GALERIA EDUARDO FERNANDES NEWMAN SCHUTZE Entre o ser e os outros A pintura parece ser uma forma diferenciada. Pintores estão para os demais artistas plásticos como a poesia está para a prosa. A pintura se pretende mais próxima da essência da obra de arte, por outro lado, o pintor contemporâneo lida com uma aura de extemporaneidade, como quem escrevesse em língua morta. Isto se dá por duas razões. Em primeiro lugar porque o nosso modo de ver as obras de arte é conseqüência da série de transformações que ocorreram desde o Renascimento até o século vinte, protagonizadas pela pintura. Também porque essas transformações levaram a uma implosão do espaço pictórico. No caminho de Jasper Johns, Robert Rauschenberg, Hélio Oiticica e Lygia Clark (cito os brasileiros que rapidamente perceberam o rumo das coisas), pintores trabalharam para justapor objetos do mundo real ao plano da pintura, questionando os limites entre a arte e a realidade. Logo a linguagem pictórica passa a valer também para trabalhos tridimensionais. Pintores transformam-se em artistas da instalação. Uma pátina antiga envolve o desenho e a pincelada. Mas a História está repleta de idas e vindas, retomadas e revisões. De algum modo ainda há lugar para a pintura plana depos do século vinte. Newman Schutze surge no momento dessa retomada. Ao longo dos anos 90, o jovem aprendiz que nasceu em Adamantina e cresceu em Marília lança-se profissionalmente com pinturas adquiridas pelo Sesc, exposições em Nova York e na Alemanha. Sua pintura não nasce pronta, faz-se no confronto entre uma vida interior pulsante e o estudo da produção contemporânea, entre o ser e os outros. A trajetória de Newman Schutze equivale ao desafio do artista contemporâneo, sair de um expressionismo ingênuo e tornar-se consciente de si e do seu trabalho. Nisso reside a universalidade da obra, para além da beleza individual dos quadros de Newman Schutze. Mais do que um pintor modernista, um pintor consciente. A consciência de si é o traço distintivo e a principal característica da arte contemporânea. Com a pintura não poderia ser diferente, a não ser que os pintores se pretendessem separados dessa categoria, o que valeria dizer que nenhuma pintura é contemporânea! Newman Schutze desmente essa posição. A exposição da Galeria Penteado em Campinas mostra dois momentos desse caminho, os desenhos em nanquim e a pintura a óleo. Existe nas duas formas de pintar uma aparente contradição que se revela como complementaridade. A fluidez das grandes pinceladas em nanquim por um lado e um certo construtivismo de gestos repetidos pelo outro. Mas se olharmos bem para as telas róseo-azuladas compostas por formas paralelas ou quadrados, fica claro que a inexatidão das formas não é circunstancial, mas deliberada. “Cada quadrado é único”, afirma o artista. De fato, sua pintura está mais próxima do lirismo de Paul Klee do que da precisão construtivista. Procure Fogo na Noite (1925) e Polifonia (1932), lá estão importantes referências para a pintura mais recente de Newman Schutze. A mística do mestre suíço não está no horizonte do pintor paulista. Mas a tensão entre a forma pura e o sentimento do mundo é muito semelhante. Em Klee, essa tensão é espontânea. Em Newman Schutze, ela é pensada. Klee foi músico e acreditava que sua pintura poderia ser “polifônica”, como a música de Bach, que sobrepõe melodias. Uma melodia não resulta da soma das notas, mas da relação entre elas. O mesmo vale para a escrita e as palavras, a linguagem e os signos. Os lingüistas chamam de “diacriticidade” a relação entre os signos, mais significativa do que os signos isoladamente. A pintura de Newman Schutze, assim como a de Klee, é diacrítica, não minimalista. Seu significado está na capacidade de estabelecer relações por meio de diferenças, não na repetição. José Bento Ferreira Desenhos A produção recente de Newman Schutze, notadamente de 2003 para cá, sinaliza para um movimento gradual de sensível depuração e despojamento em sua fatura: suas composições tornam-se mais enxutas, despidas dos elementos dramáticos e de recursos compositivos superlativos. A paleta cromática do artista parece ter igualmente acompanhado esse movimento: suas telas passaram a ostentar uma predominância de tons escuros – ocres, marrons, cinzas, negros, abandonando o cromatismo intenso e luminoso que antes apresentava. Os quadros ganham assim uma fisionomia mais austera, quase silenciosa, evidenciando um raciocínio que passa a privilegiar esquemas compositivos à um só tempo mais básicos e ordenados e indicando um interesse pela exploração do suporte agora sobre um enfoque que prioriza aspectos mais essenciais praxes. Essas características sugerem a instauração de um movimento de retração interna e espontânea no trabalho, afirmando em suma, a necessidade de se buscar por um grau de simplicidade de rompesse com eventuais maneirismos e condicionamentos anteriores. E é desta produção que se originam diretamente os conjuntos de desenhos que Newman ora apresenta, gestados em paralelo a sua pratica pictórica e que, embora dotados de sensível autonomia em relação àquela, ilustram em boa medida este grau de simplificação atingido pelo artista em sua atividade primordial. Trata-se de desenhos a tinta nanquim, desdobramentos por assim dizer mais gráficos de seu trabalho em pintura, produto de ações breves e incisivas, “pinceladas inteiras” de gesto único, continuo e decisivo e onde a cor, quando presente se insinua de modo excitante com se incerta da função que lhe caberia desempenhar nos espaços que ocupa sobre a superfície do papel. Contrapõem-se, deste modo, pela fluidez e brevidade de execução neles entrevistos, ao ritimo mais pausado e ao tempo de maturação exigido pela pintura. Mas o interesse destes desenhos não se esgotam nos procedimentos que explicitam sua realização, sua força talvez resida, antes, no índice de franca expressividade que deles transparecem, paradoximente reiterado pelo caráter repetitivo das ações geradora do conjunto, e que afinal são únicas. Não se trata de um exercício de gestualidade conduzido por pusões líricas ou catárticas, mas de uma prática afirmativa; esses desenhos não estão a serviço da representação o da transposição deliberada de, digamos, determinado conceito para o mundo da forma. Na verdade, não se mostram em ruídos de quaisquer ambições que não sejam a de se constituírem em índices de sua própria presentação, assinalando um processo de pensamento plástico pautado sobretudo pelo desejo de investigar aspectos internos a uma poética. Essa produção parece se anunciar – especialmente quando observada a luz de um percurso marcado pela diversidade de procedimentos e soluções formais, como é o caso de Newman - como um interlúdio, um momento de suspensão no processo do artista; onde este se permite dar vasão a anseios além daqueles, viabilizados por meio da atividade pictórica, embora mantendo um estreito dialogo com a mesma – até porque dela adivinho. Outubro de 2005. Guy Amado GALERIA EDUARDO FERNANDES NEWMAN SCHUTZE Latitudes A pintura de Newman Schutze passou por evoluções canônicas antes de chegar ao estágio em que é capaz de dizer mais sobre características extrapictóricas do que sobre a prática auto-referente, prestigiosa em nosso contexto cultural. Hoje, conclui-se que sua preocupação principal é uma experiência direta com a categoria do “contínuo e descontínuo” na obra bidimensional. A questão pôde ser colocada pelo artista a partir de uma única tela e concretiza-se com toda radicalidade, diferentemente mesmo de como ocorreu na coletiva no Centro Cultural São Paulo, em que parecia mais diluída na serialização e contrastes que por sua reincidência distanciavam-se de uma afirmativa tão categórica. Nessa simplificação drástica a obra de Schutze processou resíduos de uma figuração simbólica, um gestualismo angustiado diante de um horizonte pictórico mais romântico, enfim, tentativas persistentes por quase 20 anos de trabalho. Por fim, o artista precisou abrir mão até mesmo de suas obras mais convincentes para que a pintura pudesse dialogar com desenhos, a especialidade que respaldasse uma experiência impossível se no discurso já tão saturado por uma banda larga de acertos magistrais. Acompanhada (e não introduzida) por essa série de desenhos, a tela que expõe é de um poder de síntese fundado em uma única ruptura, um único estancamento dessas pinceladas inteiras que cortam o plano em latitudes flutuantes de intensidade bastante homogênea. È uma impressão tão familiarizada com seu suporte que se realiza “de ponta a ponta” antes de se sujeitar à interpelação do espectador. Os intervalos entre elas são como um resíduo negativo, embora igualmente contínuos e denotativos do suporte sobre o qual se desenvolvem. Logo, mais do que uma tentativa de arranjar os componentes no quadro (interromper ou mudar a cor, vez por outra ou quando a certa “beleza” parecer deixar), de uma deliberação definitiva sobre a necessidade ou validade de assim fazê-lo. O componente que se manteve, não só para que se possa falar sobre, coexiste na natureza despojada do risco inumerável do grafite sobre papel e na pincelada brutal; nada de esboços nem de desdobramentos. A estranheza e interesse está na descoberta de latitudes nas quais a força resoluta e raramente interrompida equipara-se à espontaneidade e leveza na qual a descontinuidade pode ser apenas uma contingência lúdica. Rafael Vogt Maia Rosa, 2003 As pinturas recentes de Newman Schutze são marcadas por um processo de depuração. Antes elas eram repletas de elementos, territórios atravessados por manchas e riscos, obtidos através de um processo que combinava adições e subtrações sucessivas, da habitual aplicação de tinha através de pincéis de espessuras variáveis, obtendo de planos orgânicos a traços rápidos, a lavagem da tela pintada com água, processo que produzia nóduas, que dissolvia as bordas dos planos e fazia variar seu comportamento, do transparente ao quase opaco. Era como se o trabalho fosse tomado por uma insatisfação contínua, e como também se em meio a produção o artista preferisse que o acaso, o dado aleatório se insinuasse deixando sua marca. Paulatinamente, como nos mostra essa produção recente o dramatismo foi cedendo espaço a um trabalho mais despojado e afirmativo, seja nas cores aplicadas, mais vivos e contrastantes entre si, como também pela sua aplicação em gestos simples, repetitivos, no geral faixas horizontais realizadas com pincéis largos. Aqui e ali as faixas empilhadas são atravessadas por faixas verticais, como se fosse necessário compensar a inérica do movimento, opondo-o a um outro de direção diversa. Várias são as telas em que parece ter acontecido o esboço de uma trama, um trespassamento dessas faixas. Mas essa solução é rapidamente superada deixando claro o predomínio do movimento expansivo horizontal; da preferência pela ocupação da tela por intermédio da construção dos planos horizontais, como pedaços de paisagem montados uns sobre os outros e que terminam por murar a visão. O problema do gesto é uma questão que há muito vem sendo considerado dentro da tradição artística brasileira. O grande pintor mineiro, Alberto da Veiga Guinard, ensinava sobre a importância do uso grafite duro, porque o sulco que ele abria na superfície do papel não dava margem a arrependimento. Schutze junta o dado cromático a esse problema. A cor vale-se do ritimo constante das pinceladas para melhor fazer sentir a natureza expansiva dos tons claros, por exemplo, dos vermelhos e amarelos combinados entre si, à retração dos azuis e da família de tons sombrios. O artista vai alternando essas possibilidades, como se sopesasse cada efeito obtido. É a pressão variável da mão que empunha o pincel mais ou menos carregado de tinta, que faz com que a faixa luminosa distendida sobre o quadrilátero da tela seja opaca, ostensiva, ou paulatinamente se vá dilacerando, abrindo fissuras, deixando ver a luz que corre por baixo, subterrânea, luz fabricada por uma pincelada interior. Por vezes o gesto é enfático e uniforme, com a faixa atravessando de ponta a ponta o campo da tela. Mas logo ao lado o gesto, ou não é tão decidido, ou simplesmente a tinta está mais diluída, propondo em lugar de um muro espesso, intransponível, que os olhos avancem na profundidade de uma atmosfera colorida. Agnaldo Farias, 2002 GALERIA EDUARDO FERNANDES NEWMAN SCHUTZE Newman e os desafios do desenho Instalações, performances, intervenções urbanas, multimédia, os novos modos expressivos no campo das artes visuais, colocaram em questão e certamente sob pressão, com certeza num permanente estresse, as formas tradicionais da atividade artística : a pintura, o desenho, a gravura, a escultura, os objetos construidos. É como se o surgimento dessas novas modalidades artísticas conduzindo a um processo de expanção do pensamento visual, obrigassem as formas tradicionais a um deslocamento na sua ação, sendo o principal a crise instalada nos discursos simbólicos substituidos em parte por produções de natureza indicial. A segunda metade dos anos 60 do século passado gerou a maior parte das mudanças estruturais que as artes plásticas conheceram a partir do surgimento da forma simbólica por excelência,a perspectiva; da maneira mais geral possível pode-se dizer que foi a introdução da relação espaço/tempo a principal responsável pelos desafios que as formas canônicas de arte encontraram desde então: um deslocamento daquilo que se estendia pelo espaço virtual, de representação, para uma ocupação física do espaço real. O que implica numa nova relação da arte com seu público espectador, agora “participador” na feliz expressão de Helio Oiticica. O trabalho de Newman se inscreve dentro das formas tradicionais da pintura e do desenho e o quê se apresenta nesta exposição é sua resposta a esse desafio, colocado no caso ao desenho. Seu trabalho se envolve com a questão básica da representação: colocar algo no lugar de alguma coisa apenas figurada, uma montanha, uma maçã, o desenho como significante de uma ausência, o desenho como fantasma. Um desenho que não representa, uma parede ocupada em toda sua extensão por uma grande mancha de nanquim, feita em apenas um gesto, com a utilização de um instrumento insólito; um grande rodo que marca sua trajetória horizontal na altura do artista, uma espécie de dança que ocupa toda a extenção das paredes que definem o espaço; um movimento repetido, em que a repetição mostra toda a sua diferença, indícios da ocupação espacial/ temporal do todo, pelo corpo do artísta. “ O quê faço é música” essa frase de Oiticica sintetiza os dilemas que a arte contemporânea encontra e que Newman tão bem resolveu em seu trabalho recente, nesta mostra. Carlos Alberto Fajardo - artista plástico e professor doutor da Universidade de São Paulo