PRÓLOGO A ideia de se escrever este livro nasceu da necessidade. Da necessidade de se levar ao conhecimento do meio jurídico brasileiro e da sociedade em geral a realidade de um dos mais conturbados processos judiciais da história nacional. Nunca se viu em qualquer outro processo o exercício do desrespeito ao ordenamento jurídico de forma tão evidente. Nunca, da mesma forma se acumulou tamanho volume de nulidades quanto no chamado “Caso Bruno”. Chamado a participar da defesa do goleiro Bruno Fernandes, fui pouco a pouco tomando conhecimento de uma série de absurdos jurídicos que me deixaram aterrorizado principalmente pelo fato de que todos pareciam surdos e cegos ao que se construía. Não se trata de um livro para retratar ou descrever o crime em si, nem mesmo para tratar das questões acerca do acusado ou das condições da vítima, mas, simplesmente, de graves questões processuais que a mídia, de uma forma geral não pôde ou quis veicular. Não vai se cuidar da inocência ou culpa dos denunciados nem se Eliza Samúdio está viva. Este livro pretende ser uma denúncia. Não se trata de lançar acusações, apenas retratar situações jurídicas que envolveram o processo. O objetivo é tornar público a realidade documentalmente provada do que ocorreu por detrás das manchetes dos jornais. 18 Caso Bruno Tudo começou quando no ano de 2009 Bruno Fernandes das Dores de Souza, então goleiro e capitão do Clube de Regatas Flamengo conheceu Eliza Silva Samúdio, em uma festa na cidade do Rio de Janeiro. Bruno já fora convocado para integrar a seleção brasileira de futebol e era quase indiscutível sua presença como titular na equipe que disputaria – no próprio país – a Copa do Mundo de Futebol no ano de 2014. Eliza, que conhecera Bruno em uma festa e com ele mantivera relações sexuais dizia-se grávida de Bruno, passando a buscar o reconhecimento da paternidade ainda durante a gravidez. Antes mesmos do nascimento da criança – Bruno Samúdio - começaram os problemas que culminara com o desaparecimento de Eliza no mês de junho de 2010. Depois de tumultuado inquérito policial foi oferecida denúncia contra Bruno e outros denunciados, tidos como responsáveis pelo sequestro, morte e ocultação do cadáver da jovem Eliza Samúdio que a imprensa, de uma forma em geral passou a denominar de “ex-modelo”. Este livro vem para narrar não o crime, mas o processo. Desde o momento inicial os fatos chamaram a atenção da mídia, especialmente em face da condição do principal envolvido: o goleiro Bruno. De origem humilde, fizera parte como titular da equipe do Clube Atlético Mineiro até ser transferido para o clube carioca donde, já se dizia estava de partida para um importante clube italiano. Qualquer fato envolvendo o processo transformava-se de imediato em manchetes dos veículos de comunicação. Criou-se um clima tal que advogados, policiais, promotores, juízes e desembargadores eram vistos, reiterada vezes, em programas jornalísticos dando entrevistas e apresentando pareceres. Jovens advogados sem qualquer experiência na área penal eram vistos em programas matinais de televisão apresentando opiniões e pareceres sem jamais terem tido acesso a uma página sequer do processo. Tanto o Inquérito Policial quanto a ação penal foram acompanhadas por vários advogados até que eu fosse chamado a integrar a defesa do Goleiro Bruno. O convite veio do advogado Francisco Simim, exatamente no dia em que se iniciava o julgamento de um dos acusados, Luís Henrique, apelidado “Macarrão”. Assim, não pude participar da instrução processual propriamente dita, tomando conhecimento dos fatos e do processo a partir de 22 de Novembro de 2012 quando recebi substabelecimento dos então advogados. Quando me apresentei o processo contava com sessenta e cinco volumes (algo em torno de quinze mil páginas, sem contar o verso) e fui imediatamente procurado pelos veículos de comunicação que buscavam saber da estratégia de defesa que eu adotaria. Mantive o silêncio afirmando que necessitava pelo menos ler o processo antes de emitir qualquer opinião. A imprensa passou a chamar de manobra o pedido de adiamento que apresentei à Juíza Presidente do Júri, desconsiderando a necessidade de analisar e estudar todo o material até então preparado. Boatos de toda espécie surgiram todos os dias nos jornais. Em alguns se afirmava que eu não participaria do julgamento e que tudo fora um ardil para promover o desmembramento do julgamento, buscando isolar o principal acusado dos demais. A Juíza sem alternativas – atendeu ao pedido e desmembrou o feito, designando a data de 04 de Março de 2013 para o julgamento do goleiro. Seria julgado juntamente com sua ex-esposa, Daiane. Permanece sem resposta ou qualquer justificativa legal o desmembramento do julgamento de Daiane. Daiane tinha advogado constituído que, estava presente, não pediu adiamento e mesmo assim, seu julgamento foi desmembrado, junta- mente com Bruno. Até hoje ninguém falou nada a respeito. Cuidei então do básico: providenciar uma cópia do processo. Des- cobri que até então isso não fora feito e quase todos tinham apenas cópia digitalizada do processo. E comecei a leitura, acompanhado de mais um advogado, o jovem Tiago Lenoir. Passamos a acompanhar o julgamento do corréu Luís Henrique Romão, o “Macarrão”. Cinco dias de uma maratona insana. Já no terceiro dia de julgamento (primeiro com minha participação) vieram as surpresas. Notícias de um “acordo” entre a defesa e a acusação surgiram em todos os jornais informando que “Macarrão” haveria de acusar o Goleiro em troca da aplicação de pena mínima. Depois se confirmou verdadeira a informação, como se verá. Um episódio ocorrido no julgamento do Luiz Henrique “Macarrão” foi sintomático e demonstrava o que estava por vir. A presença dos advogados dos demais acusados, não submetidos a julgamento (Elenilson, Bruno, Daiane, Fernanda e “Bola” dentre outros), fora garantida por liminar concedida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que garantira inclusive o direito de questionar testemunhas e acusados, enfim, de participar do julgamento de “Macarrão”. A Juíza acatou a decisão. Em parte. Qualquer estudante de Direito sabe que o julgamento em plenário do Júri é composto de três fases distintas: A primeira, representada pela instrução (composição do conselho, oitiva de testemunhas, leitura de peças, interrogatórios e diligências etc.), o levantamento da prova em síntese. A segunda fase é composta de debates. Sustentação, réplica e tréplica e, finalmente, a terceira e derradeira fase que é o julgamento propriamente dito feito em sala secreta para garantir o sigilo das decisões. Ai veio o problema. A Juíza simplesmente impediu a entrada dos advogados dos demais réus na sala de votação dos quesitos, do julgamento enfim. Ou seja, os advogados dos corréus puderam participar apenas de parte do julgamento. Quando fomos impedidos de participar (de entrar na sala de julgamento, cercada por um soldado fardado e armado na porta, inobstante cortês) requeri que tal fato fosse constado da ata de julgamento. O julgamento de “Macarrão” terminou com uma condenação por homicídio triplamente qualificado e aplicação de pena mínima. Doze anos sem recurso tanto por parte da defesa quanto por parte da acusação. A decisão transitou. O absurdo dos absurdos... Foi um escândalo. Aproximadamente três horas da madruga, a imprensa, jornalistas, gritos... Um circo. Neste momento me apresentaram a ata para assinar. Imediatamente pedi para ler a ata antes de assinar, para verificar se o protesto pelo impedimento de entrar na sala de votação estava correto. Pasmo e perplexo vi que onde deveria estar consignado que “o advogado do acusado Bruno das Dores Fernandes de Souza não foi autorizado entrar na sala de votação” estava a mesma frase, contudo, sem o “não”. Ou seja, a ata registrava que o advogado do acusado Bruno das Dores Fernandes de Souza foi autorizado a entrar na sala de votação. Quando imediatamente levantei o problema, em questão de segundos me apresentaram uma ata correta, contendo a palavra “não”. Se, naquele momento, no tumulto criado eu não tivesse lido a ata, já era! Certamente que o comentário ao ocorrido fora apenas “uma distração” do escrevente! A cada dia do julgamento surgia uma sucessão de boatos. “Bruno”: havia tentado suicídio na cela onde se encontrava na Penitenciária Nelson Hungria. Desmentida a história do suicídio surgiu outro boato agora era o “acordo” entre acusação e defesa e assim, os dias se passaram. Francisco Simim, Tiago Lenoir e eu, formávamos a trinca da defesa do Goleiro. Tiago, como eu, providenciara também uma cópia do processo e passamos a ler e comentar passo a passo a acusação. Às vezes, conversávamos ao telefone madrugada afora comentando e discutindo a situação. Procedimento cansativo e demorado. O primeiro susto veio exata- mente nesta fase. A primeira leitura dos autos, feita em cópia física (o que existia até então eram cópias digitalizadas distribuídas aos advogados com registro nos autos) contou com a atenção de minha estagiária Mirtes Costa e Maria das Graças Leal, minha secretaria que descobriram a ausência e irregularidade em vários volumes. Diante disso passei a contar com o apoio operacional do Anderson Coutinho, jovem especialista que se propôs – e logrou êxito – em desenvolver um programa que viabilizasse a leitura, comparação e cotejo das peças processuais, o que nos trouxe o primeiro baque: Faltavam nada mais nada menos que trezentas páginas do processo. Além de páginas desaparecidas várias existiam peças repetidas e, além de repetidas, numeração idêntica para conteúdo diferente. “Macarrão” fora julgado com um processo incompleto e absolutamente irregular, sem saneamento. Mas a decisão já transitara e todos, acusação e defesa pareciam satisfeitos. Os fiscais da lei quedaram-se silentes. É claro que o silêncio ostenta o verdadeiro interesse: Não importa a Justiça, o que se procura é a condenação de Bruno. Basta dizer que o “Macarrão” recebeu de presente nada mais nada menos que a pena mínima estabelecida para homicídio qualificado com apenas uma qualificadora. Doze anos. Todos ficaram chocados, a maioria calada. Nesta altura dos acontecimentos estávamos em dezembro. Natal, Ano Novo, e eu lendo processo até as três da madrugada, sábado, domingo, segunda, terça... A data do julgamento se aproximava. Os boatos continuavam a surgir. Afirmava-se inclusive que eu não iria fazer a defesa, que seria destituído em nova “manobra” para adiar o julgamento. Enquanto isso, advogados e promotores davam entrevistas com comentários de todo tipo. Advogados que jamais leram uma página sequer do processo passavam a analisar e tecer comentários, alguns até absurdos. Finalmente o julgamento chegou e terminou. As análises e os boatos se mostraram destituídos de lógica. Bruno foi condenado e apelou da sentença. A pena foi de dezessete anos e seis meses pelo crime de homicídio e outras penas menores para os crimes menores. Total de vinte e dois anos e seis meses. Apelos em andamento. Superficialmente esta a estória. Sem detalhes. Não é este o objetivo do livro. O livro busca retratar com fidelidade aspectos processuais que se aproximam da imoralidade. É um livro denúncia. Endereçado a advogados, estudantes de Direito, Promotores, Desembargadores, policiais e Ministros. A verdade processual. Não se comenta o crime, a culpa ou a inocência. Foi compromissado com a fidelidade que o livro se dividiu em capítulos tratando de cada uma das nulidades, dos absurdos jurídicos inimagináveis e, ao final enriquecido com cópias dos documentos atestadores de tudo o que se denunciou. O crime foi grave. O Processo é pior.