de estar. A foto, tirada a partir do estúdio, evidencia o contraste entre as paredes de concreto, os planos de vidro e as paredes e vigas pintadas com cores contrastantes. A parede de concreto externa funciona como uma cortina, cobrindo quase que totalmente a visão de dentro para o lado de fora. As aberturas nesta cortina de concreto fazem com que pequenos lastros de luz entrem nos ambientes. Os planos de vidro atenuam a sensação do fechamento excessivo. A arquitetura é tão expressiva que a ambientação interna serve para complementá-la, inserindo a vivência em seu interior. Podem ser vistos móveis de desenho mais tradicional, que tornam os ambientes vivenciais: na disposição da sala de jantar, uma mesa de oito lugares sobre um tapete desenhado, que parece ser antigo como o móvel, visto na foto anterior; mais ao fundo, vê-se outra sala, com um sofá de dois lugares, um de três e 237 duas poltronas, todos com estrutura de madeira e estofado não muito volumoso, além de uma mesa de centro redonda, um vaso de plantas e outros objetos sobre ela. Ao lado daquele sofá próximo ao plano de vidro, há outra mesa com um vaso de plantas, já no lado oposto, há um móvel que parece ter um aparelho de som sobre ele. Mais atrás ainda, vê-se uma outra mesa de refeições e seis cadeiras em volta, outro vaso de plantas e alguns objetos – os ambientes são delimitados pelo arranjo dos móveis. Figura 150 - Sala de Estar e Jantar da Casa Martirani. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, GG, 2010, p. 115. A próxima foto (fig. 151) é do estúdio e é possível ver o contraste entre os materiais, a quantidade de texturas existentes, a pedra das paredes, a janela de vidro e o plano de concreto externo, também os acabamentos em madeira nas prateleiras e a parede colorida no canto direito. Os móveis seguem na mesma linha 238 do restante visto na residência: dois sofás com estrutura de madeira e estofados não muito volumosos, uma mesa para computador e uma cadeira. Há também uma mesa de centro, que aparece parcialmente, abaixo na foto, com um objeto sobre ela. Figura 151 - Foto do estúdio. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 117. A próxima imagem (fig. 152) mostra a cozinha, na qual se pode ver o contraste entre os armários de fórmica azul, o fogão na mesma cor, o tampo da pia de pedra, com cor escura, o botijão de gás metálico, a geladeira branca ao fundo, o piso azul e as paredes de concreto. A grande abertura com portas de correr em vidro e as vigas vazadas de concreto possibilitam a entrada da luz no ambiente. 239 Figura 152- Cozinha da Casa Martirani. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, GG, 2010, p. 117. A próxima imagem (fig. 153) mostra a fachada dos fundos da residência. Nela, o grande volume de concreto torna-se ainda mais marcante, ao se prolongar para servir de cobertura (e proteção) para a área exterior e para a escada externa (o volume em vermelho). 240 Figura 153 - Fachada dos Fundos da Residência Martirani. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 113. No pavimento superior há o estúdio, a passagem para os quartos, que perpassa o vão do pé direito duplo da sala de estar; três quartos e uma suíte, três banheiros e outros três cômodos. Na próxima foto (fig. 154), as aberturas das janelas dos dormitórios podem ser vistas. Dispostas na parede interna, paralela ao grande volume de concreto que se estende por fora da residência, fazem com que o dormitório pareça um volume dentro de outro volume maior. A entrada de luz é possibilitada pelas aberturas nas empenas de concreto. Os fechamentos de madeira que se seguem ao longo de toda 241 a parede das janelas unem-se à bancada e ao guarda roupas, feitos de mesmo material, parecendo todos uma continuação de uma peça só, como se as janelas também fizessem parte dos móveis. Figura 154 - Foto do Dormitório. Fonte: 2G, Vilanova Artigas, 2010, p. 116. Projetar com intenção arquitetônica, realizando obras com um intuito plástico e estético, sempre pareceu fazer parte das propostas de Artigas. Suas casas não são somente o abrigo, mas a habitação que envolve o morador na arquitetura, que sempre se mostrou mais predominante. As ambientações das casas analizadas fazem parte da arquitetura, trazem a vivência e a escala doméstica para dentro dos ambientes. 242 Conclusão O trabalho realizado nesta dissertação procurou mostrar, com outra perspectiva, a obra de Vilanova Artigas, através da análise de suas obras residenciais em momentos diferentes de sua produção. Considerando os interiores arquitetônicos, foi possível observar diversos detalhes que podem ser ainda mais estudados em trabalhos futuros. O conjunto analisado buscou entender a atmosfera dos ambientes, como estes se modificaram ao longo das décadas, de acordo com a vivência dos moradores ou mudança de usuários. Com isso, foi possível perceber que a ambientação interna de uma residência corresponde à parte mutável da arquitetura, pois, enquanto sua estrutura é fixa, seus interiores refletem a vida doméstica e a passagem do tempo através da ambientação escolhida por cada morador; desde as mudanças que ocorrem no estilo de mobiliário, até no modo de arranjá-lo nos cômodos. Em uma casa de Artigas, a estrutura é tão marcante que o mobiliário entra para complementá-la, e também para introduzir a vida doméstica nessa casa. As análises correspondentes às ambientações internas das casas de Artigas foram realizadas a partir da comparação de fontes fotográficas de diferentes épocas e atuais. Cada conjunto de usuários, em diferentes momentos, ajudou a configurar as ambientações dos cômodos de diversas maneiras, o que possibilita verificar, indiretamente, sua interferência nos arranjos dos interiores da casa. O foco principal deste estudo foram as áreas sociais das residências, como as salas de jantar, de estar, dos estúdios, halls de circulações e varandas, já que são os cômodos mais bem documentados, sobre os quais foi possível conseguir mais material. Por isso, primeiramente, foi apresentado um capítulo sobre as análises realizadas na Revista Acrópole, nas quais se pode constatar a gradual mudança das residências diante do movimento da arquitetura moderna, que procurava tomar 243 espaço desde a década de 1930. Os interiores modernos só foram possíveis de serem realizados, de forma plena, bem como consolidados, após a Segunda Guerra Mundial, ou seja, após 1945. Isto aconteceu porque somente depois dessa data as indústrias conseguiram fabricar os equipamentos eletrônicos, elétricos e os móveis preconizados pelo modernismo, que, mais tarde, a partir da década de 1950, iriam se tornar um hábito para as famílias. Um fator interessante, notado ao longo da leitura das publicações da Acrópole, é o que os ambientes que mais rápido se modernizaram foram as cozinhas, os banheiros e as áreas de serviço. Isto aconteceu porque a disponibilidade de novos eletrodomésticos, como geladeiras, fogões, exaustores e todo tipo de aparato elétrico para a cozinha, além das propagandas de louças sanitárias e azulejos, permitiu que estes ambientes fossem reformados em primeiro lugar, tornando-se os mais modernos. A modernidade exigia das residências cozinhas brancas, assépticas, com equipamentos elétricos modernos que ajudassem a mulher na cozinha. Já na década de 1930, é possível notar que esses cômodos, na maioria das vezes, se destacavam e se contrastavam em relação ao restante da casa, ambientada com móveis e objetos ornamentados. Simultaneamente, esses cômodos (cozinha, banheiro e área de serviço), antes escondidos, localizados na parte de fora da casa, distantes da área social, foram elevados em sua hierarquia como exemplo de eficiência da residência, mostrando que seus proprietários estavam conectados às novidades da sociedade contemporânea. No segundo capítulo, procurou-se contextualizar a pesquisa com a descrição de duas casas, de dois arquitetos contemporâneos a Artigas, que tiveram grande importância no cenário arquitetônico paulista e na construção de uma consciência arquitetônica moderna, bem como na introdução das ambientações arquitetônicas modernas. Foi o começo da busca pela arquitetura moderna como um todo, desde 244 sua estrutura até a ambientação interna, o que Gregory Warchavchik e Lina Bo Bardi fizeram. A descrição das Case Study Houses, no final do capítulo, entrou porque o programa foi uma importante referência para a época, modificando o panorama da construção moderna e seus interiores, estimulando não só uma ambientação mais vivencial, com móveis modernos, mas também certo tipo de comportamento das pessoas, também moderno. À otimização do espaço doméstico e ao uso de novos materiais e modos de construção (que se tornariam mais econômicos se fossem industrializados, o que nem sempre chegaram a ser) soma-se uma maior atenção aos projetos de interiores mais amplos, claros e conectados, possibilitando, em princípio, diferentes arranjos, que a escolha e disposição cuidadosa do mobiliário ajuda a estabilizar. Como afirma Lina Bo Bardi: A construção de estrutura independente, com a abolição das paredes portantes, tornou possível uma grande flexibilidade na atividade da decoração, e a lógica construtiva passa a ser aquela da maior liberdade na disposição dos ambientes; abertos, separados por divisórias de material isolante, facilmente adaptáveis. O mobiliário é flexível, enquanto um aspecto de maior solidez caracteriza as instalações permanentes: banheiros, 97 toaletes, cozinhas, lavanderias e serviços em geral. Liberada do peso da estrutura, a casa pode ser arranjada de várias maneiras, sendo fixos apenas os ambientes mais estritamente funcionais, como banheiros e cozinhas. Será, portanto, o arranjo do mobiliário que terminará de definila, sem compartimentá-la. Foi entre as décadas de 1945 a 1970 que a modernidade foi aceita e conquistou o conforto e a arbitrariedade da vida doméstica, momento em que as ideias dos arquitetos se cruzaram e as práticas materiais foram o mote que permitiu 97 Op. cit. p. 57. 245 novas propostas; mais do que definir utopias, quiseram redescobrir o ser e o mundo: “são as novas técnicas – sua invenção, transferência, manipulação – os verdadeiros operadores da imaginação pragmática.” 98. Na segunda modernidade, a do pós Segunda Guerra, as arquiteturas modernas se consolidaram e se afirmaram, mas não como mera continuidade, pois intensas transformações ocorreram com um novo modo moderno de encarar a vida, mais consumista, relaxado e até mais doméstico, introduzindo a residência unifamiliar como caso exemplar das arquiteturas das décadas de meados do século 20, que foi tanto lugar íntimo das pessoas comuns, como protótipo que atendia às novas premissas de modernidade. Nesta segunda parte do século 20, a busca por um lugar confortável assume papel protagonizador, diferentemente das primeiras casas modernas construídas. No último capítulo – após toda a contextualização do tema, situação do foco de pesquisa em sua época, ou seja, como eram os interiores arquitetônicos, como foram se modificando e como os arquitetos da época buscaram a mudança dos hábitos, até chegar à consolidação da arquitetura moderna – entrou a análise da obra de Artigas propriamente dita. Uma breve contextualização de sua obra foi importante para situar o foco do trabalho e a intenção da pesquisa. Neste capítulo, buscou-se analisar o mobiliário projetado por Artigas, que fez parte de alguns interiores projetados por ele, como pode ser visto em uma foto de época de sua residência, mas o foco prioritário foi dado à quatro de suas casas, as que foi possível conseguir maior quantidade de material iconográfico, como a “Casinha”, de 1942, a Segunda Casa do Arquiteto, de 1949, a Casa Olga Baeta, de 1957 e a Residência Elza Berquó, de 1967. Outras residências do arquiteto foram mais brevemente estudadas no último subcapítulo, como a Casa Rubens de Mendonça, ou Casa dos Triângulos, de 1959, a Casa Telmo Porto, de 1968 e a Casa Martirani, de 1974. 98 (idem, p. 175). 246 O que pode ser visto, nos interiores da Casa Baeta, de 1958, é que distintos e contrastantes planos cromáticos definidos pelas paredes não portantes e pelos pisos ganharam mais destaque e quase se contrastam com o despojamento casual dos interiores, que, mais tarde, em foto tirada na década de 80, combinariam vasos de plantas tropicais, um tradicional piano vertical, cortinas simples e móveis funcionais e modernos, mas de acabamento em tradicional palhinha, que contrastou com o desenho contemporâneo da mobília. Foi no contraste das ambientações internas, entre as imagens mostradas, que pode ser notada a intensidade com que o usuário modifica o ambiente interior. Na imagem feita após a restauração, a casa está propositalmente com os ambientes mais modernos, como se fosse a proposta original, tal como as imagens icônicas das Case Study Houses. Entre as análises dos interiores das casas selecionadas, puderam ser vistos pontos em comum. O estúdio aparece em todas, na Casinha ele encontra-se em meio nível abaixo, na Segunda Casa e na Casa Baeta em meio nível acima, e na Casa Berquó ele está na mesmo nível, mas próximo ao pátio central. Na Casa dos Triângulos, ele também está no meio nível acima do térreo, assim como na Casa Telmo Porto e na Casa Martirani. Nas quatro casas, a ambientação interna foi arranjada de forma totalmente diferente, já que os moradores eram outros. O projeto arquitetônico das casas seguiu sempre a linha de trabalho de Artigas, a distribuição dos cômodos e até alguns mobiliários fixos delimitavam os usos dos ambientes, mas o arranjo do mobiliário sempre foi feito de acordo com o gosto pessoal de quem morava na casa, transformando a arquitetura interna das casas. Mesmo as casas de Artigas, com mobiliário projetado por ele, apresentaram-se diversa ao longo das décadas. Na maioria dos casos, os móveis fixos de concreto ou madeira que Artigas introduziu nas casas delimitaram os usos dos cômodos e fizeram parte deles. 247 Também se pode notar que Artigas inspirou-se em movimentos de arte para realizar seus projetos. Na Casa Baeta, Mondrian foi a referência, enquanto na Casa dos Triangulos, as pinturas da fachada e os pilares em seção triangular referenciavam a arte concreta; já na Casa Berquó, a referência foi a pop arte, em que diferentes materiais conformavam distintas texturas e acabamentos, enquanto os pilares de madeira eram o destaque nesta residência, assim como o pátio central; na Casinha, por sua vez, um pouco de Frank Lloyd Wright nas texturas e nos desenhos formais; na Segunda Casa, a arquitetura moderna carioca foi a inspiração da vez. Mas não só nos exteriores ele se utilizava destas inspirações, também o fazia nos interiores, nas cores das paredes, na paginação dos pisos e nas formas dos pilares. Outras referências também foram as casas paranaenses, as casas de sua infância como ele mesmo disse, na utilização da intensificação da marca das fôrmas de concreto na parede cega da Casa Baeta. Ao longo das décadas e no amadurecimento de seu trabalho, as características brutalistas foram ficando mais exacerbadas nos projetos residenciais, mas enquanto a arquitetura se apresentava cada vez mais bruta, as ambientações eram mais vivenciais, mostrando a vida doméstica acontecendo ali, o que pode ser notado com maior intensidade nas ambientações mais antigas, que são mais relaxadas do que estritamente preocupadas em serem modernas. Os móveis são modernos em sua maioria, mas não foi visto um rigor excessivo nos arranjos. As fotos atuais das residências apresentam as casas com arranjos internos mais preocupados em estarem de acordo com o estilo da casa, como é o caso da Casa Baeta, que após sua reforma tornou-se, provavelmente, mais moderna do que sua proposta original. Claro que, para a época, a construção devia ser tão mais avançada que por si só já se bastava. Hoje elas são um legado deixado por Artigas, talvez por isso sejam mobiliadas com um rigor maior, como se fosse para preservar sua memória. 248 Deste ponto, abre-se uma outra discussão: como ao longo dos anos os interiores das residências modificam-se conforme os hábitos do usuário, dos moradores. Ao passo que a estrutura e a parte externa se mantêm as mesmas ou com pequenas alterações, o arranjo interno modifica-se por completo, as circulações mudam, os fluxos e, em alguns casos, os usos dos cômodos também. Por fim, buscou-se mostrar como a arquitetura de interiores é um tema importante na pesquisa sobre o trabalho de um arquiteto com uma obra tão rica. Com esse estudo, diversos detalhes puderam ser vistos e apontados, o que mostra a arquitetura de interiores como assunto complementar e autônomo na busca da compreensão da obra de Artigas. A ambientação interna revelou-se tão importante quanto a configuração projetual e construtiva, e a distribuição interna de cômodos e circulações, pois ela define os hábitos de morar, a parte na qual a obra arquitetônica ganha vida e se manifesta não só como abrigo, mas como um modo de morar inspirado em uma intenção arquitetônica, de inspiração artística e na preocupação plástica dos acabamentos e texturas. 249 Bibliografia Ábalos, I. (2008). A boa-vida: Visita guiada às casas da modernidade. Barcelona: Gustavo Gili. Acayaba, M. M. (1994). Branco e Preto: uma história de design dos anos 50. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Arantes, P. F. (2004). Arquitetura nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões. São Paulo: ED. 34. Artigas, J. B. (2004). Caminhos da Arquitetura. São Paulo: Cosac & Naify. Artigas, V. (1997). Vilanova Artigas. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Bardi, L. B. (2002). 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