www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 ANÁLISE LINGUÍSTICO-DISCURSIVA DA CANÇÃO “O QUERERES”, DE CAETANO VELOSO Nohad Mouhanna Fernandes* RESUMO: Ressalta a aplicação de aspectos relacionados aos estudos semânticos e pragmáticos no processo de interlocução leitor-texto literário. Utiliza, como instrumento de análise, a canção “O quereres”, de Caetano Veloso, visto que a leitura detalhada de seus elementos lingüísticos - cujos conteúdos implícitos dialogam com elementos extratextuais-, incide na busca de sua clarificação e compreensão. PALAVRAS-CHAVE: leitura, texto poético, interlocução leitor-texto, produção de sentido. análise lingüístico-discursiva, ABSTRACT: The application of aspects related to the semantic and pragmatic studies in the interlocution process standes out literary reader-text. It uses, as analysis instrument, the song “O quereres”, of Caetano Veloso, since the detailed reading of its linguistic elements - whose implicit contents dialogue with extraliteral elements -, it happens in the search of its clarificação and understanding. KEY-WORDS: reading, poetical text, linguistic-discursiva analysis, interlocution reader-text, direction production. INTRODUÇÃO À luz dos princípios teóricos interacionistas que têm norteado o ensino de língua portuguesa nos últimos anos, e da prática que os efetiva, essa comunicação situa-se na área da leitura em língua materna e visa a abordar os mecanismos de articulação discursiva na construção de sentido do texto literário, dando ênfase aos aspectos semânticos e pragmáticos que atuam no processo de interlocução leitor-texto e nas suas múltiplas apreensões de sentido. Para isso, utiliza, como instrumento de análise, a canção O quereres, de Caetano Veloso, vez que sua organização lingüístico-discursiva contém vários mecanismos e procedimentos que incidem na monitoração de uma leitura detalhada para a busca de clarificação e de compreensão de seu plano do conteúdo. Desta feita, dá-se destaque à maneira como se integram, se estruturam, se combinam e se desenvolvem no texto os elementos lingüísticos que o materializam, e cujos conteúdos implícitos dialogam www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 com elementos extratextuais, resultando na sua compreensão e coerência. Acredita-se que a percepção dos mecanismos de articulação do texto favorece, por conseguinte, o desenvolvimento das habilidades cognitivas do leitor, transformando-o em um leitor ativo. 1 DEBATE TEÓRICO SOBRE A LEITURA DO TEXTO POÉTICO Numa breve síntese, apresentar-se-á um conjunto de conceitos mais comuns utilizados pela tradição dos estudos acadêmicos que tomam por base a leitura como forma dinâmica de produção de conhecimentos e como processo sociocognitivo e interacional na interlocução leitor-texto. Esses conceitos adentram na discussão do desenvolvimento da análise e da interpretação do texto poético e podem ser caracterizados como operadores de leitura. De antemão, pode-se dizer que para penetrar nas múltiplas apreensões e construções de sentido da poesia faz-se necessário reconhecer a sua natureza especial, vez que o poema opera como uma caixa de ressonância, na qual lateja cada fonema, cada palavra, cada frase, que cobra do leitor um olhar especial, argucioso, minucioso e até mesmo destemido. Requer que o leitor “force a visibilidade, no poema e em si, de experiências sensíveis e emocionais amortecidas, indefiníveis às vezes; que ultrapasse a pura intelecção, que calibre o olhar para um enfrentamento mais sugestivo de imagens obscuras, resistentes à compreensão imediata.” (CORTEZ e RODRIGUES, 2005, p. 59) A expressão literária, como expressão artística, tem como fundamento a exploração da palavra, que desvencilha hábitos de linguagem, baseando sua recriação da realidade no aproveitamento de novas formas de dizer. O texto literário é plurissignificativo, provoca prazer estético e, assim, esse trabalho de recriação é uma espécie de jogo com a linguagem, em que os enigmas metafóricos desempenham papel essencial. Como é uma espécie de armadilha, no dizer de Maingueneau (1996, p. 39), “impõe a seu leitor um conjunto de convenções que o tornam legível. Faz esse leitor entrar em seu jogo de maneira a produzir através dele um efeito pragmático determinado, a fazer seu macroato de linguagem ser bem-sucedido.” Para tanto, como propõe Grice (1982) nas “máximas conversacionais”, o leitor deverá mostrar-se cooperativo nesse intercâmbio verbal, contribuindo para construir o sentido do texto a partir das indicações ou marcas que o poema no seu todo lhe apresenta. O autor do poema presume que o leitor colaborará para superar a reticência do texto. Desse modo, aproveitando as palavras www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 de Umberto Eco (1986, p.7) o leitor deve “tirar do texto o que o texto não diz, mas pressupõe, promete, implica ou implicita, a preencher espaços vazios, a ligar o que existe nesse texto com o resto da intertextualidade, de onde ele nasce e onde irá se fundir”. Dessas observações, atenta-se para o fato de que ler o poema não se limita apenas a um mero ato de decodificação linear dos signos, ou a apenas relacionar significantes escritos a significados lingüísticos, conforme a crença dos estruturalistas. A par disso, não cabe, em sua leitura, a exigência de considerar a referência como relação direta das palavras com as coisas do mundo, e um sujeito cuja mente é locus de representações. Nessa medida, Brown e Yule esclarecem: O falante não precisa supor que a descrição é verdadeira para o referente, basta que ele acredite que, usando essa expressão, possibilitará que o ouvinte selecione o referente pretendido. Assim, o conceito que interessa à analise do discurso não é o da correta (verdadeira) referência, mas o da referência bem sucedida. A referência bem-sucedida depende de o ouvinte identificar, para os propósitos da compreensão de mensagens na linguagem corrente, o referente intencionado pelo falante, com base na expressão usada. (BROWN; YULE, 1983 apud ARAÚJO, 2004, p. 206) Ante o texto poético, o leitor, compreendendo que não se observa um cordão ligando as palavras às coisas, compara, reexamina e revisa o já lido. Esforça-se, pois, para captar a motivação dos signos para além da superfície textual. Passa, então, da mimese à semiose, vendo a própria linguagem como fator constitutivo de uma relação entre indivíduos se comunicando em situações complexas. O enfoque discursivo-pragmático entra em cena por meio da chamada referenciação, que é dada por inferência e não pela designação explícita dos referentes. Estes são compreendidos pelo ouvinte/leitor, por meio do próprio jogo discursivo. Ademais, o leitor ativo consegue perceber a coerência semântica do discurso literário pelas virtualidades significativas presentes nele e que o fazem ter unidade, tais como “a reiteração, a redundância, a repetição, a recorrência de traços semânticos ao longo do discurso” (FIORIN, 2005, p.112) e que o diferem de um amontoado de frases sem qualquer relação. É o fenômeno da isotopia que remete à compreensão de que a coerência, no texto literário, não é tanto uma propriedade vinculada ao texto. Conforme pressupõe Maingueneau (1996, p.33), ela é “a conseqüência das estratégias, dos procedimentos que os leitores empregam para construí-la a partir das indicações do texto. A coerência não está no texto, é legível através dele, supõe a atividade de um leitor.” www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 Para atingir a coerência do texto e decifrá-lo e, portanto, estabelecer o diálogo com o texto, o leitor ativa “diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento lingüístico, o textual, o conhecimento de mundo” (KLEIMAN, 1997, p. 13). Além disso, o texto literário requer que o destinatário, com os seus conhecimentos prévios, leve em conta a situação em que o texto se mostra, a sua função comunicativa. Ainda, a percepção do gênero discursivo faz-se necessária, exigindo o correlacionamento do texto a um discurso literário. De fato, como diz Marques: [...] diante dos enunciados em que ocorrem metáforas, o leitor procura ajustar os significados das palavras ao contexto e à situação, a fim de entender, interpretar o significado global dos enunciados, sempre a partir do pressuposto de que o uso da língua em enunciados discursivos tem a finalidade de dizer alguma coisa, veicular significados que permitem a intercomunicação.” (MARQUES, 2003, p.156) Nessa visão, lecionam os manuais que ler poesia implica desenredar os estratos do poema, “o semântico, o sonoro, o lexical, o sintático e o visual” (CORTEZ; RODRIGUES, 2005, p. 61). Visualiza-se, pois, uma complexa inter-relação dos significados das palavras, das expressões, da organização sintática e textual, dos aspectos visuais e gráficos que constituem o texto poético. Todas as considerações acima expostas mostram-se apropriadas para a construção do sentido da letra da canção “O quereres”, que será analisada a seguir. Não obstante, dentre esses estratos, tenham sido selecionados para a análise do discurso apenas os que se relacionam à busca desse sentido, vislumbrando a apreensão das estratégias enunciativas dos planos textual e discursivo. Como se verá, intentase, de forma modesta, dar destaque à inventividade e à riqueza da escrita do compositor baiano. Afastadas de sua melodia, as palavras ganham em materialidade e mostram-se enfáticas nos versos de Caetano, fazendo com que a letra da canção torne-se uma referência preciosa tanto para a poesia escrita como para a canção brasileira. 2 ANÁLISE REFLEXIVA DA CANÇÃO Á primeira leitura, é pouco provável que um leitor ou ouvinte que busque atingir a significação da canção “O quereres”, de Caetano Veloso, apenas a partir do sentido literal de suas palavras, consiga depreender dele a sua coerência, ou, de outro modo, consiga elaborar a significação que estaria nele. Tudo parecerá caótico e sem sentido, visto que as palavras estão dispostas como se não tivesse qualquer relação umas com as outras. Poder-se-ia questionar, por exemplo, o www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 que tem a ver revólver com coqueiro, dinheiro com paixão, descanso com desejo, caubói com chinês, lar com revolução? Embora não se possa saber com certeza o que o escritor pretende dizer, posto que é impossível penetrar em sua mente, a insistência e repetição nos verbos querer e ser já revelam ao leitor uma verdadeira disjunção entre um Eu e um Tu. Querer, como se sabe, é proveniente do latim quaerere, que significa procurar, buscar, cujo sentido, atualmente, é o de desejar. Visto desse ângulo, trata-se de um ser que se mostra, em sua essência básica, com características díspares em relação ao que o outro busca, procura ou deseja. Assim, em nível profundo, observa-se que o poema gira em torno de tensões. A organização lingüístico-discursiva é construída em torno de oposições e de antíteses, que buscam retratar a dificuldade da convivência amorosa, afirmada pelos quereres distintos, contraditórios, enovelados, confusos. Na medida em que se passa a processar as informações e vai se construindo, por implicaturas e inferências, os sentidos mais locais do texto, vai se deparando com elementos ou significados contraditórios que se opõem e que, no dizer de Antonio Candido (1999, p.30), “poderiam até desorganizar o discurso, mas na verdade criam as condições para organizá-lo por meio de uma unificação dialética”. Um rápido exame pelo plano de expressão, ou mais propriamente pela estrutura do poema, mostra o estabelecimento da relação entre expressão e conteúdo do texto. Percebe-se que a forma do poema é semelhante ao adotado por Camões em Os Lusíadas, isto é, seis oitavas (6 estrofes de oito versos) em decassílabo (10 sílabas poéticas), cuja tônica cai na sexta sílaba, mais um refrão em redondilha maior ou heptassílabo (sete sílabas poéticas), composto de um dístico que intervém a casa duas oitavas. Aqui já se percebe a genialidade do poeta, vez que, para a realização de tal arquitetura isométrica, o trabalho não é fácil, como disse Olavo Bilac: “o poeta trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua.” A par disso, tem-se que a arte organiza o que na vida não se consegue controlar. Em outras palavras, as contradições próprias do amor, os quereres diferentes, peculiares a cada amante, a indomesticabilidade do corpo na vida, representadas pelo conflito entre o eu-lírico do poema e o tu da mensagem, encontram, no corpo do poema, a ordem, a regra, as rimas os cálculos, enfim, a harmonia não encontrada na relação amorosa. O querer do cotidiano esbarra-se no sistema métrico e rítmico do poema, consistente de um exuberante arcabouço de antíteses e de suas variantes, tais como o oxímoro e o paradoxo, os quais fazem lembrar o conceptismo www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 barroco, que se caracterizou pelo abuso no emprego dessas figuras. Caetano, ao apelar para a antítese, parece querer refletir a própria realidade do relacionamento amoroso, que é em si contrastante. O leitor, por meio do jogo de contrastes elencados, capta, compreende e sente esses contrastes em todas as suas dimensões. Aliás, é da própria natureza a procedência dos contrastes, como diz Victor Hugo: A natureza procede por contrastes. É por meio de oposições que ela dá realce aos objetos e nos faz sentir as coisas: o dia pela noite, o calor pelo frio... Toda claridade projeta sombra. Daí, o relevo, o contorno, a proporção, as relações, a realidade... O poeta, esse pensador supremo, deve fazer como a natureza: proceder por contrastes... Se um homem um pouco letrado se der ao trabalho de sondar a sua memória, de aí rebuscar tudo quanto se gravou através da leitura dos grandes poetas, dos grandes filósofos, dos grandes escritores, há de ver que, em cinqüenta citações que lhe ocorram, quarenta e nove pertencem ao que se convencionou chamar de antítese. (VICTOR HUGO apud GARCIA, 2002, p.100) E é isso que Caetano faz: procede por contrastes, por metáforas antitéticas, as quais são definidoras do tema. Mas vai além, vez que ao usar esse recurso expressivo abastece-se de artifícios para tornálo ainda mais expressivo. Esses artifícios mostram-se claros na concisão e na economia de palavras que traduzem as antíteses e no paralelismo rítmico de seus versos que enaltece ainda mais os seus efeitos. No título da canção “O quereres”, o poeta utiliza o recurso semânticosintático de substantivar o verbo querer por meio de um determinante No entanto, curiosamente, no aspecto morfossintático, a forma verbal do infinitivo é flexionada, quereres, e a ela se combina extravagantemente um artigo definido no singular. Vê-se, pois, que o que dá nome ao texto é um sintagma nominal que provoca estranheza, já que composto de um determinante no singular e um verbo substantivado no plural, o que pode sugerir o refluxo à forma verbal flexionada de segunda pessoa do singular, quereres, por meio da evocação de um tu elíptico entre ambos. Naturalmente, a expressividade resulta do surgimento de conotações e de nuances interpretativas dúbias que a mudança de classe acarreta. Poder-se-ia argumentar que a significação nominal é mais viável devido à conexão sintática com o determinante; por outro lado, poder-se-ia conjecturar a presença de um pronome tu subentendido, supostamente pouco provável em tal construção. De qualquer modo, verifica-se a intenção do poeta em provocar a ambigüidade. O cantor pop manipula com habilidade o estranhamento ao relacionar essa expressão à infinitivamente pessoal (verso 49, quinta estrofe), www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 fazendo referência literal a um dado gramatical: denota que o modo infinitivo pode, além do verbo querer, produzir uma derivação imprópria e ser tratado como advérbio, por meio da infiltração da pessoalidade de seu uso. Ou seja, deixa transparecer uma reflexão sobre as originalidades e as possibilidades da língua e da cultura em língua portuguesa. O uso da expressão infinitivamente pessoal, com o sentido de ser infinitamente pessoal, sugere, então, que tal qual a possibilidade singular do idioma, o modo de querer do sujeito da canção é algo também pessoalíssimo, singular. Percebe-se, ainda, nesta estrofe, que o discurso em 1ª pessoa cria um efeito de subjetividade e envolvimento do sujeito Eu que declara os seus anseios, os seus valores desejados em relação ao amor, sugerindo uma transformação do estado de disjunção para a construção da conjunção amorosa. No entanto, pelo fato de a vida ser real e de viés, os valores desejáveis não se mostram possíveis de serem realizados na vida; ao contrário, são possíveis no poema. Outro aspecto interessante a notar é a variação temporal do verbo principal do poema, já analisado pelo poeta e professor Eucanaã Ferraz (2003). Diz esse autor que ora está projetado no gerúndio querendo da estrofe final, ora no querer do estribilho, ora no quero ativo do sujeito, ora no anafórico queres, que impregna toda a canção, conferindo-lhe uma batida –aliterativa e semântica – que induz o ouvinte a esperar a próxima comparação, para com ela exercer as conexões. Não passa despercebido, ainda, quando, ao som reiterado do vocábulo mais importante do poema, a forma verbal queres, associase a palavra quaresma – Onde queres quaresma, fevereiro (verso 43)-, cujos fonemas básicos são repetidos. Nota-se, neste verso, que o poeta elege a palavra fevereiro, que lembra um mês caracterizado pela festividade, pelo carnaval, opondo-se ao querer a quarentena pós-carnaval. O contraste do querer, em termos semânticos, revelase pelo fato de o eu-lírico desejar os festejos do carnaval, tempo dedicado à orgia, aos prazeres, ao extravasamento, à alegria coletiva, à folia, e o tu desejar o período de 40 dias compreendido entre a quarta-feira de cinzas e o domingo de Páscoa, período este caracterizado entre nós pelo isolamento e reflexão espiritual. De forma engenhosa, estabelece uma aliança de palavras na construção dulcíssima prisão (verso 28), cujos conteúdos são incongruentes, utilizando-se do oxímoro. Por meio dessa imagem paradoxal, fortalece, por conseguinte, a estabilidade do relacionamento amoroso: ao mesmo tempo em que se mostra adocicado, é a imposição de uma pena que restringe a liberdade individual. www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 Prosseguindo na análise, nota-se que o verso 1, Onde queres revólver, sou coqueiro, no qual se opõe revólver – que conota a briga, a luta, a desavença e até a morte -, a coqueiro – que sugere a paz, o descanso, a sombra-, é repetido em E onde queres coqueiro, eu sou obus (verso 44), mas, conforme se pode notar, com a inversão na ordem dos termos antitéticos. Ressalte-se que obus é uma espécie de morteiro ou a granada que dele se lança, portanto, uma arma, um “revólver”. Logo, vale questionar a intenção dessa repetição. Lendo com atenção, observa-se que há uma alteração na atitude dos sujeitos, já que agora, tanto um quanto o outro deseja coisas diferentes das que queriam anteriormente. Essa inversão sugere a reversibilidade dos desejos, implicando um percurso transitório de desejos que transcende os limites normais da compreensão dos envolvidos no plano amoroso, que pode ser visto na fórmula: quando o Tu quer isso, o Eu quer aquilo; quando o Eu quer isso, o Tu quer aquilo. Ou seja, os desejos se alteram e impedem a harmonização. Por toda a letra da canção, as tensões se dispõem em pares metaforizados antitéticos que revelam a disparidade de desejos. Algumas delas são explícitas, transparentes; outras, implícitas, com conteúdos opostos que dialogam com elementos extratextuais, pertencentes à cultura, ao conhecimento de mundo e, portanto, dependentes do contexto extralingüístico para obterem coerência. Entre as primeiras, cujos conteúdos opostos inscrevem-se no texto e podem ser reconhecíveis pela grande maioria dos falantes da Língua Portuguesa, podem-se destacar os seguintes pares, alguns deles com comentários sugestivos de interpretação semântica: alto X chão (alto X baixo (chão)); sim e não X talvez; livre X decassílabo (verso livre, alheio a regras, simbolizando, então, uma pessoa que gosta da liberdade X medido, regrado, versos com 10 sílabas poéticas, simbolizando uma pessoa metódica, com regras a seguir . Nesse caso, o poeta faz uma alusão ao próprio poema, composto de versos decassílabos); bandido X herói (malfeitor, pessoa de mau caráter, cruel X benfeitor, homem honrado, notável); lua X sol; mistério X luz (pode sugerir: incompreensão, coisa oculta, inexplicável, reserva, segredo X evidência, compreensão, esclarecimento). No segundo caso, podem-se elencar diversos pares expressos por sentidos contrários, que puxam o significado para extremos opostos e que dependem de um esforço interpretativo do leitor. Dentre eles, destacam-se os versos em que os pares antitéticos, de um lado, fazem referência à abstração, ao campo das idéias, dos sentimentos, do estado psíquico, da poesia e, de outro, ao erotismo, ao corpo www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 físico, ao desejo carnal, ao concreto, à materialização, ao campo da sexualidade: 3. Onde queres descanso, sou desejo; 4.E onde sou só desejo, queres não; 12. E onde queres eunuco, garanhão; 20. E onde queres ternura, eu sou tesão; 22. E onde buscas o anjo, sou mulher; 23. Onde queres prazer, sou o que dói. Transparecem, nesses versos, carências distintas, nítidas divergências de vontades, em que o Tu quer “descanso”, “eunuco”, “anjo”, “prazer”, e o Eu quer “desejo”, “garanhão”, “tesão”, “o que dói”. Como comentário, toma-se como exemplo o par opositivo eunuco X garanhão, que pretende significar homem impotente, estéril, castrado, sem desejo, se opondo a homem mulherengo, viril. Ainda, o par enigmático anjo X mulher, já que só pode ser visto como antitético a partir do seu valor contextual, pois, se as palavras forem tomadas em sentido de dicionário, não se percebe oposição entre elas. Pelo contrário, sabe-se que essas palavras já foram tomadas como sinônimas em outros textos, como na poesia romântica. Dessa feita, para não quebrar o desenvolvimento do tema, a leitura pode ser efetuada no sentido de anjo conotar um ser imaculado, puro, ingênuo, tranqüilo, inocente, desprovido de desejos carnais e mulher conotar um ser ambíguo, pecador, uma mulher sedutora com necessidades de prazeres carnais. Merece destaque, dentre os valores semânticos dos versos da canção, já que afasta as possibilidades de entendimento imediato do leitor, o par romântico X burguês. Aqui, configura-se a expressividade da linguagem poética, que, após uma leitura cuidadosa, reivindica a ativação do conhecimento enciclopédico do leitor, no sentido de ver que Romantismo e Burguesia, no século XIX, caminharam juntos, o homem romântico aparece com a ascensão do homem burguês. Dessa feita, a coerência dos versos é mantida a partir da visão do romântico como o ser apaixonado, sentimentalista, sonhador, que se deixa levar pela emoção, e do burguês como o ser apegado a valores materiais, capitalista, ganancioso, que se deixa levar pela razão. O reconhecimento dessas referências semânticas permite o entendimento de dois sujeitos que buscam valores desejados destoantes. As considerações e análises que tipificam a canção como sendo as incorrespondências de quereres tão diversos não se esgotam aqui. De tudo, a flor do querer é uma bruta flor, que marca o discurso dos conflitos da vida cotidiana a dois, e que faz relembrar os versos de Almeida Garret, no poema Não te amo, em que o poeta escreve Ai! não te amo, não; eu só te quero/ De um querer bruto e fero, os quais sugerem uma interpretação dos versos poéticos como um campo de forças no qual atua uma poética da vida amorosa num www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 esplendor de fragmentos. O labirinto da linguagem encontra ressonância com o labirinto da canção, os quais anseiam pela busca da justa adequação entre o Eu e o Outro. Chegado a esse ponto, as sábias palavras de Marisa Lajolo cabem como luva para o arremate da análise da canção de Caetano que aqui se procedeu, visto que não se pode dizer que ela se esgotou, devido à complexidade de significados que ela abarca: Cada leitor, na individualidade de sua vida, vai entrelaçando o significado pessoal de suas leituras com os vários significados que, ao longo da história de um texto, este foi acumulando. Cada leitor tem a história de suas leituras, cada texto, a história das suas. (LAJOLO, 1993, p. 106) Reconhecidos esses dados, fica evidente que a leitura é o resultado de uma interação entre o texto e leitor, e que a compreensão dos sentidos de um texto poético depende da apreensão das estratégias enunciativas dos planos textual e discursivo. Salienta-se, pois, que no plano do significado ou do conteúdo semântico das formas lingüísticas, o sentido das palavras ou a recuperação da referência de palavras ou expressões e as especializações de sentido que elas podem assumir só podem ser estabelecidos em função dos contextos (lingüísticos, sociais, estilísticos, discursivos e qualquer outro) de uso da língua. Nesse caso, o leitor “não só descodifica o significado das formas lingüísticas, mas atribui-lhes também valores potenciais momentâneos, que devem ser decifrados ou recriados, porque não existem já preestabelecidos no uso comum da língua.” (MARQUES, 2003, p, 23). Ele capta, por conseguinte, os efeitos especiais de significado que incluem fenômenos conotativos da linguagem. Pode-se dizer, então, que a análise da materialização lingüística do texto, cujos conteúdos implícitos dialogam com elementos extratextuais, resulta na compreensão e na coerência do texto e favorece, por conseguinte, o desenvolvimento das habilidades cognitivas do leitor. www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 ANEXO O quereres (Caetano Veloso) 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. Onde queres revólver, sou coqueiro E onde queres dinheiro, sou paixão Onde queres descanso, sou desejo E onde sou só desejo, queres não E onde não queres nada, nada falta E onde voas bem alto, eu sou o chão E onde pisas o chão, minha alma salta E ganha liberdade na amplidão 9. Onde queres família, sou maluco 10. E onde queres romântico, burguês 11.Onde queres Leblon, sou Pernambuco 12. E onde queres eunuco, garanhão 13. Onde queres o sim e o não, talvez 14. E onde vês eu, não vislumbro razão 15. Onde queres o lobo, eu sou o irmão 16. E onde queres caubói, eu sou chinês 17. Ah! Bruta flor do querer 18. Ah! Bruta flor, bruta flor... 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. Onde queres o ato, eu sou espírito E onde queres ternura, eu sou tesão Onde queres o livre, decassílabo E onde buscas o anjo, sou mulher Onde queres prazer, sou o que dói Onde queres tortura, mansidão Onde queres um lar, revolução E onde queres bandido, sou herói 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. Eu queria querer-te e amar o amor Construir-nos dulcíssima prisão Encontrar a mais justa adequação Tudo métrica e rima e nunca dor Mas a vida é real de viés E vê só que cilada o amor me armou Eu te quero e não queres como sou Não te quero e não queres como és 35. Ah! Bruta flor do querer 36. Ah! Bruta flor, bruta flor... 37. Onde queres comício, flipper-vídeo 38. E onde queres romance, rock’n’roll 39. Onde queres a lua, eu sou sol 40. E onde a pura natura, o inseticídio 41. Onde queres mistério, eu sou a luz 42. E onde queres um canto, o mundo inteiro 43. Onde queres quaresma, fevereiro 44. E onde queres coqueiro, eu sou obus 45. O quereres e o estares sempre a fim 46. Do que em mim é de mim tão desigual 47. Faz-me querer-te bem, querer-te mal 48. Bem a ti, mal ao quereres assim 49. Infinitivamente pessoal 50. E eu querendo querer-te sem ter fim 51. E, querendo-te, aprender o total 52. Do querer que há e do que não há em mim. VELOSO, Caetano. Velô. Polygram, 1984. Faixa 7. ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. CANDIDO, Antonio. Na sala de aula: caderno de análise literária. 7. ed. São Paulo: Ática, 1999. CORTEZ, Clarice Zamonaro, RODRIGUES, Milton Hermes. Operadores de leitura da poesia. In. BONNICI, Tomas, ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2. ed. Maringá: Eduem, 2005. ECO, Umberto. Lector in fabula: a cooperação interpretativa nos textos narrativos. São Paulo: Perspectiva, 1986. FERRAZ, Eucanaã (Org.). VELOSO, Caetano. Letra só; Sobre as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. FIORIN, José Luiz. Elementos da análise do discurso. 13 ed. São Paulo: Contexto, 2005. GARCIA, Othon Moacyr. Comunicação em prosa moderna: aprenda a escrever, aprendendo a pensar. 21. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. www.interletras.com.br – v. 2, n. 4 – jan./jun. 2006 GRICE, H. Paul. Lógica e conversação. In. DASCAL, M. (Org.). Fundamentos metodológicos da Lingüística (IV) Pragmática – problemas, críticas, perspectivas da Lingüística. Campinas, SP: 1982. KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 5 ed. Campinas, SP: Pontes, 1997. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1993. MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso literário. Tradução Marina Appenzeller; Revisão da tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996. MARQUES, Maria Helena Duarte. Iniciação à semântica. 6. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. _____________________________________ *Mestre em Lingüística Aplicada ao ensino/aprendizagem de língua materna pela UEM; Professora de Língua Portuguesa, Linguagem e Argumentação e Tópicos Especiais de Lingüística na UNIGRAN-MS.