AS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS ENTRE CASTELA E PORTUGAL E A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO REI CRISTÃO IBÉRICO DE ACORDO COM FREI ÀLVARO PAIS (12701350) Armênia Maria de Souza Faculdade de História/UFG e-mail: [email protected] 1 Os conflitos entre Afonso XI (1325-1350) e Afonso IV (1325-1357) Este trabalho tem por objetivo estudar as relações políticas e matrimoniais entre os reinos de Castela e Portugal durante os reinados de D. Afonso IV e D. Alfonso XI, sob a ótica de D. Álvaro Pais (1270-1350), bispo da diocese de Silves, expectador atento dos fatos ocorridos durante o período de querelas envolvendo os dois reinos por ocasião da guerra deflagrada contra Castela pelo rei português. A conjuntura na qual Álvaro Pais assumiu a diocese de Silves, atual Faro, por bula do papa João XXII, de 09 de junho de 1333, apresentou-se como um dos mais conturbados nas relações entre Castela e Portugal (COSTA, 1966, 56 segs.). Além do mau acolhimento na diocese algarvia, enfrentaria posteriormente problemas com o rei Afonso IV. Ao chegar a Silves sofreu, primeiramente, a resistência do arcediago da Catedral, Francisco Pires, e de outros clérigos e religiosos, por denunciar nos seus sermões os pecados cometidos pelos clérigos de sua diocese (LAVAJO, 1995). À parte o conflito com os clérigos da sua diocese, com os Concelhos do Algarve e com a Ordem de Santiago, frei Álvaro teve que enfrentar a postura centralizadora do monarca português (ANTUNES, 1984, p. 61 segs.). As tentativas de paz entre Portugal e Castela foram diligenciadas por distintos reis em períodos anteriores, no sentido de manter uma união luso-castelhana contra os muçulmanos. Exemplo disso, o Tratado de Agreda, celebrado em 1304 pelo Rei de Portugal D. Dinis (PAES FILHO, 2008), o qual visava a manutenção das boas relações entre os reinos peninsulares de Portugal, Castela e Leão e Aragão, estabelecendo uma aliança entre os três reinos, que foi confirmada entre 1328 e 1329, já no reinado de D. Afonso IV. Além daquele tratado, Portugal havia realizado outros bilaterais com Castela (1327-1329) e com Aragão em 1338. Para consolidarem as alianças, negociaram-se os casamentos da Infanta D. Maria, filha de Afonso IV com Afonso XI de Castela (1328) e do infante Pedro de Portugal, com D. Branca, filha do Infante D. Pedro de Castela, também em 1328. Todavia, o Infante D. Pedro veio a casar-se com D. Constança Manuel, de Castela, concretizando a política do pai, que via em D. Juan Manuel e vice-versa um forte aliado contra Afonso XI, que por causa das contendas com o senhor de Viscaya e Peñafiel, procurou impedir a partida de D. Constança por terras castelhanas, no intuito de consumar casamento com o príncipe português. [...]& Dom João Manoel sendo enojado, & agravado del Rey de Portugal por contrariar com elRey de Castella o casamento de D. Constança sua filha, & o fazer com a Rainha Dona Maria dezejando no mesmo caso sua vingança que fosse cõ desgosto, & abatimento del Rey de Portugal, & assi buscar algum remedio, & segurança de sua vida, & estado, de que estava muy duvidozo, sabendo que elRey de Castella, & todo o Reyno estavaõ a disposição, & vontade de Dona Leanor sua manceba[...] (CHRONICA D’ELREY D. AFONSO IV. In: PINA, cap. V, p.16). Essa política matrimonial abalou não só as relações já estremecidas entre os dois reis, mas, também, desencadeou uma guerra interna com o pai de D. Constança Manuel, que procurou aliados entre os reinos de Granada, Portugal e Aragão contra Afonso XI, como narra a Crônica de Afonso XI: “[...] enviósele querellar, quel Rey de Castiella, le facia muchos tuertos e muchos males: señaladamiente que le avia dexado su fija, et que queria tomar outra muger, et por esto que él se avia despedido et desnaturado del, et que le facia guerra en la tierra [...]” (CRÔNICA DEL REY DON ALFONSO EL ONCENO,1953, cap. LX, p. 210). Ao ser entronizado, D. Afonso XI (1325-1350) procurara reestruturar o Reino de Castela, começando pela nobreza. Para isso lançou mão de diversas medidas em busca de apoio político para sanar os conflitos no seio da “nobreza velha” (MOXÓ, 2000, p.311; NAVARRO, 2004; GERBET, 1997; GIBELLO BRAVO, 1999). O reino castelhano necessitava, de um rei forte e centralizador para superar cerca de cinqüenta anos de desordens. Os meios utilizados para alcançar a autonomia régia, no entanto, não agradaram a “velha nobreza” que se sentiu alijada de seus interesses. Assim, os problemas com o Infante D. Juan Manuel, por causa do rompimento do contrato de casamento com D. Constança Manuel, e do enlace matrimonial com D. Maria, filha de D. Afonso IV, usado como estratégia política para a união dos dois Reinos, trouxe a desarmonia com o Infante castelhano e depois com o rei de Portugal. Pois as queixas de D. Maria contra o marido se intensificaram, agravando ainda mais a situação entre os dois reinos. Dessa forma, os desentendimentos entre o casal e a política intervencionista de D. Afonso IV acabaram por causar um conflito armado entre os dois Reinos. Diante desses acontecimentos, Álvaro Pais na condição de bispo da diocese de Silves relatou a política matrimonial dos monarcas expressando o cotidiano das relações políticas entre Portugal e Castela. Cremos que os objetivos diplomáticos e políticos de Afonso IV para os seus filhos seriam uma das causas dos problemas que ocasionaram as más relações entre o Bispo de Silves e o Rei português, entretanto, a problemática não se referia somente à política matrimonial empreendida por aquele rei, mas à desobediência às regras sobre os graus de consangüinidade, estabelecidas pelo IV Concílio de Latrão de 1215 (Concilium Lateranense IV, 1973). O contrato de casamento do Rei castelhano com D. Maria propunha às partes que em caso de conflito, Castela perderia os direitos de vassalagem sobre os bens dados em dote à infanta portuguesa. No caso de Castela opor-se a alguma cláusula do referido contrato, previa-se que a Coroa portuguesa tomasse para si os bens concedidos no momento da negociação do consórcio de casamento. O reino português, obviamente, se beneficiaria com tal negociação (CARTA DO CONTRATO DE CASAMENTO DE EL-REI D. AFONSO DE CASTELA, 1967, p.508-509). Diante dos problemas matrimoniais entre Dona Maria e o rei castelhano, que mantinha abertamente um relacionamento extraconjugal com a nobre sevilhana D. Leonor de Guzmàn (CRESPO,1991), e desdenhava a mulher legítima, conforme Rui de Pina, a rainha era tratada “[...] com grandes disfavores, & com muy poucas mostranças de verdadeyro amor [...]” (CHRONICA D’EL-REY D. AFONSO IV. In: PINA, cap. V, p.16). A par dessa situação e procurando evitar escândalo e uma guerra armada entre seu filho e seu neto a rainha D. Isabel procurou a conciliação do casal, por meio de um encontro com o rei em Xerez de Badajos (GIMENEZ, 2005, p. 31) “[...]& dali se partio elRey com promessas que fez de se não dar tanto a afeição de Dona Leanor, mas elle despoys fez em todo o contrario de sua promessa [...]”(CHRONICA D’EL-REY D. AFONSO IV. In: PINA, cap. V, p.17). Diante desse quadro, e buscando os interesses de Portugal por meio das posses de sua filha, Afonso IV declarou guerra ao rei de Castela. E em face tal empreendimento bélico, passou a sobretaxar e a confiscar os bens eclesiásticos. Frei Álvaro reagiu a essa situação ressaltando a inutilidade da guerra contra Castela e os excessivos gastos militares para manter o conflito (CARTAS DE ÁLVARO PAIS A D. AFONSO IV. In: COSTA, 1966, p. 147). Igualmente, via na desunião dos dois reinos uma oportunidade para a expansão sarracena na Península Ibérica. Desta feita, houve a necessidade da intervenção do bispo de Rodes, legado de Roma a mando do Papa Bento XII, como narrou Rui de Pina na Crônica de D. Afonso IV: Ao tempo que elRey de Castella estava en Sevilla, & se aparellava para entrar, como entrou, no Algarve chegou a elle por dellegado do Papa Benedicto Duodécimo que estava e Avinhão hu Bernardo Bispo de Rodes homem prudente, & de boa vida, & assaz eloqüente [...] o qual também vinha adereçado a elRey de Portugal pera antre estes Reys tratar paz, ou menos tregoa por algum tempo[...]”(CHRONICA D’EL-REY D. AFONSO IV. In: PINA, cap. XLII, p.110). Além do emissário papal, fora também enviado o bispo de Reims procurador do rei de França, Filipe VI no intuito de trazer uma trégua às hostilidades entre os dois reinos desde finais de 1338. Depois de longas negociações, aprouveram à assinatura em Sevilha, de um tratado de paz, em julho de 1339. Tratado esse que previa a manutenção das fronteiras entre Portugal e Castela e permitia a vinda da infanta D. Constança para Portugal, a fim de consumar o matrimônio com o infante D. Pedro e o regresso da Infanta D. Branca a Castela; estabeleceu-se, ainda, que D. Afonso XI se retrataria com a sua mulher, a rainha D. Maria (MARQUES, 1987, p.500) e que deixaria a amante D. Leonor de Guzmán1, o que não veio a ocorrer, permanecendo a rainha em terras portuguesas até a morte do marido em 1350. O rei Castelhano procurou o apoio de todos os reinos cristãos e em especial de Portugal, cujo papel diplomático de Dona Maria junto ao pai foi definitivo para a ajuda dos portugueses na defesa das fronteiras castelhanas e de vital importância para o processo de paz. Afonso IV foi relevante na derrota sofrida pelos sarracenos no rio Salado, em outubro de 1340. Essa guerra, como as de Reconquista, ganhou ares de Cruzada, como narra a Crônica de D. Afonso IV: Ao tempo deste cerquo, elRey de Castella hera en Sevilla, a onde chegou a elle de Roma João Martins de Leyua, q pera esta guerra lhe trouxe do Papa geral Cruzada, cõ as graças, perdoes, & Indulgências da cõquista dultra mar, & assi con outroga de dizimos, & terças das Igrejas do Reyno, por certos annos (CHRONICA D’EL-REY D. AFONSO IV. In: PINA, cap. LIII, p. 145). Não podemos ser ingênuos a ponto de pensar que o apoio do rei português à Castela ocorrera somente para salvar a honra da filha, como já mencionamos havia outros 1 O rei Afonso XI, que teve apenas dois filhos legítimos com a rainha D. Maria (1313-1357), sua prima-irmã, filha de D. Afonso IV, de Portugal, Fernando (1332), que morreu antes de completar um ano de idade e Pedro cognominado mais tarde “o cruel” (1334-1369), futuro sucessor ao trono com o nome de Pedro I. Com Leonor Núñez de Guzmán (1310-1351) teve dez filhos, dentre eles Henrique Alfonso de Las Mercedes (1333-1358), senhor de Trastâmara, fundador da Casa de Trastâmara e futuro rei de Castela e Leão com o nome de Henrique II. Cf. CRÔNICA DEL REY ALFONSO ONCENO, cap. LX, p. 209. interesses, como a guarda dos patrimônios herdados pela Infanta durante a negociação do matrimônio com o rei castelhano, e igualmente a ameaça muçulmana sobre os reinos cristãos da Península, da qual Portugal não estava incólume. No tocante às relações entre Dom Afonso IV e Frei Álvaro, acreditamos que os conflitos deveram-se a outros fatores. Um deles, mencionado anteriormente, a política centralizadora do rei português e a intervenção nos patrimônios das igrejas para a manutenção da guerra contra Castela (ANTUNES, 1984, p.121 segs.). Outro, à forte personalidade do bispo de Silves que ao denunciar o parecer dos legistas sobre o matrimônio de D. Branca de Castela e o infante D. Pedro, colocava em perigo a política de casamento do rei para com seu filho, posto que os legados defendiam a nulidade do matrimônio, para que o Infante pudesse se casar novamente com Dona Constança, filha do infante castelhano D. Juan Manuel. Por sua parte, na primeira carta de Frei Álvaro ao rei de Portugal, além de chamar a atenção para a guerra e as suas conseqüências maléficas ele insistiu na ilegalidade dos novos esponsais de D. Pedro: “Sponsalia noviter contracta de nostro, tuo primogênito, propter duplicis honestatis iustitie impedimentum, quidquid dicant tui legiste, assessores tui, nulla ipso iure. Fundata fuit guerra tua super fundamentum arene” (CARTAS DE ÁLVARO PAIS A D. AFONSO IV. In: COSTA, 1966, p. 147). Álvaro Pais e a construção da imagem dos reis cristãos Toda essa problemática explicaria a dedicatória do Espelho dos reis2 ao rei castelhano Afonso XI, excluindo da mesma o rei Afonso IV (1325-1357)? Embora a historiografia portuguesa tenha-o consagrado sob a alcunha de “o Bravo”, pelo seu papel na batalha do Salado (SERRÃO, 1990, v. 1; MARQUES, 1987), para o Frade franciscano, naquele momento, o rei ideal para manter a paz na Península era Afonso XI. Todavia, essa questão reflete um contexto muito mais complexo do que simplesmente as desavenças do Frade com o rei Português ou o afeto e o sentimento de gratidão aos reis de Castela. A problemática incidia igualmente na desobediência do rei português e de seus assessores aos preceitos conciliares sobre o matrimônio e a interferência nos assuntos eclesiásticos, o que muitos governantes faziam vista grossa e insistiam em não cumprir, buscando 2 De agora em diante utilizaremos a sigla ER. subterfúgios para impor a cobrança de dízimos e privilégios às igrejas e para realizar uma política de casamento que conviesse às respectivas Coroas. Como vimos, as diversas embaixadas entre Castela e Portugal comprovavam a necessidade premente de se manter um bom relacionamento diplomático entre os reinos peninsulares e em alguns momentos a diplomacia era estimulada e apoiada pelo próprio papado. È preciso notar o conteúdo político do pensamento alvarino inerente às boas relações entre os reinos peninsulares. O contexto que antecedeu a Batalha do Salado, narrado por frei Álvaro Pais, pode ser constatado a partir das missivas ao rei Afonso IV, do Espelho dos Reis e do Estado e Pranto da Igreja3, sua primeira obra. O Espelho dos Reis foi escrito entre 1341-1344, após a Batalha definitiva contra o “infiel”, levada a cabo pelo monarca português, Afonso IV e pelo castelhano Alfonso XI, com o auxílio das tropas aragonesas, os quais derrotaram os sarracenos no ano de 1340, às margens do rio Salado, conhecida pelos espanhóis com a batalha de Tarifa (LAVAJO, 1995, p.78). As crônicas apresentam o rei Afonso IV imbuído de um espírito de liderança que o notabilizou diante dos demais naquela batalha, todavia, conforme dissemos, para Frei Álvaro o verdadeiro herói naquela batalha fora Afonso XI. Rui de Pina, por exemplo, exaltou o papel do rei português: Pelo qual vendo elRey de Castella, & os grandes homens de seu conselho o voto, & determinação de elRey de Portugal, que parecia favorecido da graça de Deos, & que a sua contradiçam lhe fazia grande mingoa se a nam consentissem, tomarão loguo todos grãde esforço em seus coraçoes, & sem mais alteraçam asentaraõ em suas vontades o Catholico, & devoto, & muy Real Conselho de elRey de Portugal, que era socorrer Tarifa, u & non de negar, antes procurar batalha com os Reys Mouros q eraõ no serquo prezentes[...] (CHRONICA D’EL-REY D. AFONSO IV in: PINA, 1653, p. 137). O auxílio militar dos portugueses reforçou a armada castelhana, que bem organizada e treinada por genoveses a serviço do rei de Portugal, fez com que os cristãos penetrassem de surpresa naquela vila e rendessem os marroquinos nas margens do rio Salado, em 30 de outubro de 1340 (MONUMENTA HENRICINA, 1960, p. 178, nota 1) É preciso enfatizar o momento em que Álvaro Pais escreveu o Espelho dos reis, afinal os cristãos saíram como vitoriosos na batalha do Salado em 1340 e a obra de Álvaro Pais fora terminada em 1344. Logo, nota-se que muitas das exortações do religioso franciscano foram escritas antes da batalha. Não podemos deixar de mencionar que essa vitória significou a expulsão definitiva dos muçulmanos da Península, o receio da Igreja 3 Utilizaremos a sigla EPI I e EPI II. ainda era premente. Por isso, na ótica de frei Álvaro os reis deviam guardar em si as virtudes, tendo a fortaleza como sua armadura (ER, 1963, v. 2, p.115). Frei Álvaro, enquanto personagem significativo daquele momento revela em seu discurso o enaltecimento à figura dos reis cristãos e dos seus exércitos como superiores ao inimigo muçulmano, o que também encontramos nas crônicas dos dois reinos. Numa sociedade dominada pela violência, a fortaleza ou valentia deveria ser entendida a partir da terceira parte da fortaleza, a paciência, que “[...] é o sofrimento voluntário e duradoiro das coisas árduas e difíceis, movido por um propósito honroso ou útil [...]” (ER, 1955, v. 1, p. 401). O monarca devia seguir o exemplo dos antigos reis e príncipes dotados de resignação. Esta virtude o tornaria apto a suportar o temor e o sofrimento sem reclamações. A guerra, num aspecto mais amplo, seria a ocasião para se provar o corpo e o espírito a partir dos valores mais característicos daqueles homens: a honra, o valor e a generosidade (GIBELLO BRAVO, 1999, p.53 segs.), elementos que distinguiam a nobreza, como aristocracia militar, do resto da sociedade. Comprova-se a exaltação do rei cristão ibérico também por meio de fontes laicas como a Crônica de Afonso XI, como o relato pelo cronista das dificuldades encontradas pelos cristãos no transcurso da Batalha até o momento da derrota muçulmana. Note que além da peleja, o cronista narra que durante dois dias “[...] en la noche fizo tan grande água, que los Christianos pasaron muy grand trabajo [...]” (CRÔNICA DEL REY ALFONSO ONCENO, 1953, cap. CXCIX, p.300). O elogio às tropas muçulmanas ressaltou ainda mais o caráter heróico dos cristãos pelo fato de “[...] Los moros seyendo omes de grand esfuerzo, maguer veían caer et morir muchos de los suyos, non querian partirse dela pelea, nun probaban de fuir: et estaban firmes feriendo en los Christianos lo mas fuerte que podian [...]”(CRÔNICA DEL REY ALFONSO ONCENO,1953, cap. CXCIX, p.300). Há que se destacar que o imaginário dos homens à essa época conferia à nobreza o direito de guerrear e fazer uma justiça privada (DUBY, 1978), processo que aos poucos foi se diferenciando com a centralização do poder político nas mãos dos monarcas, os quais passaram a requerer para si o exercício da justiça. A justiça por excelência passa a ser a virtude do rei (DUBY,1994, p. 299), para além da virtude da fortaleza e suas subdivisões como a perseverança, que de acordo com frei Álvaro [...] torna o homem a tal ponto firme, que nem a adversidade o quebra, nem a prosperidade o envaidece. Também faz com que não se deixe esmagar por ameaças, nem vergar com promessas (ER, 1955, v. 1, p.417). Aqui o autor refere-se a Cícero nos tratados de Retórica, advertindo que essa virtude floresceu entre os antigos. O pensamento medieval assimilou esse valor moral estóico ao cristianismo, por isso o sofrimento do corpo era visto como uma forma de purificação dos pecados por meio da maceração da carne, de jejuns e de disciplinas rigorosas. Assim, a observância aos preceitos e normas cristãs fez de Afonso XI, de acordo com o Frade, “rei vitoriosíssimo” ao vencer a batalha do Salado, visão que coincide com a do cronista de Afonso XI. Assim, Álvaro Pais constrói no Espelho dos reis uma imagem positiva do rei castelhano ao dedicar-lhe a obra, ao mesmo tempo em que preteriu D. Afonso IV em tal dedicatória, por motivos, cremos, ser mais uma questão de quebra de autoridade – pois o bispo de Silves enquanto um defensor da hierocracia pontifícia, não admitia as intervenções do rei português em sua diocese –, do que somente às questões pessoais que envolveram o monarca e o frei. Saliente-se que ao assumir o trono, D. Afonso XI lançou mão de uma política de renovação da nobreza, trazendo à tona o ideário da cavalaria como uma instituição de origem divina, justificando a sua existência a partir dum esquema religioso e político que consistia, na defesa da fé, do reino e dos senhorios. Estes seriam os milites Christi, como descreveu Frei Álvaro: “O soldado de Cristo nem se exalta com o louvor, nem se quebranta com a censura, nem incha com as riquezas, nem se amargura com a pobreza; despreza as coisas alegres e as tristes” (EPI I, art. 40, 1988, v. I; EPI II, art. 32, 1995, v. 5, p. 309). A política empreendida pelo rei castelhano trouxe a ainda, a consolidação da imagem do rei como principal fonte de enobrecimento para a nova nobreza. Na Gran Crônica e na Crônica de D. Afonso XI, por exemplo, ele aparece na condição de “criador y facedor de nobles” (NAVARRO, 2004, p. 179). Devido a reestruturação da nobreza e da cavalaria, sua composição ficou ainda mais heterogênea e distinta dos ricos-homens, fidalgos e a cavalaria popular(CRÓNICA DEL REY ALFONSO ONCENO, 1953, cap. 101, p.235 segs). . A Gran Crônica (1977) do rei Afonso XI, também apresenta a imagem do rei como exemplo de nobre cavaleiro, ressaltando, dentre as suas virtudes, a moderação, a prudência, a justiça e a generosidade para com seus vassalos, além do gosto pelas armas, comprovando o que se disse logo acima na Crônica do referido rei. Perante uma nobreza insubmissa e por vezes poderosa, cabia aos reis dos novos “estados” nacionais, disciplinarem os seus membros com diversas medidas que viessem garantir a autonomia do poder régio (GUENEE, 1981). Afonso XI não passou impune a esse processo. Para centralizar o poder, foi preciso disciplinar a aristocracia e se colocar acima dos potentados do Reino. Ao exortar os governantes a seguirem os exemplos dos antigos, o argumento do prelado sustentava-se no fato de que mesmo desconhecendo Cristo, início e fim de todas as virtudes, tornaram-se exemplos de coragem e de perseverança moral, sofrendo a morte pela verdade e pela honra “[...] quantas mais nobres ações não devem fazer e quantas mais honras não devem desprezar pela felicidade eterna, os fiéis, a quem cabe revestir-se das virtudes, a saber da fé, esperança e caridade” (ER, 1955, v. 1, p. 425). Et porque en amas las partes avia caballeros muy ardides, et de grandes corazones, dieronse los primeros golpes muy fuertes, et estidieron los unos et los otros bien firmes en la pelea, ca ningunos dellos non tenian que avian á facer sinon vencer ó morir. Et como quíera que los Christianos eran menos que los Moros, pero eran bien armados, et llevaban buenos caballos, et avian buenos corazones et buenas fuerzas para sofrir bien las armas, et daban grandes golpes de que derribaban et mataban muchos de los Moros (CRÔNICA DEL REY ALFONSO ONCENO, op. cit., 1953, cap. CXCIX, p.300. Com respeito à narrativa do cronista, faz-se necessário elucidar que esta visão acerca da Batalha expressa a idéia de um sentimento de superioridade do vencedor sobre o vencido. Como nosso objetivo não é o estudo desta batalha especificamente, não fomos buscar fontes que retratem o outro lado, a visão dos sarracenos, posto que nosso objetivo, ao estudar as relações diplomáticas entre Castela e Portugal, se restringe ao modelo de rei cristão para a Península Ibérica desejado por frei Álvaro Pais. À parte os excessos das crônicas às quais tivemos acesso (a de D. Afonso IV e a de D. Afonso XI), estas apresentam um consenso sobre a vitória contra os mouros. Atualmente, historiadores portugueses e espanhóis têm se dedicado aos estudos acerca da presença muçulmana e judia na Península Ibérica, buscando uma releitura e revisitando fontes, utilizando-se de outras ciências, para dirimir as dúvidas sobre esse assunto. BIBLIOGRAFIA Fontes: CARTA DO CONTRATO DE CASAMENTO de El-rei D. Afonso de Castela e a Infanta D. Maria, Filha de El-rei D. Afonso de Portugal. Escalona, 1328, p. 501-519. In: AS GAVETAS DA TORRE DO TOMBO. 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