35
Ao final do ano de 2015 o Dr. Alcio
Luiz Gomes completou 35 anos de
formado. Na conversa que tivemos
com ele ficamos sabendo como foi
essa trajetória.
Esse ano você comemora 35 anos de formado, conte como
foi a sua escolha profissional.
Cursei medicina em Teresópolis e aos poucos fui descobrindo
os encantos dessa mistura de ciência e arte. Primeiramente,
foi a cadeira de semiologia e propedêutica. Foi uma certa
epifania ao perceber como o conhecimento da clínica se
estruturava a partir da sistematização dos sinais e sintomas, e
como se dava o processo de interpretação dos mesmos para
construção do diagnóstico. . Foi realmente um momento
marcante.
Foi isso que o levou a sua especialidade?
Não, foi um despertar. Posteriormente, fui apresentado
ao mundo da cirurgia. Foi um deslumbramento. Toda
a atmosfera, o conjunto de pessoas ao redor da mesa
operatória, a atenção e o envolvimento delas com aquele
ato, tinha algo de mágico que me conquistou. Decidi então
ir nesse sentido.
E como aconteceu a acupuntura?
Ainda na faculdade, com alguns amigos, resolvi fazer um curso
de acupuntura que acontecia no Instituto Hannemaniano,
no Rio de Janeiro. Nós descíamos de Terê as sexta-feiras
para as aulas. O professor Frederico Spaeth, embora não
fosse médico, atraia um grupo grande que queria saber mais
como funcionava a acupuntura. Na verdade, eu já havia sido
tratado pela acupuntura, anos antes, com sucesso, devido a
um problema de dor lombar.
Alcio (centro) e colegas na aula de
anatomia, 1º ano da faculdade de
medicina de Teresópolis
Foi onde você fez sua formação?
Foi onde teve início. Eu estava motivado com curso, mas confesso que não tinha um entendimento muito claro de como
a coisa ser processavam, a semiologia baseada somente no
exame dos pulsos tornava o diagnóstico algo fantasioso e
que não me proporcionava uma explicação. Achava tudo
muito etéreo. Acho que era o contrário daquilo que havia
sentido quando do estudo da semiologia e propedêutica na
faculdade. Além disso, logo dei início ao internato em cirurgia geral no Hospital Marcílo Dias.
Então, você ficou dividido entre uma coisa e outra?
Sim, mas naquele momento a coisa pendia para a cirurgia.
Os resultados com a acupuntura eram incontestes, eu já
os havia observado em mim mesmo, mas alguma coisa
continuava faltando para que eu pudesse me deixar levar
por ela. Continuei cursando acupuntura no Hannemaniano
enquanto fazia o internato. Concluí o curso de medicina e
de acupuntura juntos, ao final de 1980. Em seguida, iniciei
a residência em cirurgia geral no Hospital da Beneficência
Portuguesa.
E o quê aconteceu para você dar uma guinada em direção
a acupuntura?
Resolvi ir a um congresso de acupuntura em Recife. O Dr.
Gustavo Sá Carneiro havia chegado da China e promovia o
evento. Fiquei entusiasmado e tive a ideia de ir verificar in
loco como a coisa se dava, justamente para tomar um rumo.
Escrevi ao adido cultural da China em Brasília e solicitei uma
Massagista de rua - Pequim, 1982
Alcio (centro) e o grupo de
estudantes multinacionais do curso
de acupuntura - Pequim, 1982
entrevista. O sujeito me recebeu muito bem, com grande
cordialidade e todo o protocolo chinês que eu futuramente
iria conhecer muito melhor, a conversa ao redor de uma
xícara de chá. Mas o homem não tinha nada a me dizer sobre
a possibilidade de estudar na China. Passei quase todo o
tempo da entrevista tentando auxiliá-lo com a tradução de
palavras de um romance que ele estava lendo (risos)
Então não adiantou muito? Em que ano foi isso?
Mais ou menos, deixei uma carta com ele e fui embora.
Parecia que não ia dar em nada. A China era algo misterioso
e hermético para nós aquela altura. Foi no ano de 1982.
Funcionou?
Sim, meses depois recebi uma carta vinda diretamente
de Pequim, do Centro de Treinamento em Acupuntura,
Formatura do curso de acupuntura - Pequim, 1982
Instantâneo de rua: pai e filho em frente à
Cidade Proibida - Pequim, 1982
Pequim, 1982
Xangai, 1987
Sala de aula: curso avançado de
acupuntura - Xangai, 1987
Diretor Jian e Alcio no curso avançado
de acupuntura - Xangai, 1987
vinculado a Academia de Medicina Chinesa. Dizia que eu
havia sido aceito para participar de um curso com duração
de três meses, em Pequim.
Você não ficou espantado?
Claro, mas ao mesmo tempo entusiasmado com a
possibilidade. Eu cresci escutando as estórias que meu
avô Alfredo contava de quando havia estado na China, no
ano de 1956, antes do meu nascimento. Ele havia chefiado
uma comissão de juristas convidados pelo governo Chinês.
Ficaram vários dias e percorreram muitas cidades. Ele me
contava com riqueza – e a verve de escritor, que ele também
era, as passagens interessantes e as curiosidades do povo
chinês. De modo que a China sempre me foi de alguma
forma familiar.
Mas em 1982, muita gente me aconselhou a não ir,
imaginando que eu ficaria marcado por estudar em um país
comunista durante a ditadura militar. Mas fui, jovens são
muito destemidos.
E como foi a experiência na China?
Foi novamente uma epifania, semelhante aquela das aulas
de semiologia e propedêutica. O entendimento de inúmeras
coisas sobre as quais me debatia tornaram-se claras. Por trás
de um aparente misticismo que cercava a acupuntura pude
entender que havia um pensamento, uma racionalidade
implacável que unia as pontas dispersas do conhecimento
que eu tinha até aquele momento. Era realmente o que
eu buscava, mas não fazia ideia que existisse. Além disso,
a possibilidade de trabalhar diariamente nos hospitais
chineses, o dia-a-dia com os pacientes, poder praticar a
acupuntura, me proporcionou um salto muito grande com
relação ao que eu antes havia conseguido.
E depois, como foi?
Depois dessa temporada de mais de quatro meses por lá
retornei ao Brasil. O entusiasmo era grande e eu queria
mostrar o quê havia aprendido. Comecei a atender em um
pequeno consultório em Copacabana e, por indicação de
um colega que também fazia acupuntura, me juntei a Clínica
de Dor da UERJ dirigida pelo Professor Carlos Telles.
A acupuntura começou logo a fazer sucesso entre os
pacientes, que se beneficiavam do tratamento, e se mostrava
uma alternativa importante para o tratamento da dor crônica.
Tínhamos fila de gente para tratar.
Logo alguns colegas médicos organizaram um grupo para
aprender acupuntura e passei a dar aulas particulares para
eles. Mais tarde passei a reunir-me com colegas da época
do curso do Instituto Hannemaniano. O material do curso na
China havia mudava o modo de examinar porque oferecia
muito mais recursos e acurácia para o diagnóstico, na
composição de síndromes, e satisfazia a exigência de quem
tem formação médica. Resolvemos então nos preparar
para voltar a oferecer um curso de acupuntura, já que o do
Hannemaniano havia acabado. Desse encontro surgiu o
Instituto de Acupuntura do Rio de Janeiro.
Como foi essa experiência?
O trabalho desse pequeno grupo de seis médico (Orlando
Gonçalves, Roberto Boohen, Ronaldo Azem, Ricardo Calmont
e Alex Botsaris) teve um efeito espetacular. Começamos a dar
o curso de pós-graduação com 3 anos de duração em uma
sala alugada de um colégio em Botafogo. Logo em seguida
alugamos uma casa perto onde viemos a instalar salas de
aula e ambulatórios. Fazíamos um atendimento com preço
menor que os dos consultórios e também mantínhamos um
ambulatório com pagamento simbólico. Foi um período de
efervescência. Éramos obrigado a fazer provas de seleção
a cada ano, pois recebíamos cerca de duzentas inscrições
e havia incapacidade física que limitava a somente setenta
inscritos. Em pouco tempo, tínhamos cerca de duzentos
alunos frequentando o IARJ, gente de alto nível.
Adiante, criamos um modelo de curso com aulas nos finais
de semana para que alunos de outras cidades e estados
pudessem participar. Tínhamos muito trabalho, mas a
motivação era enorme.
E o IARJ, como se desenvolveu?
Como disse, o curso durava três anos e tinha um programa
linear, anual. Certo dia, tive a ideia de propor aos colegas
a divisão em cadeiras, como bases da medicina chinesa,
canais e colaterais, clínica em medicina chinesa e etc.
Todos gostaram e essa mudança nos deu flexibilidade
inclusive para criar novos cursos como os de massoterapia e
fitoterapia chinesa, em um sistema de módulos. A base do
conhecimento médico chinês é pertinente a todos os seus
ramos e técnicas de tratamento, portanto, era lógico que a
partir da base pudesse ser agregado outros conhecimentos
específicos.
Vocês davam aula teórica e prática, prestavam atendimento
médico e o quê mais?
Mantínhamos um jornal regular mensal. Era uma forma de
divulgar nosso trabalho e falar dos problemas e virtudes do
nosso dia a dia. Organizamos seminários e congressos. Enfim,
fazíamos um trabalho em múltiplas áreas, no atendimento,
no ensino e na divulgação. Além disso, buscávamos o
Inauguração da sede do IARJ em
Botafogo - 1984
reconhecimento legal da acupuntura.
Parece que você tem formação em obstetrícia e ginecologia,
quando foi que ela se deu?
Por volta de 1994 passei a frequentar a já extinta Maternidade
Clara Basbaun, localizada então na Rua da Passagem, perto
do IARJ. Um colega de faculdade, Paulo Marcomini, era
o chefe do plantão e me chamou. Fui e voltei a operar,
coisa que havia ficado no passado. Nessa mesma época a
Universidade Gama Filho criou o curso de pós-graduação na
área de GO. As aulas teóricas ocorriam na Clara Basbaun
e o Coordenador do curso, Professor Bartholomeu França
Câmara me convidou a participar. Planejamos um trabalho
de pesquisa utilizando a acupuntura para indução do parto.
Era uma área fascinante para a aplicação e pesquisa em
acupuntura. Tudo se encaixou maravilhosamente. Esse
trabalho levei para Pequim em 1997, apresentando no
congresso mundial da especialidade.
Apresentação no 10º Congresso
Mundial da World Federation of
Acupuncture and Moxibustion
Societies - Pequim, 1997
Você pensava em mudar de área de atuação?
Não propriamente. Eu gosto de fazer muitas coisas e tenho
interesses muito variados. Mas, como disse, a cirurgia me
encantava. Além do quê, via na obsterícia e ginecologia um
caminho para onde o ensino da acupuntura deveria se dirigir.
Pensava que o IARJ deveria criar ao menos grandes áreas
de atuação para que houvesse um aprofundamento técnico
e campo para o treinamento especializado. Eu imaginava
que o caminho deveria ser a aproximação maior entre os
conhecimentos da medicina chinesa e da medicina ocidental.
Mas isso não implicaria no problema da especialização da
medicina ocidental, tão questionado ?
Creio que não. Os instrumentos da medicina chinesa nos
levam a visão global, holística. Entretanto, não é possível
negar que o conhecimento médico ocidental se tornou vasto
e incapaz de ser dominado de forma geral. Há necessidade
de maior conhecimento em áreas específicas, ainda que o
olhar sobre o paciente seja amplo.
E o projeto não vingou?
Chegamos a criar no IARJ a clínica da mulher que canalizava
algumas situações específicas da área, mas não chegamos a
criar uma especialização.
E o seu livro sobre a mulher, fale sobre ele.
Pois então, surgiu exatamente dessa experiência. Na época,
eu procurava tudo o que houvesse sobre a saúde da mulher
na medicina chinesa. Foi então que surgiu o Sete Vezes
Mulher, baseado na interpretação dos postulados sobre as
fases da mulher encontrados no Huang Di Nei Jing, o livro
mais antigo da medicina chinesa.
E como foi a receptividade a ele?
Muito boa, teve duas edições e está esgotado. Estou
trabalhando nele, fazendo atualizações e pretendo fazer
uma nova edição.
O quê você acha da acupuntura como especialidade
médica?
Acho que foi sem dúvida um grande avanço, embora o
processo tenha sido traumático e não tenha criado uma
normatização efetiva para a atuação na área. Participei no
início desse processo e era da opinião de que deveria terse tentado, naquela ocasião, uma posição que atendesse a
médicos e não médicos. Quando ainda não eram tantos os
profissionais envolvidos.
E como isso se daria?
Creio que alguns profissionais não médicos, claramente
habilitados até aquela data, deviam ter tido o reconhecimento
de suas práticas e sido regularizados, talvez com a exigência
de um vínculo a um médico. Depois daquela data, seria só
para médicos. Infelizmente, não foi isso que ocorreu.
E por que a ideia não evoluiu?
Você sabe que sempre há opiniões divergentes e à época,
havia ainda uma disputa pela hegemonia entre a duas
associações médicas de acupuntura. O reconhecimento da
especialidade não andava dentro da Associação Médica
Brasileira por causa dessa briga. A AMB não reconheceria
a acupuntura se persistisse a disputa. Nesse ponto, o
congresso que realizamos em Angra dos Reis foi um
momento importantíssimo, que permitiu o acordo. Logo em
seguida a AMB reconheceu a especialidade.seguida a AMB
reconheceu a especialidade.
VI Congresso Brasileiro
de Acupuntura Angra dos Reis, 1997
Você falou que retornou a China em 1997, depois de tantos
anos?
Em realidade, entre 1982 e 1997 mantive uma estreita
relação com a China. Depois da primeira viagem, retornei
à China em 1987, como bolsista da CNPq, para um período
de estudos, dessa vez para Xangai. Quando voltei tive a
ideia de organizar grupos de alunos para irem ver e praticar
acupuntura em solo Chinês. Sendo assim, desde 1991, todos
os anos, levava brasileiros para viagem de estudo com três
semanas de duração. As viagens se tornaram um sucesso. A
última foi em 1997.
3º grupo de brasileiros
em viagem de estudos
à China - Pequim, 1994
E por que parou?
Duas razões. Primeiro, significava um afastamento por
período longo e sacrificava a possibilidade de férias. Depois,
porque muitos colegas gostaram da ideia e passaram
também a organizar grupos. Vamos dizer que o mercado
ficou inflacionado (risos). O desafio já tinha sido realizado.
E hoje, como você enxerga o futuro da medicina chinesa e
em particular a acupuntura?
Cada vez mais temos que caminhar para uma visão total
do indivíduo. Falta ainda uma racionalidade que consiga
integrar elementos da medicina energética, e aqui não só
a chinesa, mas também a Ayurveda indiana, por exemplo,
com a biologia. Assim poderemos oferecer mais orientações
terapêuticas e identificar melhor o processo de adoecimento,
evitando desaguar na doença degenerativa, quando se torna
mais difícil e custoso o tratamento. A pesquisa de base tem
mostrado que alguns processos gerais do organismo, como
o inflamatório, está na raiz de muitas doenças. É por isso
que se torna importante a identificação e atuação antes que
esse processo determine alterações celulares. Dentro desse
contexto, acho que a medicina chinesa tem muito a contribuir
não só com seus métodos de tratamento, mas também com
sua visão de harmonia e equilíbrio do organismo. Cada
vez mais temos que integrar conhecimentos para poder
progredir. Acho que esse é agora o desafio.
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