AS NARRATIVAS NO GRAFISMO DOS
ESTILISTAS AFRO-BAIANOS
Lucia Maria de Oliveira
[email protected]
Universidade do Estado da Bahia
Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia
A maioria dos espectadores, geralmente, fica passiva diante de uma imagem, consumindo a
produção imagética sem ater-se a um olhar reflexivo. São tantas as imagens com que nós
entramos em contato neste momento, de tantas e tão rápidas mudanças e avanços, que nos
encontramos num emaranhado de informações. Dentro desse contexto, as imagens invadem
todas as áreas do conhecimento sem tirarmos proveito do seu potencial comunicativo, para que
levaria a uma compreensão mais ampla dos processos de sua leitura. A imagem está
proporcionando uma cultura baseada em presenças, realidades e conceitos.
O desenho, na condição de uma das representações da imagem, etimologicamente vem do
latim designare, que significa dar a conhecer, indicar, determinar. Através dos seus sistemas de
códigos, o desenho é uma linguagem que expressa e comunica uma mensagem.
Como forma de linguagem e comunicação humana possui uma gama de informações que
são transmitidas dentro de um sistema de códigos e contextos próprios. Contendo intenções,
registros e narrativas esse sistema tem na cultura e na temporalidade seus estruturadores.
O conhecimento e uso desse sistema complexo, qualifica o desenho para ser um dos
instrumentos de comunicação entre culturas e grupos sociais. (OLIVEIRA, 2001, p. 41)
Para que o individuo possa ter essa capacidade de leitura ele precisa tornar-se um “sujeitoleitor”, conduzindo o seu processo de leitura. Percebendo as conexões e informações no
conteúdo da imagem; as relações entre sua forma e conteúdo, entre a mensagem que está
expressa e aquela que se entrelaça na trama das significações.
Observar o que está presente naquilo que ele lê, bem como no que o envolve enquanto
leitor numa rede de informações visuais, que se caracteriza por ser formativa e informativa,
transformando a imagem num “texto visual” com uma estrutura de códigos e mensagens a serem
lidos.
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Esta nova forma de ver, eleva o desenho à condição de uma metalinguagem na medida
em que podemos entender sua leitura através do conhecimento do seu conteúdo, tanto a partir
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A palavra metalinguagem é composta de duas palavras, “meta”, do grego ir além, (JAPIASSÚ; MARCONDES,
1996, p. 181) e linguagem, que é um sistema de signos que serve de meio de comunicação. (FERREIRA, 1999,
p. 1219). Portanto, a metalinguagem é uma linguagem que ampliou sua área de estudo para compreender a própria
linguagem.
dele quanto sobre ele, tornando o leitor capaz de produzir sua própria análise.
Adentrar no mundo que faz ver, desmontá-lo para remontar significados, exige um olhar
duradouro, cuja primeira condição é olhá-lo de novo. Porém, a linguagem de seus códigos
precisam ser aprendidos, pois eles são normalizados e compartilhados dentro de um contexto
determinado. (Cf. DAMASCENO, 1998, p. 104)
Para saber-ler, é preciso um saber-ver o que o desenho está mostrando. Atribuir sentido à
imagem é, pois, entrar em relação com o que é mostrado, interagir com ele, mudar as angulações
do olhar, para ver enfim, o que o desenho faz ver, capacitando o leitor a aumentar o leque de
suas interpretações.
Como representação, o desenho da imagem é um registro ao definir os elementos da
natureza do objeto representado, registrando também a intenção, o propósito do seu criador e sua
visão de mundo. Perpetua enquanto registra, ao possibilitar uma releitura dos acontecimentos. O
que revela a necessidade do estudioso das questões sociais e históricas, ampliar suas fontes de
investigação, como afirmam VIEIRA; PEIXOTO; KHOURY. (2000, p. 13) Estar atento às
narrações que o desenho, enquanto registro expõe, exige um diálogo entre pesquisador e registro.
(Ibidem, p. 26)
A leitura dessas imagens nos põe em contato com uma realidade dupla: Com o mundo dos
seres que representa e com o mundo dos autores dessas imagens. Portanto, o homem como ser
social necessita compartir criticas e avaliar em sociedade o que essa mesma sociedade lhe
informa. (GUTIÉRREZ PÉREZ, 1978, p. 73) Se abre um campo vasto para identificar em cada
desenho-registro essa duplicidade na sua dimensão, todavia, por ser este um espaço limitado de
análise, nos limitaremos a enfocar somente o aspecto do desenho enquanto registro de um
contexto sociocultural e histórico. No entanto, pela relevância encontrada no tema, propomos seu
estudo àqueles que estejam interessados em ampliar seus conhecimentos sobre as dimensões do
desenho nas formas de registro e memória visual.
Neste artigo, situamos sua discussão em torno da análise das categorias registro e narração,
encontrados nos grafismos produzidos por estilistas afro-baianos, isto é, àqueles que
desenvolvem, em Salvador, estamparias em tecidos com a temática no simbolismo desse grupo
étnico.
Buscando, inicialmente, aplicar na prática o levantamento teórico desenvolvido na parte
introdutória deste trabalho, iniciamos por uma proposta de procedimento metodológico para
extrair do grafismo, a sua dupla dimensão, de registro e narração. Como proposta dessa nova
leitura, citamos três procedimentos metodológicos a serem adotados, porém, enfatizamos que a
sua operacionalização depende de adequações devido a natureza e a dinâmica de cada objeto
lido. Fazendo-se assim, as suas devidas adequações.
Como primeira orientação, citamos a necessidade de se estabelecer um modo de ler, onde
esse modo se refaz e se completa a cada leitura, visto que o próprio objeto sugere, na sua
dinâmica, como deve ser visto. Em seguida, é necessário estar definido para o leitor, o que se
quer ver no objeto a ser lido, além de estar claro também, o que se vê no objeto é o resultado de
uma operação singular, entre o que está efetivamente no objeto, e a memória das nossas
informações e experiências, emocionais e culturais, tanto individuais quanto coletivas. Logo, o
resultado da leitura é sempre possível, jamais total. (GUTIÉRREZ PÉREZ, 1978, p. 31)
Mas, tendo em mente que o processo da percepção se dará a partir de um elemento
anterior, já sedimentado na memória informacional do leitor. Aprender o novo a partir do velho
pressupõe um reconhecimento do velho e uma parada perceptiva diante do novo. Nossa
percepção sofre os limites do nosso conhecimento e da nossa memória. Se jamais vimos um
objeto antes, a estranheza despertará nossa curiosidade.
Porém, se o conhecemos, isto pode remeter-nos ao nosso passado, até por fazer parte de
nosso repertório de referencias culturais. (RECTOR; TRINTA, 1999, p. 33) Ampliando-se
assim, a gama das relações e percepções entre o já conhecido e o a conhecer. Toda resposta
perceptiva é, portanto, uma seleção, está condicionada a nossas experiências anteriores, nossa
cultura, etc.
A seguir, será exposto o estudo do grafismo dos estilistas afro-baianos, sob a perspectiva
do desenho enquanto relato e narração, fundamentado nas idéias geradas nesta parte inicial.
AS NARRATIVAS DO GRAFISMO DE GOYA LOPES
O estudo foi realizado num grupo de cinco estilistas afro-baianos, composto por: Pitta, J.
Cunha, Goya Lopes, Ives e Márcia Ganem. Sendo que, devido ao limite de espaço nesta
exposição, foi feito um recorte maior enfocando-se apenas a produção de um só profissional do
grupo. A estilista Goya Lopes foi a selecionada por ser uma das precursoras na elaboração de
estamparias de temática étnica, em Salvador.
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Goya Lopes é uma artista plástica que se especializou em designer na Universidade de
Firenze, Itália. Criou em 1986, a marca Didara, palavra que significa “o que é bom” na língua
iorubá. Trabalha com estamparias em tecidos para o vestuário e decoração, conceituando seu
trabalho a partir da realidade e do imaginário étnico, principalmente o afro-baiano.
Seus trabalhos enfeitaram as paredes da Fundação Palmares, o Salão do Palácio do
Itamaraty; vestiram artistas como Jimmy Cliffy, Moraes Moreira, Margareth Menezes, Gilberto
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Extraído dos discursos proferidos pela Vereadora Valquíria Barbosa e pela estilista Goya Lopes, quando da entrega
da Medalha Maria Quitéria, em 17 de outubro de 2002.
Gil; as bandas musicais, como Araketu e Gente Brasileira, ou estão sendo exportadas para os
Estados Unidos, Europa, e Japão.
Pela qualidade de seu trabalho, Goya Lopes foi premiada no Museu da Casa Brasileira e
teve reconhecido seu respeito e difusão aos valores e cultura da nossa terra, com a Medalha
Maria Quitéria, pela Câmara de Vereadores de Salvador.
Goya Lopes buscou na nossa historia e nossa gente, na cor predominante e local, nos
ancestrais, o suporte ideal para a produção de suas estamparias. Usando um grafismo que resgata
a simbologia da cultura negra afro-baiana, usa cores de tons fortes, traduzindo a luminosidade de
Salvador. Ela recolhe da África e dos nossos referenciais afro-baianos, textura, cor, símbolos,
elementos figurativos e geométricos. (PIRES, 2001, p. 135; Revista Raça, 2000, p. 39)
Vestindo e revestindo corpos e espaços com uma carga informativa ressignificada, Goya
Lopes emprega também nas suas padronagens, desenhos com traços de influencia indígena.
Porém, de modo marcante, ela aplica o simbolismo afro-baiano nas suas estampagens.
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A estilista expressa por meio de uma estética própria, os modos de ser, ver, e pensar do
grupo étnico representado. Nas tramas de formas e cores, conta lendas, expõe elementos das
tradições, ideário, crenças e valores herdados de uma ancestralidade cultuada nas várias formas
de religiosidade local. É um registro da memória individual e coletiva desse grupo étnico.
Goya organiza seus grafismos em enredos nas suas coleções, explorando com seu modo
próprio de representar, os signos e temas africanos que remetem a afirmação dos valores da
cultura afro-brasileira. Mistura figuras rupestres, orixás, mandalas, e a geometrização de
elementos, fundindo o figurativo ao abstrato, tendo a cor como recurso essencial.
A seguir, abordaremos uma de suas coleções, a Ancestralidade, o legado africano,
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apresentada em 2003, São esculturas do panteon africano, da nossa ancestralidade, oriundos da
religiosidade do candomblé, que tem uma estrutura dinâmica na relação com o sagrado, com as
divindades, baseadas em interpretações mitológicas e práticas ritualísticas, que pelo olhar da
estilista Goya Lopes são recriados processos simbólicos em novas formas de significação,
visando reintegrar sentidos, com base na compreensão de um universo sempre em movimento,
sempre se recriando.
A coleção de moda da estilista está organizada por subgrupos temáticos, sendo estes,
mostrados a seguir, com a exposição, em alguns casos, de pesquisadores da religiosidade afro-
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O religioso também se veicula pela expressão estética. A música, as danças litúrgicas, os objetos sagrados, quer
sejam os que fazem parte dos altares, quer sejam os que fazem parte dos paramentos, comportam aspectos
artísticos que fazem parte da prática ritualística, então, o belo não é concebido unicamente como prazer estético,
mas faz parte de todo um sistema. (Cf. SANTOS, 1993, p. 49)
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Adaptação feita do material publicitário da estilista Goya Lopes, da sua coleção de moda, lançada no ano de 2003.
brasileira.
Na Dança dos Espíritos, seus traços estilizados formam figuras de máscaras rituais
colocando na sua expressão o movimento, demonstrados na celebração aos ancestrais. A
máscara, na concepção de CHEVALIER, GHEERBRANT, visa também a dominar o mundo
invisível, ela é mediadora entre duas forças, do ser que ela representa e do portador que a
manipula. (1989, 585) De acordo com Maria Salete Joaquim, nessa cosmovisão o ser humano
também é sagrado porque revela no seu corpo, a divindade. (2001, p. 42)
Outra representação usada pela estilista é a Dança Ritual, onde tudo é rito, uma confluência
de forças. Ainda na concepção do movimento elabora o grafismo representando o Ritmo, que
como uma dança que se repete, é um ato lúdico, onde a alegria se revela na característica basilar
do povo da nossa cidade, que se mescla numa mistura com a estética, a sensualidade e o
religioso.
Arte do Cotidiano é outro tema central dessa coleção, mostrando que a arte sempre esteve
integrada à vida, integrando tanto nos objetos mais simples quanto nos destinados aos rituais
religiosos. O traço africano expressa a idéia de que cada símbolo denota um sentimento, uma
opinião ou visão da vida. E, com o Uroboro, se quer mostrar que a natureza do universo é cíclica
representada pela imagem da serpente que morde o próprio rabo, numa idéia do fim sendo um
novo recomeço.
A música, que tem uma presença forte nas atividades dos ancestrais, vem representada
pelos instrumentos sagrados, como os atabaques. Com o tema Musicalidade Afro-Baiana, a
estilista representa os instrumentos, os sons e a natureza celebrando a música, conservada pelos
nossos ancestrais. A Mandala Musical traz a concentração de instrumentos gerando uma
harmonia. A mandala, embora não seja um elemento de origem afro, empresta seu significado
dentro dessa cosmovisão. Ela é ao mesmo tempo um resumo da manifestação espacial, uma
imagem do mundo, além de ser a representação de potências divinas.(CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1989, p. 585)
Na estética, tem-se o tema Oxum, o orixá da beleza e do amor. O Achanti, representado
pela boneca símbolo da fertilidade para o povo achanti, que habita a região do Golfo da Guiné,
principalmente no território da República de Gana , oeste da África. (FERREIRA, 1999, p. 242243) E, a Arte de Trançar – construtora de esculturas temporárias.
A culinária e a religião são as outras duas formas de sua releitura nas estamparias, desta
coleção. Trazendo no primeiro tema, os alimentos sagrados. Comer é antes de tudo se relacionar,
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circulando e se renutrindo. O Ajeun, é a festa do comer e do beber. O Ebó, é a comida oferecida
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“[...] é ainda um ritual de alimentação física, geralmente culminando com samba de roda.” (LODY, 1995, p. 64).
aos orixás, transformando-se em comida do cotidiano. E, o Padé, que é o alimento do início das
cerimônias. Finalizando-se o tema da culinária com o Oguri, peixe, a comida de Iemanjá, orixá
das águas profundas.
Na religião tem-se os Búzios, que são conchas do mar usadas no início da adivinhação. São
16, e cada búzio representa um orixá. Outro tema dentro da religião é o Jogo de Búzios, consulta
aos orixás. O conjunto forma uma espécie de enciclopédia oral dos conhecimentos tradicionais
do povo de língua ioruba. Segue-se nesse grupo temático, O Ifá, a arte da adivinhação, além do
O dia e a noite, que expressa, que tudo com tempo tem o seu tempo. O Ritual e o Orixá
completam este grupo, a primeira estampa indicando uma prática esquecida pelos homens, e a
seguinte, a divindade afro-brasileira, que simboliza a força da natureza.
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A cultura material africana e a afro-brasileira, em particular, a afro-baiana, é um
repositório dos mitos milenares e das observações do mundo atual. Esta dualidade evidencia o
cumprimento e respeito à ancestralidade, onde o individual se assenta enquanto agente da
concepção mítica coletiva. (Cf. LODY, 1995, p. 18)
Com uma carga cultural tão rica e expressiva em sua plasticidade, um olhar mais atento e
renovado, para os desenhos de suas representações, enquanto registro, narração e memória
visual, por certo, também renovará o grau de conhecimento sobre esses grupos sociais.
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LODY, Raul. O povo do santo: religião, história e cultura dos orixás, voduns, inquices e
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Lucia Maria de Oliveira