CRUZEIRO NA PATAGÔNIA Da Baía Wulaia, uma impressionante visão das montanhas geladas da Patagônia. O navio aguarda a volta da expedição UM CRUZEIRO NO FIM DO MUNDO O capitão desliga os motores, o navio para. Minutos depois, os botes saem com os passageiros para o Cabo Horn, o ponto mais austral do planeta. Mais um capítulo desta aventura na Patagônia está começando TEXTO GERALDO SILVEIRA | FOTOS RICAR DO ROLLO 32 Dezembro 2009 Dezembro 2009 33 CRUZEIRO NA PATAGÔNIA 112 vezes C abo Horn A primeira parte do cruzeiro, de quatro noites, de Punta Arenas a Ushuaia, na Argentina, levou apenas 54 passageiros, de 11 países. Rodrigo Fuentes, o chefe da expedição, minimizava a pequena ocupação – o navio tem capacidade para 137 passageiros – e procurava enfatizar o lado positivo. “É um novo conceito de cruzeiro, que une aventura e cultura, e vem crescendo nos últimos dez anos.” Já no segundo trecho, o número quase dobrou. Foram 92 passageiros, de 12 nações, que embarcaram em Ushuaia para fazer a rota inversa, um dia mais curta. Assim, a ocupação subiu para 70%, que tem sido a média dos últimos anos, de setembro a abril. Com dois cursos superiores de Turismo, experiência como guia de 1997 a 2005, nesse mesmo roteiro, Rodrigo é o responsável pela de tudo: cuida do embarque nos botes, de toda a segurança nas várias excursões, ministra palestras dentro e fora do navio, e é poliglota. No total, incluindo os guias, são 48 tripulantes. Esta foi a 112ª viagem do Via Australis, que fez sua estreia em janeiro de 2006. O público, majoritariamente europeu, é formado, em sua maioria por casais na faixa etária dos 45 aos 55 anos. “ São viajados, mas calouros nesse tipo de cruzeiro. Chegam informados sobre o roteiro, conhecem a história da região e também já leram sobre o Cabo Horn e outros pontos da viagem,” conta Rodrigo. 34 Dezembro 2009 A LUZ DO SOL entrou tímida pela fresta da cortina. Aos poucos, a cabine foi se iluminando, tirando da cama o mais renitente dorminhoco. Antes das 6 e meia, todas as cortinas se abriram para um dia que se prenunciava especial. O Via Australis já estava parado, só no embalo do mar tranquilo, muito perto da Ilha Magdalena, onde se antes, em Punta Arenas, no Chile, e terminaria também ali. Com uma temperatura de 3 graus, “São viajantes informados, todos ávidos por novas experiências” O último dia, na Ilha Magdalena (acima ), foi perfeito. Ao lado, a Baía Ainsworth, com suas águas e plantas exclusivas e a preguiçosa colônia de elefantes-marinhos. Abaixo, passageiro admira as belas paisagens patagônicas céu azul sem nuvens, os 92 excitados passageiros tomaram os botes Z odiac e foram conduzidos para a ilha, paraíso dos pinguins magalhânicos. Era o último contato com uma paisagem, uma fauna, demorar a sair da memória. As geladas Patagônia e Terra do Fogo, com suas centenas de canais e ilhas, que formam o ponto mais austral do globo e maiores navegadores, era o sonho da maioria dos passageiros. Para muitos, a viagem de uma vida. E motivos para buscar essa terra misteriosa não faltavam, principalmente para os europeus, que vêm literalmente exclusivas, de grandes espaços e silêncios, Mas podem aproveitar também para comemorar o aniversário de meio século de vida, como a espanhola Angeles Novás; os 25 anos de casamento, como os sulafricanos Colman e Greta, ou ainda conhecer a parte extrema do próprio país, como o jovem casal chileno L uís e Karina, que mora em Punta Arenas. Viajantes ávidos por novas experiências, cultos, bem informados, de várias partes do mundo, não deixaram, em momento algum, que o barco se transformasse numa Torre de Babel, dividida em guetos. Ao contrário, foi uma harmoniosa e divertida confusão de sotaques. As mesas para as refeições tinham formações multirraciais no início, até consolidando, o que provocava novos desenhos no restaurante. Duas amigas chinesas de Hong Kong, um casal francês de Antibes e outro sul-africano, que mora em Z urique, podiam ser encontrados num bate-papo alegre. De outro lado, espanhóis e chilenos trocavam experiências durante alguns dias, para depois se espalharem por outras mesas e iniciarem novas amizades. O inglês predominava, muitas vezes enferrujado, mas o esforço para se estabelecer uma conversação foi sempre admirável. Novembro Dezembro 2009 35 CRUZEIRO NA PATAGÔNIA Agenda cheia 1 2 º dia – Saída de Punta Arenas às 20 horas. º dia – Pela manhã, desembarque na Baía Ainsworth, com vista para o Glaciar Marinelli. Depois de conhecer a colônia dos preguiçosos elefantesmarinhos. À tarde, navegação em bote, por cerca de 45 minutos, visitando a ilhota Tucker, onde existem colônias de pinguins magalhânicos e de aves nativas. 3 º dia – À tarde, desembarque próximo ao Glaciar Pia. Depois de uma breve caminhada por uma encosta rochosa, uma visão panorâmica da geleira, com direito a alguns espetaculares desmoronamentos. A partir das 18h, entrada na Avenida das Geleiras, no Canal de Beagle. 4 E o melhor: a cada dia, uma descoberta. Enquanto as cordilheiras nevadas acompanhavam ininterruptamente o Via Australis, oferecendo paz e beleza, as excursões em terra eram tratadas como eventos especiais, mesmo que consistissem numa simples navegação para observar uma pequena colônia de pinguins. F oi assi m n a i l h ota T u c k er. A an si edade para ver de perto as graciosas aves era visível nos passageiros. Mas quem imaginava aquela imensidão de animais espremidos A Marcha das Pinguins , com certeza. Havia só 4 mil na ilha, espalhados por toda a área, em bandos que não passavam de 20. Mas o espetáculo estava garantido: eles corriam, brincavam na água, escalavam rapidamente o charme. Em compensação, a visita à Ilha Horn, onde está o cabo mais famoso do mundo, arrancou suspiros. No livro de visitas do farol, parada obrigatória do passeio, a francesinha Audre Martinic anotou: “ Um sonho realizado”. Ela e outras dezenas de visitantes. E olhe que não há praticamente 36 Dezembro 2009 “ Na P atagônia, manda a natureza; nós nos adaptamos” A Baía Ainsworth ( acima ), perto de glaciares e da cordilheira nevada, é um posto de observação privilegiado. Ao lado, os graciosos pinguins magalhânicos da Ilha Magdalena nada a se ver na ilha, a não ser o farol, a pequena capela e o Monumento ao Albatroz, uma escultura de menos de 20 anos, que homenageia os navegadores. Entretanto, a sensação de pisar no ponto mais extremo do Hemisfério S ul, cenário de tantos atos heroicos e tragédias, obriga história, a inesperada solidão diante de uma natureza única e opressiva atingem a todos. Mesmo aqueles que parecem mais preocupados com o melhor ângulo da foto. Na véspera da ida ao cabo, nem mesmo a tripulação garantia o sucesso da empreitada. Tudo iria depender das condições climáticas, totalmente ingovernáveis na região. Mas tudo deu muito certo. S em as terríveis ventanias que assolam a ilha, o capitão Oscar S heward pôde contornar o Cabo Horn pela terceira vez na história do Via Australis, para surpresa e encanto dos viajantes, que puderam admirá-lo bem de perto das amplas janelas do navio. O chefe da expedição, Rodrigo Fuentes, chileno de 38 anos que navega na região desde os 25, numa temporada anual de oito meses, tinha a explicação na ponta da língua: “Na Patagônia, manda a natureza; nós nos adaptamos”. º dia – Às 7 horas, desembarque na Ilha Horn, da Península Antártica. À tarde, passeio na Baía Wulaia, local onde o capitão Robert Fitzroy e Charles Darwin tiveram contato com os índios yamanas, no século 19. 5 º dia – Desembarque pela primeira etapa do cruzeiro. À noite, novo grupo embarca para o roteiro de volta, de três dias. Palestra sobre o Cabo Horn fecha o dia. 6 º dia – Visita ao Cabo Horn, onde há apenas um posto da Marinha, um farol, uma pequena capela e o Monumento ao Albatroz, homenagem aos navegadores que escreveram a história da região. 7 º dia – Pela manhã, palestra sobre o Estreito de Magalhães. Alacalufe e parada em frente ao imponente Glaciar Piloto, com sua estranha e hipnótica cor azul. 8 º dia – Às 7h, desembarque na Ilha Magdalena, onde vive uma colônia de 170 mil pinguins, além de cormorões, gaivotas, skuas, carancas e caiquenes. Retorno ao barco e chegada a Punta Arenas às 11 horas. Fim da viagem. Dezembro 2009 37 CRUZEIRO NA PATAGÔNIA A evolução na prática 1488 O português Bartolomeu Dias contorna o Cabo da Boa Esperança, que liga o Oceano Atlântico ao Índico 1492 Cristóvão Colombo descobre a América. Dois anos depois, Portugal e Espanha assinam o Tratado de Tordesilhas, que divide entre as duas potências ”as terras descobertas e a descobrir”. 1520 O português Fernão de Magalhães, a serviço da Coroa espanhola, descobre a passagem que liga os oceanos A O estreito ganha seu nome. O navegador morre na sequência da viagem. 1578 O corsário inglês Francis Drake navega pela Patagônia e Terra do Fogo e se aproxima do Cabo Horn, que somente seria contornado em 1616 pelo holandês Jacob le Maire. 1579 O espanhol Pedro Sarmiento Gamboa comanda expedição ao Estreito de Magalhães, mapeia a região e, em 1583, funda a colônia Rei Don Felipe, com 300 homens. Obrigado a voltar à Espanha, deixa a vila sem comida. Quando regressa, todos estão mortos. Em 1587, Thomas Cavendish passa pela região, vê as ruínas e lhe dá novo nome: Porto da Fome. 1828 O capitão inglês Robert Fitzroy captura quatro nativos na Terra do Fogo e leva-os à Inglaterra para serem educados. Em 1831, já acompanhado do naturalista Charles Darwin, retorna e devolve os nativos à terra. Sua tentativa de civilizá-los fracassou. 1836 Termina a viagem de Darwin. Foram quase cinco anos de estudos e pesquisas na América do Sul que o levariam a publicar A Origem das Espécies, em que apresenta a famosa Teoria da Evolução, base da biologia moderna. 38 Dezembro 2009 “A Avenida das Geleiras encheu os olhos. A cada dez minutos, um novo glaciar” Os botes se aproximam do Glaciar Pia, o primeiro a ser visitado. No mar, blocos de gelo que se desprenderam da geleira. Mais tarde, alguns deles estariam abastecendo o bar do navio, tornando os drinques ainda mais especiais S e o Cabo Horn levou a momentos de meditação, os glaciares encheram o navio de exclamações. A festa foi completa, em todos os sentidos, quando o barco entrou na Avenida das Geleiras, no Canal de Beagle. A cada dez minutos, um novo glaciar se apresentava, com tamanhos e cores diferentes, gastronômico no navio. Com exceção do Romanche, o primeiro, os demais foram batizados com nomes de países, merecendo um acompanhamento típico. Quando passou o Alemanha, salsicha e cerveja para todos; no França, champanhe e queijos; no Itália (o maior de todos, com 1200 metros de altura), vinho e pizza, e no Holanda, batata e cerveja. Felizmente parou por aí, embora o visual tenha sido o mais espetacular de todo o cruzeiro. S em programas em terra, atividades culturais no barco. Documentários eram exibidos e os guias se revezavam em região. E sempre diante de um grande e interessado público. O Cabo Horn, o Estreito de Magalhães, os pinguins, as aves bem conduzidos pela tripulação. O carancho negro, predador nativo da Patagônia e um dos personagens da palestra sobre aves, deixou as senhoras preocupadas. Expulsos dos ninhos pelos pais quando jovens, eles se reúnem em gangues e saem aprontando. No ano passado, esses delinquentes juvenis simplesmente roubavam os chapéus das mulheres. Nesse cruzeiro, porém, nenhuma queixa de assalto foi registrada. Dezembro 2009 39 Ao lado, Claude e Yvette. Abaixo, Aliste e Maité e as brasileiras Maria das Graças e Mércia Bom humor a bordo Se os europeus representam 70% da ocupação do cruzeiro, isso se deve à presença espanhola. O advogado Jose Aliste, 56 anos, por exemplo, veio de Madri com a mulher, Maité. Advogado criminalista, Aliste já visitou mais de cem países, 47 deles exclusivamente para caçar, sua grande “ O navio é pequeno, perfeito para uma boa convivência ” O navio passou bem perto do Cabo Horn (abaixo coloridas Ushuaia e Punta Arenas ( ao lado ) são os portos de partida para paisagens incríveis, como as do Glaciar Piloto, e para ver a exclusiva vegetação patagônica na Baía Ainsworth ( abaixo, ao lado ) Q uem não queria palestras, tinha outras opções. Nada agitadas, é claro, para desapontamento de alguns. Bingo, trívias, cursos expressos de nós de marinheiro e vinho chileno, na última noite, a rifa da bandeira e leilão da carta de navegação utilizada na viagem. Este último evento provocou momentos de suspense e emoção. No primeiro cruzeiro, o gigante sul-africano Colman venceu a disputa e levou a prenda por 140 dólares. No segundo, combate dólar a dólar, até que ofereceu imbatíveis US $ 170. Mas para muita gente a melhor atividade como rei pela dupla Eduardo e Emílio. viagens. “ Gosto de caça grande, como rinocerontes, elefantes, ursos. Estou sempre no Alasca e na África”, explica. E garante que não sente receio algum diante de tantos animais ferozes. “Mais perigosos são meus clientes colombianos e russos”, diverte-se. Já para o casal Meyer, da França, nada como os grandes espaços, a presença intensa da natureza. Claude, 82 anos, e Yvette, 78, passaram 25 dias na América do Sul, visitando Machu Picchu, o Lago Titicaca e o Deserto de Atacama, antes de chegar à Patagônia. Juntos há 54 anos, os dois médicos moram em Antibes, na Côte d’ Azur. O cruzeiro deixou-os encantados: “O barco é pequeno, perfeito para um bom convívio. As excursões foram muito bem organizadas,” elogia Yvette. Já Claude gostou de outro aspecto da viagem: ”Nunca tinha estado em um cruzeiro com open bar ”, diverte-se, com um copo de pisco sour na mão. Brasileiros são raros, mas aparecem. Neste, as representantes eram mulheres. A cardiologista Maria das Graças Cavalcanti Bandeira, 57 anos, de Natal, e a amiga Mércia Bezerra, 70 anos, esteticista, de Fortaleza, escolheram a viagem para a Patagônia como prêmio de consolação. “Na verdade, tínhamos planejado ir à Austrália e à Nova Zelândia, mas a demora para obtenção do visto nos fez desistir”, conta. O plano “B” dividiu as amigas: enquanto Maria das Graças queria ir para o Deserto de Atacama, “Para não ter briga – viajam juntas Vamos do freezer para o grill’, brinca. 40 Dezembro 2009 Dezembro 2009 41 CRUZEIRO NA PATAGÔNIA “Muita paz e tempo total para natureza. O fim do mundo estava em nós” O frio não atrapalhou. Ao contrário. O sol predominou na maior parte da viagem, deixando o cenário mais espetacular. Assim, os passageiros puderam curtir à vontade a paisagem única da Patagônia não só pelos esplêndidos e variados drinques que preparavam, mas por espantar o frio, assim que terminavam os passeios nas geleiras. Os grupos eram recebidos antes do retorno ao navio com ofertas tentadoras e irrecusáveis: uísque, chocolate quente ou ambos? laro que as pedras de gelo vinham dos glaciares e deixavam o uísque ainda mais especial. E elas abasteciam o bar durante toda a viagem. Eduardo C de chileno, de 46 anos, que fez 92 dos 112 cruzeiros, diz que serve uma média de 150 drinques por dia, sem contar os não alcoólicos. Já o chileno Emilio Velásquez, 39 anos, foi o introdutor do calafate sour no navio. O drinque é na verdade um pisco sour, a caipirinha chilena, acrescido de uma porção de xarope de calafate, a planta emblemática da região. O certo é que o amplo salão no último concentrava a vida do cruzeiro. Ponto de encontro para conversas animadas e saídas para os passeios, palco das palestras e brincadeiras, virava também sala de leitura e posto de observação daquela paisagem intrigante e esplêndida na sua monotonia. S em internet, celular, TV e rádio – algo impensável nos dias de hoje, mas que não se dedicar à natureza e à introspecção. LP O 42 Dezembro 2009