Estágio de Licenciatura em Ciências: relatos de uma experiência em educação sexual Taís Rodrigues Tesser – Graduanda em Licenciatura em Ciências da Natureza; Educadora em Museu – Museu de Microbiologia do Instituto Butantan Relato de experiência Resumo O estágio obrigatório do curso de Licenciatura em Ciências da Natureza da Universidade de São Paulo perpassa por três focos distintos e entrelaçados. Logo no inicio há a oportunidade de conhecer a rotina escolar, bem como sua parte estrutural e organizacional. Em um segundo momento é possível analisar o dia a dia das salas de aula, com o intuito de desenvolver, ao final, aulas de regência. Diversos foram os acontecimentos acompanhados, mas nada tão marcante quanto as atividades sobre educação sexual desenvolvidas com os alunos e todo o cenário que permeia esta situação. Com resultados bastante satisfatórios, o que seria apenas uma regência para poucas turmas, se tornaria a forma de trabalhos multidisciplinares, blog sobre a temática e até mesmo uma maior reflexão por parte dos demais professores, gestores, pais e dos próprios alunos. Palavras-chave: estágio obrigatório; adolescentes; educação sexual. “Por ali eu passava toda manhã. Havia percebido que os muros da esquina cercavam uma escola, mas jamais imaginaria que esta seria um dia os braços que me acolheriam para o início da minha experiência como professora.” A autora Em meados do ano de 2010, passei a participar do Projeto Saúde e Prevenção na Universidade, do qual participavam alunas de diferentes cursos da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP), sob a coordenação de professores doutores de distintas áreas. O objetivo central do projeto, que ainda hoje se encontra em atividade, é o de desenvolver trabalhos voltados à prevenção das DST/aids junto à comunidade universitária e escolas da cidade de São Paulo, os quais buscam o aprendizado, prestação de serviços à comunidade e fortalecimento das políticas públicas na área. Minha participação no projeto durou um ano, tempo de vigência da bolsa do Programa “Aprender com Cultura e Extensão” da USP, onde pude aprender a refletir e desenvolver atividades voltadas à aids, relações de gênero e sexualidade. No contexto do curso de Licenciatura em Ciências da Natureza (LCN), surgiu a possibilidade de unir o conhecimento que estava adquirindo no projeto com o desenvolvimento do meu estágio obrigatório. Na primeira das três disciplinas de estágio, eu entraria em contato com a escola que me recepcionaria pelos próximos três semestres, o que culminou na importante e consciente decisão que seria a escolha da escola. Acabei por escolher a Escola Municipal de Ensino Fundamental Arthur Azevedo, localizada no bairro do Tatuapé, São Paulo, e de fácil acesso. Num primeiro momento fiz um levantamento breve da história da escola, através de conversas informais com funcionários, ex-alunos e leitura do projeto pedagógico, para compreender melhor o contexto em que situava-se a instituição. Adentrando a sala de aula Mais familiarizada com o ambiente escolar, no segundo semestre do estágio obrigatório iniciaram-se as observações de aulas de diferentes disciplinas. No começo não sabia bem o que eu iria encontrar, assisti a muitas aulas com diferentes professores, que desenvolviam as aulas de maneiras bem distintas também. Ao final desta etapa de observações, me foquei mais nas aulas ministradas para as turmas de 8º ano, pois seriam para estes alunos que eu aplicaria minha regência no próximo semestre. Conhecer a turma foi fundamental para um melhor planejamento do trabalho que seria desenvolvido com os jovens. Foi na última disciplina de estágio que desenvolvi minha regência. Desde que entrei no curso de LCN, sempre me preocupei com o momento em que ministraria uma aula, pensando em que assunto trabalharia com os adolescentes, como desenvolveria as atividades e como eu seria recepcionada pelos alunos. Contudo, tudo ocorreu naturalmente e foi através de conversas informais com a professora responsável pelas aulas de ciências, que relatei algumas das minhas experiências com atividades que conduzem os alunos à reflexão sobre a gravidez na adolescência e todo o cenário que permeia tal situação. Quando chegada a hora do planejamento da regência, a professora sugeriu quais atividades seriam pensadas e realizadas com intenções próximas às relatadas anteriormente, com a seguinte justificativa: “Na grande maioria das conversas dos jovens daqui da escola, as questões de sexualidade, gênero, gravidez, entre outras questões que estão envolvidas com estes assuntos, são citadas. É necessária a realização de atividades deste porte para que eles possam esclarecer suas dúvidas e refletir sobre tais assuntos, mas tomando cuidado para não expor nenhum aluno, e se atentando quanto à abordagem de cada atividade, para que não tenhamos problemas futuros com os pais/mães ou responsáveis por eles”. Após apresentar aos alunos do que se tratavam estas aulas e qual a função da aluna de estágio no ambiente escolar, iniciou-se a regência. A primeira aula, conforme o planejado, fora realizada na sala de informática, onde apresentei o documentário “Meninas”, de Sandra Werneck, com duração de 70min. Nessa escola as aulas têm duração de 45 minutos; como o tempo do documentário passa desse tempo, me programei com a professora para utilizar duas aulas na sequência. No entanto, esse tempo não foi suficiente para passar todo o documentário, muito menos dar início à discussão posterior. Este fato ocorreu em todas as salas do 8º ano e, em decorrência disso, precisei modificar todo o planejamento inicial, logo no início da regência. Percebi então que o planejamento não é e nem deve ser algo engessado, onde todas as aulas devem ser ministradas da mesma forma em todas as turmas, ou ainda que todos os alunos devam responder as expectativas do professor da mesma maneira. O planejamento do meu estágio foi alterado durante todo o período que durou a regência, sendo modificado a cada aula e a cada dia, conforme a demanda da professora responsável e dos próprios alunos. Com receio de não poder realizar atividades que demandassem muito deslocamento dos alunos, ao iniciar o planejamento das aulas, ficou estabelecido que as primeiras aulas fossem realizadas na sala de informática, pois é somente neste lugar que a escola conta com aparelhos de áudio e vídeo, e as demais aulas na própria sala. Novamente o inesperado surge: com os relatos dos alunos sobre as aulas de regência da estagiaria em aulas de outras disciplinas, os outros professores da escola cederam algumas de suas aulas quando necessário, para que não houvesse a necessidade de interromper, na maior parte das ocasiões, os debates que estavam sendo realizados entre os alunos. Nas primeiras aulas, após assistir ao documentário, uma roda era formada, ali mesmo na sala de informática, modificando assim o espaço físico, que é amplo e de fácil remanejamento do mobiliário, antes somente utilizado para aulas de computação, e passando, nesse momento, a constituir um local de debates e rodas de conversas. Outro lugar nunca imaginado por mim que pudesse vir a ser disponibilizado para utilização, foi o pátio da escola. Como sugestão da própria professora responsável, as próximas aulas foram ali ministradas, todos em roda, os jovens puderam expor suas opiniões, tirar dúvidas, discutir com os colegas, participar efetivamente das aulas e das atividades propostas. Percepções ao longo do desenvolvimento da sequência de aulas O primeiro assunto abordado foi gravidez na adolescência. Assistimos ao documentário “Meninas”, que sem atores, figurinos, cenários e histórias fictícias, aborda a realidade de meninas que vivem em periferias da cidade do Rio de Janeiro. Elas contam suas histórias de gravidez na adolescência, suas relações com os pais das crianças e familiares. É possível discutir, partindo deste documentário, questões como: puberdade, gestação, métodos contraceptivos, paternidade e maternidade para homens e mulheres jovens, drogas, violência, vulnerabilidade, doenças sexualmente transmissíveis, preconceito e acesso à informação. Após o filme foi organizada uma roda de conversa onde os alunos foram motivados a refletir e levantar questões, não apenas sobre a gravidez na adolescência, mas também sobre todo o cenário que permeia esta situação. Percebi que no início da primeira atividade os alunos estavam inquietos, mas aos poucos foram se motivando e no decorrer da atividade praticamente todos os jovens estavam expondo suas opiniões e contando relatos de suas próprias experiências. Ao bater o sinal (indicando o término da aula), foi necessário interrompê-los e deixar para a próxima aula a conclusão das discussões. Em princípio, o segundo assunto já havia sido pensado e a atividade elaborada, porém durante o desenvolvimento das primeiras aulas, observei que as dúvidas quanto a métodos contraceptivos e o equívoco quanto aos métodos de prevenção de DSTs e gravidez eram relativamente grandes, o que deixou clara a necessidade da realização de uma atividade mais dirigida ao assunto. Com o auxílio de um material disponibilizado pela própria escola, que consiste em um quadro com representações de alguns métodos contraceptivos mais conhecidos e a observação de preservativos masculinos e femininos, foi desenvolvida uma conversa em roda no pátio da escola, sobre quais eram os métodos preventivos e contraceptivos mais conhecidos e como funcionam. Ao final surgiu uma dúvida: “HIV e aids são a mesma coisa, não é mesmo professora?!” Após esta questão, diversas outras começaram a ser levantadas quanto às doenças sexualmente transmissíveis. Ao término da segunda conversa, ficou explícito que os alunos tinham muitas dúvidas com relação às DSTs e prevenção, pois em diversos momentos durante as conversas questões acerca desses assuntos foram levantadas. Até o momento em que uma aluna relatou: “Muitos de nós temos poucas informações sobre doenças e como preveni-las em casa, pois nós e nossos pais temos vergonha de comentar sobre o assunto. Será que é possível a realização de uma atividade com este assunto?” Os demais alunos concordaram com a menina e então eu e a professora de ciências desenvolvemos outra atividade. Na aula seguinte a conversa foi sobre as características das doenças mais conhecidas, seus métodos de contágio e/ou infecção, tratamento e retomou-se alguns tópicos quanto à prevenção. Pra fugir ainda mais da lousa e do giz, a professora de ciências me sugeriu o desenvolvimento de textos, figuras e esquemas que pudessem ser copiados e entregues a todos os jovens. Sendo assim, quando as aulas passaram a ser desenvolvidas na sala, utilizei o livro didático como auxílio nas explicações, leitura dos textos, levantamento de questões e também levei para a escola modelos anatômicos, o que provocou surpresa e empolgação nos alunos, o que prendeu assim suas atenções e os incentivou a participar das aula. Uma das últimas atividades da regência foi uma dinâmica, onde os jovens foram divididos em três grupos. A cada grupo uma situação foi imposta, como: relações sexuais sempre com o uso de preservativos; relações sempre sem o uso de camisinhas e o terceiro com o uso de preservativos eventualmente. Copos plásticos pequenos foram distribuídos a eles, onde alguns continham apenas água (simulando pessoas sadias) e em outros água mais hidróxido de sódio (simulando pessoas não sadias). Foi solicitado aos alunos que compartilhassem as águas dos copos, a fim de simular relações. Ao final os jovens foram convidados a retornar à roda formada inicialmente. Uma gota de fenolftaleína foi adicionada a cada copo, onde, com a reação química entre o hidróxido de sódio e a fenolftaleína, alguns apresentaram coloração rosada e outros (os que continham apenas água) permaneceram transparentes. Com isso, foi discutida a questão do uso do preservativo, o preconceito com pessoas portadoras de DSTs e possíveis tratamentos. Alguns folhetos informativos do Ministério da Saúde e do projeto “Saúde e Prevenção na Universidade” (EACH-USP) foram distribuídos aos jovens. Alguns alunos sugeriram a criação de um blog que trabalharia esta temática, se mostrando muito empolgados com a atividade e ao final, quando a professora responsável informou a minha despedida, os alunos resmungaram e aplaudiram as atividades realizadas. Por fim, as últimas aulas e a avaliação foram realizadas na sala de aula. Muitos chegavam a perguntar: “Mas professora hoje nós não vamos para a sala de informática, ou lá pra baixo (se referindo ao pátio)?” E ambas, tanto eu quanto a professora responsável, os interpelavam dizendo que não, mas que a aula poderia ter a mesma desenvoltura que as demais estavam tendo, motivando assim os alunos a continuar participativos como observado em aulas anteriores. Ao final da regência uma avaliação foi aplicada aos alunos, a pedido da professora responsável, afim de avaliar os conteúdos passados. Para a surpresa de ambas, a professora e eu, fugindo da rotineira quantidade de notas vermelhas que sempre eram apresentadas, noventa por centro dos alunos tiraram notas satisfatórias,o que pode indicar uma melhora na compreensão dos conteúdos, até mesmo por conta da temática ser próxima às suas realidades. Considerações Finais Durante todo o período de aplicação das atividades foi possível a percepção de conversas entre os alunos sobre os temas abordados e até mesmo sobre o as oficinas aplicadas. Tais conversas também eram observadas na sala dos professores, onde eles frequentemente perguntavam sobre as aulas e o que estava sendo trabalhado, afinal os adolescentes comentavam sobre o projeto em aulas de outras disciplinas. Assim, os professores passaram a oferecer ajuda, além de requerer materiais para eles também. Ao longo da regência,também, eu fui muitas vezes abordada pelos jovens nos corredores da escola, pois eles queriam saber quando seria realizada e qual seria a próxima atividade, entre outros relatos. O assunto das aulas e folhetos chegou até os pais e alguns relataram a importância de tais conversas na escola. Apesar de no início boa parte dos alunos se mostrar desmotivada com as aulas, por acreditarem ser algo que já conheciam, logo após o início da primeira atividade o grupo se mostrou participativo e empolgado com a dinâmica empregada. Ao final da sequência de aulas percebi que as opiniões dos alunos tornaram-se mais maduras, de forma com que eles conseguiam se expressar melhor sobre os assuntos tratados. Acredito que atividades como estas demonstrem resultados de médio a longo prazo, mas alguns indicativos já podem ser observados ao término de cada atividade. Através destes indicativos, considerados por mim como positivos, acredito que minha regência atingiu questões multidisciplinares e, apesar de ser uma conclusão pretensiosa, conseguiu “plantar uma sementinha” em alguns professores da escola. Todas as atividades e exercícios foram pensadas e desenvolvidas com a intenção de trazer os temas abordados o mais próximo possível da realidade dos alunos. A maioria das aulas foram desenvolvidas em formas de debates, onde os alunos se sentavam em roda, afim de que todos pudessem ouvir e ver o colega expondo suas opiniões, colocando suas dúvidas e contando relatos pessoais. Tais debates foram promovidos na busca de estimular e incentivar os jovens a refletir sobre assuntos que permeiam a realidade encontrada em nosso país hoje e assim aprender a argumentar e se posicionar quanto à estes temas. Referências BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Brasília, 2009. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pagina/aids-no-brasil, acessado em 20 de fevereiro de 2013. ________ Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Saúde e prevenção nas escolas: guia para a formação de profissionais de saúde e de educação. Brasília, 2006. BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais. Apresentação dos temas transversais, ética. Secretaria de Educação Fundamental: Brasília, 1997. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro081.pdf, acessado em 20 de fevereiro de 2013. BRITO, A. M.; CASTILHO, E. A.; SZWARCWALD, C. L. “AIDS e infecção pelo HIV no Brasil: uma epidemia multifacetada”. Rev. Da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 2, n. 34, pp. 207-217, 2000. CARVALHO, A. I. Da saúde publica as políticas saudáveis - Saúde e Cidadania na Posmodernidade. Ciência & Saúde Coletiva, 1996. CRUZ, E. F. et al. Meninas – gestando relações de gênero e cuidado de si. Educação em Foco. Juiz de Fora. 2009. RIBEIRO, C. M.; SOUZA, I. M. S. Projeto Tecendo gênero e diversidade sexual nos currículos da educação infantil. Brasil. 2010. WERNECK, S. Documentário “Meninas”. Cineluz Produções. Rio de Janeiro, 2006.