AS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS ENTRE CASTELA E PORTUGAL E A CONSTRUÇÃO
DA IMAGEM DO REI CRISTÃO IBÉRICO DE ACORDO COM FREI ÀLVARO PAIS (12701350)
Armênia Maria de Souza
Faculdade de História/UFG
e-mail: [email protected]
1 Os conflitos entre Afonso XI (1325-1350) e Afonso IV (1325-1357)
Este trabalho tem por objetivo estudar as relações políticas e matrimoniais entre
os reinos de Castela e Portugal durante os reinados de D. Afonso IV e D. Alfonso XI, sob a
ótica de D. Álvaro Pais (1270-1350), bispo da diocese de Silves, expectador atento dos fatos
ocorridos durante o período de querelas envolvendo os dois reinos por ocasião da guerra
deflagrada contra Castela pelo rei português.
A conjuntura na qual Álvaro Pais assumiu a diocese de Silves, atual Faro, por
bula do papa João XXII, de 09 de junho de 1333, apresentou-se como um dos mais
conturbados nas relações entre Castela e Portugal (COSTA, 1966, 56 segs.). Além do mau
acolhimento na diocese algarvia, enfrentaria posteriormente problemas com o rei Afonso IV.
Ao chegar a Silves sofreu, primeiramente, a resistência do arcediago da Catedral, Francisco
Pires, e de outros clérigos e religiosos, por denunciar nos seus sermões os pecados
cometidos pelos clérigos de sua diocese (LAVAJO, 1995). À parte o conflito com os clérigos
da sua diocese, com os Concelhos do Algarve e com a Ordem de Santiago, frei Álvaro teve
que enfrentar a postura centralizadora do monarca português (ANTUNES, 1984, p. 61
segs.).
As tentativas de paz entre Portugal e Castela foram diligenciadas por distintos
reis em períodos anteriores, no sentido de manter uma união luso-castelhana contra os
muçulmanos. Exemplo disso, o Tratado de Agreda, celebrado em 1304 pelo Rei de Portugal
D. Dinis (PAES FILHO, 2008), o qual visava a manutenção das boas relações entre os
reinos peninsulares de Portugal, Castela e Leão e Aragão, estabelecendo uma aliança entre
os três reinos, que foi confirmada entre 1328 e 1329, já no reinado de D. Afonso IV. Além
daquele tratado, Portugal havia realizado outros bilaterais com Castela (1327-1329) e com
Aragão em 1338.
Para consolidarem as alianças, negociaram-se os casamentos da Infanta D.
Maria, filha de Afonso IV com Afonso XI de Castela (1328) e do infante Pedro de Portugal,
com D. Branca, filha do Infante D. Pedro de Castela, também em 1328.
Todavia, o Infante D. Pedro veio a casar-se com D. Constança Manuel, de
Castela, concretizando a política do pai, que via em D. Juan Manuel e vice-versa
um forte aliado contra Afonso XI, que por causa das contendas com o senhor de
Viscaya e Peñafiel, procurou impedir a partida de D. Constança por terras
castelhanas, no intuito de consumar casamento com o príncipe português.
[...]& Dom João Manoel sendo enojado, & agravado del Rey de Portugal por
contrariar com elRey de Castella o casamento de D. Constança sua filha, &
o fazer com a Rainha Dona Maria dezejando no mesmo caso sua vingança
que fosse cõ desgosto, & abatimento del Rey de Portugal, & assi buscar
algum remedio, & segurança de sua vida, & estado, de que estava muy
duvidozo, sabendo que elRey de Castella, & todo o Reyno estavaõ a
disposição, & vontade de Dona Leanor sua manceba[...] (CHRONICA D’ELREY D. AFONSO IV. In: PINA, cap. V, p.16).
Essa política matrimonial abalou não só as relações já estremecidas entre os
dois reis, mas, também, desencadeou uma guerra interna com o pai de D. Constança
Manuel, que procurou aliados entre os reinos de Granada, Portugal e Aragão contra Afonso
XI, como narra a Crônica de Afonso XI: “[...] enviósele querellar, quel Rey de Castiella, le
facia muchos tuertos e muchos males: señaladamiente que le avia dexado su fija, et que
queria tomar outra muger, et por esto que él se avia despedido et desnaturado del, et que le
facia guerra en la tierra [...]” (CRÔNICA DEL REY DON ALFONSO EL ONCENO,1953, cap.
LX, p. 210).
Ao ser entronizado, D. Afonso XI (1325-1350) procurara reestruturar o Reino de
Castela, começando pela nobreza. Para isso lançou mão de diversas medidas em busca de
apoio político para sanar os conflitos no seio da “nobreza velha” (MOXÓ, 2000, p.311;
NAVARRO, 2004; GERBET, 1997; GIBELLO BRAVO, 1999). O reino castelhano
necessitava, de um rei forte e centralizador para superar cerca de cinqüenta anos de
desordens. Os meios utilizados para alcançar a autonomia régia, no entanto, não agradaram
a “velha nobreza” que se sentiu alijada de seus interesses. Assim, os problemas com o
Infante D. Juan Manuel, por causa do rompimento do contrato de casamento com D.
Constança Manuel, e do enlace matrimonial com D. Maria, filha de D. Afonso IV, usado
como estratégia política para a união dos dois Reinos, trouxe a desarmonia com o Infante
castelhano e depois com o rei de Portugal. Pois as queixas de D. Maria contra o marido se
intensificaram, agravando ainda mais a situação entre os dois reinos. Dessa forma, os
desentendimentos entre o casal e a política intervencionista de D. Afonso IV acabaram por
causar um conflito armado entre os dois Reinos.
Diante desses acontecimentos, Álvaro Pais na condição de bispo da diocese de
Silves relatou a política matrimonial dos monarcas expressando o cotidiano das relações
políticas entre Portugal e Castela. Cremos que os objetivos diplomáticos e políticos de
Afonso IV para os seus filhos seriam uma das causas dos problemas que ocasionaram as
más relações entre o Bispo de Silves e o Rei português, entretanto, a problemática não se
referia somente à política matrimonial empreendida por aquele rei, mas à desobediência às
regras sobre os graus de consangüinidade, estabelecidas pelo IV Concílio de Latrão de
1215 (Concilium Lateranense IV, 1973).
O contrato de casamento do Rei castelhano com D. Maria propunha às partes
que em caso de conflito, Castela perderia os direitos de vassalagem sobre os bens dados
em dote à infanta portuguesa. No caso de Castela opor-se a alguma cláusula do referido
contrato, previa-se que a Coroa portuguesa tomasse para si os bens concedidos no
momento da negociação do consórcio de casamento. O reino português, obviamente, se
beneficiaria com tal negociação (CARTA DO CONTRATO DE CASAMENTO DE EL-REI D.
AFONSO DE CASTELA, 1967, p.508-509).
Diante dos problemas matrimoniais entre Dona Maria e o rei castelhano, que
mantinha abertamente um relacionamento extraconjugal com a nobre sevilhana D. Leonor
de Guzmàn (CRESPO,1991), e desdenhava a mulher legítima, conforme Rui de Pina, a
rainha era tratada “[...] com grandes disfavores, & com muy poucas mostranças de
verdadeyro amor [...]” (CHRONICA D’EL-REY D. AFONSO IV. In: PINA, cap. V, p.16).
A par dessa situação e procurando evitar escândalo e uma guerra armada entre seu filho e
seu neto a rainha D. Isabel procurou a conciliação do casal, por meio de um encontro com o
rei em Xerez de Badajos (GIMENEZ, 2005, p. 31) “[...]& dali se partio elRey com promessas
que fez de se não dar tanto a afeição de Dona Leanor, mas elle despoys fez em todo o
contrario de sua promessa [...]”(CHRONICA D’EL-REY D. AFONSO IV. In: PINA, cap.
V, p.17).
Diante desse quadro, e buscando os interesses de Portugal por meio das posses
de sua filha, Afonso IV declarou guerra ao rei de Castela. E em face tal empreendimento
bélico, passou a sobretaxar e a confiscar os bens eclesiásticos. Frei Álvaro reagiu a essa
situação ressaltando a inutilidade da guerra contra Castela e os excessivos gastos militares
para manter o conflito (CARTAS DE ÁLVARO PAIS A D. AFONSO IV. In: COSTA, 1966, p.
147).
Igualmente, via na desunião dos dois reinos uma oportunidade para a expansão
sarracena na Península Ibérica. Desta feita, houve a necessidade da intervenção do bispo
de Rodes, legado de Roma a mando do Papa Bento XII, como narrou Rui de Pina na
Crônica de D. Afonso IV:
Ao tempo que elRey de Castella estava en Sevilla, & se aparellava para
entrar, como entrou, no Algarve chegou a elle por dellegado do Papa
Benedicto Duodécimo que estava e Avinhão hu Bernardo Bispo de Rodes
homem prudente, & de boa vida, & assaz eloqüente [...] o qual também
vinha adereçado a elRey de Portugal pera antre estes Reys tratar paz, ou
menos tregoa por algum tempo[...]”(CHRONICA D’EL-REY D. AFONSO IV.
In: PINA, cap. XLII, p.110).
Além do emissário papal, fora também enviado o bispo de Reims procurador do
rei de França, Filipe VI no intuito de trazer uma trégua às hostilidades entre os dois reinos
desde finais de 1338. Depois de longas negociações, aprouveram à assinatura em Sevilha,
de um tratado de paz, em julho de 1339. Tratado esse que previa a manutenção das
fronteiras entre Portugal e Castela e permitia a vinda da infanta D. Constança para Portugal,
a fim de consumar o matrimônio com o infante D. Pedro e o regresso da Infanta D. Branca a
Castela; estabeleceu-se, ainda, que D. Afonso XI se retrataria com a sua mulher, a rainha D.
Maria (MARQUES, 1987, p.500) e que deixaria a amante D. Leonor de Guzmán1, o que não
veio a ocorrer, permanecendo a rainha em terras portuguesas até a morte do marido em
1350.
O rei Castelhano procurou o apoio de todos os reinos cristãos e em especial de
Portugal, cujo papel diplomático de Dona Maria junto ao pai foi definitivo para a ajuda dos
portugueses na defesa das fronteiras castelhanas e de vital importância para o processo de
paz. Afonso IV foi relevante na derrota sofrida pelos sarracenos no rio Salado, em outubro
de 1340. Essa guerra, como as de Reconquista, ganhou ares de Cruzada, como narra a
Crônica de D. Afonso IV:
Ao tempo deste cerquo, elRey de Castella hera en Sevilla, a onde chegou a
elle de Roma João Martins de Leyua, q pera esta guerra lhe trouxe do Papa
geral Cruzada, cõ as graças, perdoes, & Indulgências da cõquista dultra
mar, & assi con outroga de dizimos, & terças das Igrejas do Reyno, por
certos annos (CHRONICA D’EL-REY D. AFONSO IV. In: PINA, cap. LIII, p.
145).
Não podemos ser ingênuos a ponto de pensar que o apoio do rei português à
Castela ocorrera somente para salvar a honra da filha, como já mencionamos havia outros
1
O rei Afonso XI, que teve apenas dois filhos legítimos com a rainha D. Maria (1313-1357), sua prima-irmã, filha
de D. Afonso IV, de Portugal, Fernando (1332), que morreu antes de completar um ano de idade e Pedro
cognominado mais tarde “o cruel” (1334-1369), futuro sucessor ao trono com o nome de Pedro I. Com Leonor
Núñez de Guzmán (1310-1351) teve dez filhos, dentre eles Henrique Alfonso de Las Mercedes (1333-1358),
senhor de Trastâmara, fundador da Casa de Trastâmara e futuro rei de Castela e Leão com o nome de Henrique
II. Cf. CRÔNICA DEL REY ALFONSO ONCENO, cap. LX, p. 209.
interesses, como a guarda dos patrimônios herdados pela Infanta durante a negociação do
matrimônio com o rei castelhano, e igualmente a ameaça muçulmana sobre os reinos
cristãos da Península, da qual Portugal não estava incólume.
No tocante às relações entre Dom Afonso IV e Frei Álvaro, acreditamos
que os conflitos deveram-se a outros fatores. Um deles, mencionado anteriormente,
a política centralizadora do rei português e a intervenção nos patrimônios das igrejas
para a manutenção da guerra contra Castela (ANTUNES, 1984, p.121 segs.). Outro, à
forte personalidade do bispo de Silves que ao denunciar o parecer dos legistas
sobre o matrimônio de D. Branca de Castela e o infante D. Pedro, colocava em
perigo a política de casamento do rei para com seu filho, posto que os legados
defendiam a nulidade do matrimônio, para que o Infante pudesse se casar
novamente com Dona Constança, filha do infante castelhano D. Juan Manuel. Por
sua parte, na primeira carta de Frei Álvaro ao rei de Portugal, além de chamar a
atenção para a guerra e as suas conseqüências maléficas ele insistiu na ilegalidade
dos novos esponsais de D. Pedro: “Sponsalia noviter contracta de nostro, tuo
primogênito, propter duplicis honestatis iustitie impedimentum, quidquid dicant tui
legiste, assessores tui, nulla ipso iure. Fundata fuit guerra tua super fundamentum
arene” (CARTAS DE ÁLVARO PAIS A D. AFONSO IV. In: COSTA, 1966, p. 147).
Álvaro Pais e a construção da imagem dos reis cristãos
Toda essa problemática explicaria a dedicatória do Espelho dos reis2 ao rei
castelhano Afonso XI, excluindo da mesma o rei Afonso IV (1325-1357)? Embora a
historiografia portuguesa tenha-o consagrado sob a alcunha de “o Bravo”, pelo seu papel na
batalha do Salado (SERRÃO, 1990, v. 1; MARQUES, 1987), para o Frade franciscano,
naquele momento, o rei ideal para manter a paz na Península era Afonso XI. Todavia, essa
questão reflete um contexto muito mais complexo do que simplesmente as desavenças do
Frade com o rei Português ou o afeto e o sentimento de gratidão aos reis de Castela. A
problemática incidia igualmente na desobediência do rei português e de seus assessores
aos preceitos conciliares sobre o matrimônio e a interferência nos assuntos eclesiásticos, o
que muitos governantes faziam vista grossa e insistiam em não cumprir, buscando
2
De agora em diante utilizaremos a sigla ER.
subterfúgios para impor a cobrança de dízimos e privilégios às igrejas e para realizar uma
política de casamento que conviesse às respectivas Coroas.
Como vimos, as diversas embaixadas entre Castela e Portugal comprovavam a
necessidade premente de se manter um bom relacionamento diplomático entre os reinos
peninsulares e em alguns momentos a diplomacia era estimulada e apoiada pelo próprio
papado. È preciso notar o conteúdo político do pensamento alvarino inerente às boas
relações entre os reinos peninsulares.
O contexto que antecedeu a Batalha do Salado, narrado por frei Álvaro Pais,
pode ser constatado a partir das missivas ao rei Afonso IV, do Espelho dos Reis e do Estado
e Pranto da Igreja3, sua primeira obra. O Espelho dos Reis foi escrito entre 1341-1344, após
a Batalha definitiva contra o “infiel”, levada a cabo pelo monarca português, Afonso IV e pelo
castelhano Alfonso XI, com o auxílio das tropas aragonesas, os quais derrotaram os
sarracenos no ano de 1340, às margens do rio Salado, conhecida pelos espanhóis com a
batalha de Tarifa (LAVAJO, 1995, p.78). As crônicas apresentam o rei Afonso IV imbuído de
um espírito de liderança que o notabilizou diante dos demais naquela batalha, todavia,
conforme dissemos, para Frei Álvaro o verdadeiro herói naquela batalha fora Afonso XI. Rui
de Pina, por exemplo, exaltou o papel do rei português:
Pelo qual vendo elRey de Castella, & os grandes homens de seu conselho o
voto, & determinação de elRey de Portugal, que parecia favorecido da graça
de Deos, & que a sua contradiçam lhe fazia grande mingoa se a nam
consentissem, tomarão loguo todos grãde esforço em seus coraçoes, & sem
mais alteraçam asentaraõ em suas vontades o Catholico, & devoto, & muy
Real Conselho de elRey de Portugal, que era socorrer Tarifa, u & non de
negar, antes procurar batalha com os Reys Mouros q eraõ no serquo
prezentes[...] (CHRONICA D’EL-REY D. AFONSO IV in: PINA, 1653, p.
137).
O auxílio militar dos portugueses reforçou a armada castelhana, que bem
organizada e treinada por genoveses a serviço do rei de Portugal, fez com que os cristãos
penetrassem de surpresa naquela vila e rendessem os marroquinos nas margens do rio
Salado, em 30 de outubro de 1340 (MONUMENTA HENRICINA, 1960, p. 178, nota 1)
É preciso enfatizar o momento em que Álvaro Pais escreveu o Espelho dos reis,
afinal os cristãos saíram como vitoriosos na batalha do Salado em 1340 e a obra de Álvaro
Pais fora terminada em 1344. Logo, nota-se que muitas das exortações do religioso
franciscano foram escritas antes da batalha. Não podemos deixar de mencionar que essa
vitória significou a expulsão definitiva dos muçulmanos da Península, o receio da Igreja
3
Utilizaremos a sigla EPI I e EPI II.
ainda era premente. Por isso, na ótica de frei Álvaro os reis deviam guardar em si as
virtudes, tendo a fortaleza como sua armadura (ER, 1963, v. 2, p.115).
Frei Álvaro, enquanto personagem significativo daquele momento revela em seu
discurso o enaltecimento à figura dos reis cristãos e dos seus exércitos como superiores ao
inimigo muçulmano, o que também encontramos nas crônicas dos dois reinos. Numa
sociedade dominada pela violência, a fortaleza ou valentia deveria ser entendida a partir da
terceira parte da fortaleza, a paciência, que “[...] é o sofrimento voluntário e duradoiro das
coisas árduas e difíceis, movido por um propósito honroso ou útil [...]” (ER, 1955, v. 1, p.
401). O monarca devia seguir o exemplo dos antigos reis e príncipes
dotados de
resignação. Esta virtude o tornaria apto a suportar o temor e o sofrimento sem reclamações.
A guerra, num aspecto mais amplo, seria a ocasião para se provar o corpo e o espírito a
partir dos valores mais característicos daqueles homens: a honra, o valor e a generosidade
(GIBELLO BRAVO, 1999, p.53 segs.), elementos que distinguiam a nobreza, como
aristocracia militar, do resto da sociedade.
Comprova-se a exaltação do rei cristão ibérico também por meio de fontes laicas
como a Crônica de Afonso XI, como o relato pelo cronista das dificuldades encontradas
pelos cristãos no transcurso da Batalha até o momento da derrota muçulmana. Note que
além da peleja, o cronista narra que durante dois dias “[...] en la noche fizo tan grande água,
que los Christianos pasaron muy grand trabajo [...]” (CRÔNICA DEL REY ALFONSO
ONCENO, 1953, cap. CXCIX, p.300). O elogio às tropas muçulmanas ressaltou ainda mais
o caráter heróico dos cristãos pelo fato de “[...] Los moros seyendo omes de grand esfuerzo,
maguer veían caer et morir muchos de los suyos, non querian partirse dela pelea, nun
probaban de fuir: et estaban firmes feriendo en los Christianos lo mas fuerte que podian
[...]”(CRÔNICA DEL REY ALFONSO ONCENO,1953, cap. CXCIX, p.300).
Há que se destacar que o imaginário dos homens à essa época conferia à
nobreza o direito de guerrear e fazer uma justiça privada (DUBY, 1978), processo que aos
poucos foi se diferenciando com a centralização do poder político nas mãos dos monarcas,
os quais passaram a requerer para si o exercício da justiça. A justiça por excelência passa a
ser a virtude do rei (DUBY,1994, p. 299), para além da virtude da fortaleza e suas
subdivisões como a perseverança, que de acordo com frei Álvaro [...] torna o homem a tal
ponto firme, que nem a adversidade o quebra, nem a prosperidade o envaidece. Também faz com
que não se deixe esmagar por ameaças, nem vergar com promessas (ER, 1955, v. 1, p.417).
Aqui o autor refere-se a Cícero nos tratados de Retórica, advertindo que essa
virtude floresceu entre os antigos. O pensamento medieval assimilou esse valor moral
estóico ao cristianismo, por isso o sofrimento do corpo era visto como uma forma de
purificação dos pecados por meio da maceração da carne, de jejuns e de disciplinas
rigorosas. Assim, a observância aos preceitos e normas cristãs fez de Afonso XI, de acordo
com o Frade, “rei vitoriosíssimo” ao vencer a batalha do Salado, visão que coincide com a
do cronista de Afonso XI. Assim, Álvaro Pais constrói no Espelho dos reis uma imagem
positiva do rei castelhano ao dedicar-lhe a obra, ao mesmo tempo em que preteriu D.
Afonso IV em tal dedicatória, por motivos, cremos, ser mais uma questão de quebra de
autoridade – pois o bispo de Silves enquanto um defensor da hierocracia pontifícia, não
admitia as intervenções do rei português em sua diocese –, do que somente às questões
pessoais que envolveram o monarca e o frei.
Saliente-se que ao assumir o trono, D. Afonso XI lançou mão de uma política de
renovação da nobreza, trazendo à tona o ideário da cavalaria como uma instituição de
origem divina, justificando a sua existência a partir dum esquema religioso e político que
consistia, na defesa da fé, do reino e dos senhorios. Estes seriam os milites Christi, como
descreveu Frei Álvaro: “O soldado de Cristo nem se exalta com o louvor, nem se quebranta
com a censura, nem incha com as riquezas, nem se amargura com a pobreza; despreza as
coisas alegres e as tristes” (EPI I, art. 40, 1988, v. I; EPI II, art. 32, 1995, v. 5, p. 309). A
política empreendida pelo rei castelhano trouxe a ainda, a consolidação da imagem do rei
como principal fonte de enobrecimento para a nova nobreza. Na Gran Crônica e na Crônica
de D. Afonso XI, por exemplo, ele aparece na condição de “criador y facedor de nobles”
(NAVARRO, 2004, p. 179). Devido a reestruturação da nobreza e da cavalaria, sua
composição ficou ainda mais heterogênea e distinta dos ricos-homens, fidalgos e a cavalaria
popular(CRÓNICA DEL REY ALFONSO ONCENO, 1953, cap. 101, p.235 segs). .
A Gran Crônica (1977) do rei Afonso XI, também apresenta a imagem do rei
como exemplo de nobre cavaleiro, ressaltando, dentre as suas virtudes, a moderação, a
prudência, a justiça e a generosidade para com seus vassalos, além do gosto pelas armas,
comprovando o que se disse logo acima na Crônica do referido rei. Perante uma nobreza
insubmissa e por vezes poderosa, cabia aos reis dos novos “estados” nacionais,
disciplinarem os seus membros com diversas medidas que viessem garantir a autonomia do
poder régio (GUENEE, 1981). Afonso XI não passou impune a esse processo. Para
centralizar o poder, foi preciso disciplinar a aristocracia e se colocar acima dos potentados
do Reino.
Ao exortar os governantes a seguirem os exemplos dos antigos, o argumento do
prelado sustentava-se no fato de que mesmo desconhecendo Cristo, início e fim de todas as
virtudes, tornaram-se exemplos de coragem e de perseverança moral, sofrendo a morte pela
verdade e pela honra “[...] quantas mais nobres ações não devem fazer e quantas mais
honras não devem desprezar pela felicidade eterna, os fiéis, a quem cabe revestir-se das
virtudes, a saber da fé, esperança e caridade” (ER, 1955, v. 1, p. 425).
Et porque en amas las partes avia caballeros muy ardides, et de grandes
corazones, dieronse los primeros golpes muy fuertes, et estidieron los unos
et los otros bien firmes en la pelea, ca ningunos dellos non tenian que avian
á facer sinon vencer ó morir. Et como quíera que los Christianos eran
menos que los Moros, pero eran bien armados, et llevaban buenos caballos,
et avian buenos corazones et buenas fuerzas para sofrir bien las armas, et
daban grandes golpes de que derribaban et mataban muchos de los Moros
(CRÔNICA DEL REY ALFONSO ONCENO, op. cit., 1953, cap. CXCIX,
p.300.
Com respeito à narrativa do cronista, faz-se necessário elucidar que esta visão
acerca da Batalha expressa a idéia de um sentimento de superioridade do vencedor sobre o
vencido. Como nosso objetivo não é o estudo desta batalha especificamente, não fomos
buscar fontes que retratem o outro lado, a visão dos sarracenos, posto que nosso objetivo,
ao estudar as relações diplomáticas entre Castela e Portugal, se restringe ao modelo de rei
cristão para a Península Ibérica desejado por frei Álvaro Pais. À parte os excessos das
crônicas às quais tivemos acesso (a de D. Afonso IV e a de D. Afonso XI), estas apresentam
um consenso sobre a vitória contra os mouros. Atualmente, historiadores portugueses e
espanhóis têm se dedicado aos estudos acerca da presença muçulmana e judia na
Península Ibérica, buscando uma releitura e revisitando fontes, utilizando-se de outras
ciências, para dirimir as dúvidas sobre esse assunto.
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13. Armênia Maria de Souza - IV Congresso Internacional de