Durante a Idade Média, a vida espiritual na Europa ocidental foi dominada pela Igreja Católica. Não se admitiam divergências contra esse monopólio da crença. Os rebeldes e dissidentes, considerados hereges, ou se calavam ou eram simplesmente eliminados. Muitos foram queimados vivos nas fogueiras que o Tribunal do Santo Ofício, ou Inquisição, acendeu por todo o continente. Nessa época, o poder dos reis era praticamente o mesmo que o dos senhores feudais e o Estado moderno ainda estava por ser criado. Na falta de um poder político centralizador, vigorava o conceito de Cristandade, que designava o conjunto de países católicos em oposição ao mundo muçulmano e às regiões orientais não cristianizadas. No Ocidente, ser cristão significava ser católico, obedecer às regras e aos princípios da Igreja de Roma. Como veremos logo mais, essa unidade católica sofreria profundas transformações a partir de 1517, com a Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero. 1. A CRÍTICA À IGREJA Num período de tantas transformações, como as que se verificaram na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, era previsível que também ocorressem mudanças nas esferas ideológica e espiritual. No decorrer do século XV, alguns humanistas apontavam deturpações cometidas pela Igreja e criticavam a corrupção reinante em sua alta hierarquia. Os abusos cometidos pelo clero disseminavam-se por todas as categorias eclesiásticas. Assim, desde a venda de relíquias sagradas (como pretensos pedaços da cruz em que Cristo foi crucificado), efetuada pelo baixo clero, até a intervenção política em problemas internos dos reinos pelos papas, tudo contribuía para justificar as críticas dos intelectuais humanistas. De acordo com um desses intelectuais, Erasmo de Roterdã, era preciso que a Igreja assumisse uma posição mais humilde e desvinculada da vida material, conforme propunham os ensinamentos dos Evangelhos. Nesse contexto surgiu Martinho Lutero, que propunha mudanças na Igreja de Roma. Suas propostas provocariam um intenso movimento de transformação religiosa em toda a Europa ocidental, que ficou conhecido como Reforma Protestante. Embora os motivos religiosos tenham sido os mais evidentes, houve também outras motivações para a Reforma de Lutero. Uma delas relacionava-se às mudanças econômicas que vinham ocorrendo desde o fim da Idade Média, preparando o terreno para o capitalismo. Ora, o grande objetivo do sistema capitalista, a busca do lucro, era condenado pela Igreja. Martinho Lutero, ao contrário, tinha uma visão mais tolerante em relação a isso. Outros reformadores, como Calvino, iriam mais longe, defendendo abertamente o direito ao lucro. Seria natural, então, que comerciantes e homens de negócio os apoiassem. 2. LUTERO E A REFORMA PROTESTANTE De origem germânica, Martinho Lutero (1483-1546) era monge e teólogo católico. Em 1517, estava ensinando na universidade de Wittenberg, no Sacro Império, quando apareceu por ali um religioso vendendo indulgências, isto é, a absolvição dos pecados. Naquele tempo, as autoridades da Igreja difundiam a ideia de que a compra de indulgências era condição para garantir a salvação dos fiéis. Contrário a essa prática, Lutero afixou na porta da igreja da cidade um texto conhecido como 95 teses, no qual discordava em pontos importantes da prática católica. Seguiu-se enorme polêmica que culminou com a excomunhão do monge pelo papa. A situação se parecia com a de João Huss, ocorrida um século antes. Contudo, Lutero recebeu o apoio de um número muito grande de nobres e integrantes da burguesia. Graças a esse apoio, ele pôde enfrentar a reação da Igreja. Com suas propostas reformistas divulgadas por todo o Sacro Império, Lutero conquistava a adesão de parcela cada vez maior da população. Muitos dos príncipes germânicos, convertidos às novas doutrinas, passaram a empreender o confisco de terras da Igreja. Após alguns anos, as ideias de Lutero levaram os nobres a reivindicar a autonomia religiosa dos principados germânicos em relação a Roma. Diante dos conflitos que se disseminavam pelo Império, Carlos V, imperador católico, convocou uma assembleia para decidir sobre as propostas de Lutero. A assembleia declarou que a nova doutrina poderia ser seguida apenas em alguns principados, mantendo-se a hegemonia da Igreja Católica na maior parte do território. Revoltados, nobres e burgueses protestaram violentamente contra essa decisão. A partir desse acontecimento, os seguidores da Reforma Luterana passaram a ser chamados de protestantes. O conflito se prolongou até 1555, quando foi celebrada a Paz de Augsburgo, concedendo a cada príncipe o direito de escolher a religião de seu principado. Ainda em 1530, auxiliado pelo humanista Filipe Melanchthon, Lutero redigiu a Confissão de Augsburgo, que constituiu a doutrina da Igreja Luterana. Entre seus princípios estavam: a teoria do sacerdócio universal, segundo a qual qualquer pessoa pode interpretar os textos sagrados e ser "sacerdote de si mesma", sem necessidade de um representante para intermediar sua relação com Deus; a tese da salvação pela fé, que rejeita a crença católica da salvação pelas obras, especialmente as "falsas boas obras", pagas com dinheiro; a abolição do celibato dos sacerdotes; a eliminação dos sacramentos, isto é, das cerimônias de bênção aos fiéis, com exceção do batismo e da eucaristia; a substituição do latim pela língua germânica nas cerimônias religiosas; a rejeição da hierarquia do clero católico (padre, bispo, arcebispo, cardeal e papa). Ao desenvolver seus próprios preceitos e criar uma nova prática religiosa, Lutero dividiu a cristandade, quebrando o monopólio da Igreja Católica. João Huss: herege ou precursor? Muito tempo antes de Lutero, alguns reformadores já haviam tentado renovar a doutrina e as práticas da Igreja. Foi o caso, entre outros, de João Huss, que se converteu em líder de uma revolta ocorrida no início do século XV, na Boêmia (hoje, República Tcheca). A região fazia parte do Sacro Império, no qual a maior parte dos altos cargos da Igreja era ocupada por religiosos germânicos. Professor da Universidade de Praga, João Huss pregava a reforma da Igreja, negava o dogma da infalibilidade do papa e lutava contra o predomínio dos prelados germânicos. João Huss foi preso e intimado a negar seus pontos de vista durante o Concilio de Constança. Como se recusasse, foi queimado na fogueira em 6 de julho de 1415. Sua morte radicalizou o descontentamento religioso, que se transformou numa revolta popular e se espalhou por toda a região. Revoltas camponesas no Sacro Império A pregação de Lutero foi interpretada pelos camponeses germânicos não apenas como uma reforma religiosa. Para eles, o novo credo autorizava a luta contra a nobreza e por melhores condições de vida. Assim, em 1524 eclodiu no Sacro Império uma revolta popular de grandes proporções. Seu principal líder era Thomas Müntzer. Muitos mosteiros e castelos foram incendiados. Os nobres senhores reagiram com violência, recebendo total apoio de Lutero, que aconselhava a "golpear, estrangular e apunhalar os camponeses, pois não há nada mais diabólico do que um homem revoltado". A rebelião foi derrotada e Müntzer, executado com requintes de crueldade. 3. CALVINO E O CALVINISMO Sacerdote francês convertido ao luteranismo, João Calvino (1509-1564) levou ainda mais longe as propostas de reforma de Lutero. Estabelecido em Genebra, na Suíça, sua pregação conquistou grande número de adeptos. Calvino registrou sua doutrina na obra Instituição da religião cristã, publicada em 1536. De modo sintético, o calvinismo — semelhante ao luteranismo em muitos aspectos — apresenta as seguintes propostas: aceitação exclusiva das sagradas escrituras como instrumento para conhecer a verdade divina; predestinação — desde o nascimento, as pessoas estão destinadas por Deus à salvação ou à condenação eterna, independentemente de suas obras no mundo material; eliminação das imagens de santos e das cerimônias pomposas no culto, que deveria se limitar à leitura e discussão de trechos da Bíblia. O calvinismo propagou-se rapidamente por várias regiões da Europa, principalmente por aquelas em que as atividades mercantis se desenvolviam de modo mais dinâmico. A religião fundada por Calvino, com sua teoria da predestinação, foi o mais forte incentivo ideológico ao desenvolvimento capitalista. Ela ensinava que o lucro não era pecado e que a única maneira de alguém saber se estava predestinado à salvação era obter êxito nas relações econômicas por meio do trabalho árduo e disciplinado. "O comerciante que busca o lucro" — rezava a doutrina — "responde também ao chamado de Deus". 4. INGLATERRA: O REI COMANDA A REFORMA Chamados de protestantismo de maneira geral, os movimentos que propunham reformas na Igreja Católica receberam apoio entusiástico em vários lugares da Europa ocidental, assumindo formas diferentes em cada um deles. Uma dessas formas apareceu na Inglaterra, onde o rei Henrique VIII, agindo muito mais por razões políticas do que religiosas, rompeu com o papa em 1534 e publicou o Ato de supremacia, pelo qual estabeleceu as bases da Igreja Anglicana. A nova religião adotou aspectos do calvinismo e manteve outros do catolicismo. Sua peculiaridade residia no fato de o rei ser seu chefe supremo. Nos anos subsequentes, a Inglaterra oscilou entre as influências do catolicismo e do protestantismo, até que a rainha Elizabeth I proclamou o anglicanismo como religião oficial. Muitos protestantes ingleses continuaram, entretanto, a lutar para que a Igreja Anglicana fosse "purificada" de seus vestígios de catolicismo. Eram os puritanos, que acabaram aderindo definitivamente às doutrinas calvinistas. Como consequência dessa divisão, o reino seria mais tarde assolado por violentas lutas de caráter políticoreligioso. Tais lutas levaram às Revoluções Inglesas do século XVII. 5. A IGREJA CONTRA-ATACA A reação da Igreja Católica ao avanço das propostas de reforma ficou conhecida como Contra-Reforma. O Concílio de Trento (1545 e 1563), do qual participaram representantes da Igreja Católica de toda a Europa, coordenou e orientou o movimento. O Concílio não fez nenhuma concessão em matéria de doutrina religiosa, confirmando todos os pontos criticados pelos protestantes: importância dos sacramentos, celibato clerical, valor das boas obras como caminho para a salvação etc. Ao mesmo tempo, todavia, tomou providências para moralizar o clero e fortalecer a autoridade da hierarquia católica. Um importante papel na Contra-Reforma foi desempenhado pela Companhia de Jesus. Essa ordem religiosa foi fundada em 1534 por Ignácio de Loyola, ex-soldado espanhol que estudou teologia em Paris. Reconhecida pelo papa seis anos depois, a Companhia de Jesus (ou ordem dos jesuítas) teve uma atuação destacada no Concílio de Trento. Seus integrantes, os jesuítas, logo se espalhariam pelo mundo com o objetivo de expandir a fé católica, colaborando assim de maneira decisiva com a cúpula da Igreja no combate ao protestantismo. Na parte da América dominada pelos portugueses, eles começaram a chegar a partir de 1549. Uma vez aqui, dedicaram-se principalmente à catequese dos indígenas e à educação infantil entre os colonos, fundando e mantendo inúmeros colégios. 6. AS GUERRAS RELIGIOSAS A Reforma Protestante pôs fim ao monopólio espiritual da Igreja Católica, oferecendo aos fiéis novas opções religiosas. Um dos efeitos do movimento, sobretudo a partir do calvinismo, foi o estímulo ao desenvolvimento capitalista, na medida em que criou uma ética favorável ao lucro, ao trabalho árduo e ao enriquecimento pessoal. Outra consequência foi o impulso à alfabetização. Lutero incentivou o aprendizado da leitura, ao propor que qualquer pessoa podia ser "sacerdote de si mesma", desde que lesse e interpretasse corretamente a Bíblia. Por outro lado, a Reforma Protestante resultou na intolerância religiosa diante das artes e da ciência, tanto por parte dos católicos como dos protestantes. Exemplos disso foram a publicação do Índex — lista dos livros proibidos pela Igreja Católica — e a perseguição e condenação de inúmeros intelectuais. A intolerância religiosa foi responsável também por guerras sangrentas que durante muitos anos sacudiram a Europa. Uma delas, como vimos anteriormente, ocorreu no Sacro Império Romano-Germânico e foi provocada pelo imperador Carlos V ao tentar restabelecer o domínio da fé católica. Na França, as lutas religiosas entre huguenotes — como eram conhecidos os calvinistas franceses — e católicos arrastaram-se por mais de trinta anos, encerrando-se em 1598 com a promulgação do Edito de Nantes, pelo qual se garantia liberdade de consciência aos protestantes. As guerras de religião se disseminaram pela Europa, atingindo outras regiões, como a Holanda e a Inglaterra, e iriam se estender pelo século XVII. Nessa época, muitos europeus, fugindo das perseguições religiosas, emigra- ram para a América do Norte, onde contribuiriam para o povoamento do território e para a formação de uma nova sociedade. Massacre em Paris As disputas religiosas entre católicos e huguenotes na França converteram-se em guerra civil a partir de 1562. Dez anos depois, o rei Carlos X, manipulado pelos católicos, ordenou a morte dos chefes calvinistas reunidos em Paris. O massacre ocorreu na noite do dia de São Bartolomeu, em 24 de agosto. Nessa ocasião, foram mortos 2 mil huguenotes. As guerras de religião somente terminariam na França com a promulgação do Edito de Nantes, em 1598, pelo rei Henrique IV.