Rudolf Preimesberger Morte por amor pela cristianização da América? A escultura funerária de Santa Rosa de Lima: uma imagem barroca da primeira santa católica do Novo Mundo. Um ensaio a partir de uma perspectiva histórica e histórico-artística. “Ma l´opera principale e la più stimata, che sia stata fatta da lui, fu la statua di S. Rosa, che fece per Lima...” (Mas a obra principal e a mais santa que tenha sido feita por ele, foi a estátua de Santa Rosa, que ele fez para Lima...). Realmente, não é muito o que o historiador da arte Lione Pascoli tem a dizer sobre a principal obra de Melchiorre Cafà, escultor romano originário de Malta, falecido prematuramente. Nascido em 1630, Cafà foi a figura mais significativa da geração de escultores barrocos romanos, rica em talentos, surgida depois de Gian Lorenzo Bernini. Ele aparece em Roma pela primeira vez em 1660, e lá é vitimado, em 1667, por um acidente de trabalho. Nos poucos anos que medeiam essas duas datas, ele criou uma obra surpreendentemente larga em sua quantidade e admirável em sua qualidade artística. O grupo de mármore para o túmulo de Santa Rosa de Lima, que tinha sido beatificada em abril de 1668, é um exemplo tardio disso. A assinatura aposta a posteriori indica como data do término da obra o ano de 1669, dois anos depois da morte de Cafà. Nesse ano a escultura foi embarcada para o Peru, aonde chegou em 15 de junho de 1670, ao porto de Callao. Lá ela foi recebida pelo vice-rei espanhol e levada para Lima, em meio a uma grande festividade, na qual chegaram a ocorrer manifestações excessivas de adoração, beirando a idolatria. Em Lima, a escultura foi instalada no altar funerário dedicado a Santa Rosa de Lima, na Igreja de Santo Domingo. Rosa de Lima, nascida em Lima aos 30 de abril de 1586 como Isabel Flores de Oliva, era filha de um espanhol (ou porto-riquenho) e de uma índia. Aos vinte anos de idade ingressou como terciária na Ordem Dominicana dos Predicadores. Viveu na casa paterna, e os três últimos anos de sua vida, na residência da família do funcionário real Gonzalo de la Maza. Sua vida espiritual foi marcada por uma série de extraordinárias mercês místicas. Teve freqüentes visões, passou por numerosas experiências de abandono extremo e de angústia espiritual, vivendo em meio aos mais severos exercícios de ascetismo. Tal como o seu grande modelo, Santa Catarina de Siena, ela usava uma coroa de espinhos feita de metal, que aparentemente foi a causa da sua morte em 1617. Seu falecimento foi interpretado como uma morte por amor a Deus, que equivaleria à morte por martírio, o grau mais elevado de união na tradição mística. A causa pôde tanto ter sido o ”ferimento interior” pela flecha do amor divino, como a ”brasa interior”. Assim, consta que Santa Teresa de Ávila não teria morrido devido a uma doença, mas “ex intollerabili divini amoris incendio“. Também Rosa de Lima teria sido acometida tão intensamente pelo amor divino, que este acabou levando-a à morte. A peculiaridade dos seus feitos em vida foi vista em que ela dedicou os seus graves sofrimentos espirituais, as suas doenças, perseguições e, finalmente, a sua morte, à conversão de seu povo. Uma morte por amor, em aras da cristianização da América! A adoração que lhe foi dedicada imediatamente via nela a primeira santa do Novo Mundo. Passados apenas dois anos da sua morte, seu cadáver foi exumado e sepultado perto do altar-mor da Igreja de Santo Domingo, em Lima. Logo mais, como o povo que se aglomerava passou a dificultar as cerimônias religiosas regulares, seus restos foram trasladados para a capela dedicada a Santa Catarina de Siena. Relatos de visitas feitas em 1632 e 1637 descrevem o túmulo, sobre o qual já havia sido instalada uma escultura em madeira representando a falecida, as muitas oferendas votivas, os castiçais de prata, as obras pintadas ou esculpidas e outros tantos sinais de adoração. Passados apenas oito anos da sua morte, a causa de sua beatificação já tinha sido tratada na Sagrada Congregação para os Santos, em Roma, depois de ter ocorrido uma série de milagres e de as autoridades eclesiásticas locais terem dado início à usual oitiva de testemunhas. Após alguns retrocessos no pontificado de Urbano VIII Barberini e de uma aceleração do processo no pontificado de Alexandre VII Chighi, o papa Clemente IX Rospigliosi procedeu à beatificação, aos 15 de abril de 1668, na Basílica de São Pedro, em Roma. Apenas três anos depois, seu sucessor, Clemente X Altieri, a quem foi atribuída a frase entre irônica e cética: ”Como uma índia pode ser santa?”, teria sido levado por um acontecimento que foi interpretado como milagre das rosas, a transformar a beata na primeira santa do Novo Mundo. Cafà foi incumbido de esculpir uma estátua para o túmulo da nova beata. Havia, para tanto, um famoso protótipo: a figura tumular de Santa Catarina de Siena, a maior santa da ordem das dominicanas, erguida sob o altar-mor da igreja central da ordem, Santa Maria sopra Minerva, em Roma. Contudo, enquanto o escultor do quattrocento mostra uma figura tumular tradicional, a santa vista praticamente no estado em que fora enterrada, Cafà cria, em vez da presença física da morta, a imagem de sua agonia, a representação de um acontecimento distante no tempo, ocorrido em 1617. Rosa de Lima, vestida com o hábito das dominicanas, caiu sobre seu leito pétreo. O seu rosto moribundo não demonstra dor; ela quase sorri. O anjo de expressão infantil, cheio de compaixão e ternura, está justamente puxando um véu por sobre o rosto da recém-falecida. Por que essa transformação da estátua tumular tradicional numa cena de agonia? É necessário pensar na situação histórica de Cafà. Das suas obras é possível depreender de forma imediata como deve ter sido profunda, já em 1660, a impressão causada nos sucessores de Gian Lorenzo Bernini pelo mundo de figuras tão bem-sucedidas, tão eloqüentes e convincentes como as que o mestre criara. Não há praticamente nenhuma obra de Cafà que não reflita isso. O grupo escultórico de Lima é um excelente exemplo. Ele surgiu pouco menos de uma década e meia após a obra religiosa mais importante e mais provocante de Bernini, o Êxtase de Santa Teresa de Ávila, em Santa Maria della Vittoria, em Roma, que mostra a santa num estado físico e psíquico de exceção, pois o anjo, na famosa vivência mística por ela mesma descrita, está ferindo seu coração com um dardo. É este justamente o ponto ao qual Cafà dá continuidade. O fato de o artista ter partido não da imagem de uma morta, mas daquela do corpo inerte de Santa Teresa enquanto fórmula expressiva para o seu grupo da agonia de Santa Rosa, é comprovado pelo esboço em argila, atualmente exposto no Museo di Palazzo Venezia em Roma. Reconstruindo-se a posição do anjo, ausente devido a uma avaria, do qual aparecem hoje apenas as pernas, a relação fica evidente. Observa-se o mesmo motivo corporal e as mesas fórmulas expressivas: o ombro direito elevado, a mão direita inerte, a esquerda passiva, a cabeça que pende em direção ao ombro. Naturalmente, Cafà transfigurou o seu modelo, trocou os lados e representou a figura de Rosa muito deitada para trás. Ela jaz num terreno pétreo, enquanto a santa de Bernini paira sobre nuvens. Outras metamorfoses resultam do estilo escultural diferente de Cafà. Tal como ocorre na maioria de suas obras, também aqui a estrutura tectônica e formal de Bernini resulta mais solta e diferenciada. Reconstruindo-se a posição do anjo na cabeceira da beata moribunda, apresenta-se uma mudança característica no relacionamento mútuo das duas figuras. Todos os acentos estão concentrados do lado esquerdo. O grupo de Cafà é assimétrico, a sua estrutura é mais solta e estendida que a de seu modelo. No grupo de mármore de Lima, essas tendências são mais fortemente perceptíveis. No fim de suas transformações, a santa converteu- se numa figura plenamente deitada. Todos os restos de tectônica corporal dissolveram-se no motivo emocional de um jazer inerte. Aquilo que em Bernini é o ápice de um drama transformou-se nas mãos de Cafà num estado passivo do depois, cujo único sinal de atividade reside na suave tristeza e na infantil ternura do anjo. O artista, de uma geração mais jovem que a de Bernini, apela para sentimentos mais tenros do observador que o seu mestre. O mundo de emoções representado e evocado no espectador é, no seu caso, fundamentalmente diferente. No lugar de uma figura tumular que oferece o corpo da morta para ser adorado, a representação de uma agonia, de um acontecimento ocorrido há muito tempo! Por que esse distanciamento histórico, em vez da ênfase da presença corporal? É necessário lembrar que a Igreja de Santo Domingo em Lima albergava não apenas o túmulo da primeira mulher beatificada na América, mas também, devido à sua presença, apresentava dois problemas: a questão do status de seu corpo, assim como a do status de sua imagem, a questão a respeito do modo e dos limites da adoração de que ambos podiam ser objeto. Adoração das relíquias, adoração da imagem! Ambas tinham sido rejeitadas pela Reforma, enquanto a velha Igreja as mantinha e apresentava toda uma série de argumentos para justificá-las. Na sua severa crítica, a Reforma rejeitara toda figura de culto como pagã, toda forma de adoração como idolatria. Contudo, ela admitira uma exceção: a pintura histórica, pois esta servia para a instrução do observador. A crítica e a rejeição dirigiam-se contra a imagem que representasse um corpo isolado, que somente contivesse a figura de quem devia ser adorado, sem uma história ligada a ele, e que por isso levaria mais acentuadamente para a idolatria. Foi Calvino quem cunhou, para isso, a fórmula da “imago solitaria sine historia“ .O grupo de Cafà, criado em Roma, pode ser visto diante do pano de fundo desta problemática, e é até mesmo possível dizer que nele não se realiza uma “imago solitaria sine historia“ ,mas uma “história” distanciadora e instrutiva. Só à primeira vista a imagem marmórea da moribunda é uma ilustração meramente histórica. Imediatamente do lado de sua cabeça crescem rosas a partir da pedra dura. Através delas, surge certa dialética na imagem. Pois a rosa é simultaneamente a abreviação plástica de seu nome. Trata-se de uma alusão eminentemente clássica: através do “terceiro comum” da rosa, a figura é designada como Rosa. Um fato significativo: num ponto importante, o grupo está estruturado alegoricamente! A rosa não apenas designa a escultura como Rosa. É fácil perceber que ela aparece na vizinhança imediata daquela coroa de espinhos que a moribunda cingiu em volta de sua testa. Para o observador, desvenda-se agora o significado da expressão da “rosa entre os espinhos”. Ele a transfere para a figura jazente que ele vê e cujo nome conhece. Mediante uma operação semântica muito simples, visto que ela está coroada de espinhos, ele irá designá-la de “rosa entre os espinhos”. Se ele já conhecer a história de sua vida, ela, que na sucessão de Cristo e imitando Santa Catarina de Siena coroou-se a si mesma com espinhos, tornar-se-á “Santa Rosa de Lima entre os espinhos”. Cafà grifou a coroa de espinhos, que a beata usava em vida e depois de morta, mediante um motivo narrativo, preenchendo-a assim de significado. O seu portador é o anjo infantil, o único a determinar o evento de forma ativa. Ele estende sua mão direita através do véu para tocar os espinhos aguçados. A intenção do anjo não está totalmente clara. Com a sua mão esquerda, ele começou a puxar o véu por sobre o corpo da moribunda, enquanto sua mão direita parece estar se preparando para retirar a coroa de espinhos de sua cabeça. Estaria sendo aludido aqui ao epílogo da vida e dos sofrimentos de Rosa de Lima, que teria equivalido a uma paixão segundo o modelo do Cristo? O fim de uma paixão mediante a retirada da coroa de espinhos? Parece que a paixão de Rosa é salientada mais uma vez, no nível de um outro atributo. Numa localização proeminente, aproximadamente no centro do grupo e junto à sua beira anterior, aparece o seu rosário. Na medida em que Cafà aplica ao seu lado a velha fórmula expressiva da mão que pende inerte, cria a impressão de que o rosário lhe teria escapado dos dedos apenas no momento de sua morte. O rosário, que lhe servira para orar até sua morte, o atributo dominicano por excelência, contém, enquanto grinalda de rosas, mais uma indicação explícita do seu nome. Cafà o mostra de forma eficazmente isolada; e é especialmente marcante a presença do pequeno crucifixo, que pende por cima da borda da pedra – o símbolo mais evidente da Paixão! Aqui ele se torna abreviação eloqüente da paixão e do sacrifício de Santa Rosa de Lima. Contra toda a razão e toda a experiência, as rosas vicejam num chão pétreo e estéril. A ligação ilógica entre a pedra rochosa e o vicejante crescimento vegetal espelha nitidamente a conhecida figura retórica do paradoxo, que vai diretamente de encontro à expectativa normal, à lógica e ao bom senso do observador. Rosas que nascem da pedra! Qual o sentido deste paradoxo? Tal como estas rosas nasceram deste chão duro e pétreo, Santa Rosa de Lima, a outra rosa, nasceu como por milagre num chão pétreo, duro e inculto. Com outras palavras: no eloqüente paradoxo da rosa que nasceu das pedras, o subsolo pétreo sobre o qual veio a jazer a primeira beata do Novo Mundo ganha um valor emblemático adicional. Ele se torna uma imagem do novo continente americano, ainda pedregoso, duro, selvagem, que até agora só fez surgir uma Rosa de Lima. Santa Rosa de Lima a primeira rosa nascida no chão pedregoso do Novo Mundo? Ela surge como um primeiro sinal maravilhoso da futura metamorfose do duro chão das Américas num jardim florescente? A sua morte por amor é um sacrifício em prol da conversão de seu povo? Certamente defrontamo-nos aqui, do ponto de vista técnico, com nada mais do que o conhecido fenômeno da “continuata metafora” do observador, e com isso, com um dos dilemas da interpretação de obras alegoricamente estruturadas da arte mais recente. Mas será que, e essa conjetura final cabe, no “belo cadáver”, construído em Roma para a primeira beata do Novo Mundo, que se sacrifica sobre o chão pedregoso do Novo Mundo em prol da conversão de seu povo, nos defrontamos com algo diferente de um mito europeu da cristianização da América?