ANTROPOLOGIA O HOMEM ANATOMIZADO No texto que traduzimos abaixo, de David Le Breton, sobre um dos aspectos da antropologia do corpo, com referência histórica, não existe ainda a consciência de ser uma pessoa de uma ou outra forma ou de ter tal ou qual corpo. Claro, estamos nos referindo ao início, ao nascimento da anatomia como ciência médica, a partir do século XIV, e mais especificamente desde André Vesale no século XVI. Foi quando começam as dissecações de “cadáver humano fresco”, oficialmente, sobretudo de indigentes, loucos e condenados. O corpo ou cadáver humano é posto a nu e dissecado, anatomicamente, para estudo e progresso das práticas médicas, o que causa um distanciamento entre o ser e o ter um corpo. Ora, passados cerca de setecentos anos, o corpo humano adquiriu um status, uma posição que ultrapassa o próprio ser, ou se confunde com ele: a pessoa se identifica mais com o seu corpo do que com o que ela realmente é como pessoa ou ser humano, de acordo com a lógica da estética corporal dominante. Um exemplo: ter um corpo bonito, sarado, saudável, pelos padrões estéticos dominantes ou vigentes, significa ter um capital pessoal, passaporte para o sucesso e a ascensão social. Daí a valorização de determinadas partes da anatomia, da mulher e também do homem, em busca do corpo ideal. Bom, há uma história nisso tudo e o texto de Le Breton lança luz sobre esta temática, atualizando alguns aspectos da antropologia do corpo. Os parênteses em negrito no texto são nossos, para tornar mais claro algumas passagens ou conceitos. Os outros parênteses são do autor do texto, Le Breton. “L’homme anatomisé”, de David Le Breton: A constituição do saber anatômico na Itália do quattocento (século XIV), nas Universidades de Pádua, de Veneza, e de Florença, essencialmente, marca uma mutação antropológica surpreendente; constitui um indício fundamental na mudança de mentalidade que anatomiza o individuo e projeta uma luz particular sobre o corpo humano. As primeiras dissecações oficiais no início do século XIV, depois a banalização destas práticas nos séculos XVI e XVII na Europa, representa um dos momentos chaves do individualismo ocidental. Dentro da ordem do conhecimento, a distinção feita entre o corpo e a pessoa humana traduz simultaneamente uma mutação ontológica decisiva (que se refere ao conhecimento do ser). É a invenção do corpo, na episteme ocidental (o mesmo que na ciência do ocidente), resultando em diferentes procedimentos metodológicos. Antes (quer dizer antes das dissecções anatômicas), o corpo não era uma singularidade do sujeito, no qual ele tinha ou emprestava um rosto. O homem, nesse caso, era indissociável do seu corpo, ele não estava ainda submetido a este estranho paradoxo de ter um corpo. Durante todo o período da Idade Média as dissecações estão interditas ou proibidas, impensáveis mesmo. A perfuração ou violação do corpo por meio de instrumentos seria uma violação do ser humano, fruto da criação divina. Seria também atentar contra a pele e a carne do mundo. No universo dos valores medievais, antes da renascença ou renascente, o homem é representado como sendo o universo, ele condensa o cosmo. O corpo não é isolado do homem ou do mundo (ambos se confundem, portanto): ele é o homem e ele é, na sua escala, o cosmo. Com os anatomistas, e sobretudo a partir do livro de André Vesale (Andreas Vesalius – 1514/1564 – considerado o “pai da anatomia moderna”), “De corporis humani fabrica” (1453), uma distinção implícita nasce na epistemologia ocidental, ou na ciência ocidental, entre o homem e seu corpo. Lá, na obra de Vesale, está a fonte do dualismo contemporâneo que mostra, de um modo igualmente implícito, o corpo isoladamente, diferenciado do rosto que o identificava. O corpo é associado ao ter e não mais ao ser. Mas as ambiguidades que perpassam as obras de Vesale ilustram de forma surpreendente a dificuldade desta passagem, para o homem anatomizado. As primeiras dissecações praticadas pelos anatomistas com finalidade de formação e de conhecimento são testemunhas de uma mudança considerável na história das mentalidades ocidentais. Com os anatomistas, o corpo para de se esgotar inteiramente na significação frente à presença humana. O corpo fica sem peso, dissociado do homem, ele é estudado por ele mesmo, como realidade autônoma. Ele cessa de ser o signo irredutível da imanência do homem e da ubiquidade do cosmo (quer dizer essência do homem e presente em toda parte). Se nós definimos o corpo moderno como o índice de uma ruptura ou corte do homem consigo mesmo, de uma ruptura entre o homem e os outros, e de uma ruptura entre o homem e o cosmos, nós encontraremos pela primeira vez estes diferentes momentos na aventura iconoclasta dos primeiros anatomistas (nesse caso os anatomistas que destruíram os mitos fundamentados no cristianismo medieval), e significativamente a partir de André Vesale. Entretanto, esta distinção operada entre a presença humana e o corpo, concedendo a este último o privilégio de ser cientificamente investigado de modo específico, indiferentemente de outra referência (ao homem, à natureza, à sociedade...) não é senão seu período de nascimento, ainda assombrado por um longo tempo pelas representações anteriores, como ilustram de maneira estranha os desenhos anatômicos da grande obra de Vesale, ou aqueles de numerosos tratados de anatomia dos séculos XVI e XVII. “Em princípio, escreve Roger Caillois, sobre este tema, não deveria existir imagens mais sujeitas a ser estritamente documentárias, já que neste domínio toda fantasia é culpável e perigosa” (Citado pelo autor: Roger Caillois, no coração do fantástico, in coerências aventureiras, Gallimard, p. 166.). A objetividade esperada para a figura anatômica, desde um longo tempo, é acrescida com os suplementos saídos de um imaginário inquietante, às vezes mesmo torturante (quer dizer que a representação figurada da anatomia humana é fantasiosa, de acordo com o imaginário da época; ver, para confrontar, as figuras anatômicas de Leonardo da Vince, 1452 – 1519, inclusive com seu famoso “homem vitruviano”). A dissecação aplicada ao homem não é uma experiência desconhecida antes da Renascença. Raramente, sem dúvida, mas parece que os antigos ou sábios da antiguidade greco-romana a praticaram. Talvez Galeno (Cláudio Galeno ou Galeno de Pérgamo: 130 d. C – 200 d. C.) tenha aberto alguns cadáveres. No entanto, Vesale, irônico, diz que as retificações acrescentadas na sua obra por uma prática mais regular da anatomia humana, “demonstram claramente que os antigos nunca praticaram a dissecação de um cadáver humano fresco. Foram induzidos por isso mesmo ao erro por suas dissecações de macacos (admitamos que eles tomassem cadáveres humanos dissecados e preparados para um exame de ossos). Isto levou indubitavelmente os antigos médicos ou sábios ao erro nas dissecações de seres humanos. E mais, poderia se encontrar entre eles mesmos conclusões errôneas no que concerne aos mesmos macacos” (A. Vesale, La fabrique du corps humain, 1987, p. 37.). Até o século XVI, o conhecimento interno, invisível do corpo é fornecido pelos comentários feitos em torno da obra de Galeno. Mesmo Vesale, a despeito de seus golpes contra Galeno, não deixa de ser influenciado por ele em alguns pontos. De fato, os tratados de anatomia anteriores ao século XVI se apoiam mais sobre a anatomia dos porcos, considerados então como pouco diferentes ou distanciados dos homens. Se o corpo humano é intocável, é que o homem, fragmentado em comunidade e no universo, é intocável. Em 1300, o papa Bonifácio VIII se insurge contra os cruzados que fazem queimar os corpos de altas personalidades mortas em terra estrangeira, para transportar mais comodamente o esqueleto até sua terra natal, para sua inumação (Ver o caso do rei francês Luiz, Luiz IX -1214 – 1270 - depois São Luiz, que ao morrer numa cruzada foi desossado, embebido em vinho e transportado para a França.). Outrora isso significava que o homem é indissociável do seu corpo, que não se poderia distinguir um do outro. Mas Bonifácio VIII, na sua Bula De Sepulturis, condena com vigor a redução do cadáver ao estado de esqueleto, em nome do dogma da ressureição. O cadáver não pode ser desmembrado, estragado, dividido, sem comprometer a condição de salvação do homem, que ele encarna para sempre. Prova também, mas de outra forma, que o corpo é o sinal do homem. Fazer o corpo em pedaços é quebrar a integridade humana, se arriscar a comprometer sua oportunidade na perspectiva da ressureição. O corpo é o registro do ser (o homem é seu corpo, mesmo se ele é também outra coisa), ele ainda não é feito para o registro do ter (um corpo, eventualmente distinto de si). Mas sobre a égide de um encadeamento de fatores sociais, econômicos, políticos, demográficos, etc., em que o detalhe das circunstâncias ultrapassa o quadro deste estudo, a trama cultural se transforma, as tradições populares são combatidas por camadas dirigentes, a influência da teologia sobre os espíritos se desfaz pouco a pouco, abrindo a via para uma secularização do olhar sobre o mundo e a uma busca de racionalidade que continua até os dias de hoje. A partir de Galileu (Galileu Galilei, 1564 – 1642), os lógicos intelectuais se deparam com uma constelação de domínios, pela camada de sábios dos séculos XVI e XVII, e não cessam de alargar suas progressões. Indo ao encontro ou em confronto com as tradições populares e as posições cristãs, a racionalidade encontra seu caminho. E a abertura dos corpos terá jogado um papel não desprezível na dinâmica da civilização. Com Vesale, uma antropologia de outra ordem se anuncia, que gera uma cesura, um corte epistemológico (ainda que não totalmente consumada) com aquela anterior, fazendo do homem (e portanto de seu corpo) uma parcela/partícula do cosmo. A anatomia vesaliana é um pouco afastada daquela que caracteriza nos dias de hoje as ciências biomédicas, mas isto não é, para nós, o essencial. A ruptura epistemológica de Vesale torna possível o pensamento moderno do corpo, mesmo se ele não foi mais do que um inovador. REFERÊNCIAS: LE BRETON, David. Anthropologie du corps et modernité. Presses Universitaires de France, Paris, 2000, pp.47 a 50. SOUZA, Antonio. Blog IC FAMA – A Iniciação Científica da FAMA na Web. In 24 de fevereiro de 2014.