Belém, Paris, Lisboa ... Itinerários de uma autora paraense : Lindanor Celina Dominique Stoenesco atural de Belém do Pará, Lindanor Celina Coelho de Miranda vive em França há longos anos, ensinou literatura portuguesa e brasileira durante 20 anos na Universidade de Lille e a sua produção literária vai do romance até à crônica*, com algumas iceursões pelo teatro. A sua carreira começou no jornalismo, e pouco a pouco Lindanor Celina especializou-se na crônica literária, com numerosos trabalhos publicados no Brasil e na Europa. E no momento em que, em Paris, o Salão do Livro organiza, entre outras actividades, uma mesa redonda sobre o modernismo brasileiro, e mais especialmente sobre um dos seus principais protagonistas, Mário de Andrade, não deixaremos de mencionar a tese de doutoramento de Lindanor Celina, Alguns aspectos do conto de Mário de Andrade, publicada em separata, pela Universidade Federal do Pará, em 1973. O primeiro romance de Lindanor Celina, Menina que vem de Itaiara, foi publicado já em 1963. Poucos anos mais tarde, em 1971, L. Celina obtém o Grande Prêmio do romance brasileiro, com o título Estradas do Tempo-Foi (ed.. JCM, Rio de Janeiro), que será reeditado em Lisboa, em 1985, pela editora Líber.. Em 1994 é publicado o seu último romance, Eram seis assinalados, (ed.CEJUP, Belém) com um prefácio do crítico literário Fábio Lucas, comentando assim a obra e o estilo desta autora paraense : “O tema de Eram seis assinalados»não passa de um discurso sobre a liberdade. (…) O leitor haverá de entender o ritmo lento da narrativa, a viscosidade com N 60 que se apresenta, numa técnica próxima do nouveau roman, ao dar passagem aos solilóquios e alocuções imaginárias das personagens envolvidas. (…) O leitor haverá de deliciar-se com os coloquialismos tão bem utilizados pela romancista. E se encantará com imagens, símiles e metáforas que povoam a narrativa, de grande referencialidade regional”. Ainda no romance Eram seis assinalados, Lindanor Celina, dando a palavra a um bispo europeu, oferece-nos passagens de verdadeira análise social : “Os brasileiros são ótimos, mas desconfie da primeira impressão. Aquilo é fogo-de-palha, tudo vira Carnaval, quando se pensa poder contar com alguém a sério, cadê ? Mais nenhum. Do fácil entusiasmo, a generosidade irrefletida que nem é virtude e, sim, consequência de um modo de viver, uma alegria quase sem motivo, e o eterno jeito de resolverem o mais intrincado problema em passe de mágica”. Como já foi assinalado mais acima, Lindanor Celina, respeitando aliás uma das particularidades da literatura brasileira, isto é, um gosto acentuado pela crônica, publicou centenas de textos de crônicas desde 1954. O Diário da Ilha ou o Diário de Paris e Além, ambos publicados em 1992, são alguns destes livros de crônicas. Como ilustração da obra de Lindanor Celina neste gênero literário, propomos ao leitor a crônica Cuca Pingo de Ouro, tirada do livro A viajante e seus espantos (ed .CEJUP, Belém, 1988) que a autora nos enviou e cuja história (será um clin d’œil aos seus antepassados portugueses ?) se passa em Lisboa. Cuca Pingo de Ouro Uma crônica de Lindanor Celina “…a Cuca Pingo de Ouro…cadê minha Cuca que o mato me deu ?” (João Guimarães Rosa). Ana Stella Geraldes dos Santos Raposo - nome de grande dama, e a dona, deste tamaninho, quatro anos somente que ela tem. Mas que lady, que finura e graça tanta em ser tão diminuto. Cuca meu amor, a filha que não tive, a neta que ainda terei ? Não importa. Cuca é meus encantos, e se em Lisboa ninguém mais me quisesse bem, e dos amigos que ali tenho só me restasse a minha Cuca, para vê-la quantas peregrinagens eu faria, faço, farei, até que meus olhos se fechem para os azuis deste mundo. Conheci-a naquele inesquecível abril/maio/74. Primeira coisa que se me fixou nesta retina : depois do jantar, quando todos passávamos ao salão, ela, sem que ninguém lhe dissesse nada, ia direto ao bufê dos licores, abria a portinha, se abaixava, apanhava a garrafa exata, vinha, depositava-a sobre a mesinha de centro, lá se ia de novo à outra porta do móvel, abria, tirava os copos, em número certo, e os trazia ao pai, tudo numa silenciosa elegância, tão dona-de-casa, mas tão princesa, uma dona-de-casa princesa. Fizemos já nessa hora tremenda camaradagem, e quando de lá me arranquei, tive de mentir-lhe, fiz de conta que ia à Baixa, logo estaria de volta. Nos reencontramos no passado inverno - e não é que não me sequecera ? Incrédula, repeti: “Mas te lembras mesmo de mim ?” Ela, olhinhos maliciosos : “Claro que me lembro e muito bem, até fartei-me de rir do teu susto quando pensaste que eu ia jogar a minha bota na privada …”. n° 2 - février 98 Flashes de Cuca. Perante a TV, um jovem «crooner» colored : “Lá está o preto a cantar”. À janela, quando via passar alguém de cor : “Olha o preto da Guiné/ lava a cara com chulé”. “ Minha Cuca, quem te ensina estas coisas, teus pais não são, que eu sei!” A avó : “É na escola, os colegas, isso infelizmente não se pode impedir”. Eu tentava doutriná-la : “Mas Cuquinha, são gente iguais a nós”. “Não são! São é muito maus !” “Como sabes que são maus ?» “Na minha aula tem um menino preto, ele é mau, dá na gente”. “Se dá, vocês com certeza o atormentam, deves ser boazinha com eles, são nossos irmãos” “Não são nada !”. Dormíamos no mesmo quarto, em beliche, ela no de baixo. “«Conta-me histórias, se não sabes, inventa-as”. Eu inventava, inventava, até cansar. Uma noite me reinou : “Cuca, vamos rezar ?” “Que é rezar ?” “É conversar com Deus”. “E onde que ele está ?” Foi aprendendo a Ave Maria aos poucos, no sotaque lusitano (alafacinha) : “Avé Mêria, cheia de graça… bendito é o fruto do vosso dente Jesus”. Dente não, Cuca, ventre, do vosso ventre !” “Que é ventre ?” “É barriga, Cuca”. “E por que não se diz” “da vossa barriga ?” “Porque não, ventre é mais bonito, estamos falando com a mãe de Deus”. Prosseguíamos : Santa Maria Mãe de Deus rogai por nós pecadores… Cuca repetindo : “…rogai por nós pescadores…” “Pescadores o quê, Cuca, pecadores, gente que faz pecado, ofende a Deus, repete : “Rogai por nós pe-ca-do-res” Cuca, bem atenta : “Rogai por nós pica- Habitations fluviales, Amazonie - Photo : J.C. Pinheira dores…”, minha gargalhada estralava ali no quarto, saía pela janela, descia a Rua do Sol. Acabada a reza : “Dorme bem, Cuca”. Ela : “Ah, isso é pra se dormir bãim ?” “Sim, e também para alcançar graças, boas coisas para ti, teus pais, teus manos” Silêncio. Me curvava a espreitá-la, ela se ficava pensativa, os grandes olhos dourados, cabecinha curvada para um lado, tão lady, tão duquesa ! Saí para uns fins de semana. “Não dormes cá ?”, e logo, aflita : “E quem reza comigo ?”.“Rezarás sozinha” “Pois se ainda não sei !”. Daí lutou, lutou, até que aprendeu. Na derradeira semana, me fez uma surpresa : “Anda cá, ó lindanoire, já sei a Avé Mêria inteirinha”. E ali, perante o sol, me recitou a reza toda, dedito espetado no ar, concentradíssima, não falar “vosso dente”, nem “pescadores”, nem “picadores”, tão rica, tão linda, a minha menina. E foi aquele desespero, queria viver rezando a toda hora, à janela, na cozinha, em pleno almoço : “ó lindanoire, vamos rezar ?” “logo mais, Cuca, logo mais”, “ora anda lá, vamos rezar…”. De novo escondi a hora de me embarcar. Foi de manhãzinha, ela dormia, nem a beijei, não vê-la despertar num alarido, saí feito um ladrão. Essa, a minha Cuca-Pingo-deOuro, a minha Cuca que Deus me deu. * Respeitamos a norma ortográfica brasileira para os textos que tratam ou que são de autores brasileiros. Prix Guimarães Rosa 1997 e 15 décembre dernier, à la Maison de l’Amérique latine (217, Bd. St.Germain - 75007 Paris), a eu lieu la proclamation des résultats du Prix Guimarães Rosa 97. Il a été décerné à trois lauréats brésiliens : Edmar Monteiro Filho (“1° de Janeiro é o dia dos mortos ”), Sérgio E. Orlandi Repka (“Avaliação”) et Myriam Campello (“Olho”). L n° 2 - février 98 Le prix Prix Guimarães Rosa, ouvert aux écrivains de langue portugaise, est organisé par Radio France Internationale, l’Union latine et la Maison de l’Amérique latine. Il porte le nom d’un écrivain contemporain brésilien, Guimarães Rosa (1908-1967), classé dans les postmodernistes, et qui réinventa un langage particulier, fait notamment de néologismes, de métaphores et d’allitérations, dont le but était de nous permettre de mieux pénétrer dans ce monde de fantaisie et de réalité qu’est le sertão. Ses deux romans les plus connus sont “Sagarana” et “Grande Sertão : Veredas”, traduits en français. D.S. 61