PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL QUANDO A IMPRENSA MIÚDA É O VEÍCULO: O SEMANÁRIO “A LUTA” E A CIDADE DE CAMPO MAIOR/PI – FALANDO DE TROCAS E MEIOS – 1967 / 1979 José Ribamar de Sena Rosa Vassouras/RJ Outubro de 2012 1 UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA – USS PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL José Ribamar de Sena Rosa QUANDO A IMPRENSA MIÚDA É O VEÍCULO: O SEMANÁRIO “A LUTA” E A CIDADE DE CAMPO MAIOR/PI – FALANDO DE TROCAS E MEIOS 1967 / 1979 Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora do programa de Mestrado em História Social da Universidade Severino Sombra de Vassouras – RJ, aprovada para a obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Profª. Drª. Tatyana de Amaral Maia Vassouras/RJ Outubro de 2012 2 José Ribamar de Sena Rosa QUANDO A IMPRENSA MIÚDA É O VEÍCULO: O SEMANÁRIO “A LUTA” E A CIDADE DE CAMPO MAIOR/PI – FALANDO DE TROCAS E MEIOS 1967 / 1979 Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora do programa de Mestrado em História Social da Universidade Severino Sombra de Vassouras – RJ, aprovada para a obtenção do título de Mestre em História. Banca Examinadora: _____________________________________________ Prof.ª Drª. Tatyana de Amaral Maia – USS (orientadora) ____________________________________________ Prof.ª Drª. Miridan Britto (UFRJ) 1º avaliador _____________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Scheidt (USS) 2º avaliador 3 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho aos meus pais, Antônio de Sena Rosa e Maria Bandeira de Sena Rosa, por me ensinarem a trilhar no caminho certo e ao meu irmão Francisco de Sena Rosa, pela amizade, que apesar de não se encontrarem mais no meu convívio físico arejam e embalam minha memória com a imagem de um espaço-tempo da saudade. 4 AGRADECIMENTOS Obrigado, A Deus, como expressão de minha certeza maior no criador, o qual, através da fé que me norteia, permitiu levar adiante a construção deste trabalho; Aos meus amados filhos, com os quais limitei os momentos de convivência, abraços desse pai eternamente perplexo; À minha querida irmã Rosilene Bandeira por contribuir na compilação dos documentos; À adorável Neide Bezerra, pelo carinho, confiança e incentivos compartilhados; À minha orientadora, professora Tatyana Maia, pela dedicação, incentivo, paciência e principalmente, acreditar nos meus objetivos, aos doutores professores Ana Moura e Eduardo Scheidt pelas importantes reflexões e sugestões ao texto de qualificação aprimorando cada linha, aos colegas de mestrado, aos professores e à direção; Ao professor Francisco de Assis Lima, por gentilmente me ceder as fontes hemerográficas digitalizadas, ao Sr. João Alves Filho, pelas inúmeras informações sobre as memórias de minha terra querida Campo Maior/PI., às pessoas que gentilmente cederam seus depoimentos: Sr. Luís Edwiges, Sr. Severo Sampaio, Professor Ernani Napoleão e Sr. José Miranda Filho; À estimada secretária Sandra Feijó, pela paciência e disposição; À colega Silvana Santos pela amizade; Agradeço esta oportunidade à Universidade Severino Sombra de Vassouras-RJ. Uma subjetividade (sonho) através de uma intencionalidade se transformou no real. 5 RESUMO O propósito deste trabalho foi analisar o semanário A LUTA, no período de 1967 a 1979. O jornal era a única fonte onde a população campomaiorense buscava se informar e lugar de divulgação social e cultural da comunidade. As ideias, imagens, enunciados eram os componentes decisivos que sustentavam o semanário como novidade, diferente, devir de novas significações sociais. Acompanhando as permanências e mudanças, os relatos e impressões dos colaboradores representavam estratégias discursivas, evidenciando momentos de transição entre valores tradicionais e modernos, refletindo um repertório plural de possibilidades – espaciais e temporais - os quais contribuíram para reforçar a memória e a identidade da cidade. Palavras-chaves: cidade, imprensa, memória. 6 Abstract The purpose of this study was to analyze the weekly A LUTA, in the period from 1967 to 1979. The newspaper was the only source where the population campomaiorense sought to inform and place social and cultural dissemination of the community. The ideas, images, set out were the decisive components that held the weekly as new, different, future of new social meanings. Accompanying the permanence and change, the reports and impressions of the discursive strategies, highlighting employees accounted for moments of transition between traditional and modern values, reflecting a plural repertoire of possibilities – spatial and temporal -which contributed to strengthen memory and identity of the city. Key-words: city, press, memory. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................09 1 A CIDADE DE CAMPO MAIOR/PI E O SEU JORNAL “A LUTA” 1967 - 1979.............................................................................................................17 1.1 Campo Maior: aspectos históricos.............................................................................17 1.2 Imprensa e Comunicação...........................................................................................26 1.3 A Imprensa Brasileira e a Ditadura Civil-Militar no contexto da existência do semanário A LUTA................................................................................................29 1.4 Censura à imprensa brasileira no contexto da existência do jornal A LUTA.............39 2 O JORNAL “A LUTA” – COLUNAS E EDITORIAS – ASTÚCIAS, PRÁTICAS E TÁTICAS.......................................................................................49 2.1 O Jornal A LUTA e sua programação........................................................................49 2.2 O Jornal A LUTA: Entre o consenso e o consentimento............................................69 3 COLUNAS E EDITORIAIS: A CONSTRUÇÃO DE CENÁRIOS DISCURSIVOS.......................................................................................................79 3.1 O Jornal A LUTA e as festas populares como espaço de sociabilidade em Campo Maior/PI............................................................................79 3.2 Olhares e percepções vivenciados a partir do Jornal A LUTA para a construção do Monumento/Museu em homenagem à Batalha do Jenipapo.............89 3.3 Jornal A LUTA - Discursos regionais e locais e formas dominantes de pensamentos como redefinidores da identidade de Campo Maior/PI......................99 3.4 Anexos.....................................................................................................................112 4 CONCLUSÃO........................................................................................................114 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................120 6 FONTES.................................................................................................................125 7 ANEXO.................................................................................................................. 126 8 INTRODUÇÃO Na contemporaneidade, os meios de comunicação – incluindo a imprensa escrita – misturam os sentidos e os instrumentos, usam de novas próteses e técnicas, constroem outros dispositivos e modificam as faces das sensibilidades e das experiências.1 É um mundo de trocas e comunicações que se espalham pelo globo à passagem dos segundos, com espaços cada vez menores entre o dito e o ouvido, o escrito e o lido, o projetado e o visto. Escritos, mensagens, falas, vozes, imagens, sons, todos eles meios e ações a um só tempo, surgem dos desejos, medos e empreendimentos do homem atual. Assim, “eis o estatuto contraditório e interessante da informação: simultaneamente abertura e necessidade de conhecimento; emancipação e necessidade de raízes para interpretar as informações”.2 Nessa perspectiva – olhando para as colunas e editoriais do jornal A LUTA podemos falar de ações comunicantes ou comunicativas como um objeto de atenção da história. Pois é de história e imprensa que falamos aqui; das ramificações que existem entre essas duas regiões, onde historiadores em suas pesquisas se debruçaram sobre questões que pareciam mais atinentes aos comunicólogos. O objeto dessa pesquisa é o semanário A LUTA que circulava na cidade de Campo Maior/PI entre o final de 1967 a setembro de 1979 e da participação desse meio de comunicação na vida da sociedade campomaiorense. As sociabilidades, a relação entre imprensa e política, os registros nos hábitos, práticas e costumes, os engajamentos daqueles que produziam o jornal, o envolvimento das pessoas por ele atingidas – os leitores – e os relatos e memórias de quem os viveram estão aqui presentes – no caso, as entrevistas com alguns colaboradores e/ou pessoas leitoras que acompanharam a vida do periódico. Trataremos aqui dos processos de circulação de práticas, ideias e representações pelos os quais os homens se fazem agentes ao consumir tais obras, e também, de sentimentos, tendências e valores que surgem em cidades de pequeno porte, 1 Para Dominique Wolton, a evolução das comunicações e mudanças tecnológicas hoje facilita a globalização, as relações entre os povos, mostrando o acontecimento praticamente em tempo real, mas essa “aldeia global” não aproxima forçosamente os pontos de vista. Para esse autor, a globalização da comunicação não simplifica nada e sim complica tudo. Ver WOLTON, Dominique, É preciso salvar a comunicação, São Paulo, Paulus, 2006, p. 128. 2 WOLTON, Dominique, É preciso salvar a comunicação, São Paulo, Paulus, 2006, p. 137. 9 em diálogo com outras realidades distantes.3 Afinal, “olhar e buscar a história dos lugares, dos bairros e da própria cidade é (re)descobrir as raízes que sustentam os pilares das formas presentes”.4 Movidos por desejos daqueles que produziam o periódico – idealizados ou postos em execução – as colunas e editoriais se tornavam objetos de análises não somente dos que detinham o poder local, como fazendeiros, comerciantes e profissionais liberais, mas também das pessoas comuns que sabiam ler, que repletos do que liam, transpunham suas percepções e emoções a partir da produção semanal do jornal. Isso se confirma a partir da visão do entrevistado Ernani Napoleão, que foi diretor e colaborador do semanário: “O jornal se adequava a todos os segmentos da sociedade de Campo Maior e como eu disse, a parte social, a parte esportiva, a parte política e até mesmo policial se fazia no jornal [...]”,5 e da coluna “Um ano de “A LUTA””, edição de 17/11/1968: “As suas páginas enfeixam colaboração variada: notícias, comentários, crítica, artigos sobre a realidade piauiense, com a dimensão que comportam suas pequenas páginas [...]”.6 Os relatos orais colhidos junto a alguns colaboradores e/ou memorialistas, os quais constituíram fontes para o presente e também para o futuro, têm a virtude de trabalhar com a memória de agentes vivos antes que suas recordações e reminiscências se apaguem, manifestando e mostrando o quanto o ato de historiar constrói a fonte. 7 No ato de requisitar de alguém uma narrativa do vivido, o historiador se apropria do documento. Ele se porta como um receptor de memórias, que a seu pedido, são ativados no sentido mesmo da rememoração, ou seja, pessoas lembram porque são solicitadas a lembrar.8 Refletindo em direção parecida ao que defende Michel de Certeau, acreditamos que a existência do jornal A LUTA se encontrava articulada com aquele presente e com as relações de poder que permearam seus escritos, “o lugar social” de seus 3 Nesse caso, de Campo Maior, passamos a vê-la como espaço de sociabilidade, onde as pessoas trabalhavam, produziam, se divertiam e se emocionavam, criavam suas identidades, influenciando assim, seu modo de viver, sentir e pensar, diante das representações ali em circulação. 4 FAÇANHA, Antônio Cardoso, Cidade e Cultura, IN: Apontamentos para a história cultural do Piauí, vários autores, Teresina, Fundação de Apoio Cultural do Piauí – FUNDAPI, 2003. p. 78. 5 LIMA, Ernani Napoleão, entrevista do dia 10/02/2012. 6 COELHO, Celso Barros, coluna “Um ano de “A LUTA””, edição de 17/11/1968. 7 Partindo do interesse de que os entrevistados tratassem e retratassem do período da existência do periódico A LUTA (1967 – 1979) passamos a questioná-los sobre variados assuntos relacionados à cidade de Campo Maior, daquele contexto, situação financeira do jornal, como era produzido, etc., tentando identificar as rupturas e permanências na cidade e sua comunidade. 8 NASCIMENTO, Francisco Alcides do e SANTIAGO JR, F. C. Fernandes, Encruzilhadas da História: Rádio e Memória, Recife, Bagaço, 2006, p. 13. 10 colaboradores e diretores. Encontrava-se, portanto, submetida a opressões, ligada a privilégios, enraizadas em particularidades, sendo “em função desse lugar que se instauram os métodos, que se precisa uma topografia de interesses, que se organizam os dossiers e as indagações relativas aos documentos”.9 Foi presença assídua, atravessando e desequilibrando – até nos detalhes – a vida social e política da população de Campo Maior/PI daquele tempo e espaço. O jornal proporcionava a seus leitores um olhar sobre si mesmos, ao reafirmar suas identidades através de colunas e editoriais locais, de reclames que lembravam situações do cotidiano, poesias que expressavam sentimentos e emoções vividos pelas pessoas, especialmente aquelas que habitavam em Campo Maior/PI. É o que se vê na poesia “Campo Maior”, edição de 14/04/1968: “Grandeza de uma terra abençoada. Fartura sem rival no derredor. Joia do Piauí – Campo Maior”. 10 Se propunha promover o diálogo e facilitar a comunicação entre os colaboradores e seus leitores campomaiorenses, revelando-se noticioso, ou seja, lugar onde a notícia aparecia. Na medida em que o semanário cumpria o seu papel de “comunicar aos leitores”, ele estava, também, tomando posição na conjuntura local, pois independente de qualquer discurso (político, jornalístico, religioso), o fato de se construir um enunciado não tem a finalidade última somente de informar, “mas persuadir o outro a aceitar o que está sendo comunicado”.11 A opção pelo jornal e pelo período de sua existência (1967-1979) justifica-se na medida em que ele, além de principal veículo de comunicação, teria se constituído naquele período - como um eficaz instrumento de divulgação social, político, cultural e religioso da cidade de Campo Maior/PI.12 Um dos aspectos principais da pesquisa será o de analisar as relações entre o periódico e a sociedade campomaiorense, buscando o significado das transformações, luzes e reflexos, a partir da função ocupada pelo o semanário no contexto das práticas sociais locais.13 Assim, busca-se compreender como o contato entre o jornal e seus 9 CERTEAU, Michel de, A Operação histórica, IN: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre, História: novos problemas. Rido de Janeiro, Francisco Alves, 1995. p. 18. 10 Poesia “Campo Maior”, edição de 14/04/1968. 11 FIORIN, José Luiz, Elementos da Análise do discurso, São Paulo, Contexto, 2000. p. 53. 12 Para o colaborador Severo Sampaio, o periódico teve grande importância para a cidade e todo o município de Campo Maior/PI, pois divulgava a parte social, noticiosa e os intelectuais locais. Ver SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012. 13 Devido à escassez de estudos sobre esta temática nas pequenas cidades brasileiras e especificamente de Campo Maior/PI, nos apegamos e recorremos aos registros orais (entrevistas) com alguns colaboradores 11 leitores interferiu no processo de construção de preferências de leituras, ao difundir notícias e informações estaduais, nacionais e internacionais, dando enfoque no resgate de personagens, memórias e fatos que fizeram a história de Campo Maior, pois “Tinham umas pessoas que se interessavam muito pela parte social, pela coluna social. Tinham outras pessoas que se interessavam pela parte esportiva e tinha o jornal de cunho político [...]”.14 Talvez a ousadia maior do semanário tenha sido nas suas considerações sobre o passado dos homens e mulheres que fizeram da cidade sua moradia e de fazer novos olhares sobre os acontecimentos históricos e múltiplas temporalidades que se articulavam no período de sua existência. Narrativas que sedimentavam em textos várias formas de linguagens voltadas para compreender o fragmentário que foram, as diferenças que os constituíam e os dessemelhantes que os habitavam, como exemplo, a poesia “Amar”: “Amar é parecer na natureza mui sereno e com mui sinceridade. É viver e não ver as impurezas a brilhar com tamanha intensidade”, 15 e o editorial “Campo Maior: uma política de paz e amor” onde o colaborador relata e retrata a eleição na cidade, que experimentada de formas variadas era algo que desordenava o cotidiano.16 As reflexões teóricas e metodológicas desta pesquisa procuram trazer a influência do semanário para a história de Campo Maior/PI, estabelecendo diálogos entre as lembranças e transformações que permearam a trajetória do jornal, buscando trazer para o nosso conhecimento não só os pensamentos e pretensões dos editores e colaboradores, mas sobretudo, os comportamentos, as pluralidades de expectativas dos leitores no decorrer do percurso. Assim, com método de pesquisa, procuraremos atribuir “independência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio”17 surgidos a partir do jornal e seus participantes e as imbricações sociais locais resultantes. Ver e observar o cruzamento de práticas e discursos e os sucessivos deslocamentos que as imagens e textos do jornal e da cidade sofreram no decorrer daquele recorte espacial e temporal. Sem esquecer – naquele período – que a imprensa brasileira caminhava por uma trilha gerada na complexa do jornal para fortalecer nossos argumentos e como método/técnica de pesquisa. 14 LIMA, Ernani Napoleão, entrevista do dia 10/02/2012. 15 Poesia “Amar”, edição de 24/10/1971. 16 Editorial “Campo Maior´: uma política de paz e amor”, edição sem data. 17 Frase extraída do livro Ao vencedor as batatas, de Roberto Schwarz, São Paulo, Duas Cidades , 2000. p. 26. 12 realidade que se apresentava, no âmbito de um regime político que cerceava as produções jornalísticas em tentativas autoritárias de controles nas “artes de dizer”.18 Este trabalho está na interface do lingüístico, do geográfico e do histórico, já que buscaremos analisar as diversas linguagens (discursos dos colaboradores) que ao longo de um período histórico (a existência do jornal), construíram uma geografia, uma espacialidade de significados (práticas, hábitos e comportamentos sociais dos campomaiorenses).19 Não queremos construir um sistema discursivo sobre Campo Maior e seu povo a partir do semanário A LUTA, mas despedaçar as narrativas dos colaboradores, ordená-los de outra forma e mostrá-las à medida que constituíram emissores de signos, imagens que interferiram na forma de ver e dizer a realidade da cidade e seu contexto de 1970. Dividimos o texto em três capítulos: “A cidade de Campo Maior/PI e o seu jornal A LUTA - 1967 - 1979”, “O jornal “A LUTA” – colunas e editoriais – astúcias, práticas e táticas”, e “O jornal “A LUTA” – Percursos discursivos a partir de suas colunas e editoriais”. No primeiro capítulo contextualizamos a cidade de Campo Maior/PI e seu periódico A LUTA, estabelecendo olhares entre as relações sociais, políticas, econômicas e religiosas com o espaço geográfico que consagraram um dado lugar de memórias e lembranças. Numa sociedade em que a tradição e as relações sociais eram bastante influenciadas por lealdades várias e o poder das famílias conservadoras não podia ser ignorado no fazer daquelas relações. Também, fizemos um apanhado da situação da imprensa brasileira no período e as próprias redefinições das forças políticas e sociais no âmbito nacional, a partir da tomada do poder pelo golpe civil-militar em 1964. Os discursos políticos dos representantes do governo brasileiro se agrupavam em torno de temas que tentavam sensibilizar e convencer a opinião pública nacional a qualquer custo, através inclusive de mecanismos como a censura, a repressão e a tortura, emudecendo os que discordavam da palavra única e/ou das ações cometidas em seu nome. No segundo capítulo abordaremos e retrataremos as colunas e os editoriais do semanário, procurando ver e dizer o entrelaçamento que existia entre o periódico e a comunidade campomaiorense. As representações que se faziam entre as numerosas e 18 CERTEAU, Michel, A invenção do Cotidiano: 1 – artes de fazer, Petrópolis (RJ), Vozes, 1994. p. 154. Para entender melhor esses temas e seus entrelaçamentos, ver ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de, A Invenção do Nordeste e outras artes, Recife, FJN, Ed. Massangana; São Paulo, Cortez, 2006. pp. 22-23. 19 13 várias relações sobre a cidade e o todo social local. Ainda, será investigado como o jornal era produzido, distribuído e suas dificuldades financeiras. Para isso, fomos buscar algumas entrevistas com pessoas que participaram e conviveram com a existência do semanário, buscando examinar seus olhares, dizeres e reflexões sobre o período: “A História oral é uma técnica que registra os conjuntos pertinentes de depoimentos gravados sobre temas historicamente significativos”.20 Serão analisados os pormenores e os próprios movimentos das entrevistas em que as intimidades das premissas ali existentes até certo ponto se revelaram. Não se trata de querer encontrar incongruências entre as ideias dos entrevistados e os conteúdos das colunas e editoriais, mas de reforçar num plano maior as sutilezas das conformidades do que realmente acontecia quando da produção do periódico. No terceiro e último capítulo trataremos de uma série de reelaborações discursivas feitas por alguns colaboradores do periódico por meio de afirmações de enunciados e imagens, objetivando consagrar certos aspectos históricos da cidade e seus mitos populares. Não mais se sonhava com a volta ao passado, mas com a construção de um presente que guardava com aquele certas familiaridades, em nome da produção de uma nova imagem para a região. Festas populares da cidade e fatos históricos marcantes 21 da região consagraram uma dada visibilidade e dizibilidade que se impuseram, até hoje, como uma verdade. Diversos sujeitos se cruzaram naquelas memórias, fazendo-nos reconhecer uma pluralidade de discursos e de reconstruções a partir de diferentes olhares e experiências. Por trás da inventividade e agir dos colaboradores é possível perceber uma intenção social e política com vistas à problematização do cotidiano que os cortava. Ou seja, foi um contexto histórico modelador22 e simultaneamente modelado pelos conteúdos das colunas e editoriais do semanário campomaiorense. A construção de uma consciência regional campomaiorense não surgiu com um indivíduo ou com um determinado grupo. Ela emergiu em pontos múltiplos, que vão paulatinamente se encaixando, sendo unificadas pelas necessidades colocadas pelo tempo. Dentre os múltiplos espaços de construção daquilo que nomeamos de 20 CAMARGO, Aspásia, apresentação IN: Manual de história oral, Rio de Janeiro, Editora FGV, 2004. p. 9. 21 Veremos no terceiro capítulo as diversas festas populares de Campo Maior/PI, com destaque para as festas do padroeiro, Santo Antônio. O fato histórico que emergiu com novo olhar em relação ao marco temporal foi a Batalha do Jenipapo, fato ocorrido em 13 de março de 1823 nas proximidades da cidade de Campo Maior/PI. 22 Sempre lembrando que o governo no poder central do Brasil encontrava-se sob domínio de forças coercitivas e forte presença autoritária e as acomodações dos interesses se faziam através de mecanismos traduzidos em ganhos materiais e/ou simbólicos para a sociedade brasileira. Não foi diferente para a situação de Campo Maior/PI e sua população. 14 consciência regional campomaiorense, destacamos a atuação do jornal A LUTA. É também objetivo desta dissertação, investigar como o semanário – através de suas colunas e editoriais – se constituiu em um lugar privilegiado para a produção de um discurso regionalista e para a sedimentação de uma visão de cidade e povo vitorioso, inclusive como atuante na história nacional.23 Por fim, propomos realizar uma discussão que contemple abordar um jornal do interior do Piauí e do nordeste brasileiro enquanto veículo representativo apto à efetivação das expectativas sociais e políticas comuns às pessoas de uma dada época, permitindo vislumbrar um “modus” próprio das representações de um contexto e lugar. Anos marcados, no Brasil, pela permanência de uma ditadura civil-militar que cerceava as liberdades individuais,24 e que evidenciavam momento de coexistência entre valores conservadores/tradicionais e desenvolvimentista na região de Campo Maior/PI.25 Ali, dizer e afirmar o urbano não era possível “sem a constituição de uma temporalidade que o significasse enquanto inconstância do ser, e a construção de um outro marcado pela perpetuação do tempo; daí os cenários rurais como lugar privilegiado de salvação contra o devir”.26 Assim, as pressões políticas e sociais de uma ditadura civil-militar, o desejado “milagre econômico”, arauto de uma modernização que excluía, assustava e alienava são temas a serem abordados – especialmente no primeiro capítulo – pois promovem o conhecimento de momentos de uma realidade social e política importante para a historiografia brasileira. Estado que intervinha na imprensa, nos lazeres e sociabilidades, institucionalizando-os ou “modernizando” os já existentes. As colunas e editoriais do semanário A LUTA retratavam os anos de 1970 de Campo Maior/PI e sua população através de produção quase artesanal, 27 porém dotados da capacidade de revelar aquilo que seus produtores – os colaboradores - sensíveis àquela realidade social, captavam do cotidiano da cidade e sua comunidade, adequandoos a padrões discursivos impostos como verdades hegemônicas. Eles definiam – nas 23 Algumas colunas e editoriais se referem ao episódio da Batalha do Jenipapo como fato importante no processo de consolidação da independência brasileira no Século XIX. 24 Ver TORRES, Gislane Cristiane Machado, Escritas marginais: cidade e cotidiano teresinense em obras da geração mimeógrafo, IN: CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho (Org.), História e Ficção, Imperatriz (MA), Ética, 2009. pp. 81-100. 25 Naquele contexto da existência do semanário ainda existia forte influência das famílias que representavam o poder político e econômico na cidade, embora os grandes avanços tecnológicos já se fizessem presentes nos grandes centros urbanos do país. 26 VILHENA, Gustavo Henrique Ramos de, No território seguro da saudade, IN: IN: CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho (Org.), História e Ficção, Imperatriz (MA), Ética, 2009. pp. 81-111. 27 Ver entrevia com SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012. 15 colunas e editoriais - o que seria legítimo, aceitável, mas também, o que seriam práticas condenáveis, que deveriam entrar em desuso, serem abandonadas como ultrapassadas, velhas: “Sem falar na feiura do prédio, que não foi construído para servir, mas, o que parece entrar no rol das coisas inúteis, tudo ali merece a condenação dos que desejam para sua cidade o seu progresso arquitetônico e embelezamento urbanístico”.28 O jornal A LUTA fonte e objeto desta pesquisa se encontra no arquivo particular do professor de história Francisco de Assis Lima, situado na Rua Mestre Antônio Neves, 212, bairro Fátima, cidade de Campo Maior/PI. Assim, sempre que nos referenciarmos ao periódico, desnecessário se faz citar a sua localização. Outro aspecto que deve ser ressaltado, é que as colunas e editorias do semanário foram digitalizados e algumas dessas informações não constam a data de edição, que só constava na primeira página, ou seja, na capa. Capítulo I A CIDADE DE CAMPO MAIOR/PI E O SEU JORNAL “A LUTA” 1967 - 1979 1.1 - Campo Maior: aspectos históricos 28 Editorial “Noticiário da Cidade”, edição de 20/11/1978. 16 “Um irmão do conde de Pombeiro, D. Francisco da Cunha Castelo Branco, fidalgo português, foi o fundador da freguesia de Santo Antônio do Surubim, mais tarde cidade de Campo Maior. Não existe dados exatos sobre o ano da criação da freguesia de Campo Maior, sabendo-se entretanto, que foi por volta de 1696 a 1723. Pertencia então à freguesia de Cabrorí, em Pernambuco, passando mais tarde à jurisdição do Bispado do Maranhão, por ato régio de D. João V. Também nada consta sobre a data exata da criação do distrito da povoação de Santo Antônio do Surubim, admitindo-se ter sido por volta de 1757, quando foram nomeados tabelião público, Manoel Rodrigues dos Santos e juiz de órfãos, Manoel Simões do Vale, atos datados de 3 de março e 3 de abril de 1761. Por Carta Régia de 19 de junho de 1761, foi a freguesia elevada à categoria de vila e município já com o topônimo de Campo Maior ”.29 É objetivo neste capítulo iluminar monumentos importantes, significantes e marcantes na vida da sociedade e da própria cidade de Campo Maior/PI, mesmo sabendo que se dirigir a pedaços consistentes de um passado mais ou menos distante é como se encontrar em um “país estrangeiro”, buscando reconstruir processos sociais envolvendo não só indivíduos, mais igualmente grupos sociais e toda uma coletividade local.30 Sabendo que cada espaço social possui conformidade histórica própria, particular, analisaremos as formações sociais campomaiorenses dentro das dimensões espaciais e temporais que viveu o jornal A LUTA - no seu período de edição e circulação - decifrando, interpretando e reconstruindo os vestígios, produzindo conhecimento sob a forma de sinais e mensagens, construindo olhar histórico sobre aquele contexto no qual o periódico existiu. Fazer o que Marialva Barbosa propõe: “O que será decifrado, através da interpretação, está sempre localizado no presente. É neste sentido que a história trabalha com vestígios que chegam ao presente sob a forma de mensagens e sinais. Sem vestígios não há passado. Compreendendo o vestígio como mensagem, atribuindo um valor a esses vestígios no presente, produz-se a interpretação. Assim, para contar uma história há que haver vestígios, a predisposição para lê-los e a leitura, isto é, a interpretação crítica”.31 O esforço de compreender a cidade de Campo Maior/PI e a sociedade no período em que existiu o semanário A LUTA, serve como um exercício de busca de 29 SOARES, Sidney, Enciclopédia dos municípios piauienses, Fortaleza, Escola gráfica Santo Antônio, 1972, p. 57. 30 Sobre a questão da memória e sua importância social ver: ROSSI, Paolo, O passado, a memória, o esquecimento, São Paulo: Editora UNESP, 2010, p.30 31 BARBOSA, Marialva, Meios de Comunicação no Brasil Pós-30: reflexões em torno da historicidade e do papel da imprensa, UNIrevista – Vol. 1, n. 3: (julho 2006). p. 2. 17 entendimento daquela realidade social, realidade essa imbricada de relações históricas e de poder, atento para suas linhas de constituição, experiências e falas que deram origem ao seu desenho e os elementos de sua tecitura. Decifrar e retratar enigmas da referida cidade e seus grupos sociais é desenraizar marcas contidas e deixadas nos lugares urbanos, nas formas de apropriações que essa sociedade utilizou para ocupar esses territórios, ajudando a enxergar com outras matizes os acontecimentos rotineiros, vendo no que é trivial, comum e as vezes negligenciado, os sinais e vestígios que podem direcionar como chave para o esclarecimento da realidade: “Olhar e buscar a história dos lugares, dos bairros e da própria cidade é (re)descobrir as raízes que sustentam os pilares das formas presentes”.32 Embora saibamos que tudo que chega do passado foi convocado por estratégias, armado por práticas e táticas, visando atender alguma demanda do seu tempo. Campo Maior/PI sempre se destacou na região como grande produtor de gado bovino33, produtos agropecuários e extrativistas, com destaque para a cera de carnaúba, hoje forte item de exportação do cidade. O município é pólo da microrregião de Campo Maior e em 1972 limitava-se com os seguintes outros municípios: Alto Longá (54 kms), Altos (40 kms), Barras (72 kms), Piripiri (84 kms), Castelo do Piauí (108 kms), José de Freitas (106 kms) e Pedro II (124 kms). 34 (Ver mapa abaixo). Embora o mapa seja uma edição de 1957, a única alteração se fez em 1970, com a criação do município de Capitão de Campos, entre Campo Maior e o município de Piripiri. 32 FAÇANHA, Antônio Cardoso, “Cidade e Cultura”. IN: SANTANA, R. N. Monteiro de, (org.). Apontamentos para História Cultural do Piauí, Teresina: FUNDAPI, 2003, p. 78. 33 De acordo com o censo de 1970, a região da cidade de Campo Maior apresentava 513.191 animais, distribuídos entre bovinos, caprinos, asininos, ovinos, muares, suínos e eqüinos. Destes, mais de 44% correspondia a animais da raça bovina (228.088 animais). Ver Censo demográfico/PI – 1970, volume I, tomo VI. 34 SOARES, Sidney, Enciclopédia dos municípios piauienses, Fortaleza, Escola gráfica Santo Antônio, 1972, p. 59. 18 Fonte: Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, Volume III, Oficinas Gráficas do IBGE em LUCAS – Brasília - 1957 A cidade tem no seu espaço geográfico os rios Jenipapo (cujas margens aconteceu a batalha que lhe emprestou o nome), Longá e Surubim, todos temporários. Destaca-se ainda, os riachos Longazinho, Pontilhão, quebrado, pintadas e salubre.35 Na lavoura, destacam-se milho, feijão, arroz e mandioca, cujos excedentes são exportados para Teresina, Parnaíba, Fortaleza e estado do Maranhão. Encontravam-se registrados na Exatoria Estadual no ano de 1972, 270 comerciantes varejistas e 08 atacadistas. Na pequena indústria, existiam 06 beneficiamentos de arroz, fábricas de móveis, olarias e pequenas fábricas de calçados. Localizava-se em Campo Maior a sede do FRIPISA (Frigorífico do Piauí S/A), que abastecia de carne a capital do Estado.36 Sendo assim, a maioria de suas realizações nas áreas industriais e comerciais e no que se refere ao lazer, à arte, literatura, saúde37 e informações, vinham prontos de outros lugares. Diante daquele contexto – década de 1970 – era necessário produzir na região o que as expectativas locais estabeleciam, com seus próprios recursos e para si mesma, como exemplo, o periódico A LUTA, criado no final de 1967 e tido por muito tempo como a única fonte onde a população local se apropriava de informações culturais, sociais, políticas e religiosas. De acordo com o censo de 1970, a situação de infra-estrutura da cidade de Campo Maior/PI era precária. Mais de 50 ruas compunham os perímetros urbano e suburbano da cidade, com 20 delas calçadas com pedra em formato de paralelepípedo (20%). Dos 35 SOARES, Sidney, Enciclopédia dos municípios piauienses, Fortaleza, Escola gráfica Santo Antônio, 1972, p. 60. 36 SOARES, Sidney, Enciclopédia dos municípios piauienses, Fortaleza, Escola gráfica Santo Antônio, 1972, p. 60. 37 Embora existissem dois hospitais – um regional e uma maternidade – com destaque para o Hospital Regional Dr. Helvídio Nunes de Barros, com 40 leitos, os casos de resolução mais graves eram transportados para Teresina, a capital. SOARES, Sidney, Enciclopédia dos municípios piauienses, Fortaleza, Escola gráfica Santo Antônio, 1972, p. 61. 19 9.890 domicílios da cidade em 1970, somente 1.134 eram atendidos por ligações de água (777 ligados a rede geral de água e 357 atendidos por poços ou nascentes de água) resultando em torno de 11,46% de domicílios atendidos. Somente 1.762 desses domicílios eram atendidos por sistemas de fossas (17,81%) – 273 por fossas cépticas e 1.489 por fossas rudimentares38. No mesmo período, 682 (6,89%) ligações de energia elétrica existiam na cidade, através da CEPISA (Centrais Elétricas do Piauí S/A). 39 Somente 100 ligações (1,01%) telefônicas ligavam Campo Maior a outras paragens, através da TELEPISA (Telefones do Piauí S/A). Um moderno estádio (Deusdedit de Melo) servia como palco para os dois clubes de futebol da cidade, o Comercial Esporte Clube e o Caiçara Esporte Clube.40 De acordo com a Enciclopédia dos Municípios Piauienses, as principais famílias representativas do município – política e econômica – eram: Os Paz, Os Andrades, Os Melos, Os Lustosas, Os Leites, Os Ibiapinas, Os Alves Cavalcantes, Os Gentil Alves, Os Bonas e Os Santanas.41 Vale destacar o nome de José Prudêncio de Almeida como grande produtor e exportador de cera de carnaúba e Manoel de Sousa Veras, com forte atuação no setor de beneficiamento de Couro, principalmente o bovino.42 A parte folclórica do município de Campo Maior tinha suas principais manifestações através de tradicionais danças, como: São Gonçalo, de 24 de dezembro a 06 de janeiro; Reisados, mesmo período dos festejos de São Gonçalo; Marujos ou Marujadas, de 23 de dezembro a 01 de janeiro; Em junho, as festas de São João eram bastante apreciadas, devido as músicas entoadas durante as danças e os trajes típicos usados pelos componentes. Mas a festa marcante e tradicional da cidade eram os festejos do padroeiro do município, Santo Antônio de Lisboa, que acontecia de 01 a 13 de junho, período em que eram realizados novenários. O destaque desses festejos eram as divisões de noitadas, com maior destaque para a noite dos vaqueiros (quando se homenageia essa figura popular), uma vez ser esse o principal personagem na captura 38 Fossas cépticas tinham pequenos tratamentos dos dejetos por processo de decantação e nas fossas rudimentares não existia nenhum tipo de tratamento. 39 VIII Recenseamento Geral – 1970, Série regional, Volume I, Tomo VI, p. 374. 40 SOARES, Sidney, Enciclopédia dos municípios piauienses, Fortaleza, Escola gráfica Santo Antônio, 1972, p. 61. 41 Olhando os prefeitos municipais do período da existência do jornal A LUTA, confirma-se a predominância de algumas famílias no poder local: Raimundo Nonato ANDRADE, prefeito de 02/1967 a 01/1971; Ten. Jaime da PAZ, prefeito de 02/1971 a 01/1973; Dácio BONA, prefeito de 02/1973 a 01/1977; José Olimpio da PAZ, prefeito 02/1977 a 04/1977. LIMA, Francisco de Assis de, Campo Maior em Recortes, Campo Maior, edição do autor, 2008. pp. 67-68. 42 SOARES, Sidney, Enciclopédia dos municípios piauienses, Fortaleza, Escola gráfica Santo Antônio, 1972, p. 61. 20 do gado que era criado solto nos campos do município. 43 Ainda a respeito de festas populares de Campo Maior/PI, Marion Saraiva dizia: “Das festas religiosas, as mais impressionantes eram as cerimônias da Semana Santa, que se realizavam todos os anos com grande piedade. Quase toda gente se confessava para comungar na Quinta-feira Santa e muitos jejuavam. O “jejum” constava de tanta comida ao meio dia, quando a matraca tocava, e na consoada, quando íamos para a mesa resolvidos a dar cabo das sobras do almoço, e mais de um prato grande de arroz de leite, da tijela de qualhada, dos pratinhos de canjica, café com cuscuz, milho cozido, e de tanta gulodice que parecia, que é impossível enumerar”44 O município passou por profundas transformações ao longo do século XX. O censo realizado em 1970 - período de nossa pesquisa - informa que Campo Maior tinha uma população de 61.549 habitantes45. Somente 18.400 habitantes moravam na cidade de Campo Maior e destes, 7.986 sabiam ler e escrever, demonstrando um alto índice de analfabetos46, acima de 56% e grande parcela da população morando na zona rural e povoados.47 A tabela abaixo demonstra que houve uma evolução significativa da queda do analfabetismo na cidade da década de 1960 a 1980.48 Tabela 1 – Mostra população do município de Campo Maior/PI População Total 56.120 61.549 67.700 Moravam na cidade 13.849 18.400 20.731 Moravam na zona rural 42.271 43.149 46.969 Moravam na Cidade e Sabiam ler e escrever 5.127 7.986 13.034 Índice de analfabetos 62,98 % 56,60 % 37,13 % Ano do censo 1960 1970 1980 43 Diagnóstico Sócio-Econômico do município de Campo Maior/PI, Teresina, COMEPI, 1990, p. 23. SARAIVA, Marion, coluna “Antigos costumes de Campo Maior”, edição de 14/04/1968. 45 IBGE – Censo Demográfico de 1960/PI, volume I, Tomo III - Censo demográfico/PI – 1970, volume I, tomo VI - Censo Demográfico de 1980/PI, volume I, Tomo III. 46 Para Sidney Soares, em 1971 havia 15.607 alunos matriculados no município de Campo Maior, distribuídos em 20 escolas estaduais e 91 municipais. Três ginásios estavam instalados na parte urbana da cidade (Ginásio Estadual, Ginásio Santo Antônio e o Ginásio Orientado para o Trabalhador –GOT). SOARES, Sidney, Enciclopédia dos municípios piauienses, Fortaleza, Escola gráfica Santo Antônio, 1972, p. 61. 47 Destacavam-se ainda como aglomerações urbanas no município, os povoados de Conceição, Lagoinha, Jatobá, Bananeiras, Nazaré, Boqueirão, Socorro, Corredor, Santo Antônio, São Joaquim, Tocaia e Cocal de Telhas. SOARES, Sidney, Enciclopédia dos municípios piauienses, Fortaleza, Escola gráfica Santo Antônio, 1972, p. 60. 48 A partir de 1996, a cidade de Campo Maior perdeu parte de sua extensão territorial. A cidade, na década de 1970 possuía então, uma extensão territorial maior do que a atual. Ver Emenda Constitucional número 15, de 12/09/1996. Tem atualmente cerca de 45.180 habitantes e área de 1.699,383 km². 44 21 Em Campo Maior a educação formal desenvolvida nas escolas da cidade 49 baseava-se no lugar onde as pessoas buscavam seus diplomas, e como esforço dos valores vigentes. A escola servia de trampolim para a atividade profissional, a qual apenas uma pequena parte da população tinha acesso. (ver tabela 1 – alto índices de analfabetos na região). As instituições escolares detinham o poder do saber, através de expressões escritas e orais e os professores – figuras de respeito e destaque na sociedade – eram cultos, sem que fosse sinônimo de eruditos no sentido da palavra.50 A economia da cidade e circunvizinhanças sempre foi dependente da produção agrícola, destacando a lavoura de grãos, a criação de gado e a colheita da palha da carnaúba. A produção e a seleção dos produtos dependiam das condições do solo e do clima, especialmente do período chuvoso, quando se fazia a planta dos grãos. Além desses produtos de origem primária, até o final da década de 1960 outros aspectos incentivaram um passageiro progresso econômico na cidade, com destaque para a instalação do FRIPISA (Frigorífico do Piauí S/A)51 e das casas comerciais Marc Jacob S/A, Inglesa S/A e Morais S/A. Para Celso Chaves, “O comércio cresceu consideravelmente nesse período, tendo pois, importantes casas comerciais, como as Casa Marc Jacob S/A, Casa Inglesa S/A, Casa Morais S/A entre outras casas, desenvolvendo até mesmo outro tipo de comércio: como do sexo, que se fazia presente na rua dos planetas”.52 Acreditamos que toda cidade se enriquece de lugares com funções simbólicas, recebida por destinação ou em virtude de algum acontecimento local. São os teatros onde se apresenta a sociedade e suas pompas e abundam símbolos e significações.53 Naquele período, a Praça da Igreja Matriz de Santo Antônio era o principal espaço de sociabilidade de Campo Maior/PI, ambiente por onde as pessoas circulavam e deitavam seus olhares sobre a cidade, seus transeuntes e seus lazeres, tais como as 49 Existiam apenas três ginásios instalados na parte urbana da cidade (Ginásio Estadual, Ginásio Santo Antônio e o Ginásio Orientado para o Trabalhador –GOT) e nenhum estabelecimento de ensino médio. SOARES, Sidney, Enciclopédia dos municípios piauienses, Fortaleza, Escola gráfica Santo Antônio, 1972, p. 61. 50 Muitos professores eram pessoas oriundas de outras instituições e que eram convidados a dar sua contribuição na educação local, como exemplo, o Juiz da cidade, padres e bancários. Segundo o entrevistado Ernani Napoleão Lima, esta prática não se observou no ginásio Santo Antônio de Campo Maior, pois ali os professores eram oriundos e formados, na maioria, de ex-alunos do ginásio. LIMA, Ernani Napoleão, entrevista 10/02/2012. 51 Frigorífico do Piauí S.A. – FRIPISA, foi criado pela lei Nº 1.626 (Lei Estadual), de 05 de Novembro de 1957. Instalado em 28 de novembro de 1967. 52 CHAVES, Celso Gonçalves, Rua Santo Antônio – A prostituição feminina em Campo Maior – PI, no período de 1940 a 1975, Campo Maior, Gráfica Campo Maior, 2006. p. 27. 53 BALANDIER, Georges, O Poder em Cena, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1982. p.11 22 sessões do único cinema da cidade, que ficava localizado exatamente ao lado da igreja matriz: “A vida social se inscreve no espaço e no tempo. É feita de ação sobre o meio ambiente e de interação entre os homens”. 54 O cine Nazaré usava como sistema de propaganda, possantes alto-falantes para divulgar e chamar a população para as suas atrações, o qual tinha como público-alvo a comunidade dos arredores.55 Romances nasciam ali – especialmente na época dos festejos de Santo Antônio – dando vida à cidade. Cabia à porção mais rica e tradicional da população – leitora de jornal ou não – fazer circular as informações que alimentavam as rodas de conversas na praça. Era ali na praça o ponto de encontro de comerciantes, industriais, profissionais liberais, religiosos, pessoas vindas dos bairros e da zona rural e transeuntes locais. Assim, as informações colhidas na cidade se espraiavam para os bairros, povoados circunvizinhos e regiões rurais56, fazendo intercâmbio, o que nos remete a pensar em “circularidade” de informações e cultura entre as diversas camadas sociais do município. Para Edward P. Thompson se referindo às camadas populares inglesas do final do século XVIII, houve um processo de “circularidade cultural” - tenso e constante - de influência mútua e múltipla entre dominadores e dominados, inclusive com a participação e influência dos intelectuais reformadores da época.57 Para ele, as camadas populares articulavam cultura oral e escrita para construir práticas políticas cotidianas, que poderiam incorporar ou não os padrões culturais apresentados pelas camadas dominantes, pois “[...] uma cultura é também um conjunto de diferentes recursos, em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos conflitivos [...]”.58 Os acontecimentos do passado deixam rastros, sinais, uns em forma de lembranças e outros em forma de fatos materiais. E o que sobrevive desses rastros são pequenos pedaços constituindo o que chamamos de memórias. O resto se perde. Assim “A memória é forçosamente uma seleção: certos detalhes do acontecimento serão conservados, outros, afastados, logo de início ou aos poucos e portanto esquecidos”. 59 54 CLAVAL, Paul, Espaço e Poder, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979, p. 11. Fundado em 14/10/1961 pelo Sr. Zacarias Gondim, era um dos principais lugares de entretenimento da cidade de Campo Maior/PI. 56 Para o colaborador Severo Sampaio, o semanário chegava aos povoados Sigefredo Pacheco, Lagoinhas e as cidades de Pedro II, Capitão de Campos, Esperantina, Barras, São Miguel, Castelo e São João da Serra levado pelos os estudantes que moravam na casa do estudante de Campo Maior e que eram oriundos desses lugares. Vale lembrar que a casa do estudante de Campo Maior foi o último endereço do periódico antes do seu fechamento (1979). Ver SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012. 57 Para uma melhor compreensão de “circularidade cultural” de Thompson, Ver THOMPSON, E. P., A formação da classe operária inglesa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987a. 58 THOMPSOM, Edward P., Costumes em comum, São Paulo, Cia das letras, 1998. p. 17. 59 TODOROV, Tzvetan, Memória do mal, tentação do bem, São Paulo, Arx, 2002. p. 149. 55 23 Entretanto, ali na praça ao redor do templo da igreja matriz de Santo Antônio, aconteciam não somente as grandes festas em homenagem ao santo, mas também as festas mundanas do Campo Maior Clube, que ficava localizado ao lado. Também acontecia na praça os comícios políticos quando da proximidade da escolha dos representantes eleitorais da cidade de Campo Maior/PI. Sucedia no local o conformismo nas coisas essenciais, para proveito e edificações gerais da população. Ela se apresentava como um lugar e palco onde a sociedade local fazia suas diversas manifestações sociais, culturais, políticas e religiosas, o que nos leva a pensar no que disse Paul Claval a respeito de lugares: “Não há sociedade sem espaço para lhe servir de suporte. A instituição da sociedade é, pois, sempre inseparável daquela do espaço. [...] Num espaço povoado, a tomada de posse exprime-se pela delimitação de fronteiras e pela multiplicação de marcas que lembram a identidade comum: cruz, igrejas, monumentos aos mortos ou arquiteturas tipificadas. É como se reescrevesse em toda parte a mesma proclamação de pertinência”. 60 Portanto, por toda a parte situada nas proximidades daquele templo religioso sinais marcantes dos acontecimentos locais foram se perpetuando através de lembranças de fatos e discursos sociais, tornando-se lugar de rememoração.61 Um fato que chama atenção, é que ao redor da igreja matriz e sua representativa praça Bona Primo62, ficavam localizados os “prostíbulos”, com grande variedade de atrativos mundanos para o público masculino.63 Ali a sociedade tradicional da cidade criava e espalhava um imaginário, além de um discurso - por vezes imperceptíveis, multifacetados - de um local não apropriado para circulação familiar: “Na igreja e no cinema não podiam sentar no mesmo banco junto com as senhoras da cidade. Além disso, deveriam ter um vestido decente para sair à rua e até mesmo no mercado público [...]. Para a mulher católica, a rua Santo Antônio era um projeto leviano de quem só pensava no dinheiro, 60 CLAVAL, Paul, A Geografia Cultural, Florianópolis, Editora da UFSC, 2001. p. 207 e 217. Para a autora Jeanne Marie Gagnebin, a memória pode até se deixar calar e manipular, mas não se deixa controlar e sempre volta. Para ela, as lembranças são como “bichos selvagens”, que atormentam quando menos se quer e espera. Ver GAGNEBIN, Jeanne Marie, O preço de uma reconciliação extorquida, IN: TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir(Orgs.), O que resta da ditadura, São Paulo, Boitempo,2010. p.183. 62 Homenagem dada pelo Prefeito Waldeck Bona (gestão de prefeito de 1948 a 1951), a seu avô Antônio Nunes Bona Primo em 09/07/1948, através na Lei número 4. Ver item 3.4 – Anexos - figura 2. 63 O autor Abdias Silva, se referindo aos cabarés de Campo Maior, disse que as casas das raparigas tiveram suas construções encomendadas pelo Major Honório Bona, homem rico da cidade e que cada casa tinha uma cor diferente. Ver SILVA, Abdias, Campo Maior, ontem e hoje. IN: NETO, Adrião (orgs.), Crônicas de sempre, Teresina, Fundação Monsenhor Chaves, 1995. p. 15. 61 24 causando realmente muitos danos para a sociedade e a família da época. O comportamento das prostitutas não se adequava ao contexto religioso, na qual estavam inseridas. A Igreja Católica mantinha certa discriminação com as mulheres, o Padre Mateus chegou a tirar uma da procissão alegando estar mal vestida”.64 A verdade, na teoria, é que a normalidade social estabelece o que deve ser dito e o que deve ser calado, excluído ou aceito. Nesse caso, se referindo a uma vizinhança “perigosa” ao local onde a elite social se reunia, uma forte oposição e um teatro conscientizador foram montados para sistematizar e materializar um simbolismo estigmatizado e estereotipado de diversas ruas ao redor da praça – inclusive de base teológica - citando como exemplo a “Rua Santo Antônio ou Rua dos cabarés” (ver item 3.4 - Anexos - figura 6) que se localizava ali próximo da praça e do principal templo religioso da cidade de Campo Maior/PI: “[...] Campo Maior é uma das raras cidades do interior que o cabaré se localiza no centro da cidade, a poucos passos da Igreja, do Cinema, das principais praças [...]”.65 Nesta rua de nome santo, mas de caráter profano, as prostitutas ofereciam seus serviços na ânsia de sobreviverem.66 Cada sociedade adapta “o proibido” e o “perigoso” à sua realidade singular, o que nos leva a pensar na ideia de controle social: “Entende-se por controle social, o conjunto de meios de intervenção acionados por cada sociedade ou grupo social a fim de induzir seus membros a obedecerem às normas vigentes, desestimular os comportamentos contrários, e estabelecer condições de conformação. O controle social pode ser exercido de duas formas na busca do consenso, através de controles externos (sanções, punições, leis) que se acionam contra indivíduos quando estes não obedecem as normas dominantes, e internos, os meios com que a sociedade procura mentalizar os indivíduos sobre as suas normas, valores e metas sociais consideradas vitais para a ordem social. Ambos limitam o agir individual na sociedade”.67 É nessa cidade do interior do Estado do Piauí, que existiu o jornal A LUTA – de 1967 a 1979 - objeto e fonte de nossa pesquisa. 64 CHAVES, Celso Gonçalves, Rua Santo Antônio – A prostituição feminina em Campo Maior – PI, no período de 1940 a 1975, Campo Maior, Gráfica Campo Maior, 2006. pp. 42 e 50. 65 Editorial “Meretrizes serão retiradas”, edição de 26/04/1970. 66 Para o escritor João Alves Filho, atual presidente da Academia Campomaiorense de Letras, toda a extensão que inicia a partir da Rua Siqueira Campos, chama-se “Rua Santo Antônio” em homenagem ao padroeiro da cidade. Para João Alves, durante o dia a referida rua funcionava com atividades comerciais e à noite, vicejava a prostituição, festas, jogos, através de boates, bares e restaurantes. Ver FILHO, João Alves, Campo Maior e o Contraditório, Campo Maior, edição do autor, 2011. p. 19. 67 STEPHANOU, Alexandre Ayub, Censura no Regime Militar e Militarização das Artes, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001. p. 28. 25 Acreditamos que a sociedade campomaiorense, ligada em suas tradições locais, ao contato com o universo proposto pelo jornal A LUTA, principalmente no que se refere a informação e cultura, tenha vislumbrado novas perspectivas de outros lugares, incorporando novos hábitos e condutas assim como reforçado as práticas culturais locais, as hierarquias sociais existentes, as relações de poder ali estabelecidas, num jogo contínuo de mudança e permanência, onde a tradição local não se apresentava incompatível com as incorporações dos aspectos da sociedade moderna. 1.2 – Imprensa e Comunicação Lugar de representações e particularidades do real, a imprensa constitui uma vitrine de pensamentos e práticas, de projetos políticos e ideias. Além disso, é local privilegiado para se observar os discursos do cotidiano e qual o entendimento que os homens têm do seu próprio tempo. Além de ser órgão de informação, pode exercer papel de reflexo ou de guia de grupos de pressão diversos, políticos ou financeiros. Pela sua disposição em forma de mosaico, o jornal deixa representar uma imagem dos fatos selecionados a respeito do que acontece em uma comunidade. 68 E olhando para a sociedade campomaiorense como lugar de tensão e de luta, onde os discursos disputavam lugar e sentido, e complementando a ideia do “fazimento”, da construção e dos objetivos do semanário A LUTA – no contexto de sua existência - nos leva a pensar no que disse Marshall Mcluhan: “O Jornal é uma forma confessional de grupo que induz à participação comunitária. Ele pode dar uma “coloração” aos acontecimentos, utilizando-os ou deixando de utilizá-los. Mas é a exposição comunitária diária de múltiplos itens em justaposição que confere ao jornal a sua complexa dimensão de interesse humano”.69 Para esse autor, o uso de tipos móveis para se fazer impressão foi a primeira mecanização complexa, influenciando todas as outras mecanizações futuras. Através dos séculos, estendeu as vozes e as mentes dos homens para reconstituir o diálogo humano numa escala ampliada e que por extensão, a tipografia trouxe o 68 Para Alexandre Stephanou, a atividade jornalística fornece sentido à atualidade e fixa legitimidade pelo mito da neutralidade, dissimulando o caráter interpretativo. Ver STEPHANOU, Alexandre Ayub, Censura no Regime Militar e Militarização das Artes, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001. p. 43. 69 MACLUHAN, Marshall, Os meios de comunicação como extensão do homem, São Paulo, Ed. Cultrix Ltda, 1971. p. 231. 26 “industrialismo”, o “nacionalismo”, a “alfabetização” e a “educação” universais. 70 Pensando no periódico A LUTA – que teve sua primeira edição em 19/11/1967 - o processo de imprimir figuras e gravuras se fazia quase que artesanalmente, através de xilogravuras e clichês,71 e com o passar do tempo e dos grandes avanços tecnológicos é que passou a utilizar melhores máquinas de impressão e métodos mais avançados de melhorias gráficas. Embora tenha surgido numa fase que o jornalismo já possuía um caráter empresarial, era produzido de forma artesanal, com poucos recursos editoriais e industriais. Para Severo Visgueira de Sampaio - que colaborou no jornal como tipógrafo – o semanário era impresso numa máquina a pedal, “mas era uma máquina muito boa, uma remington alemã, que chegava a imprimir 1200 folhas de jornais por hora”.72 Sabemos que os grandes jornais se utilizam de institutos especializados para focar determinado segmento social. Via de regra, não é qualquer jornal que é lido por qualquer pessoa. Um público leitor é sempre objetivado. No caso do nosso semanário, de tirarem pequena73, acreditamos que era dirigido àquela porção de público restrito à classe social letrada e dominante na cidade de Campo Maior/PI, sobretudo, residente na área urbana do município. Vendo quem sustentava o jornal e os formatos que determinadas informações recebiam e veiculavam e as maneiras como eram construídas, podemos identificar o público alvo e a quem o jornal representava. Segundo Marylu Alves de Oliveira, pode-se identificar a que público se destina um jornal, observando como se estabelece a hierarquia das notícias nas páginas, como são tratadas e retratadas as fotografias, o significado das matérias no contexto do país e da região, o que está presente e/ou ausente nas pautas.74 Para Dominique Wolton, a comunicação entre os homens existe desde sempre, ou seja, desde que vivem em sociedade: “Desde sempre, eles produzem, trocam, sonham, combatem, organizam-se”.75 Para ele, toda atitude de informar na imprensa é 70 MACLUHAN, Marshall, Os meios de comunicação como extensão do homem, São Paulo, Ed. Cultrix Ltda, 1971. p. 195 e 202. 71 LIMA, Ernani Napoleão, entrevista 10/02/2012. 72 Ver SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012. 73 População analfabeta (mais de 56%), limitação financeira do meio em que vivia o jornal, consumo incerto, não havia separação em cadernos e nem edições de final de semana. LIMA, Ernani Napoleão, entrevista do dia 10/02/2012. Para Severo Sampaio, quando tinha uma matéria de impacto local, chegava a imprimir até 300 cópias do jornal, mas o normal era de 150 a 200 cópias. Para ele, o periódico começou com seis páginas e terminou com oito. Ver SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012. 74 OLIVEIRA, Marylu Alves de, Considerações sobre o discurso anticomunista no jornal “O DIA”, IN: NASCIMENTO, Francisco Alcides do e SANTIAGO JR, F. C. Fernandes, Encruzilhadas da História: Rádio e Memória, Recife, Bagaço, 2006, p. 200. 75 WOLTON, Dominique, É preciso salvar a comunicação, São Paulo, Paulus, 2006, p. 25. 27 acompanhado por estratégias de quem produz a informação, pois não existe comunicação sem risco, o do encontro com o outro, o receptor: 76 “A comunicação é sempre a busca da relação e do compartilhamento com o outro. Atravessa todas as atividades: lazer, trabalho, educação, política; concerne a todos os meios sociais, a todas as classes sociais, a todas as idades e a todos os continentes, tanto aos ricos quanto aos pobres”.77 Essa discussão de imprensa e comunicação nos remete a própria concepção de jornalismo, que está ancorado em princípios fortes que prezam pela verdade e lealdade para com os cidadãos. O que também o obriga a fazer apuração bem feita, ter olhar independente em relação às fontes, atentar para as críticas, considerando a relevância e importância das informações. Retratar a realidade é pois, mesmo com a pluralidade das opiniões, um dos preceitos do jornalismo. 78 Ainda segundo o autor Dominique Wolton, informar é produzir e espalhar mensagens o mais livremente possível e comunicar supõe um processo relacional entre o emissor, a mensagem e o receptor: “Comunicar, portanto, não é apenas produzir informações e distribuí-la, é também estar atento às condições em que o receptor a recebe, aceita, recusa, remodela, em função de seu horizonte cultural, político e filosófico, e como responde a ela”79 No caso do semanário A LUTA, que existiu em um contexto político e social de peculiaridades singulares no Brasil, no Piauí e Campo Maior/PI, não precisamos retomar as etimologias das palavras política e comunicação para compreendermos que essas duas atividades foram vitais e inerentes à vida em sociedade e que não puderam deixar de se relacionar intrínseca e ambiguamente. Com variedades de informações, buscava atingir um público heterogêneo. Através dele as informações culturais, políticas, sociais, religiosas e esportivas circulavam e chegavam até a população local. 1.3 - A Imprensa Brasileira e a Ditadura Civil-Militar no contexto da existência do semanário A LUTA 76 Para o autor, existem cinco tipos de informação: informação-imprensa (ligada à atualidade fornecida pelas mídias e ligada ao estatuto cidadão); informação-serviço (ligada especialmente às novas mídias); a informação-data (ligada às bases e bancos de dados); informação-lazer (ligada aos jogos e formas de interatividades); informação-militância (ligada às lutas políticas, culturais e sociais nos regimes autoritários ou mesmo nas democracias, por militantes que criticam “sociedade legal”). Idem, Ibidem, p. 231. 77 Idem, Ibidem, p. 13. 78 RESENDE, Lino Geraldo, A censura contra a cidadania: o caso do Brasil, trabalho apresentado no Pré-Congresso da Federação Internacional de Estudos sobre a América Latina e o Caribe (FIEALC), realizado em Vitória, ES, 25 e 26 de agosto de 2005. p.13. 79 WOLTON, Dominique, É preciso salvar a comunicação, São Paulo, Paulus, 2006, p. 16. 28 Não se pode conectar os fatos olhando para frente. Só conseguimos conectá-los traçando um olhar para trás. Faremos então, alguns posicionamentos sobre a trajetória e importância da imprensa brasileira - mostrando como ela agia e os mecanismos que usou ou deixou de usar para se opor ou se alinhar ao regime civil-militar brasileiro contribuindo para o estudo do Jornal A LUTA – sempre de acordo com o nosso corte cronológico (1967-1979) – para melhor posicionar e compreender o referido jornal e suas múltiplas relações com a cidade de Campo Maior, no Estado do Piauí. No Brasil, podemos afirmar que a imprensa começou com a chegada da corte portuguesa no início do século XIX. A partir de então, o governo autoriza a utilização de tipografias e permite a circulação de livros. No princípio, circulava os jornais pequenos e simples tentando ganhar a simpatia da pequena fatia da população local da época, aquela que sabia ler e escrever. Ana Luíza Martins e Tânia Regina de Luca fizeram importantes estudos sobre a imprensa no Brasil e analisaram as condições da incipiente imprensa brasileira naquele começo do século XIX: “A nação brasileira nasce e cresce com a imprensa. Uma explica a outra. Amadurecem juntas. Os primeiros periódicos iriam assistir à transformação da Colônia em Império e participar intensamente do processo. A imprensa é, a um só tempo, objeto e sujeito da história brasileira. Tem certidão de nascimento lavrada em 1808, mas também é veículo para a reconstrução do passado”. 80 Assim, a circulação no Brasil de impressos por mais de duzentos anos registraram, veicularam e testemunharam nossa história, além de ser parte intrínseca da formação do nosso país. Caminharam juntas, alimentaram-se uma da outra, se autoexplicam. Escrever a história da imprensa brasileira implica relacioná-la à trajetória econômica, política, social e até mesmo cultural do país. Acompanha de perto os avanços e recuos das práticas dos governos, da formação do povo, e até do destino nacional. Essa relação estreita passa pelo império, persiste na primeira República, ultrapassa o Estado Novo e o golpe civil-militar de 1964 e continua nos nossos dias, afinal, “Os governos e os poderosos sempre a utilizam e temem; por isto, adulam, vigiam, controlam e punem os jornais”.81 Acreditamos assim, que o jornal A LUTA manteve - no período de sua existência - envolvimento “simbiótico” com a sociedade local, se envolvendo e 80 MARTINS, Ana Luiza & LUCA, Tânia Regina de, História da Imprensa no Brasil, São Paulo, Contexto, 2011, p.8 81 GAZZOTI, Juliana. Veja e os governos militares (68/85). Dissertação de mestrado. Universidade Federal de São Carlos, 1998, p.2. 29 participando das práticas sociais e cotidianas da cidade e de sua população, vivenciando rupturas e movimentos do tecido social. A imprensa forma e informa. Relaciona e dispõe as notícias, selecionando os acontecimentos que serão condenados ao esquecimento e os que merecem ser destacados. Assim, por participar da origem do acontecimento não pode ser considerada um simples veículo de transmissão e divulgação, mas também de formação e informação.82 Modernamente, com o crescimento e difusão dos meios de comunicação, o modo como se produz as imagens políticas, econômicas, administrativas e culturais se modificaram profundamente. Noutras palavras, tornou-se campo vasto e heterogêneo, onde discursos, ideias, concepções gerais da realidade gravitam e se espalham rapidamente, o que nos leva a pensar o que disse Georges Balandier: “Elas podem ser fabricadas em grande quantidade, por ocasião de acontecimento ou de circunstâncias que não têm necessariamente um caráter excepcional. Elas adquirem, graças aos meios audiovisuais e à imprensa escrita, uma força de irradiação e uma presença que não se encontram em nenhuma das sociedades do passado”.83 Tratando desse aspecto de selecionar e fazendo um olhar sobre as colunas e editoriais do semanário A LUTA – que existiu no contexto do endurecimento do regime civil-militar brasileiro – defendemos que os editores e colaboradores do jornal se posicionaram diferentemente diante dos acontecimentos políticos de caráter nacional e local, direcionando as atenções – principalmente dos editoriais - para os acontecimentos que imbricavam para a cidade.84 As publicações semanais do jornal eram recheadas de fotografias de homens e mulheres ilustres – especialmente de membros da elite e detentores do poder local - de lugares, prédios e casas antigas locais, mostrando ao leitor uma espécie de memória da cidade e de seu povo, além de colocar em destaque inaugurações e festividades.85 Para Regina Abreu, a memória tomaria formato e corpo em determinados lugares, personalidades, dependendo dos agentes devotados à sua produção: “Esses equivaleriam à necessidade da preservação de memórias coletivas, sem as quais a vida estancaria num eterno presente. Os “lugares de 82 STEPHANOU, Alexandre Ayub, Censura no Regime Militar e militarização das Artes, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001, p. 45 83 BALANDIER, Georges, O Poder em cena, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. p. 62 84 Ver segundo capítulo, item 2.2: O jornal A LUTA – entre o consenso e o consentimento. 85 Raramente as colunas e editorias tratavam dos acontecimentos de fora da cidade e sempre de forma branda, acrítica. Porém, assuntos como a batalha do Jenipapo, lugares como o açude grande da cidade, a igreja e pessoas influentes daquela atualidade e passado eram comumente tratadas e focadas como notícias e informações importantes. 30 memória” seriam tanto lugares materiais, a exemplo de museus e arquivos, quanto lugares pouco palpáveis ou imateriais, como aniversários, elogios fúnebres, rituais, comemorações”.86 Portanto, o semanário procurava promover e divulgar a imagem pública das pessoas que “faziam a cidade”, que traziam o “progresso e inovações”, estabelecendo disputas em torno da aquisição de status e afirmação junto ao restante da sociedade. Nota-se com freqüência, que heróis e mitos fundadores87 são relembrados em muitas das edições, dividindo o espaço das colunas e editoriais com os novos propulsores do progresso e da civilização, como os vereadores, prefeitos, deputados, intelectuais, comerciantes e industriais. No Brasil a imprensa sempre refletiu as mudanças e transformações do seu tempo, não importando a época ou a influência, com a liberdade de expressão sendo sufocada ou defendida. Para Nelson Werneck Sodré, principalmente a partir da segunda década do século XX, houve uma grande concentração dos meios de comunicação, gerando empresas capitalistas de grande porte, associando jornal, revista e, às vezes, rádio e televisão, impulsionadas pelos avanços tecnológicos de proporções até então desconhecidos.88 A imprensa brasileira tem demonstrado – principalmente a partir no início do século XX - papel de grande importância nas relações e imbricações com os diversos setores sociais, mostrando, divulgando, difundindo imagens e textos com abrangências diversificadas do mundo social, político, cultural e outros tantos. Ou seja, ela tem sido a linfa – com suas particularidades e contextos – que tem feito os ligames necessários com os diversos grupos sociais brasileiros e seus enraizamentos, com alcances e implicações distintos: “O ser humano tem raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos de futuro”.89 Para as autoras Heloisa de Faria Cruz e Maria do Rosário da Cunha Peixoto, há muito tempo se usa a imprensa no ambiente de pesquisas das ciências sociais, da crítica literária à educação, da comunicação à semiótica, além de suporte didático-pedagógico 86 ABREU, Regina, Entre a Nação e a Alma: quando os mortos são comemorados, IN: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 14, 1994, p. 206. 87 Em muitas edições do jornal são tratados dos heróis que se destacaram na Batalha do Jenipapo de março de 1823 e das famílias que marcaram épocas na fundação da vila, depois povoado e cidade de Campo Maior. Como exemplo, as edições no dia 02/06/1968, “Mestra Josefa Lima” e a do dia 11/03/1979, “No Jenipapo a mais sangrenta batalha pela independência”. 88 SODRÉ, Nelson Werneck, História da Imprensa no Brasil, Rio de Janeiro, Mauad, 1999, p.14. 89 WEIL, Simone, O enraizamento, São Paulo, EDUSC, 2001, p. 43 31 para professores de diversas disciplinas, tendo como exemplos, professores de português e literatura que “buscam em textos da imprensa um espaço para aprendizagem de uma norma escrita mais viva e atual do que a dos clássicos” e na geografia onde “busca-se uma compreensão do espaço mundial globalizado mais atualizado”.90 E no nosso caso, as lembranças são imagens construídas pelos materiais que estão agora à nossa disposição – as edições digitalizadas do jornal A LUTA – no conjunto de representações que povoam nossa consciência e imaginário atual. Voltado para a década de 1970, decifraremos por intermédio da leitura e análise das colunas e editoriais do periódico, os padrões e práticas dos diversos grupos sociais daquele período, construindo conhecimento histórico da cidade e do seu povo. Para Ecléa Bosi, “Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízo de realidade e de valor”.91 Segundo a autora Maria Helena Moreira Alves, a partir de meados da década de 1950, houve crescente aumento da entrada do capital internacional no Brasil, configurando “uma aliança entre o capital multinacional, o capital nacional associadodependente e o capital de estado”, gerando aqui, um processo oligopolista do mercado. 92 Neste mesmo período, houve um encarecimento do preço do papel, matéria-prima principal dos jornais,93 consequência da política econômica internacional, diferente dos interesses brasileiros, influenciando e atingindo diretamente a pequena imprensa e reduzindo a circulação dos grandes jornais, passando-os ao controle das agências estrangeiras de publicidade.94 90 CRUZ, Heloísa de Faria & PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha, Na Oficina do Historiador: conversas sobre História e Imprensa, http://revistas.pucsp.br/inedex.php/revph/article/viewfile/22211/1322, p.254 91 BOSI, Ecléa, Memória e Sociedade: lembranças de velhos, São Paulo, Cia das letras, 1994, p. 55. 92 ALVES, Maria Helena Moreira, Estado e Oposição no Brasil – 1964-1984, São Paulo, Edusc, 2005, p.21 93 Segundo Juarez Bahia, até meados dos anos 80, a maior parte do papel utilizado pela imprensa brasileira era importado da Finlândia, Suécia, Noruega, Canadá e Chile. Para Bahia isso acontecia porque a fabricação nacional não atendia à crescente demanda. Ver BAHIA, Juarez, Jornal, História e Técnica – História da Imprensa brasileira, São Paulo, Editora Ática, 1990, p. 408 94 Para Daniel Gustavo da Silva Souza, no mesmo período, intensifica-se a relação da elite brasileira com os Estados Unidos da América (EUA), que tinham ambição e interesse de garantir o controle ideológico, político e econômico em toda a região da América Latina, em um contexto então conhecido como de “Guerra Fria”. SOUZA, Daniel Gustavo da Silva e, Ideologia do Movimento Revolucionário 8 de outubro e sua atuação no Município de Caratinga entre 1979 e 1990. Dissertação de mestrado, Universidade Severino Sombra, 2008. p.19 32 Vale lembrar que a geopolítica mundial se encontrava polarizada praticamente entre duas forças: de um lado os EUA (Estados Unidos da América) com seu domínio e supremacia sobre os países que adotavam o capitalismo como modelo econômico e do outro a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) encabeçando o bloco político que adotou o modelo socialista. Estas duas potências mundiais emergiram após a Segunda Guerra Mundial pela lógica da bipolaridade, ou seja, manter várias partes do mundo sob sua influência direta. Os EUA preocupados com o avanço do socialismo em várias regiões do mundo levou-os a intervir em diversos países como forma de controlálos aos ditames dos seus interesses, enxotando a “ameaça vermelha” 95 dos seus espaços de influências, incluindo a forte presença nas decisões internas de países da América Latina, inclusive no patrocínio de regimes militares de direita. 96 Eric Hobsbawm destaca esse momento histórico: “Quase desde o início da Guerra Fria, os EUA partiram para combater esse perigo por todos os meios, desde a ajuda econômica e a propaganda ideológica até a guerra maior, passando pela subversão militar oficial e não oficial; de preferência em aliança com um regime local amigo ou comprado, mas, se necessário, sem apoio local”.97 No Brasil, quando da chegada ao governo de João Belchior Marques Goulart, 98 forte desarticulação foi implementado ao processo então dominante no país, atingindo as empresas que controlavam os meios de comunicação, os grandes empresários nacionais, os banqueiros, as empresas multinacionais, os latifundiários, os oficiais militares superiores: “Promovera uma série de restrições aos investimentos das multinacionais, configuradas entre outras medidas, numa severa política de controle das remessas dos lucros, dos pagamentos de royalties e das transferências de tecnologias, além de criação da legislação antitruste e imposição de negociações, objetivando a nacionalização de grandes corporações estrangeiras”.99 Ao mesmo tempo, o governo adotou uma política nacional de subsídios diretos ao capital privado nacional, sobretudo àqueles setores que não tinham vinculação com o 95 Termo utilizados por aqueles que se diziam capitalistas para designar a ideologia comunista como subversiva à ordem dos bons costumes e à sociedade brasileira e suas reais tradições e instituições. 96 Para o Autor Dominique Wolton, a globalização da informação fez acentuar o sentimento de invasão, insistindo na ilegitimidade da intervenção militar. Para esse autor, a informação voltou “como um bumerangue”, crescendo o antiamericanismo e, em parte, o antiocidentalismo. WOLTON, Dominique, É preciso salvar a comunicação, São Paulo, Paulus, 2006, p. 22. 97 HOBSBAWN, Eric, A era dos extremos, São Paulo, CIA das Letras, 2001, p.422. 98 João Goulart assume a Presidência da República após a renúncia de Jânio Quadros. 99 ALVES, Maria Helena Moreira. Op. Cit., p. 24. 33 capital estrangeiro. Além disso, foi um período fecundo para a mobilização da classe trabalhadora brasileira, incluindo a participação ativa dos trabalhadores rurais, permitindo o desenvolvimento e fortalecimento de formas de organizações mais acentuadas e efetivas. Foi nesse contexto que alguns segmentos dos trabalhadores rurais de Campo Maior/PI se mobilizaram com a intenção de criar um sindicato representativo, inclusive com a participação direta de Raimundo Antunes Ribeiro, que futuramente (1967) fundaria o semanário A LUTA.100 As medidas governamentais adotadas por João Goulart associadas à mobilização de diversos estratos sociais assustaram as elites políticas e econômicas brasileiras, pouco propensas a fazer concessões e negociações em questões relativas a salários, condições de trabalho e organização sindical. Numa atmosfera inédita da situação brasileira, a “gritaria pareceu aproximar-se perigosamente das cidades do poder e da riqueza”. 101 Além disso, o exemplo externo de Cuba fomentou um imaginário anticomunista. A mobilização das classes trabalhadoras amparadas pelas esquerdas preocupava as elites brasileiras, receosas de uma revolução nos moldes comunistas, ocasionando perdas e desarticulando o capital nacional e internacional aqui presentes.102 Para Marylu Alves, “Apesar de muitas pessoas não saberem o que era comunismo ou nunca terem percebido a infiltração deste no Estado, posicionaram-se favoráveis ao golpe, por conta da intensificação dos discursos anticomunistas”.103 Foi em reação a este tipo de “crise” e “processo”, que as classes clientelísticas brasileiras desempenharam – de maneira combinada e bem definida – papel decisivo na construção e desenvolvimento de uma forma autoritária de capitalismo no Brasil. Uma espécie de reação a uma série de acontecimentos que se mostravam contra seus 100 Para Luis Edwiges, tanto Raimundo Antunes como seu filho Chico Bento se envolveram no movimento dos trabalhadores rurais de Campo Maior/PI. Ver EDWIGES, Luis, entrevista do 09/02/2012. 101 FILHO, Daniel Aarão Reis, “Vozes silenciadas em tempo de ditadura: Brasil, anos de 1960”. IN: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Imprensa Oficial do Estado / Fapesp, 2002, p. 436. 102 É importante sublinhar que a presença e permanência das Forças Armadas no grupo político que assumiu o poder brasileiro a partir de 1964, demonstrava que o governo montou e se cercou das mais diversas estratégias naquele contexto, inclusive o discurso de uma providencial tarefa de reconstrução de um país em conflito, como exemplo, diversos fatores externos que ameaçavam a integralidade brasileira: Movimento hippie, criado em Moscou; psicopolítica apoiada pelos comunistas; descristianização da sociedade; literatura política e pornográfica com grande poder de condicionar a mocidade desprevenida e inerme; o inimigo é indefinido, usa mimetismo ou se adapta a qualquer ambiente e muitos outros discursos imaginários, inclusive a utilização dos meios de comunicação como objetos de difusão de um processo de destruição da cultura ocidental aqui presente, a começar pela destruição das bases morais e culturais da sociedade brasileira. Ver MARCONI, Paolo, A Censura Política na Imprensa Brasileira (1968 – 1978), São Paulo, Global Editora, 1980, p. 17 a 19. 103 OLIVEIRA, Marylu Alves de, Considerações sobre o discurso anticomunista no jornal “O DIA”, IN: NASCIMENTO, Francisco Alcides do e SANTIAGO JR, F. C. Fernandes, Encruzilhadas da História: Rádio e Memória, Recife, Bagaço, 2006, p. 216. 34 interesses e objetivos. Passando o governo João Gourlart a ser um dos principais alvos da intenção norte-americana.104 No que se refere à perspectiva histórica brasileira, foi tempo único, pois o país vivia momento de indecisão democrática de uma ditadura que findara – do Estado Novo – e outra que se anunciava – do grupo civil-militar pós-1964. Pensar a ação dos meios de comunicação na sociedade brasileira pressupõe interpretar e reconstruir as questões sociais, dando um sentido presumido a essas questões numa dimensão espaço-tempo. É neste espaço de acontecimentos e reviravoltas que podemos compreender e entender a tessitura e construção ideológica que a maioria da grande imprensa brasileira se apoiou, acreditando nos objetivos declarados e reforçados de restabelecer a legalidade e fortalecer a democracia no nosso país contra o avanço de uma suposta ameaça comunista, apoiando o golpe civil-militar em 1964. Havia certa sintonia e alinhamento entre os barões da mídia e os governos militares de 1964 a 1968, segundo Victor Gentilli. 105 Aqueles que não aderiram ao golpe logo sofreram com as truculências do novo governo que se empenhou em eliminar qualquer resistência: O prédio e as instalações do jornal “A Última Hora” foram invadidos e depredados. Os jornais e revistas de cunhos nacionalistas ou esquerdistas foram fechados. Aos poucos o regime foi endurecendo e se fechando, tendo como fato mais simbólico, o Ato Institucional n.5, de 13 de dezembro de 1968. Sabe-se que diversos setores da sociedade brasileira nos mais distantes cantos do país passaram a ser vigiados após a instalação do regime civil-militar de 1964. O aparato foi crescendo e se consolidando com o passar dos anos, acomodados em siglas na época muito conhecidas.106 A repressão mirava especialmente os políticos, jornalistas, sindicalistas, estudantes e religiosos vinculados a grupos de esquerda ou críticos ao regime, além dos próprios militares. 107 Foi nessa conjuntura (1964) que Raimundo Antunes Ribeiro – que fundaria o jornal A LUTA em Campo Maior/PI anos depois – foi recolhido ao quartel do Exército Brasileiro na cidade de Teresina/PI para averiguação do seu “comportamento” e dos seus atos considerados subversivos. Na 104 ALVES, Maria Helena Moreira. Op. Cit., p. 55 GENTILLI, Victor, A imprensa brasileira mudou bastante depois do AI-5... mas não como decorrência dele, IN: Tempo Negro, temperatura sufocante: estado e sociedade no Brasil do AI-5, Rio de Janeiro, Ed. PUC-Rio, Contraponto, 2008, p. 293. 106 DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social), DOI (Departamento de Operações Internas), CIE (Centro de Informações do Exército) e OBAN (Operação Bandeirantes), além do SNI (Serviço Nacional de Informações). Além desses órgãos, ajudaram a manter o regime, grupos clandestinos de extrema direita, entre os quais o CCC (Comando de Caça aos Comunistas), grupo paramilitar voltado para ações como invasão de teatros, de shows e confrontos com estudantes. 107 Brasil Nunca Mais. Petrópolis, Rio de Janeiro, Vozes, 1986, pp.117-154. 105 35 entrevista com Luis Edwiges, um dos líderes dos trabalhadores rurais de Campo Maior daquele período, as razões e motivos da prisão se esclareceram: “Agora tem um irmão meu que é estudioso e meu irmão fez amizade com o Totó, o Totó Ribeiro, o Raimundo Antunes Ribeiro, que era também jornalista, escrevia, era historiador, uma pessoa da cidade, um homem esclarecido e também uma pessoa considerada, uma pessoa muito boa, honesto, muito direito e gostava de justiça e por intermédio dele, dessas amizades, nós precisando de ter essa organização dos trabalhadores que lá não tinha [...]. Ele participava de passeata, de reunião, colocava a casa dele a disposição nossa para qualquer necessidade. É, ele participava do movimento e como veio o golpe militar com as prisões, ele já foi preso também. O Totó foi preso, Foi preso eu, foi preso ele, o professor Martinho Pereira de Abreu que era secretário das ligas camponesas de Campo Maior”.108 Essas vigilâncias múltiplas no nível macro também foram reproduzidas e compartidas em escalas menores de poder, como as igrejas, escolas, delegacias, sindicatos, fábricas, oficinas de imprensa e famílias.109 108 109 EDWIGES, Luis, entrevista do dia 09/02/2012. FOUCALT, Michel, Microfísica do poder, Rio de Janeiro, Edições GRAAL, 2011. 36 Para dar sustentabilidade legal às suas ações, vieram os Atos Institucionais. 110 Após o Ato Institucional n. 5, se instaurou e se implantou a censura prévia no rádio e na televisão. No entanto, a prática da censura aos meios de comunicação já ocorria desde o governo Castelo Branco (1964-1967). Muitos jornalistas foram presos, torturados, exilados. Outros tiveram seus direitos políticos cassados.111 Maria Aparecida de Aquino atribui esses fatos aos acirramentos das tensões entre o governo civil-militar e instituições da sociedade civil e também das relações no interior das Forças Armadas: 110 Os Atos Institucionais foram medidas tomadas pelo governo civil-militar brasileiro, objetivando endurecer, legitimar e se manter no poder. AI-1 de 09/04/1964, com 11 artigos, limitava os poderes do Congresso Nacional, fazia controle do poder Judiciário e suspensão dos direitos individuais e políticos. AI-2 de 27/10/1965, com 33 artigos, instituiu a eleição indireta para presidente da República, dissolveu todos os partidos políticos, aumentou o número de ministros do Supremo Tribunal Federal de 11 para 16, estabeleceu que o presidente poderia decretar estado de sítio por 180 dias sem consultar o Congresso, intervir nos estados, decretar o recesso no Congresso, demitir funcionários por incompatibilidade com o regime e baixar decretos-lei e atos complementares sobre assuntos de segurança nacional. AI-3 de 05/02/1966, estabelecia eleições indiretas para governador e vice-governador e que os prefeitos das capitais seriam indicados pelos governadores, com aprovação das assembleias legislativas. Estabeleceu o calendário eleitoral, com a eleição presidencial em 3 de Outubro e para o Congresso, em 15 de Novembro. AI-4 de 07/12/1966, convocou o Congresso Nacional para a votação e promulgação da Constituição de 1967 (Projeto de Constituição, que revogaria definitivamente a Constituição de 1946). AI-5 de 13/12/1968, concedia ao Presidente da Republica grandes poderes, tais como: fechar o Congresso Nacional; demitir, remover ou aposentar quaisquer funcionários; cassar mandatos parlamentares; suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer pessoa; decretar estado de sítio; julgamento de crimes políticos por tribunais militares, etc. AI-6 de 01/02/1969, reduziu de 16 para 11 o número de ministros do STF, sendo aposentados compulsoriamente Antônio Carlos Lafayette de Andrada e Antônio Gonçalves de Oliveira, que haviam se manifestado contra a cassação de outros ministros do tribunal. Estabeleceu também que os crimes contra a segurança nacional seriam julgados pela justiça militar e não pelo STF. AI-7 de 26/02/1969, suspendia todas as eleições até Novembro de 1970. AI-8 de 24/04/1969, estabelecia que estados, Distrito Federal e municípios com mais de 200.000 habitantes poderiam fazer reformas administrativas por decreto. AI-9 de 25/04/1969, estabeleceu regras para a reforma agrária cuja doutrinação tinha cunho estritamente conservador. Desta vez, 219 professores e pesquisadores universitários foram aposentados e demitidos. Ainda, foram cassados 15 deputados, da ARENA e do MDB por terem se manifestado contra a inconstitucionalidade dos atos institucionais seguidos. AI-10 de 16/05/1969, determinava que as cassações e suspensões de direitos políticos com base nos outros AIs acarretariam a perda de qualquer cargo da administração direta, ou indireta, instituições de ensino e organizações consideradas de interesse nacional. Atingiu mais de 500 pessoas com punições, entre elas membros do Congresso Nacional e das Assembléias estaduais e municipais, jornalistas, militares, diplomatas, médicos, advogados e professores. AI-11 de 14/08/1969, estabeleceu novo calendário eleitoral, Fixa a data das Eleições para Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores, suspensas em virtude do disposto no Artigo 7º, do AIT 7/1969, de 26 de fevereiro de 1969 e outras atitudes de cunho político. AI12 de 30/08/1969, estabelecendo que uma junta militar composta pelos ministros militares assumiria o poder e não o vice-presidente Pedro Aleixo, como mandava a constituição. Em cadeia de rádio e TV, a junta se pronunciou dizendo que a situação interna grave impedia a posse do vice-presidente. AI-13 e AI14, de 05/09/1969, estabelecia o "banimento do território nacional de pessoas perigosas para a segurança nacional", e o AI-14, que estabelecia a modificação do artigo 150 da constituição, com a aplicação da pena de morte nos casos de "guerra externa, psicológica adversa, revolucionária ou subversiva". AI-15 de 09/09/1969, fixava as eleições nos municípios sob intervenção federal para 15 de Novembro de 1970. Novas cassações foram feitas. Desta vez, 9 deputados federais e o senador Pedro Ludovico Teixeira. AI16 de 14/10/1969, declarou vagos os cargos de presidente e vice-presidente da República, marcando para o dia 25 seguinte a eleição presidencial indireta pelo Congresso Nacional, em sessão pública e por votação nominal. Fixou também o fim do mandato do presidente eleito em 15 de Março de 1974, e prorrogou os mandatos das mesas da Câmara e do Senado até 31 de Março de 1970. AI-17 de 14/10/1969, autorizava a junta militar a colocar na reserva os militares que "tivessem atentado ou viessem a atentar, comprovadamente, contra a coesão das forças armadas". Uma forma encontrada para conter a 37 “Para encontrar explicações para essa diversidade de atuações é necessário levar em conta duas variáveis fundamentais. Em primeiro lugar, é preciso que se considere que o Estado não é um ente autonomizado em relação à realidade social. É, sim, fruto das conflituosas relações que ocorrem na sociedade civil. Mais ainda, é expressão da correlação de forças sociais, inclusive no interior das camadas dominantes e das contradições oriundas das tensões entre essas mesmas forças. O regime militar não ficou imune a essas contradições”.112 Embora na atualidade haja fartas discussões acadêmicas acerca da ditadura civilmilitar brasileira, não encontramos nenhum registro de investigação científica sobre a atuação de aparato repressivo do Regime na região de abrangência de Campo Maior/PI. A não ser quando eclodiu o golpe em 1964, onde diversas pessoas que estavam envolvidas com os movimentos dos trabalhadores rurais da região foram presas. Essas prisões criaram um imaginário de temor na população local. Acreditamos, que por motivos de repressão a que todos os setores da sociedade estavam expostos, os envolvidos na questão – inclusive os colaboradores do jornal A LUTA – optaram pelos elogios, evitando posicionamentos políticos contra o regime, concentrando-se na divulgação de notícias dedicadas às miudezas cotidianas do município de Campo Maior.113 Para o colaborador e diretor do jornal, Ernani Napoleão Lima, o regime não dava folga. Para ele, em 1968, quando acontecia a semana do estudante campomaiorense, o delegado da cidade o chamou e sugeriu que ele não se envolvesse naquele movimento estudantil.114 Soma-se a isso, o fato da sociedade campomaiorense da época não possuir uma escolarização formal adequada, manter-se alheia aos acontecimentos das principais capitais do país, deixando-se influenciar pelos discursos e propagandas favoráveis à ditadura civil-militar,115 evidenciando os comportamentos, atitudes e cenários da região, inclusive, o olhar e a fala do semanário. oposição encontrada pela indicação de Médici. 111 MARCONI, Paolo, A Censura Política na Imprensa Brasileira, São Paulo, Global Editora, 1980, p. 38. 112 AQUINO, Maria Aparecida de. “Mortos sem sepultura”. IN: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Imprensa Oficial do Estado / Fapesp, 2002, p. 517. 113 No segundo capítulo abordaremos com mais abrangência a respeito dos posicionamentos do semanário. 114 Ver LIMA, Ernani Napoleão, entrevista do dia 10/02/2012. 115 A verdade é que os grupos sociais mandantes e letrados da cidade não impuseram resistência ao novo regime, influenciados pelas formulações de um arquivo de imagens e enunciados, um estoque de “verdades” inventadas, pois não queriam mudanças de seus interesses conservadores. No item sobre a censura no Brasil, iremos observar que o governo civil-militar desenvolveu métodos discursivos objetivando trabalho de convencimento e controle social, escondendo ou omitindo os inúmeros afrontamentos entre forças e saberes que emergiam no meio das partes litigantes. 38 1.4 - A Censura à imprensa brasileira no contexto da existência do jornal A LUTA Para Alexandre Stephanou, censura pode ser entendida e compreendida como: “O ato de submeter obras artísticas ou peças jornalísticas ao exame e análise de um conselho ou censor, para autorização ou veto de sua difusão. Ato de rever e julgar qualquer escrito para fim de autorizo. Opinião ou juízo desfavorável que se forma e se emite sobre alguma obra ou escrito, operando uma modificação ou proibição”.116 Para esse autor, a censura do regime civil-militar (1964-1985) não pode ser entendida como um fato isolado, ocasional, atípico e sim como uma tradição censória herdada, iniciada no período da monarquia, aumentado no contexto republicano – com ênfase no Estado Novo e golpe civil-militar pós-1964 – mostrando que a censura, a coação moral, a violência física e simbólica são elementos que fizeram parte de diversos governos em diferentes momentos da história brasileira. Para Stephanou, a censura é uma manifestação atemporal e universal e não se acaba em um período determinado, completando uma vasta temporalidade. Para ele, o regime iniciado em 1964 tornou a censura mais concreta e mais evidente por ter se apropriado de novas técnicas sistematizadas e por tratar-se de um regime de cunho autoritário.117 Já para Anita Novinsky, a censura foi a arma forte que os regimes totalitários se apropriaram, desde a antiguidade, para impedir a propagação de ideias que puseram em dúvida a organização do poder e seu direito sobre a sociedade. Para ela, a luta contra as dissidências e a uniformidade ideológica constituem a base para a centralização e o fortalecimento do poder autoritário: “Sempre, em todos os tempos, os homens que detêm a direção de um Estado se valem da força para fazer cair os que contestam a sua legitimidade. [...] O controle do pensamento vigorou no mundo antigo, grego, na Idade Média, Moderna, mas foi no século XX que alcançou seu maior rigor”.118 Em se tratando do Brasil no período pós-1964, a censura policial aos meios de comunicação - na sua grande maioria – era praticada observando dois eixos: aquela que 116 STEPHANOU, Alexandre Ayub, Censura no Regime Militar e militarização das Artes, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001, p. 27. 117 STEPHANOU, Alexandre Ayub, Censura no Regime Militar e militarização das Artes, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001, pp. 19-26. 118 NOVINSKY, Anita, Os regimes totalitários e a censura, IN: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Imprensa Oficial do Estado / Fapesp, 2002, p.25. 39 estabelecia onde os censores policiais atuavam diretamente sobre o material e conteúdo a ser divulgado e a outra, por intermédios de telefonemas e bilhetinhos, selecionando e determinando os assuntos que não poderiam ser abordados e mostrados pela imprensa. De acordo com Juarez Bahia, a opinião era controlada por avisos escritos levados aos editores dos jornais, por telefone, portarias, decretos, éditos e resoluções: “[...] O movimento de 64 se propõe ao “milagre” de salvar a nação, restaurando-o no plano social, no plano econômico e no plano político. Restringe a liberdade de informação e anula direitos essenciais do cidadão”.119 O que nos interessa mostrar, é que naquele momento – no Brasil - o grupo civil e militar que assumiu o poder adotou a censura como forma de governo, dominados pela crença de um processo revolucionário universal e permanente. Para instaurar “uma verdade oficial” foi necessário o controle da sociedade em todos os níveis. Através do poder de polícia e proibições, esse grupo imaginou um processo seletivo e classificatório do que seria lícito ou ilícito, moral ou amoral, artístico ou pornográfico, permissível ou não. Para Paolo Marconi, o grupo que estava no poder – com ênfase nos militares brasileiros – desenvolveu métodos e técnicas discursivas objetivando trabalho de convencimento e controle social, tais como uma ideologia para purificar a sociedade, impedimento da propagação de ideias consideradas inconvenientes, anulação dos discursos opositores e das palavras contestatórias, pois, “Foi exatamente a tentativa de criação de um mundo totalmente fictício, para concorrer com uma realidade palpável e desagradável, que levou os militares brasileiros a estabelecer – principalmente a partir de 1968 – uma violenta censura política às informações. Os sucessivos governos militares, alguns mais, outros menos, agiram muitas vezes de acordo com o primário princípio de que “quem não está comigo está contra mim”, tentando eliminar artificialmente as nuances, diferenciações e aspectos pluralistas inerentes a qualquer sociedade humana”.120 É nesse contexto que o semanário A LUTA foi criado na cidade de Campo Maior no estado do Piauí. Sabemos que analisar textos jornalísticos em um período de exceção como o que existiu na época do jornal, requer, via de regra, dois níveis de discursos: um objetivo, fazendo registro possível do permitido ou imposto e outro subjetivo, descobrindo eventuais resistências, sub-reptícias, subterrâneas, imposto pelo poder. Portanto, acreditamos na parcialidade do jornal. O semanário divulgava as cassações e 119 120 BAHIA, Juarez, Op. Cit., p. 320. MARCONI, Paolo, A Censura Política na Imprensa Brasileira, São Paulo, Global Editora, 1980, p. 27. 40 acontecimentos do estado e do país, tomando assim, consciência do que se passava em outros lugares,121 embora anunciasse em muitas colunas e editoriais um posicionamento de apoio e consenso a respeito da situação política nacional daquela época.122 Porém, ele posicionava-se em relação aos fatos da época, não como órgão “ideológico” com princípios teóricos que orientasse suas posições, já que na cidade vai deixando entrever conexões com a engrenagem social e/ou político. Dependendo do grupo político que ia assumindo o poder da localidade, ele provocava ou não, um desvio, um deslizamento para outra realidade: “Então inovou muito e o Totó fazendo isso aí, inclusive o seu maior trabalho era porque esse jornal na época fazia uma oposição ao prefeito municipal da cidade. Então o Totó não media esforços, quer dizer, além de ele ser uma pessoa que preso pela ditadura de 64, ele ainda se jogou contra o poder municipal de Campo Maior daquela época”.123 Para tentar legitimar o regime civil-militar no Brasil, a censura política à imprensa tinha o propósito básico de silenciar críticas e buscar a legitimação do regime imposto, criando um novo imaginário ideológico, o que Carlos Fico chama adequadamente de “utopia autoritária”.124 O governo controlava e filtrava a informação, construía uma imagem positiva do país e do regime, assumindo nitidamente funções de repressão no plano social e de modernização no aspecto administrativo. Dissimulava a realidade através da construção consistente de eufemismos. Tornam-se claros e evidentes os símbolos e transfigurações provocadas pelo poder. É nesse ponto que achamos que os grupos sociais de Campo Maior/PI foram envolvidos, assim como a maior parte da sociedade brasileira, “entre o apoio e a rejeição, ora assumindo um ora outro e, na maior parte das vezes, assumindo os dois ao mesmo tempo”. 125 Marialva Barbosa faz resumidamente – tratando de imprensa - uma análise sobre o momento em questão: 121 Como exemplo, o editorial “Geisel toma posse recebendo grandes obras de Médici”, edição de 17/03/1974, que descreve a solenidade de posse do general Ernesto Geisel no cargo de Presidente da República. Ainda, o editorial “Cassações atingem três políticos do Piauí”, edição de 13/03/1969, que mostra a lista dos políticos cassados do Piauí, citando o deputado estadual Alfredo Leal Nunes, da ARENA e os suplentes Antônio Ribeiro Dias e Alberto Bessa Luz, o primeiro do MDB e o segundo da ARENA. 122 Veremos com mais detalhes esses posicionamentos políticos no segundo capítulo. 123 LIMA, Ernani Napoleão, entrevista de 10/02/2012. 124 FICO, Carlos, Reinventando o otimismo – Ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro, Editora FGV, 1997. 125 Nesse caso nos referimos aos grupos sociais influentes da cidade de Campo Maior e que tinham consciência do que estava acontecendo no Estado do Piauí e no Brasil. Ver ROLLEMBERG, Denise, História, memória e verdade: em busca do universo dos homens, IN: SANTOS, Cecília MacDowell, TELES, Edson, TELES, Janaína de Almeida (orgs.), Desarquivando a Ditadura: memória e justiça no Brasil, Volume II, São Paulo, Aderaldo & Rothschild Editores, 2009. p. 575. 41 “No período imediatamente após o golpe e até 1968, a forma mais comum de controle da informação é o telefonema para as redações de jornais proibindo a divulgação de notícias. Mas é principalmente a partir da edição do AI-5 que a ação da censura é mais contundente [...] A maioria dos jornais curva-se às ordens superiores, introjetando o discurso proibitivo antes mesmo que ele chegue às redações. Já os que tentam exercer oposição ao regime, são submetidos à ação da censura, como a Tribuna da Imprensa”.126 Através de articulações bem montadas, o regime que estava no poder – começando pela censura oficial, passando pela concordância dos patrões e chegando à colaboração dos jornalistas - criou mecanismos para impor o silêncio e controle à mídia – inclusive à liberdade de expressão127 - e apropriou-se desse meio para divulgar o que era de seu interesse. É com este desempenho que o imaginário e a ideologia se tornam uma espécie de “ilusões realizadas”, com o poder circulando e se manifestando em todas as direções e ramificações mais baixas. É nesse exercício cinzento e espetacular que o periódico A LUTA buscava uma linguagem adequada para falar de seu mundo, embora a censura e o governo civil-militar fossem questões presentes. Por ser um jornal local, distante dos grandes centros do poder político nacional, ter pouca circulação, selecionando e tratando – na maioria das vezes – apenas dos discursos a respeito do cotidiano da cidade de Campo Maior/PI,128 não atraiu “os olhares” dos órgãos censores para suas colunas e editorias,129 embora anunciasse sempre na primeira página o slogan: “A LUTA Semanário independente, crítico e noticioso”.130 Acreditamos que a passividade com que os editores e colaboradores do jornal se comportaram, demonstravam uma espécie de “autocensura por indução”, onde por acompanhar as repressões vivenciadas pelos jornais nas diversas capitais do Brasil, desencadeava um processo de “consentimento” para não ser enquadrado e/ou censurado. Para a autora Anne-Marie Smith, o governo 126 BARBOSA, Marialva, Op. Cit., p. 187 e 192. Segundo Bruno Leoni, Liberdade de Expressão é compreendida como o direito de transmitir livremente qualquer informação e emitir opiniões de forma pública. Já Liberdade de Imprensa, é quando esta responde apenas à justiça comum, sem códigos especiais. E por Liberdade, a ausência de constrangimento, de limitação e de coerção. Ver LEONI, Bruno, Liberdade e a Lei, Porto Alegre, Ortiz, 1993, p. 21. 128 Nas colunas e editoriais, pouco o jornal se referia ao governo federal e estadual e sempre de forma vaga e superficial e quando o fazia, a questão da censura não era tratada ou focada. 129 Contudo, mesmo com essas características locais, segundo o colaborador Ernani Napoleão Lima, o jornal era observado, principalmente porque Raimundo Antunes Ribeiro – Fundador do jornal – havia sido preso em 1964. 130 Analisando esse slogan, proposta pelo jornal como enunciado de valorização, percebemos a intenção do sujeito construtor do discurso de mostrar para seus leitores que a credibilidade da notícia veiculada no periódico se dá em razão de sua independência, ou melhor, de possuir uma condição livre de qualquer subordinação ou sujeição. Para o slogan, ver edição de 02/06/1968. 127 42 civil-militar brasileiro acreditava e pregava que uma imprensa fiel e fidedigna seria um forte instrumento no êxito e empenho para se legitimar: “Alguém precisava proclamar as conquistas do regime (...) e a imprensa poderia ser um forte aliado para a disseminação dessa informação (embora, ao mesmo tempo, uma ameaça se ela se pusesse a questionar ou criticar os custos sociais dessas realizações)”.131 Sabendo que a ditadura civil-militar no Brasil tinha toda uma fundamentação teórica, científica, política e ideológica elaborada em instituições 132 preparadas para isso, era comum e até mesmo eficaz que ela usasse de “teatralidade” como mecânica empregada para produzir efeitos pretendidos, principalmente de representações de uma ordem onde tudo era harmonia. Para se legitimar, o regime pretendia utilizar as grandes empresas de mídias – controladas e silenciadas pela censura ou poder financeiro – para criar imagens, modelos de ações, de símbolos que mostrasse um país na direção considerada adequada. Para Georges Balandier, qualquer poder estabelecido sobre a força ou sobre a violência teria uma existência constantemente ameaçada e se for exposto sobre a iluminação exclusiva da razão, teria pequena credibilidade: “Ele não consegue manter-se nem pelo domínio brutal e nem pela justificação racional. Ele só se realiza e se conserva pela transposição, pela produção de imagens, pela manipulação de símbolos e sua organização em um quadro cerimonial. Estas operações se efetuam de modos variáveis, combináveis, de apresentação da sociedade e de legitimação das posições do governo [...] Todo sistema de poder é um dispositivo destinado a produzir efeitos, entre os quais os que se comparam às ilusões criadas pelas ilusões do teatro [...]. Todo poder político obtém finalmente a subordinação por meio da teatralidade, mais aparente em certas sociedades do que em outras, pois que suas diferenças de civilização as tornam desigualmente “espetaculares””. 133 Por isso, os governos dos generais-presidentes ao longo de sua existência fizeram maciços investimentos em propaganda para parecer à população brasileira que tudo ia 131 SMITH, Anne-Marie, Um acordo forçado. O consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro, Editora FGB, 1997. p. 46. 132 Segundo Maria Helena Moreira Alves, em Estado e Oposição no Brasil – 1964-1984, São Paulo, Edusc, 2005, a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento foi formulada pela Escola Superior de Guerra ( ESG), em colaboração com o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais(IPES), para um período de 25 anos. Marialva Barbosa, em História Cultural da Imprensa – Brasil 1900-2000 - Rio de Janeiro, Mauad X, 2007, p.187, cita a criação de órgãos importantes para manutenção do regime civil-militar brasileiro, tais como: SNI (Serviço Nacional de Informação), CIE (Centro de Informação do Exército), CISA (Centro de Informação e Segurança da Aeronáutica) e CENIMAR (Centro de Informação da Marinha). 133 BALANDIER, Georges, O Poder em cena, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. p. 7 43 muito bem.134 Fizeram parecer em diversas circunstâncias que o regime autoritário implantado foi a única alternativa “reivindicadas até mesmo como salvadoras da própria democracia, dos valores nacionais e sociais, como o único caminho, o fio condutor da transformação radical da sociedade”.135 Enquanto isso, em Campo Maior/PI, o semanário A LUTA se dedicava em revelar os fatos pitorescos da região, como a política local, a cultura e os acontecimentos sociais diários. A predominância de um caráter empresarial, buscando ganhos ou lucros não era objetivada, ou pelo menos não foi percebido. A parte de publicidade, de diagramação e montagem das matérias eram meticulosamente preparadas por seus editores e tipógrafos, estratégia montada para agradar seus leitores e anunciantes e a própria sobrevivência do semanário: “A última página a ser feita era a primeira, que agente ficava esperando, aguardando as manchetes”.136 Vale mencionar ainda, se referindo à censura brasileira, uma questão bastante delicada – pelo menos do ponto de vista dos jornalistas – que foi o apoio recebido pelo regime civil-militar vindo de jornalistas, alguns até em posição de comando dentro das redações. Por conta dos silêncios desses profissionais sobre essa posição, não existem muitos trabalhos sobre o assunto. Apesar do apoio conferido por alguns profissionais desse segmento ao regime autoritário, as pesquisas historiográficas demonstram que tal apoio não foi unânime, como bem demonstra Beatriz Kushnir em estudo a este respeito. Para Kushnir, não se pode afirmar que a prática do colaboracionismo e da autocensura tenha sido exercida pela maioria dos jornalistas. Muitos daqueles que se opuseram às práticas do Estado pós-1964 e pós-AI-5 foram presos e perseguidos, ficaram desempregados e/ou permaneceram anônimos, além daqueles que desempenharam militância de esquerda – simpatizantes e/ou engajados – que foram igualmente acuados: “Neste sentido, não estou reunindo em um mesmo universo os donos de jornais e os jornalistas de várias tendências. Existiram jornalistas que colaboraram com o regime, outros que se opuseram a ele e outros ainda que resistiram a ele. O mesmo se aplica aos seus patrões”. 137 134 Foi a forma que os governos militares encontraram para impor ao país o modelo econômico concentrador, expresso no arrocho salarial, na facilitação aos investimentos estrangeiros, na concentração fundiária e nas remessas de lucro das empresas multinacionais. Brasil Nunca Mais, Petrópolis, RJ, Vozes, 1986, pp. 60-68. 135 ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha Viz (orgs.), A construção social dos regimes autoritários, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010. p. 15. 136 SAMPAIO, Severo Visgueira, entrevista do dia 21/02/2012. 137 KUSHNIR, Beatriz, Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo, Boitempo,2004. p. 354. 44 Podemos concluir que a censura foi um instrumento autoritário do próprio Estado, com objetivo de silenciar a mídia no seu potencial de criticar o regime, além de ser eficaz aparelho de controle social. De formas diversas ela tentou dissimular o autoritarismo assim como as resistências a ele, de forma violenta ou não. O alvo principal era a população letrada – no caso da imprensa escrita – e a população total, no caso do rádio e da televisão: “Cumprir ou não este objetivo passava pelos meios de comunicação de massa. A interferência com estes meios levou a reações negativas e, neste sentido, pode ter trazido mais malefícios do que benefícios para o regime militar”.138 Assim, mesmo sabendo que a maioria da grande imprensa brasileira tenha se submetido à censura dos militares, por cooptação econômico/financeiro ou por intermédio de força policial, sabemos também de formas de resistências utilizada por ela. Aquela grande imprensa que inicialmente havia apoiado o golpe civil-militar passou a questioná-lo, principalmente após ocorrências de práticas cotidianas de constantes cerceamentos.139 É nessa circunstância que as relações entre imprensa e governo autoritário foram se moldando, se ajustando, com jornalistas aprendendo a ludibriar a censura ou se submetendo a ela.140 De qualquer forma e maneira, as diversas situações de censura ocorridas no Brasil após 1964 se conjugam em uma complexidade que nos escapa às explicações fáceis. E nosso periódico acompanhou todo esse processo, desde o seu surgimento (1967) até o seu fechamento em 1979. Fazendo uma reflexão do regime civil-militar brasileiro implantado em 1964 – incluindo a situação da imprensa - nos remetemos ao pensamento de Luiz Roncari. Para esse autor, a herança de uma sociedade patriarcal no Brasil plantou e fez crescer um modelo de vida social e econômica que sobreviveu ao término dos engenhos, das usinas de açúcar e das fazendas de café e que os governos militares pós-1964 – embora sustentassem formulações técnico-desenvolvimentistas de aparências modernas – 138 SOARES, Gláucio Ary Dillon. “A censura durante o regime autoritário”. IN: Revista Brasileira de Ciências Sociais, 4 (10), jun-1989. pp. 21-43. 139 Alexandre Stephanou divide em três períodos o regime civil-militar brasileiro: a primeira, de março/abril de 1964 à decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968 (caracterizada pela coexistência de práticas autoritárias e censórias com algumas liberdades individuais); a segunda, do AI-5 A 1975 (caracterizada pelo fechamento do regime, os chamados anos de chumbo e de ditadura explícita); e a terceira, de 1975 a 1985 (caracterizada pelo processo de abertura, lento e gradual e pelo retorno dos exilados). STEPHANOU, Alexandre Ayub, Censura no Regime Militar e militarização das Artes, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001, p. 13. 140 GAZZOTI, Juliana, Imprensa e Ditadura: Veja e os governos militares, Tese (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de São Carlos (SP), 1998. 45 perseguiram também à risca o modelo brasileiro histórico-patriarcal, com as devidas inovações institucionais, dando um novo rosto a um “Estado abstrato”: “O passado renascia numa outra dimensão, transpunha para o plano nacional a ordem patriarcal, invertendo-a: não era agora o privado que invadia o público, mas este que estendia seu controle sobre o privado, a ordem patriarcal tornou-se pública e o país transformou-se num grande engenho. O senhor da hora, escolhido no alto da famiglia, com os seus jagunços reinava soberano na casa-grande do Planalto, onde mandou construir o mastro de bandeira mais alto do mundo, que se desfraldava ao vento como as antigas palmeiras imperiais”.141 Assim, unindo os fios, contextualizamos a cidade de Campo Maior/PI e suas particularidades da década de 1970, a situação e comportamento da imprensa brasileira daquele contexto, o modo como a censura atuou na imprensa e seus atores sociais. Vimos que o nosso objeto e fonte de pesquisa – o periódico A LUTA - se localizava em uma pequena cidade do nordeste brasileiro e que pouco – supostamente – foi influenciado por aquele período e fatos de amplitude nacional.142 Ali, com uma população de maioria morando nos povoados e regiões rurais, pouco alfabetizada, difícil acesso aos grandes centros do país, deficiência nos meios de transporte e comunicação,143 a cidade de Campo Maior/PI, pelo abandono, pela imprevisibilidade, pela não presença e interferência do governo federal, não vivenciou as experiências e o estado de terror e trevas que marcaram e traumatizaram os grandes centros urbanos da nação.144 Isso não significou que a população daquela cidade tenha se posicionado contra ou a favor da ditadura, ou redirecionado seus olhares somente para os discursos e fluxos dos acontecimentos locais. Nas análises sobre a ditadura civilmilitar e da censura no Brasil, percebemos que o governo pouco se preocupava com as 141 RONCARI, Luiz, “O espírito do engenho: da visão do paraíso a The Waste Land”. IN: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Imprensa Oficial do Estado / Fapesp, 2002, pp. 316-318. 142 Embora o semanário campomaiorense ressaltasse os assuntos locais de Campo Maior/PI, preferiu, de maneira sucinta, tecer elogios à situação política nacional, direcionando para o que a autora Maria Stela Martins Bresciani afirma: o regime civil-militar brasileiro, através da violência da tortura, das armas e da censura pretendeu calar os que discordavam da palavra única ou das ações perpetradas em seu nome. Ver BRESCIANI, Maria Stella Martins, Um tema difícil, uma reflexão ousada, IN:KUSHNIR, Beatriz, Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo, Boitempo,2004. p. 13. 143 Devido à deficiência desses meios naquele período, havia baixo índice de migrações internas entre nordeste e o restante do país, tornando estes espaços quase desconhecidos entre si, verdadeiros mundos separados e diferentes e que se olhavam com estranhamento. 144 Vale lembrar, que algumas pessoas foram presas em 1964 na cidade de Campo Maior, aquelas que estavam envolvidas com os movimentos dos trabalhadores rurais da região. Raimundo Antunes Ribeiro (Totó) que em 1967 fundaria o jornal A LUTA, também foi recolhido. Nas entrevistas com os colaboradores Severo Sampaio e Luís Edwiges, confirma-se o envolvimento de Raimundo Antunes Ribeiro com as ações dos trabalhadores rurais. Ver SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012 e EDWIGES, Luís, entrevista do dia 09/02/2012. 46 relações de poder dos pequenos municípios e dos pequenos jornais ali existentes. No caso de Campo Maior/PI, só pontualmente se notou a presença da ditadura, somente no ano de 1964, com a prisão de várias pessoas. Esquecida pelo governo nacional, também não se pronunciou sobre as barbáries desse governo. 145 E o jornal A LUTA, que poderia ter divulgado as atrocidades, optou pelo consentimento, 146 o que pode ter favorecido e compelido aqueles cidadãos campomaiorenses a atitudes de indiferenças para com o regime de repressão. Para Beatriz Kushnir, “Utilizando-se dessa “passagem”, dessa entrada lateral, desse outro lugar (escuso, alternativo, não-legal), alguns jornalistas eram habitués do lado de lá do balcão. Esses trocaram a narrativa de um acontecimento pela publicação de versões que corroborassem o ideário repressivo. Certamente acreditavam nas suas ações, compactuando sempre com o poder vigente” 147. Mas essa imprensa miúda, pequena, considerada menor e sem importância, estava profundamente ligada aos assuntos da cidade e da região, onde os sujeitos enunciadores – elite local - conseguiam, através do seu lugar social, da linguagem e dos aspectos sócio-econômicos, estabilizar na memória coletiva da comunidade campomaiorense, as realizações sociais, valores e representações. Ali, só eventualmente se tratava dos interesses de cunho estadual e nacional. Era como se generalidade e coerência não pesassem muito, ou como se a esfera da política nacional ocupasse uma posição alterada, numa faixa de intensidade diminuída, cujos critérios fossem outros. O jornal veiculava – de acordo com os editores e colaboradores – matérias capazes de influenciar, implementar e fomentar campanhas políticas e sociais locais, além de fortalecer os laços e pesos simbólicos das oligarquias ali existentes, as tradicionais famílias de Campo Maior.148 Eram relações numerosas e várias e foi nisso que repousaram as singularidades e especificidades do periódico A LUTA. 145 Acreditamos que a maioria dos municípios que tinham situação parecida com Campo Maior/PI – e não eram poucos – tenham se comportado de maneira semelhante. 146 Veremos no segundo capítulo, que em diversas colunas do jornal os colaboradores se referiam ao governo civil-militar brasileiro como “revolução”, tecendo elogios não somente ao governo, mas às suas práticas “desenvolvimentistas”. 147 KUSHNIR, Beatriz, Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo, Boitempo,2004. p. 355. 148 Vimos no item sobre a cidade de Campo Maior, que ali algumas famílias tradicionais se mantinham no poder político da cidade de Campo Maior/PI, assumindo a direção da prefeitura. 47 CAPÍTULO II O JORNAL “A LUTA” – COLUNAS E EDITORIAS - ASTÚCIAS, PRÁTICAS E TÁTICAS “Tão esbelta és tu, Campo Maior querida. Com teus lindos carnaubais, de campos cobertos com um manto verde, com céus límpidos e serras azuladas. Depois de uma madrugada clara e de encanto tu te levantas majestosa a saudar o dia com um cantar solene da passarada em festa. Quanto amor por ti tenho! Mas tenho medo de desencanto. Vivo sonhando e compondo o mundo lindo... tempo de infância. Campo Maior de ontem e de hoje, de progresso e poesia [...]”.149 2.1 – O Jornal A LUTA e sua programação 149 LIMA, Ernani Napoleão, coluna “Poema de Campo Maior”, edição de 10/1970. 48 Neste capítulo nosso objetivo é investigar as colunas e editoriais publicados pelo o periódico A LUTA. No capítulo anterior, assinalamos a criação e a existência do periódico na cidade de Campo Maior/PI, pela elite econômica e política da cidade, e que o jornal foi contemporâneo de um período peculiar e singular da história da imprensa brasileira, onde predominavam doutrinas e ideias de forte componente ideológico de um estado autoritário. Vimos também, que as lideranças da ditadura civil-militar brasileira preocupados em controlar os grandes centros urbanos, se descuidaram com a imprensa e a vida cotidiana das pequenas cidades do interior do Brasil. Defendemos que o imaginário criado, retratado e propagado pelo regime civil-militar de uma uniformidade ideológica ufanista e conservadora encontrou ressonância junto à elite social local ao desconsiderar os atos discricionários decretados pelo governo federal, tendo como o mais emblemático, o Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, ou ainda, silenciar-se diante da censura, prisões e perseguições aos opositores do regime. Sublinhamos ainda, que aquele governo a todos olhava e vigiava e que consolidava seu sistema de controle através do Serviço Nacional de Informações (SNI) ao se transvestir em diferentes roupagens para manter-se e continuar no poder: “Pois uma das características mais decisivas da ditadura brasileira era sua legalidade aparente ou, para ser mais preciso, a sua capacidade de reduzir a legalidade à dimensão da aparência”.150 Pretendemos agora, desvendar o modo como o semanário apresentava seus posicionamentos e ações - inclusive na construção de memórias151 sobre a cidade de Campo Maior/PI – e como atuou como instrumento no processo de construção de práticas e hábitos, servindo como intermediário na adoção de novos valores e representações na rotina diária daquela cidade e sua comunidade. Para Chartier, “As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio”. 152 Veremos como as subjetividades trazidas pelas colunas e editoriais nos fez perceber as relações de forças que atravessaram, classificaram e definiram a cidade de Campo Maior/PI 150 TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir (orgs.), O que resta da ditadura: a exceção brasileira, São Paulo, Boitempo, 2010. p. 11. 151 No caso de memórias de Campo Maior, trazer aquelas experiências do contexto de 1970, repensá-las e reconstruí-las com ideias e imagens de hoje. BOSI, Ecléa, Memória e sociedade: lembranças de velhos, São Paulo, Cia das letras, 1994. p. 55. 152 CHARTIER, Roger, A História cultural – entre práticas e representações, Lisboa (Portugal), Difel, 1990. p. 17. 49 numa dimensão fundamental para a construção de relações sociais locais, que foram, num sentido, tanto relações de poder quanto emanações de sentimentos, afetos e vontades. E que a presença da elite da região foi determinante para a “longa” existência do semanário naquele período.153 O leitor é o foco, é a base da existência de qualquer mídia escrita. Sem ele, o editor não faz contrato de anúncios, não alcança lucro e/ou não se mantém. E é por isto que a busca por ele é conduzida em todos os frontes. Os espaços utilizados pela a política são compartilhados com outros assuntos, como o cultural, o lazer, o esporte e o religioso, tentando chegar aos vários segmentos da sociedade. Além destes, o jornal A LUTA exibia colunas e editoriais que exploravam temáticas populares, voltadas na maioria para os problemas da comunidade local. Comunicar, informar, produzir e distribuir mensagens são, pois, os principais objetivos de um jornal. Fica claro essa consciência dos editores e colaboradores do periódico campomaiorense. Pelo preenchimento dos acontecimentos e variedades de temáticas abordadas na colunas e editoriais, percebe-se que tentavam convencer, entreter e conduzir os leitores com o que havia de melhor e mais atualizado sobre o mundo da época. Assim, a relação entre o emissor, a mensagem escrita e o receptor “não é apenas produzir informação e distribuíla, é também estar atento às condições em que o receptor a recebe, aceita, recusa, remodela, em função de seu horizonte cultural, político e filosófico, e como responde a ela”.154 O semanário A LUTA foi criado na cidade de Campo Maior/PI em 19 de novembro de 1967 e fechado em 30 de setembro de 1979. Tinha edição e circulação semanal. Naqueles primeiros anos, além de novidade, era visto como sinônimo de progresso, lugar onde a população local buscava se informar. Segundo o colaborador Severo Sampaio, que trabalhou como tipógrafo do jornal, na capa ou primeira página vinham as manchetes principais e alguns retratos de pessoas e/ou de lugares simbólicos da cidade, e que o semanário começou com seis páginas, chegando a funcionar até com oito, com o passar de sua existência. A circulação e venda acontecia aos sábados e era feito de porta em porta ou em locais públicos, como os mercados e praças. De acordo 153 Para aquele contexto histórico (1967 a 1979) um pequeno jornal existir por quase 12 anos (11 anos e 10 meses) em uma cidade do interior do nordeste, inclusive com alternância na direção e controle editorial, direciona para interesses de um grupo social local em mantê-lo funcionando. Nas entrevistas os colaboradores foram enfáticos em dizer que o jornal não tinha arrecadação suficiente para manter-se. Para eles, os grupos interessados no jornal eram somente por “idealismo”. Ver LIMA, Ernani Napoleão, entrevista do dia 10/02/2012, SAMPAIO, Severo Visgueira, entrevista 21/02/2012 e FILHO, José Miranda, entrevista do dia 04/08/2012. 154 WOLTON, Dominique, É preciso salvar a comunicação, São Paulo, Paulus, 2006, p. 16. 50 ainda com o citado colaborador, a redação funcionou em diversos endereços da cidade, e as dificuldades financeiras sempre se fizeram presentes na vida do semanário. As colunas não eram fixas, determinadas e variavam semanalmente, de acordo com a disposição e produção dos colaboradores.155 O tamanho pequeno se fazia desnecessário à formação de cadernos e edições extras. Para Ernani Napoleão, que foi colaborador e diretor do semanário, a produção e construção do jornal obedecia a um lay-out gráfico fixo onde eram posicionados estrategicamente as colunas, o editorial, a parte esportiva, policial e outras abordagens e que levava a semana inteira para sua elaboração,156 pois “Todo ato de informação na imprensa é acompanhado por uma estratégia de comunicação”.157 O jornal se apropriava de métodos e técnicas tipográficas consideradas ultrapassadas para os avanços tecnológicos daquele período.158 Ali se faziam elogios, críticas e homenagens, criando-se uma intimidade entre os leitores e o jornal.159 Produzia discursos e construía identidades no momento que anunciava e enunciava as matérias. Assuntos diversos eram ali tratados e a maioria trazia a assinatura de um colaborador, embora existisse coluna onde o autor se apegava à prática de pseudônimo.160Os editoriais e principalmente as colunas, foram de grande importância para a divulgação de nomes de pessoas daquele presente e do passado e também, dos lugares de memórias da cidade de Campo Maior/PI. 161 Como exemplo a coluna “Relembrar o passado” de 19/04/1970, onde Octacílio Eulálio descreve as lembranças da sua infância, a escola onde estudou, a chegada do primeiro automóvel volteando ao redor da praça Bona Primo: “[...] O primeiro carro depois de voltear a praça Bona Primo, buzinando sempre, se aproximou e parou à nossa frente, quando então atiramos flores, assim recepcionando o progresso para os nossos dias”. 162 Do editorial do dia 155 SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012. Impossibilitava portanto, a existência de edição extra e a formação de cadernos. 157 WOLTON, Dominique, É preciso salvar a comunicação, São Paulo, Paulus, 2006, p. 46. 158 Na década de 1970 a imprensa dos grandes centros urbanos do Brasil viviam o que Nelson Werneck Sodré chama de “etapa empresarial”, onde os equipamentos eram importados e os “usados”, “velhos” eram vendidos para as jornais do interior. Ver SODRÉ, Nelson Werneck, História da Imprensa no Brasil, Rio de Janeiro, Mauad, 1999, p. 281. Para o colaborador e tipógrafo Severo Sampaio, o jornal A LUTA era montado letra por letra em um componedor e que a máquina impressora era movida a pedal, totalmente mecânica. SAMPAIO, Severo Visgueira, entrevista do dia 21/02/2012. 159 Defendemos, que com o passar do tempo e do diálogo silencioso entre o leitores campomaiorenses e seu jornal, laços de estima e respeito tenha se desenvolvido e cimentado. 160 Ainda de acordo Severo Sampaio, uma coluna com o pseudônimo de “Zulu” que retratava os acontecimentos policiais da cidade era elaborada por um funcionário da agência do Banco do Brasil da cidade e por ser muito conhecido, preferia o anonimato. Ver SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012. 161 Nas colunas sociais, percebe-se forte tendência de referencias a pessoas dos grupos sociais tradicionais locais, como aniversários, nascimentos, viagens. 162 EULÁLIO, Octacílio, coluna “Relembrar o passado”, edição de 19/04/1970. 156 51 19/11/1974, onde o governador do Estado do Piauí, Alberto Tavares Silva diz: “É com satisfação e justo orgulho de piauiense e brasileiro que faço entregar ao povo do Piauí e do Brasil o Museu do Monumento do Jenipapo que recorda toda a história dos heróis que deram sua vida em 13 de março de 1823, em Campo Maior [...]”. 163 Ainda, a coluna “Campo Maior”, do dia 10/11/1968, onde Antônio Andrade Filho, fez um apanhado da fundação da cidade, do seu padroeiro, a posse do primeiro tabelião e do primeiro juiz da cidade, e quando aderiu à independência nacional: “[...] Em 1761 havia no povoado Santo Antônio do Surubim um Tabelião Público do Judicial e notas e, no mesmo ano, tomou posse o primeiro Magistrado [...]. [...] no dia 2 de fevereiro de 1823 aderiu e proclamou a independência nacional [...]”.164 Abriu para o imaginário da sociedade local e leitora do jornal, não apenas as práticas, mas também as crenças e projetando através delas, suas realidades e insatisfações,165 já que ali era um lugar de tensão onde os discursos disputavam sentido e lugar,166 e onde se procurava conjugar elementos culturais, linguísticos, geográficos, modos de vida, bem como fatos históricos que marcaram a região: “E é nesse universo de textos entrelaçados e narrativas ressuscitadas que se estabelece a construção de sentidos, resultado das disputas que os seres humanos travam em sociedade, para que possam compreender e se fazerem compreendidos”.167 Além de informar seus leitores, o periódico participava ativamente da vida social da cidade, em um processo onde a elite local, os políticos e membros da igreja se conectavam na disputa do poder: “Quero dizer que em uma sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que estas relações de poder não podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso”.168 163 Ver editorial “Inaugurado o Museu do Monumento do Jenipapo”, edição de 19/11/1974. FILHO Antônio Andrade, coluna “Campo Maior”, edição de 10/11/1968. 165 Percebe-se muitas poesias – na maioria delas – criando um imaginário romântico tanto do passado como daquele presente do jornal. Como exemplo a poesia “Ser Poeta”, de Ivanise Santos, edição de 01/03/1970. Ainda, PAZ, Áurea, poesia “Comparação”, edição da mesma data. 164 166 Para o autor Paulo Fernando de Carvalho Lopes, ao circular, os produtos jornalísticos buscam hegemonia a partir de um mercado simbólico. Para ele, em qualquer lugar, desde a produção do fato até a leitura na banca de jornal, esse processo se faz presente. Ver LOPES, Paulo Fernando de Carvalho, O Jornalismo na Teoria dos Discursos Sociais, IN: SAID, Gustavo (Org.), Comunicação – Novo Objeto, Novas teorias?, Teresina, EDUFPI, 2008. p. 129. 167 RODRIGUES, Janete de Páscoa, Ofertas de Sentidos de Identidades Culturais nas Mídias Impressas Piauienses, IN: SAID, Gustavo (Org.), Comunicação – Novo Objeto, Novas teorias?, Teresina, EDUFPI, 2008. p. 146. 168 FOUCAULT, Michel, Microfísica do Poder, Rido de Janeiro, Edições Graal, 1979. p. 179. 52 Os conteúdos dos editoriais e principalmente das colunas envolviam os leitores e colaboradores na formação de significados para a imagem corporativa da comunidade campomaiorense, pois “O Sujeito membro de uma classe de seus primeiros escritos torna-se um sujeito concreto inserido num grupo social, num contexto histórico, numa vida familiar, numa comunidade de vizinhos e em relações interclassistas cotidianas”.169 Acontecia ali processo social e seletivo, uma combinação de diversos vetores (sociais, culturais, históricos, temporais, subjetivos) permitindo que se realizasse, a partir dele, algo novo entre os participantes daquelas ações. O que se impõe igualmente em muitas das colunas e editoriais do semanário é a presença humana – forte e densa de vivacidades e sentimentos - mostradas nos mais variados misteres e ocupações e em seu pertencimento às mais diversas categorias sociais da localidade. Para o autor Paulo Fernando Lopes, “análise acurada e cuidadosa comprova que o processo de construção da notícia privilegia, em qualquer instância, determinados aspectos e não outros”.170 No caso, as relações entre o periódico e seus colaboradores com a cidade de Campo Maior/PI e sua população, pois “As pessoas podem usar-se da linguagem para explicitar seu contato social, mas o que cada uma delas elabora internamente das coisas que foram ditas ou silenciadas, lidas ou escritas, vistas ou exibidas, é um outro mundo em que ocorre toda uma decodificação particular”.171 Realizava-se então, a positividade de um lugar social no qual os sujeitos se articulavam, sem no entanto se reduzirem a ele. Elas, as colunas e editorias, tornavam possível ver-se e falar-se de Campo Maior e região como uma materiaridade construída, como uma identidade pronta e homogênea, ou, ao contrário, elas às vezes a contestavam, mostravam suas deficiências e diferenças. Na verdade, os colaboradores através dos seus escritos, procuravam elaborar saberes que influenciassem as práticas e hábitos familiares cotidianos da cidade, adequando-os a padrões discursivos impostos como verdades. Nota-se que o semanário existia como um meio, como estratégia de ação dos colaboradores para entreter, para ser consumida com prazer, mas também para educar: “A medicina, as religiões e as tristes experiências com a bebida, são muitas 169 DE LA TORRE, Alberto Efendy Maldonado Gomez, Pesquisa teórica em comunicação na América latina: autores cruciais, IN: SAID, Gustavo (org.), Comunicação: novo objeto, novas teorias?, Teresina, EDUFPI, 2008. p. 29. 170 LOPES, Paulo Fernando de Carvalho, O Jornalismo na Teoria dos Discursos Sociais, IN: SAID, Gustavo (Org.), Comunicação – Novo Objeto, Novas teorias?, Teresina, EDUFPI, 2008. p. 134. 171 FILHO, Ciro Marcondes, Comunicação, uma ciência anexata e contudo rigorosa, IN: SAID, Gustavo (Org.), Comunicação – Novo Objeto, Novas teorias?, Teresina, EDUFPI, 2008. p. 53. 53 vezes as causas salvadora do doente. Este assunto que tem preocupado a médicos, psiquiátricos, assistentes sociais, casas de caridade, tribunais e igrejas [...]”.172 Campo Maior/PI na década de 1960 e começo de 1970 lutava ainda pela tão almejada modernização, apresentando aspectos marcadamente rurais e convivendo com uma incipiente urbanização. Faltava água encanada, redes de esgoto, calçamento, condições mínimas para propiciar uma vida saudável.173 Circulavam em muitas das páginas do periódico situações que variavam do trivial ao heroico – cotidiano da cidade e comunidade, fatos e figuras históricas da região, fauna e flora predominante – numa multiplicidade de assuntos.174 Ligado às peias do enfoque local e temporal, raramente procedia análises e escritos que extrapolassem alcances espaciais da cidade de Campo Maior/PI e redondezas, realçando as belezas da natureza da região, bem como as transformações da cidade nos seus artefatos, monumentos, serviços, e em seus rearranjos espaciais. É o que mostra o editorial “Campo Maior de ontem e de hoje”, edição de 24/07/1977: “[...] Como num passe de mágica, eis que a modesta e provinciana cidade cresce, avoluma-se, e hoje está aí para o espanto de muitos, uma grande e evoluída cidade, espraiando-se em todos os sentidos [...]”. 175 Referia-se à precária oferta dos serviços essenciais da cidade e à sua organização, marcas do domínio público e da delimitação do espaço coletivo: “Falta zelo por nossa cidade. Nunca esteve tão acentuado o índice como na atual administração Municipal. Não se sabe por onde andam as atividades do Prefeito ou se sua intenção é deixar praças, centro e bairros entregues à lama e ao lixo”.176 Criado e dirigido por Raimundo Antunes Ribeiro (mais conhecido como Totó) (Ver figura abaixo), envolvido com as causas sociais da cidade, 177 tornou-se o primeiro periódico a circular em Campo Maior/PI. 172 FILHO, Antônio Andrade, coluna “Alcoolismo”, edição de 24/03/1968. Ver primeiro capítulo, item sobre a cidade de Campo Maior/PI e seus aspectos históricos. 174 Veremos no terceiro capítulo como o semanário abordou as festas populares da cidade e fatos históricos marcantes da região como discursos delineadores na construção de aspectos identitários para a região de Campo Maior/PI. 175 Editorial “Campo Maior de ontem e de hoje”, edição de 24/07/1977. 176 Editorial “Campo Maior em maus lençóis”, edição de 23/09/1979. 177 Juntamente com outros atores sociais da cidade, foi figura importante na fundação de clubes Recreativos de Campo Maior, da Associação Comercial, do Rotary Clube, Escolas. Ligado e atuante junto às ligas camponesas da região de Campo Maior. Para o senhor Luis Edwiges, líder camponês da região de Campo Maior, Raimundo Antunes participava de passeatas e caminhadas, colocava a casa dele a disposição dos trabalhadores rurais da região, enfim, se envolveu apoiando esse segmento dos trabalhadores locais, antes de golpe civil-militar de 1964. Ver EDWIGES, Luis, entrevista do dia 09/02/2012. 173 54 O levantamento da tabela abaixo não representa as colunas e editoriais na sua totalidade, mas a grande maioria. Percebe-se uma grande quantidade de editoriais, o que nos faz olhar na direção de que o periódico tentava chamar atenção dos seus leitores, construindo títulos com frases e recursos estratégicos para seduzir e atrair as curiosidades da parcela letrada da população local da cidade. 178 A grande quantidade de colunas sociais parecem guardar relações que apontam para a forma como a sociedade leitora local valorizava aqueles enunciados para externar seus padrões e entrelaçamentos. Vale realçar também, a quantidade de artigos tratando da parte cultural dos campomaiorenses, com destaque para muitas poesias e aspectos voltados para os heroísmos, as famílias proprietárias e valentias dos sertanejos da região.179 Tabela 2 – Total de colunas e editorias do jornal A LUTA Colunas e editoriais temáticos Política Social Religiosa Cultural Total de editoriais Total geral ........................................... Números de artigos 178 382 40 282 315 1.197 % 14,87 31,91 3,34 23,56 26,32 100 Essa variedade das colunas e também dos editoriais, indicavam e sinalizavam tentativas de agradar os mais variados gostos, indo desde o popular, massivo, até o educativo e cultural.180 Ali, o único cinema da cidade anunciava sua programação 178 Além dos títulos para atrair os leitores, o jornal também apresentava títulos digamos “bizarros” como “Os Heróis e a Revolução, edição sem data, “O Cometa vem aí”, edição sem data, “A Vaca vai pro brejo”, edição sem data, “Vaca salva menino atacado por jumento”, edição sem data, “O Regresso da camponesa”, edição de 26/05/1968, “Disco voador em Campo Maior”, edição de 11/07/1976, “A imagem de Cristo transpira”, edição de 04/06/1975. 179 Como exemplo a coluna “O Incêndio ao Entardecer”, edição de 29/09/1968, de José Miranda Filho. Nela o colaborador tece comentários de como um casal de sertanejos se comporta perante um incêndio nas redondezas de sua casa, pondo em perigo toda a família. 180 Embora o semanário A LUTA tivesse pouca tiragem e chegasse a uma parcela pequena da sociedade campomaiorense, tentava chegar a todas as camadas sociais da cidade, misturando política, poesias, colunas sociais, preces e orações religiosas, além de notícias locais, do Estado, do País e do mundo. 55 semanal, mostrando os nomes dos filmes, os horários e dias da semana e ainda, o formato de cada filme, faixa etária para ter acesso ao recinto: “Cine Nazaré, o máximo em espetáculo. “Nives, a Mulher do Rio” –Technicolor – com a encantadora Sofhia Loren-Gerard Oury [...] É mais que um filme é a própria vida”. 181 Colunas com destaques abordavam temas religiosos, sociais e políticos locais e eventualmente, de outros lugares. Poesias dos mais variados gostos grassavam nas páginas do periódico: “Maior que o céu é meu deslumbramento, Perante o qual prosterno-me contrito. Meu sonho é mais intenso que o infinito, mas forte que o ideal é meu tormento [...]”. “Prêso, tranquilo, o açude é um lençol de água morta Que o céu lançou à terra à feição de um apôdo, E que o peso do tempo impassível suporta Sem um crespo de raiva a ensombrar-lhe o denodo ... [...] Certo ninguém lhe sabe as tristezas secretas! A alma branca do açude, isenta de maldade, Tem o mistério azul das almas dos poetas!...”182 O colaborador Antônio Andrade Filho (Irmão Turuka) retratava os valores, acontecimentos, fatos pitorescos da cidade e de seus habitantes, incluindo as bandas de músicas.183 Ele constantemente se referia a fatos e de pessoas do passado da cidade de Campo Maior, em um processo de “resgate” e de “preservação” de tradições e costumes e uma suposta defesa de suas originalidades, ressignificando seus sentidos para aquela contemporaneidade: “A “tradição” neste sentido deve ser nitidamente diferenciada do “costume”, vigente nas sociedades ditas “tradicionais”. O objetivo e a característica das “tradições”, inclusive das inventadas, é a invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição. O “costume”, nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido pela exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente”.184 Colunas tratando de amenidades locais eram muito frequentes, tais como o reinício das aulas, aniversários, viagens, nascimentos, notícias estudantis, exposições agro-pecuárias e informações agrícolas, esporte, educação, saúde e até missas de 181 Ver coluna “Cine Nazaré” edição do dia 15/05/1976. A primeira poesia é de ALENCAR, Altevir, “Tortura D`Arte”, edição de 18/02/1968. A segunda, de FREITAS, Alcides, publicado na edição de 07/04/1968, por Marion Saraiva. 183 Esse colaborador sempre atento em referenciar as memórias locais de Campo Maior, deu especial atenção às bandas de músicas locais, com destaque para a banda “Lyra Santo Antônio” e a banda “Os amantes” de João Sérgio. Ver LIMA, Francisco de Assis, Campo Maior em Recortes, Campo Maior-PI, 2008. pp. 82-84. 184 HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence, A Invenção das Tradições, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997. p. 10. 182 56 falecimentos, iluminando um vasto “arquipélago” de informações e notícias. Até mesmo colunas abordando os valores da imprensa: “A Imprensa é considerada o quarto poder. O jornal é a principal arma desse poder. A Imprensa é poderosa, assim, porque conscientiza, forma, orienta, estimula, instrui, educa e ilustra a opinião pública. [...] Foi o que aconteceu ao folhear “A LUTA”, hebdomadário campomaiorense, fruto do esforço, da dedicação e da juvenilidade de Raimundo Antunes Ribeiro – Totó – seu diretor responsável [...].”.185 Naquele cotidiano as pessoas que liam o periódico falavam, comentavam fatos da vida local e de outros lugares, davam opinião sobre assuntos lidos, relacionavam-se com os editores e colaboradores: “Recebiam com ansiedade. Comentavam em família e entre amigos e vizinhos. Despertava interesse em notícias gerais, como a velha política local e veiculações de noticiários policiais. Os acontecimentos sociais também eram muito importantes”.186Acontecia a comunicação, a troca efetiva, a interatividade, a contextualização das questões tratadas e/ou retratadas nas colunas e editoriais. O semanário tentava “fazer ver”, “fazer crer” e “fazer saber” por intermédio do conteúdo das reportagens: “O Poder do jornalismo – de fazer ver, fazer crer e fazer saber – está, pois, em produzir discursos legitimados institucionalmente, via poder de negociação [...]”.187 Os maiores destaques, entretanto, estavam nos editoriais de abordagem e conteúdo político. Criticando, apoiando, sugerindo e comentando eleição. Era como se a política estivesse em toda parte e que tudo girasse em torno dela, gerando uma espécie de “cultura” local a seu respeito.188 Algumas colunas falavam dos contrastes políticos locais, outras elogiavam o que consideravam a capacidade campomaiorense de harmonizar os contrários. Para René Rémond, “A contestação torna então a política responsável por tudo o que deixa a desejar numa sociedade, e a utopia leva a crer que é também a política que detém a solução de todos os problemas, inclusive os das vidas pessoais”.189 Nesse ponto, analisando o posicionamento do semanário em relação à situação política de Campo Maior – ora de um lado, ora do outro, mas na maioria associado à 185 MENDES, Anchieta, “Ao folhear A LUTA”, edição de 21/01/1968. FILHO, José Miranda, entrevista do dia 04/08/2012. 187 LOPES, Paulo Fernando de Carvalho, O Jornalismo na Teoria dos Discursos Sociais, IN: SAID, Gustavo (Org.), Comunicação – Novo Objeto, Novas teorias?, Teresina, EDUFPI, 2008. p. 135. 188 Para o autor Serge Berstein, a cultura política embora pertença à esfera do político, faz parte e integra a cultura global de uma sociedade. Ver BERSTEIN, Serge, Culturas políticas e historiografia, IN: AZEVEDO, Cecília / ROLLEMBER, Denise (orgs.), Cultura Política, Memória e Historiografia, FGV, 2009. p. 32. 189 RÉMOND, René, Uma História Presente, IN: RÉMOND, René, Por uma História Política, Rio de Janeiro, FGV, 2003. p. 25. 186 57 situação local – circunstancialmente alguns colaboradores reagiam às críticas ao semanário, é o que se nota na coluna “Porque me odeiam e me combatem” da edição de 01/12/1968, onde Raimundo Antunes Ribeiro manifestava claramente que estava incomodando – embora não citasse nomes – uma parte da sociedade local: “Não é do meu feitio por em evidência o que faço em favor de quem quer que seja. Forçado, porém, por circunstâncias diversas, terei de lembrar a certas pessoas as minhas atividades em prol do desenvolvimento desta terra dadivosa”.190 Também na coluna “Para trás, intrigantes”, do dia 19/01/1969, o fundador do jornal mostrava-se incomodado com reações locais ao seu jornal: “Em Campo Maior, felizmente, o seu solo não é fértil para a cultura da planta daninha – O MAL. Não deixa de nascer é certo, entre as árvores do BEM, ervas maléficas, que, de quando em quando, entorpecem os espíritos”.191 Mas não é somente Raimundo Antunes que reagia a possíveis críticas ao periódico. Na edição do dia 19/12/1970, o colaborador Carlivan Miranda através da coluna “Uma resposta aos pseudo-inimigos de A LUTA” faz um apanhado da importância daquele semanário para a cidade de Campo Maior/PI e sua população: “Aproveitamos a oportunidade para tecermos algumas considerações sobre um movimento degradante que vem surgindo no meio de nossa população no sentido de extinguir-se o nosso veículo publicitário. Tal ideia só pode sair de pessoas regressivas [...]”.192 Isso configura e esboça na direção de que as informações do periódico circulavam e adquiriam conotações que apontavam para a parte urbana da cidade e redondezas e que eventualmente eram encaminhadas para outros locais. O importante é sabermos que no seio das colunas e editoriais do semanário se encontravam e se confraternizavam colaboradores diversos – inclusive políticos e militares 193 – trocando ideias e experiências, e que ao cotejá-las, nos possibilitou aproximações das quais se poderá extrair algumas correlações entre os comportamentos políticos locais e outros tipos de pertencimentos sociais. Revelaram-nos impressões de uma Campo Maior que na década de 1970 vivia “uma pacatez de aldeia”.194 190 RIBEIRO, Raimundo Antunes, coluna “Porque me odeiam e me combatem” edição de 01/12/1968. RIBEIRO, Raimundo Antunes, coluna “Para trás, intrigantes”, do dia 19/01/1969. 192 MIRANDA, Carlivan, coluna “Uma resposta aos pseudo-inimigos de A LUTA”, edição do dia 19/12/1970. 193 O periódico tinha uma coluna assinada pelo Capitão da Polícia Militar do Piauí, Geraldo Souza Câncio. De acordo com colaborador Severo Sampaio, o capitão fazia as prisões e outras atividades policiais da cidade de Campo Maior/PI e ele mesmo assinava uma coluna do jornal, onde externava suas atividades semanais. Para Sampaio, foi um período quando a cidade teve mais segurança, menos assaltos e roubos. Ver SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012. 194 Como demonstrado no primeiro capítulo, alto índice de analfabetismo, precária estrutura de comunicação com o resto do mundo, maior parte da população morando em povoados e regiões rurais. 191 58 É preciso realçar que o que se fazia em Campo Maior/PI naquela condição de acanhamento e de provincianismo se apresentava em contraste com o que estava acontecendo nos grandes centros urbanos do país. Os colaboradores e editores do jornal pretendiam sobretudo, interferir naquele contexto social, através de ações informativas, políticas e culturais, e se apropriar das poesias para tratar e retratar as sutilezas, sensibilidades e refinamentos da cidade, e às vezes, de seus lugares de memória. É o caso da edição de 02/08/1970: “[...] Parto chorando, deixo uma lacuna que não poderei esquecer. Prometo meu Campo Maior breve voltar para te rever. Espero encontrá-lo sorrindo, o sorriso que a natureza te deu. Teus lindos campos e carnaubais são motivos de orgulho meu [...]”,195 e da edição de 19/04/1970: “Amo a vida que é bela. Amo o céu e as estrelas, Amo a noite e o luar. Amo a toda a natureza, este conjunto de beleza, que Deus nos deu para amar. Amo minha Mãe querida, que é toda a minha vida a que devo gratidão [...]”.196 Naquele “teatro do poder”, os discursos da classe dominante local pareciam procurar moldar – através das colunas e editoriais do jornal – seguindo parâmetros civilizatórios e de progresso, possíveis instrumentos de divulgação e moralização de costumes, numa cidade onde conviviam diferentes culturas e hábitos, lazeres e linguagens elitistas e populares. Um espaço regional, construído para permanecer no tempo. Elaborado e compreendido a partir do agenciamento de paisagens, monumentos, relações sociais e políticas, imagens e símbolos que pontilhavam aquele território estriado pelo poder de algumas famílias conservadoras da região: “As produções do imaginário tomam forma, materializam-se nas instituições e nas práticas; mas, ao mesmo tempo, elas são tratadas em proveito da ordem social e do poder que a guarda. O arranjo das situações públicas inscreve-as em um espetáculo onde o ritual mais rigoroso pode coexistir com a improvisação mais desenfreada”.197 Embora objetivasse e focasse os assuntos produzidos e construídos localmente, o periódico também servia como fonte informativa para os campomaiorenses que moravam e estudavam em outras paragens,198 inclusive internacionais: “Eu tinha um primo que morava na França há cinquenta anos e trabalhou aqui na gráfica e quando ele 195 Poesia “Despedida”, edição de 02/08/1970. Poesia “Eu Amo”, edição de 19/04/1970. 197 BALANDIER, Georges, O Poder em Cena, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. p.27. 198 Na edição de 28/09/1969, página 4, na coluna “Carta Aberta ao Oliveira Filho”, o estudante de medicina da Bahia, César Ribeiro Mello, de família tradicional de Campo Maior, relata a alegria de ler o jornal A LUTA, relembrando fatos de sua terra natal. Ver MELLO, César Ribeiro, Jornal A LUTA, edição de 28/09/1969, p.4, coluna “Carta Aberta ao Oliveira Filho”. 196 59 foi embora pra lá, sempre nós mandava. Demorava a chegar. Ele confirmava quando chegava”. 199 No entanto, a oralidade era a forma principal como as experiências e informações circulavam em Campo Maior, entre a cultura da oligarquia dominante e a cultura da classe popular.200 Acreditamos que o periódico A LUTA apresentava-se como um dos elementos que fazia a comunicação201 entre esses dois universos culturais da cidade: “Quando o jornal A LUTA chegava no interior, era em um número muito pequeno, evidentemente, alguém lia para os camponeses que estavam com o Jornal A LUTA e interpretava. Isso o Totó também fazia esse papel, dizia, mostrava. Quando ele ia ao interior, lia, quer dizer, um artigo que ele escrevia, tinha o trabalho de interpretar aquilo ali, afim de que o homem do campo pudesse entender” 202 Cultura, política, religião católica e o mundo da natureza agregavam-se de forma simbioticamente perfeita em Campo Maior/PI, sendo impossível refleti-las separadamente. Os lugares, os amores, a família, as fazendas de gado e memórias do passado estavam incrustados na vida da cidade do seu povo.203 Os conteúdos das colunas e dos editoriais do jornal – sabendo-se que mudar hábitos leva tempo – incorporaram novos hábitos de leitura, de aprender, de relacionar e até mesmo de comercializar. Os leitores do semanário vão alterando e influenciando seu cotidiano, saindo do tradicional local, amoldando-se paulatinamente às outras realidades, induzidos pela programação e divulgação oferecida pelas colunas e editoriais. Aconteciam os fluxos e cruzamentos oportunos entre os leitores, os colaboradores e o resto da comunidade campomaiorense. As notícias e informações, em suas trajetórias, percorriam primeiramente o centro urbano, seguindo a periferia e muito raramente chegavam aos povoados e áreas rurais. As informações urbanas circulavam por uma pequena parcela da população letrada da cidade e dali eram espalhadas e difundidas pela oralidade, pois “As pessoas se tornavam porta-vozes das notícias. As informações 199 SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012. Ao empregar este termo, pensa-se no conceito de “circularidade cultural” utilizado por THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987a. 201 Citamos aqui o termo “comunicação” no sentido que o autor Marshall Macluhan empregou: conexão com estradas e pontes, rios e canais, rotas marítimas, antes mesmo do uso da eletricidade para fazer “movimento da informação”. Ver MACLUHAN, Marshall, Os meios de comunicação como extensão do homem, São Paulo, Ed. Cultrix LTDA, 1971, p. 108. 202 LIMA, Ernani Napoleão, entrevista do dia 10/02/2012. 203 De acordo com o censo de 1970, o Município de Campo Maior tinha 61.549 habitantes e destes, 43.149 (mais de 70%) moravam nos povoados ou áreas rurais. Censo demográfico/PI – 1970, volume I, tomo VI. 200 60 urbanas, veiculadas pelos impressos, interrompidas pelo analfabetismo e baixo nível econômico da região, eram difundidas mais largamente pela oralidade”.204 Naquele processo de ir e voltar, de “circular” na sociedade de Campo Maior as noticias terminavam por se tornar práticas sociais influenciadoras daquela realidade e daquele cotidiano. Práticas que levavam a várias representações simbólicas para os grupos sociais locais daquele período, já que “As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam”.205 A inexistência de cânones metodológicos na sua feitura e na elaboração dos textos alargava as possibilidades de colunas e editorias com múltiplas temáticas. Eram pluralidades de temas206 tentando fazer reconhecer a cidade de Campo Maior/PI como um lugar de sonho e dos registros das imaginações, mas igualmente como local de síntese de problemas e de busca continuada de soluções: “Representantes de diversas entidades campomaiorenses há quase um mês foram ao Governador João Clímaco d’Almeida, com o objetivo de se fazer a regulamentação do abastecimento de energia elétrica. Acontece que até agora parece que nenhum passo nesse sentido foi dado. E o abastecimento de energia prossegue falho, faltando aqui e ali, hoje e amanhã, chegando tarde e indo embora [...]”.207 Por ser um periódico de pequena tiragem – em torno de 150 a 200 exemplares por semana - e se restringir basicamente a parte urbana da cidade de Campo Maior, precisou de diversos malabarismos financeiros de seus componentes e colaboradores para se manter funcionando por quase 12 anos seguidos.208 Percebe-se o uso do jornal como espaço privilegiado de reprodução das hierarquias e produções simbólicas da elite local da cidade. Esta elite se sentia 204 GOMES, Elza Clementino Lopes, Rádio ZYD-7: Memória e Sociedade – Montes Claros (1944 – 1964), Dissertação (Mestrado em História), Universidade Severino Sombra de Vassouras, Rio de Janeiro, 2008, p. 29. 205 CHARTIER, Roger, A História cultural – entre práticas e representações, Lisboa (Portugal), Difel, 1990. p. 17. 206 Ernani Napoleão Lima e Severo Sampaio afirmam que o semanário não obedecia a uma metodologia e regras fixas. Os colaboradores variavam constantemente. Ver entrevistas de Ernani Napoleão Lima, dia 10/02/2012 e de Severo Visgueira Sampaio, do dia 21/02/2012. 207 Coluna “Comentando: olhando a cidade”, edição de 21/07/1970. 208 Nas entrevistas fica claro que os colaboradores e editores do jornal eram pessoas idealistas, que admirando a atitude do fundador, se juntaram a ele objetivando manter o jornal funcionando, embora fique evidente as dificuldades em fazê-lo, principalmente orçamentárias.Ver SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012, LIMA, Ernani Napoleão, entrevista do dia 10/02/2012 e FILHO, José Miranda, entrevista do dia 04/08/2012. Outro colaborador, Carlivan Miranda, na coluna “Uma resposta aos Pseudo-inimigos”, faz severas críticas – embora sem citar nomes – às pessoas que cogitam em fechar o jornal. Ver edição de 19/12/1970, página 5. 61 representada em ter o semanário divulgando os seus padrões sociais, culturais, religiosos e os próprios dirigentes e colaboradores do jornal se orgulhando de representar bem aquele nicho da sociedade campomaiorense, num processo paulatino de construção de memória e identidade local, embora o paternalismo e conservadorismo estivessem presentes em partes e de várias maneiras, no centro dos conflitos e nas figuras periféricas. A prova está na presença de figuras da sociedade local como “amigos do jornal”, inclusive com contribuições financeiras voluntárias e empréstimo de imóvel para instalação e funcionamento do periódico.209 Uma espécie de pacto intraelite que, em vários sentidos, sustentava a existência do jornal: “As elites são definidas pela detenção de um certo poder ou então como produto de uma seleção social ou intelectual, e o estudo das elites seria um meio para determinar quais os espaços e mecanismos do poder nos diferentes tipos de sociedade ou os princípios empregados para o acesso às posições dominantes”.210 Como mostra a tabela 3, os colaboradores do jornal mais destacados foram os proprietários de terras, os profissionais liberais, comerciantes e da igreja, que representavam os grupos sociais mandantes da cidade. Eles se acreditavam no direito de usar os editoriais e colunas do semanário para elogiar, criticar e tecer comentários sobre a sociedade, cultura, política, religião e até mesmo das festas populares locais. Por ser o principal meio por onde a sociedade local buscava se informar, era natural que o semanário A LUTA também tratasse e circulasse colunas e editoriais de âmbito estadual, nacional e internacional. Embora a predominância das informações se referissem a cidade de Campo Maior e circunvizinhanças, alguns editoriais e colunas tentavam chamar atenção da população campomaiorense para questões políticas, sociais e religiosas que ocorriam em outros lugares.211 Mas o vetor principal estava mesmo em acompanhar os passos da cidade e seu povo. Criando rotas e linhas que ligavam pontos no espaço e no tempo daquela comunidade. 209 Os colaboradores Ernani Napoleão e Severo Sampaio afirmam que o jornal nunca teve sede própria. Funcionou no princípio na própria casa do fundador, depois na casa do colaborador e diretor José Rodrigues de Miranda e por fim, na casa do estudante de Campo Maior. Ver as entrevistas de LIMA, Ernani Napoleão, entrevista do dia 10/02/2012 e SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012. 210 HEINZ, Flávio Madureira (org), Por outra história das elites. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p.8. 211 Como exemplo de informações externas, podemos citar: da coluna quando o pároco da cidade trata do Papa e do congresso Eucarístico: “O Papa e o Congresso”, edição sem data, do editorial que discute o Divórcio na Câmara Federal: “Divórcio tem maioria na Câmara”, edição sem data, do editorial que trata do Elogio do Presidente Francês Georges Pompidou: “Um elogio errado do Presidente”, edição sem data, do editorial que trabalha a questão do desenvolvimento do Piauí: “Piauí e seu desenvolvimento”, edição sem data, do editorial que fala da transamazônica: “INCRA seleciona camponeses para a Transamazônica”, edição sem data, e muitos outros assuntos do Estado do Piauí, do Brasil e do mundo. 62 Durante toda a sua existência, o jornal foi apoiado por um corpo de colaboradores, grupo diverso e múltiplo de homens e mulheres, com cada um objetivando registrar seu(s) ponto(s) de vista e sempre com intenções voltadas para a cidade dos carnaubais.212 Porém, os nomes de Raimundo Antunes Ribeiro(Totó Ribeiro), Ernani Napoleão Lima, José Rodrigues de Miranda, José de Miranda Filho, Octacílio Eulálio, Antônio Andrade Filho (Irmão Turuka), Marion Saraiva, Cleusy Miranda, Áurea Paz, Teresinha Nascimento, João Carlos Dias, Carlivan Miranda, Silvia Mello, Macário Oliveira, Zeferino Alves Neto (ZAN), Celso Barros Coelho e Monsenhor Mateus Rufino marcaram as edições semanais do periódico, fazendo opiniões, explicitando os postulados, montando memória, descrevendo os componentes e prolongamentos sociais, impregnando a sociedade e a cidade de padrões e representações ainda muito lembrados por aqueles que viveram naquele contexto, conviveram e acompanharam o jornal na sua luta constante de prestar um serviço de informação e produção de sentidos para a população da cidade de Campo Maior.213 Com conteúdos diferentes nas colunas e editoriais, eles montaram normas e regras de discurso para convencer os leitores. O que nos remete a Paulo Fernando Lopes: “O leitor fica convencido. E são muitos os motivos para que acredite que o conteúdo transmitido por “seu” meio de comunicação (jornal, telejornal, revista, rádio, site de internet e outros) é o que há de melhor e mais confiável sobre o mundo”.214 Conciliavam suas atividades profissionais com a colaboração no jornal. Tabela 3 – Colaboradores do Jornal A LUTA de Campo Maior/PI Nome do Colaborador Raimundo Antunes (Totó) Quantidade Profissão e função no jornal Ribeiro Fundador do jornal A LUTA, Contador, Professor de colunas 17 contabilidade, foi Vereador, Secretário Municipal e Fiscal de Tributo de Campo Maior, ligado a Liga Camponesa, ajudou a fundar a Associação Comercial, o clube Grêmio Recreativo e o Rotary Clube da cidade. Ligado à UDN (União Democrática Nacional), e a maçonaria. Estudioso de Ernani Napoleão Lima Carlos Prestes - chegou a ser preso em 1964. Na época era estudante e membro de família tradicional de 11 Campo Maior. Trabalhou no Jornal “O Dia” e na rádio 212 A Carnaúba (Copernicia prunifera) é uma árvore da família Arecacea e endêmica no semi-árido do nordeste brasileiro. Árvore típica do município de Campo Maior, existe ali em grande quantidade. A cera, principal produto obtido a partir da sua folha, sempre se destacou como um dos principais produtos na composição financeira do município. Campo Maior também é conhecida na região como “cidade dos carnaubais”. 213 Veremos à frente, que o próprio periódico divulgava e difundia a importância de seus colaboradores. 214 LOPES, Paulo Fernando de Carvalho, O Jornalismo na Teoria dos Discursos Sociais, IN: SAID, Gustavo (Org.), Comunicação – Novo Objeto, Novas teorias?, Teresina, EDUFPI, 2008. p. 131. 63 José Rodrigues de Miranda Pioneira em Teresina/PI. Hoje Professor e Advogado. Odontólogo, liberal, membro de família tradicional da 13 cidade. Chegava a tirar recursos financeiros próprios para manutenção do jornal. Cedeu alguns aposentos de sua José de Miranda Filho residência para alojar o semanário A LUTA. Estudante, era mantido pelo pai, José Rodrigues de 13 Miranda. Foi diretor do jornal por muito tempo. Hoje Octacílio Eulálio Funcionário público federal aposentado. Agropecuarista, poeta, ligado a Igreja Católica, teve forte 14 envolvimento em prol da construção de um monumento em Antônio Andrade Filho (Irmão homenagem aos que caíram na Batalha do Jenipapo. Comerciante do ramo farmacêutico, fundador do Centro Turuka) Espírita “Caridade e Fé” na cidade. Humanista e Marion Saraiva filantrópico. Foi um dos principais colaboradores do jornal. Poetisa, Pintora, Professora, idealizou juntamente com 32 05 Moisés Eulálio, o hino de Santo Antônio (padroeiro de Cleusy Miranda Campo Maior). Colaboradora e muito ligada da Igreja católica, era membro 18 da classe social alta da cidade. Foi colaboradora muito tempo do jornal, responsável pela coluna que tratava da Áurea Paz Teresinha Nascimento João Carlos Dias Carlivan Miranda Silvia Mello parte social da cidade. Estudante, membro de família tradicional da cidade. Professora, Pedagoga. Jornalista, correspondente em Teresina do jornal. Correspondente externo do jornal. Professora, escritora, ligada ao resgate da história de 06 07 19 54 12 Campo Maior. Hoje professora aposentada da Universidade Macário Oliveira Zeferino Alves Neto (ZAN) Federal do Piauí. Advogado e Professor universitário. Na época era bancário do Banco do Brasil, envolvido com 22 09 Celso Barros Coelho cultura teatral e espírito rebelde com vocação comunista. Advogado influente e dono de uma das maiores bancas de 03 Monsenhor Mateus Rufino advogados de Teresina/PI. Pároco da cidade desde 1941, demoliu a antiga igreja e 04 construiu o atual templo de Santo Antônio na cidade, com recursos 100% voluntários. Além dos citados colaboradores, muitos outros registraram presença no cotidiano do periódico, com suas percepções, reforçando um imaginário a respeito daquela realidade e suas representações, nas produções culturais e sociais, ajudando a desenhar Campo Maior/PI como espaço de memória, da natureza fértil, da religiosidade. São eles: Honório Saraiva Barbosa, Edgard F. da costa (ANCAR-PI), Lauro César Vieira, Raimundo Andrade de Alcântara, Francisco José de Sousa, Cunha Neto, Mário Araújo, Ivanise Santos, José de Ribamar Nunes, José Elmar de Melo Carvalho, Ronaldo Soares, 64 Maria de Nazaré Leite Lima, Wagner Brasil, Capitão Câncio (da Policia Militar), João de Deus Torres, Altevir Alencar, Anchieta Mendes, Joaquim Neris, Maria de Jesus Araújo, Moisés Eulálio, Oliveira Filho. A grande quantidade de colaboradores revela e demonstra como o jornal não mantinha um corpo fixo de pessoas para a construção de suas colunas, tornando-se um lugar povoado por personagens com perfis e paradigmas diferentes, porém, todos tendo como ponto de partida a dizibilidade e visibilidade de uma comunidade futura para a cidade e de uma espacialidade que estaria no amanhã. O próprio semanário através do editorial“Quem já escreveu neste jornal?”, lista uma grande quantidade e diversidade de pessoas que colaboraram, dando sentido a muitos discursos da saudade, da tradição, deixando-se arrastar ao sabor dos imperativos locais. Nesse editorial, o colaborador afirma que mais de setecentos colaborações já haviam sido publicadas: “Veja nossa estatística: mais de setecentos publicações publicadas. Temos leitores em dose estados do país”.215 E cita o nome de cento e quarenta e dois colaboradores – inclusive alguns já falecidos - capazes de sintetizar e afirmar a construção de uma memória que traz à tona um espaço perpassado por misturas de opiniões onde harmonizavam as notícias agrícolas, as poesias, as colunas políticas, sociais, econômicas e religiosas, cujos conteúdos variavam entre o sagrado e o profano, a alegria e a miséria, o trabalho e o ócio. Enfatizando os aspectos locais da cidade, tentavam dar visibilidade que enfatizasse tanto o pitoresco como a realidade que os atravessava. Eram imagens típicas da região, onde o passado pesava sobre o presente. É o caso da coluna “Rio Surubim”, de 26/05/1968: “Os antigos sabiam muitas estórias acerca do nome do nosso rio. Uma delas, e a que eu mais vezes ouvi contar no meu tempo de menina, dizia que por ocasião de uma chuva torrencial um surubim muito grande caíra das nuvens dentro do rio. [...]”.216 Há que se registrar, que Raimundo Antunes Ribeiro, idealizador e fundador do semanário A LUTA não era campomaiorense. Originário da cidade de Floriano/PI chegou em Campo Maior e fixou raízes. Idealista, se integrou facilmente nas camadas sociais tradicionais da cidade, envolvendo-se e participando na fundação de clubes, escolas, lojas maçônicas, clube esportivo e na política local. Se propunha a captar o que seria a civilização da cidade através de intensa ação social que se materializou na promoção de eventos culturais de natureza variada e culminou com criação do 215 216 Editorial “Quem já escreveu neste jornal?”, edição sem data. SARAIVA, Marion, coluna “Rio Surubim”, edição de 26/05/1968. 65 semanário em 1967: “A todos esses marcos de progresso desta terra, Raimundo Antunes Ribeiro, o Totó, emprestou o fulgor de sua inteligência, a sua incomensurável capacidade de trabalho e o seu entusiasmo”.217 Além de atuar nos movimentos sociais da cidade, participou e apoiou os trabalhadores rurais da região na criação de sindicato de base representativa: “Totó Ribeiro chegou em Campo Maior vindo de Floriano. Ele nasceu em Floriano, sul do Estado, chegou em Campo Maior, se radicou, era na época guarda-livros, que hoje é o contador. E chegou, entrou na política, foi vereador, vice-prefeito de Campo Maior e se integrou nas chamadas na época, ligas camponesas [...]”. “[...] ajudou a fundar clubes sociais, como o Grêmio de Campo Maior, um clube da sociedade de Campo Maior. Entrou também na parte de esportes, foi um dos fundadores do Caiçara Esporte Clube, da primeira divisão do futebol do Piauí. Foi um dos fundadores e incentivadores da maçonaria campomaiorense através da loja Costa Araújo número 3, que foi fundada em 1948 em Campo Maior e também em movimentos classistas dos mais variados”. 218 Essas mudanças que se processaram com a movimentação desse segmento de trabalhadores da região tornaram-se explícitas, foram de encontro aos interesses arraigados dos fazendeiros e proprietários de terras locais. 219 Noutras palavras, as ideias desses trabalhadores de Campo Maior/PI puxando para dentro de seu campo de gravitação a criação de sindicato e busca de direitos, dão origem a um território com problemas, conflitos e meandros próprios, alcançando foco e iluminação quando da imposição do regime implantado no Brasil em 1964. Os “ajustamentos” sociais a que assistiu aquela comunidade campomaiorense “solucionava” inconsistências anteriores da localidade, mas produzia também outras novas e importantes, com a diferença para estas últimas, de serem construções simbólicas e criadoras de um imaginário conscientizador para o contexto que se impunha, 220 reduzindo as legalidades às dimensões das imaginações. Portanto, obedecendo a uma doutrina autoritária, ajustaram-se à ordem estabelecida, não podendo discordar no fundamental: às liberdades das ideias, às 217 Coluna “Mensagem de aniversário” edição de 17/11/1968. LIMA, Ernani Napoleão, entrevista 10/02/2012. 219 Com a eclosão do golpe civil-militar de 1964, os líderes desses movimentos dos trabalhadores rurais da região foram presos e acusados de envolvimentos comunistas, inclusive Raimundo Antunes Ribeiro. Ver citações no primeiro capítulo de Luís Edwiges, entrevistado no dia 09/02/2012. 220 De acordo com o senhor Luís Edwiges, entrevistado no dia 09/02/2012, as reclusões somente aconteceram em 1964, quando o governo fez diversas prisões em Campo Maior, tendo como referência o envolvimento dos aprisionados com atitudes “suspeitas” na região. Ver EDWIGES, Luis, entrevista do dia 09/02/2012. 218 66 constantes mudanças das regras políticas, jurídicas e eleitorais e a muitos outros controles impostos pelo regime civil-militar brasileiro.221 Em 1967, com a colaboração de diversas pessoas, Antunes cria e monta o periódico A LUTA na cidade de Campo Maior/PI. Mas não fica na direção do semanário até o fim. A responsabilidade por esta parte passa para outro grupo social da cidade,222 sinal de que as práticas e representações tabuladas pelos colaboradores nas colunas e editoriais indicavam para a continuação de interesses e de lugar social possibilitador de poder naquele marco temporal, mesmo que tangencialmente abordassem temas outros. Constituição de artérias e redes de relações sociais nos espaços das colunas e editoriais são transmutados para outros espaços ao serem relatados nas entrevistas dos colaboradores e bibliografias várias,223 dando-nos a pensar sobre o lugar daquele periódico na construção das tramas de sociabilidades, importantes para a população de Campo Maior daquele período. Diversos sujeitos se cruzavam naquelas memórias do semanário, fazendo-nos reconhecer a pluralidade de práticas, ações e reconstruções importantes para a compreensão e desvelamento da dinâmica daquele contexto campomaiorense. O jornal A LUTA com suas colunas e editoriais é um acervo importante e interessante como material hemerográfico de pesquisa para a história local de Campo Maior/PI. São fontes que dizem sobre as imagens e representações construídas pelos colaboradores, oferecendo valiosas informações sobre os embates políticos entre grupos rivais locais daquele tempo, bem como sobre a situação social e econômica da cidade. Nas colunas e editoriais existiam destaques para as notícias da região de Campo Maior/PI, mas também era possível observar análises interessantes sobre a conjuntura do Estado do Piauí e do Brasil dos anos de 1970. As leituras das reportagens ali construídas abrem chaves de pesquisas, hipóteses de investigação, como, por exemplo, a despreocupação e silenciamentos da camada social mandante da cidade que se movia num universo social e político bastante fraturado e como a região atravessou impávida, todo aquele período: “[...] porque a grande maioria estava condenada ao silêncio 221 Para melhor compreender aquele período temporal e suas consequências para os dias atuais, ver TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir (orgs.), O que resta da ditadura: a exceção brasileira, São Paulo, Boitempo, 2010. Pp. 9-12. 222 Segundo José Miranda Filho, em 1970 o jornal passa para o controle do Clube Lítero-Cultural Campomaiorense (CLCC), comandado por um grupo de jovens da cidade. Para ele, houve uma terceira fase, quando o jornal foi direcionado por José Rodrigues de Miranda e José Miranda Filho. Ver FILHO, José Miranda, entrevista do dia 04/08/2012. 223 Vale lembrar que o jornal A LUTA foi referência na escritura de várias obras, como exemplo, LIMA, Reginaldo Gonçalves de, Geração Campo Maior – Anotações para uma enciclopédia -, Teresina, Gráfica e Editora Júnior Ltda, 1995, pp. 292-309. LIMA, Francisco de Assis de, Campo Maior em recortes, Campo Maior(PI), 2008, pp. 27-43. 67 forçado, ou conformado”.224 Além dos naturais debates locais as colunas e editoriais apontam trazer para a frente doutrinas em que as famílias conservadoras davam o paradigma à sociedade campomaiorense, entrelaçando com naturalidade tradições católicas e patriarcais com novidades liberais, modernas e cosmopolitas. Ali, os relatos dos colaboradores descreviam maneiras como a cidade se construía e buscava perpetuar-se no tempo através de seus primórdios, história e memória. O imaginário da cidade discorre de forma magistral acerca desses imperativos: “Como és linda e repleta De belezas naturais. És tão bela e conhecida Como terra dos carnaubais. E tens progresso constante Encantos artificiais. Tens um ponto pitoresco E todos preferem A beira do açude Um dos mais belos locais”. 225 O sítio original, as primeiras construções, o modo de vida dos primeiros habitantes, as circunstâncias e impasses dos processos de acomodação das principais fontes econômicas da cidade – a pecuária e o extrativismo – são compreendidas a partir de movimentos afirmativos de algumas poesias e seus elaboradores: “Terra fértil dos verdes carnaubais. Terra do gado gordo e das autênticas fazendas. Terra dos campos floridos, das paisagens estupendas. Terra do glorioso santo Antônio “o padroeiro”. Terra dos homens famigerados e mulheres santas. [...]”.226 2.2 – O Jornal A LUTA: Entre o consenso e o consentimento No primeiro capítulo fizemos uma contextualização do regime civil-militar brasileiro. Numa ambiência de censuras, perseguições e imposições, a imprensa passou por uma série de transformações aliadas de sua liberdade à conjuntura da época. No interior naquele quadro, muitos jornalistas brasileiros, envoltos num ambiente de reflexão sobre o fazer jornalístico no país, sentiram a necessidade de buscar novas referências no processo de construção de suas matérias, muitos esquivando-se do regime para gerar uma linguagem conectada aos problemas sociais que perpassavam o Brasil. De modo geral, podemos afirmar que a imprensa produzida nos anos 1960/1970 – período da existência do semanário A LUTA – estava fortemente marcada pela censura ou pelas ações do regime, envolta num clima de tensões e sufocamentos. Particularidade brasileira ou característica propagada das relações a favor ou contra, a ambivalência ocupava lugar preponderante nas atitudes de parte da imprensa 224 FILHO, Daniel Aarão Reis, Vozes silenciadas em tempo de ditadura: Brasil, anos de 1960, IN: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Imprensa Oficial do Estado / Fapesp, 2002, p. 441 225 LEAL, Nasaré, poesia “Terra dos Carnaubais”, edição de 21/07/1970. 226 LOPES, Evaldo, Poesia “Minha Campo Maior”, edição sem data. 68 durante o regime. As alternativas simples entre resistência e colaboração fornecem apenas imagens redutoras para os contemporâneos. Sabe-se que a maioria das empresas midiáticas foram capazes de aplaudir inicialmente o governo dos generais, enquanto rejeitavam as proposições “esquerdistas” do governo anterior, dando lugar a diversas interpretações, muitas delas entrecortadas por apreciações de ordem moral. Falou-se das atitudes de apoio da grande imprensa, mas também do senso de mudança e de sua virtuosidade para se colocar a favor do vento e ainda, de sua inclinação à indecisão, o que nos leva ao pensamento de Pierre Laborie: “No espírito de muitos, ambivalência e ambiguidade não se diferenciam e não eram mais do que sutilezas nebulosas”. 227 Levar em conta a ambivalência da grande imprensa brasileira e de muitos dos seus componentes – os jornalistas – ajuda a compreender que essas atitudes não fornecem razões suficientes para dar respostas a tudo: a imprensa – em sua maioria – não foi primeiramente governista e depois resistente, mas pôde ser, simultaneamente, durante algum tempo e de acordo com os casos, um pouco dos dois ao mesmo tempo. A mesma coisa com os jornalistas, alguns se comportaram apoiando, outros contra, e, muitos os dois concomitantemente.228 É nessa direção que se poderia – talvez – encontrar elementos para explicações das presenças de modos de pensamentos ambivalentes nas opiniões comuns a respeito da imprensa daquele contexto. Os vestígios do “duplo” estão presentes em muitos lugares e familiares àquela paisagem, direcionando para o “homem duplo” de Pierre Laborie: “[...] daquele que é um e outro ao mesmo tempo, mais pelo peso de uma necessidade exterior do que por cálculo cínico ou interesse”. 229 A despeito das dúvidas e incômodos do “comportamento duplo” de algumas empresas midiáticas e de alguns jornalistas,230 aparece como uma maneira de conhecer melhor aquela realidade em circunstâncias de coerções, resistências, apoios, censuras e manipulações. Para Laborie, “Não se trata, no entanto, de ser ingênuo, e está claro que as zonas cinzentas da 227 LABORIE, Pierre, 1940-1944. Os franceses do pensar-duplo, IN: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha Viz, A construção social dos regimes autoritários (orgs), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010. p. 38. 228 Vimos no primeiro capítulo, que muitos jornalistas que viveram e participaram daquele período da história brasileira, se comportam “silenciosamente” a respeito do apoio dado ao regime civil-militar. 229 LABORIE, Pierre, 1940-1944. Os franceses do pensar-duplo, IN: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha Viz, A construção social dos regimes autoritários (orgs), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010. p. 39. 230 Para melhor compreender os posicionamentos da imprensa e dos jornalistas brasileiros, ver KUSHNIR, Beatriz, Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo, Boitempo,2004. 69 ambivalência comportam riscos de deslizes em direção a comportamentos e covardias”.231 Esta abordagem pode levar à compreensão da própria sociedade brasileira sob o regime civil-militar brasileiro. As omissões, os apoios, os compromissos, as rejeições em relação ao regime, ora assumindo um ora outro e, na maior parte, assumindo os dois ao mesmo tempo. E ainda, pode explicar a permanência dos militares - e civis identificados com o regime - por mais de vinte anos, após um golpe que praticamente não enfrentou resistências. Denise Rollemberg comenta a respeito daquele feito: “[...] um processo marcado por muitas continuidades. Um movimento que implica o desmoronamento de mitos e verdades, de muitos de nossos mitos e verdades. É este universo dos homens que precisa ser buscado”.232 Agora, olhando para outro panorama espacial, queremos lançar luz sobre os posicionamentos políticos dos colaboradores do jornal campomaiorense no fluir de suas ações cotidianas, demonstrando que de acordo com algumas colunas, havia claramente apoio desses representantes ao regime que imperava no Brasil. Não encontramos nenhuma coluna ou editorial que demonstrasse ou retratasse posicionamento crítico ou incitasse uma leitura em sentido contrário à situação nacional e sim construções imagético-discursivas submetidas a condições históricas dadas e que partiam de uma premissa de fundo: lançar mão das mais diferenciadas informações, matérias e formas de expressão para se referir àquele período como “governo da revolução”. É o caso da Coluna “Cinco anos de revolução”, edição de 30/03/1969: “O país inteiro comemora amanhã o quinto aniversário da Revolução de 1964, graças a qual o Brasil iniciou uma das mais importantes eras de sua história”.233 Não se pode afirmar que esses textos alcançaram um nível de consenso e se foram agenciados pelos mais diferentes grupos sociais locais. Sacralizando a região, seus ancestrais, a ordem, a família ou a “revolução”, alguns discursos feitos no semanário cristalizaram-se em interpretações e significações de um regime de governo repleto de positividades: “O Presidente Geisel disse que a “Revolução tem um caminho político a perseguir, dentro das suas possibilidades, dentro da agressão que continuamente se renova, dos comunistas, nós 231 LABORIE, Pierre, 1940-1944. Os franceses do pensar-duplo, IN: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha Viz, A construção social dos regimes autoritários (orgs), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010. p. 40. 232 ROLLEMBERG, Denise, História, memória e verdade: em busca do universo dos homens, IN: SANTOS, Cecília MacDowell, Teles, Edson, Teles, Janaína de Almeida (orgs), Desaquivando a Ditadura: memória e Justiça no Brasil, São Paulo, Aderaldo & Rothschild Editores, 2009. p. 576. 233 Coluna “Cinco anos de revolução”, edição de 30/03/1969. 70 procuramos construir um país politicamente são”. 234 Não vimos nessas construções dos colaboradores o discurso do outro, do discriminado e menosprezado, mas dos dispositivos de forças que sustentaram e deixaram emergir uma realidade com vozes e olhares de um governo que supunham agir corretamente ao ser instalado no país desde 1964: “Saudamos nesta data, o aniversário da revolução, saudamos o Direito, a Ordem, a Liberdade e o Progresso Nacional”.235 Nesse sentido, a quase exclusividade das colunas e editoriais do periódico para a produção de temas focados para uma espécie de “guardião dos assuntos locais” do povo campomaiorense, acabou fazendo com que se deixasse no esquecimento as problemáticas sobre a temática da censura, importantes para a reflexão sobre as disputas de memórias que envolviam aquele período. Ali, grupos unidos, provincianos, aferrados aos interesses particulares e locais, se veem progressivamente obrigados a se juntarem em defesa de seu espaço. Apropriaram-se dos recursos aos mitos do passado como agentes influenciadores daquela realidade, que recuperou e fortaleceu as cerimônias simbólicas de caráter patriótico e a ideia da fusão mística entre a cidade e nação. Acrescentando igualmente a esses elementos, a dimensão ocupada pela religião católica no agenciamento do culto ao herói. Assim, o jornal desempenhou papel determinante no agenciamento da própria imagem ao propor diversas representações relativas ao percurso do regime: “Ontem comemoraram-se em todos os rincões da Pátria mais um aniversário da Revolução de 31 de março. Os seus 15 anos. As Forças Armadas, por seus comandos, organizaram um bem elaborado programa para festejarem o evento [...]”.236 Nota-se que o objetivo era obter consenso para consolidar e estender o apoio de alguns colaboradores, recorrendo à propaganda do governo dos generais-presidentes. Um exame atento das diretivas que emanam dos escritos – no que diz respeitos às colunas e editoriais – percebe-se que o esforço concentrava-se na imagem do regime, pretendendo reforçar a popularidade deste junto às classes sociais locais. Os discursos eram objetos de um trabalho de propaganda, tentando capitalizar para o governo militar, os sucessos econômicos e políticos da doutrina nacional. O semanário foi assim, agente do consenso, mas também a figura que permitiu aos campomaiorenses dar o seu consentimento à promoção do regime: “A Prefeitura Municipal fez realizar ontem de 234 235 236 Coluna “Geisel : politica sem vícios no Brasil”, edição de 13/05/1976. Titulo do editorial do dia 30/03/1972. Editorial “Em 64 uma revolução salva o Brasil do Comunismo”, edição de 01/04/1979. 71 manhã, na Pça. Bona Primo, uma solenidade comemorativa do oitavo aniversário da Revolução de 31 de março de 64 [...]”.237 Como vimos no primeiro capitulo, a política do governo brasileiro tendia a conformar a nação às exigências do Estado centralizado, assumindo aspectos repressivos. Se o silêncio de muitos dos dissidentes pode ser interpretado como prova de aceitação em razão da eficácia e controle do aparato policial, a pouca existência de distúrbios da ordem pública durante boa parte daquele regime de governo pode ter facilitado de certa maneira a coesão da nação no sentido buscado e desejado por aquele regime. É essa imagem que o semanário campomaiorense deixa transparecer na tecitura de muitos de seus textos: “E a outra data que hoje Vamos também festejar é o 31 de março que tudo fez “clarear”. Data da Revolução que sacudiu a nação para um feliz despertar. O Brasil independente, estava sendo enganado. Muitos dos filhos marcharam por caminho muito errado [...]”.238 O recurso explícito à violência, os diversos métodos de controles239 e as ameaças sob a aparência de dissuasões favoreceram e contribuíram para “marginalizar” os opositores, mostrando a imagem de uma sociedade que estava pacificada a esse preço. Em outras palavras, os mecanismos utilizados pelos líderes autoritários eram apresentados como instrumentos necessários àqueles que se opunham à política do “desenvolvimento” capitalista. Dessa forma, o avanço dos meios de comunicação – com destaque para as grandes empresas midiáticas – e as mudanças comportamentais típicas daquele período, tornaram ainda mais necessários para os setores mais “conservadores” e “tradicionais” da sociedade, a manutenção e o fortalecimento de suas práticas, hábitos e padrões. Como defendemos que o jornal campomaiorense se prestava aos interesses dos grupos sociais influentes da cidade e de seus valores, fica evidente quando se ler o trecho do editorial “Oitavo aniversário da Revolução”: “São oito anos de mentalidade brasileira transformada. De outra personalidade. E de alcançada maturidade. A metamorfose nacional é comentada com respeito em toda a terra. A nossa imagem tem caráter positivo e merece polegares para cima [...]”.240 Percebe-se que a ideologia delineada, padronizada e uniformizada pelo governo nacional foi encampada pelos editores e colaboradores do semanário: “Oito anos de Brasil novo são passados. Quando a 31 de março de 1964, a Pátria foi salva do 237 Coluna “Homenagem à Revolução”, edição 30/03/1972. NETO, Cunha, Poesia “Os Heróis e a Revolução”, edição sem data. 239 Já vimos no primeiro capítulo, que o governo civil-militar se apegou a práticas de controles econômicos, políticos, censuras e que a todos olhava. 240 Editorial “Oitavo aniversário da Revolução”, edição sem data. 238 72 caos, abriram-se lhe as portas do desenvolvimento”. 241 O jornal também divulgava o apoio e consentimento do poder político estabelecido na cidade, demonstrando que na localidade muitos foram seduzidos e contribuíram, cada um na sua esfera, para a difusão dos “modelos” propagandeados pelo regime: “O Sr. Jaime da Paz comemorará o oitavo aniversário da Revolução brasileira de 31 de março de 64, inaugurando duas obras construídas com recursos da Prefeitura [...]”.242 A tão defendida “Revolução” dos colaboradores do semanário não começou com ataques à sociedade brasileira, mas avançou afinada com o que a grande maioria da população queria ou toleraria. Esforçou-se para combinar popularidade e força ao mesmo tempo e praticamente não houve resistências à tomada do poder pelos militares em 1964, pois “O fato é que ainda não acusamos suficientemente o golpe. Pelo menos não o acusamos na sua medida certa, a presença continuada de uma ruptura irreversível de época”.243 Diante de um governo nacional com capacidade de reduzir a legalidade à dimensão das aparências, os colaboradores do periódico campomaiorense pareciam não perceber o que estava acontecendo nos grandes centros urbanos do Brasil. Preferiram não ver a maneira insidiosa que o regime encontrou de permanecer nas estruturas jurídicas, nas práticas políticas, nas violências cotidianas, nos traumas sociais, que, mesmo depois de “reconciliadas e extorquidas” ainda nos fazem criar imaginário a respeito. É o caso da coluna “Firmeza no manter ordem e respeito”, onde o colaborador defende as posições do governo Garrastazu Médici: “O Presidente Garrastazu Médici afirma que a posição do governo brasileiro continua firme na manutenção da ordem e do respeito à dignidade da pessoa humana [...]”.244 e dos elogios ao falecido Artur da Costa e Silva: “Toda a nação chora pelo desaparecimento do eminente Marechal Artur da Costa e Silva. [...] Perde, assim, o Brasil, um grande filho que muito dignificou a pátria. A LUTA consternada, apresenta às Forças Armadas e ao povo brasileiro, sentidos pêsames”.245 Ao analisar os discursos das colunas e editoriais acima citados nos remetem a uma pergunta simples: diante daquele contexto campomaiorense atravessado por valores, imaginários e influências, existiam outras alternativas para os comportamentos dos colaboradores, a não ser apoiar o sistema de governo nacional? 241 Editorial “Oitavo aniversário da Revolução”, edição sem data. Coluna “Jaime comemora Revolução com inaugurações”, edição sem data. Jaime da Paz foi prefeito de Campo Maior de 01/02/1971 a 31/01/1973. 243 ARANTES, Paulo Eduardo, 1964, O ano que não terminou, IN: TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir (orgs.), O que resta da Ditadura, São Paulo, Boitempo, 2010. p. 206. 244 Coluna “Firmeza em Manter a ordem e respeito”, edição sem data. 245 Editorial “Faleceu um grande brasileiro” edição sem data. 242 73 Pode-se perceber que naqueles escritos o “colaborar” pode ter várias cores e tonalidades e pode ter sido exercido tanto de maneira individual como coletiva. Seria falso imaginar os exemplos de resistências e ousadias de alguns veículos importantes do país e que seus jornalistas pudessem representar o comportamento geral da imprensa. Pois para Victor Gentilli, “O regime de 1964, como tendência geral, foi benéfico aos setores dominantes da imprensa e, no final das contas, o AI-5 funcionou como um fator impulsionador e facilitador das mudanças estruturais da mídia [...]”.246 A respeito do nome do semanário como discurso legitimador de posições contrárias e/ou de indignações ao universo que o cercava, encontramos em diversos momentos colunas e/ou editoriais fazendo referência à sua linha editorial. É o caso da coluna “A linha de A LUTA” onde o colunista se refere ao semanário como idealista, imparcial, não corrupto e autentico: “A LUTA tem uma só linha de orientação. É a orientação da imparcialidade, nunca subjugada ou corrupta. Atuamos com o estandarte do idealismo autêntico, como autêntico tem sido a trajetória do jornal [...]”. 247Também na coluna “A LUTA no Berço”, quando o periódico completa quatro anos, Cunha Neto faz, na sua narrativa, a importância e positividade da existência do semanário para os leitores e os moradores da cidade: “A LUTA, em só, todos nós sabemos, é mesmo uma verdadeira luta, pois para circular, depende muito do esforço e do heroísmo de seus dirigentes e também de todos os habitantes desta terra [...]”.248 Terminam por atualizar imagens e enunciados presos às mesmas tramas imagéticas que o constituiu: um espaço para se elaborar narrativas e dar visibilidade e dizibilidade aos seus enunciados sobre Campo Maior e seu povo: “Linda, como um presépio ornado de vidrilhos, Perto da vasta várzea ela se ergue e se espalma. Terra de tradições, de heroísmos e de brilhos, onde o ar é puro, o sol é santo e a vida é calma”.249 Porém, no que diz respeito aos posicionamentos políticos locais, em vários de seus escritos, o semanário se posicionava a favor e em outros, criticava e era contra a ordem política estabelecida. A mola dos acontecimentos estava no grupo político que assumia o poder e não nos antagonismos ideológicos ou nas questões de direito. No editorial “A LUTA comemora oito anos de fundação”, o colaborador afirmava que a 246 GENTILLI, Victor, A imprensa brasileira mudou bastante depois do AI-5... mas não como decorrência dele, IN: FILHO, Osvaldo Munteal, FREIXO, Adriano de, FREITAS, Jacqueline Ventapane (orgs), “Tempo Negro, temperatura sufocante”: estado e sociedade no Brasil do AI-5, Rio de Janeiro, Ed. PUC-Rio, Contraponto, 2008. p. 293. 247 Coluna “A linha de A LUTA”, edição sem data. 248 NETO, CUNHA, Coluna “A LUTA no Berço”, Edição sem data. 249 Editorial “Campo Maior de ontem e de hoje”, edição de 24/07/1977. 74 linha de conduta e compromisso do jornal era defender os interesses da cidade: “Há oito anos precisamente, isto é, no dia 19 de novembro de 1967, circulava o primeiro número do jornal A LUTA, cujo único compromisso era o de propugnar pelos os interesses da terra dos carnaubais”.250 Já o editorial “Dácio Bona transforma Campo Maior”, vincula e justifica o melhoramento da cidade ao seu administrador principal: “O atual Prefeito – Dr. Dácio Bona explica que suas realizações tem como prioridade todos os trabalhos que visem a implantação de uma infra-estrutura básica capaz de melhora as condições de vida dos campomaiorenses, desejosos de um progresso maior”. 251 E no editorial “Prefeito ameaça funcionários”, críticas são dirigidas ao prefeito da cidade: “É bastante lamentável a estreiteza administrativa do Prefeito Mamede Lima. Pois o executivo municipal está ameaçando, preocupando, diminuindo, humilhando os funcionários da prefeitura. Isto dá origem a uma situação de conflito em Campo Maior”. 252 O simbolismo utilizado nesses textos do jornal se converte em chave para percebermos as problemáticas que ajudavam a fixar o olhar sobre as produções dos colaboradores, capazes de refletir o que se considerava ser o real daquele período. Do ponto de vista político era a fina solução, pois conciliava os interesses dos editores do semanário, das camadas sociais mandantes e ao mesmo tempo, uma inspiração moderna de produção midiática. Pois “O realismo acentua o uso da imagem, de acordo com as cristalizações imagéticas prévias, com os lugares-comuns, com os estereótipos que o tomam como real, reconduzindo o desconhecido ao conhecido e o estranho ao comum”. 253 Eles tentavam mostrar o jornal como espaço de intelectualidade, frutos que os narradores davam aos fragmentos das espacialidades locais, formada por pessoas, paisagens e fatos atravessados de memórias: “Este jornal teve a recente honra de ser agraciado com presente régio. O fato constitui para nós, que fazemos o jornal, além do prazer pela boa leitura que nos proporcionou, o orgulho de termos podido contar com a consideração e a amizade de tão insigne figura do panorama literário não só do Piauí, como brasileiro, um sábio das letras, além de professor emérito”.254 Nas entrevistas os colaboradores falam que o semanário era de oposição ao poder municipal da cidade. Para o entrevistado Severo Sampaio, “Era uma oposição 250 Editorial “A LUTA comemora oito anos de fundação”, edição 19/11/1975. Editorial “Dácio Bona transforma Campo Maior”, edição sem data. 252 Editorial “Prefeito ameaça funcionários”, edição de 29/10/1978. 253 ALBUQUERQE JÚNIOR, Durval Muniz de, A invenção do Nordeste e outras artes, Recife: FJN, Editora Massangana, São Paulo, Cortez, 2006. p. 243. 254 Editorial “Arimatéa Tito Filho e a “A LUTA””, edição de 10/07/1977. 251 75 construtiva, crítica, que não levaria a ferir ninguém e nem denegrir a imagem de ninguém”. Antes de mais detalhes, nota-se que esta ideia de “oposição” é uma contradição em si mesma. Pois no corpo da própria entrevista, Severo afirma que um dos prefeitos era amigo do diretor do jornal e fazia contribuições ao jornal voluntariamente: “Após o Mamede Lima, veio o Dr. Dácio Bona, que também era muito ligado e companheiro dele Miranda, formado em odontologia e tinham formados os dois juntos, então ele Dácio, quando assumiu a prefeitura, designou, mesmo sem publicar editais, nada, uma quantia para ajudar o jornal”.255 O que deixa transparecer que ao sabor das circunstâncias e das conveniências se associavam os laços de amizades, o compadrio e os favores trocados. Não se trata de procurar encontrar aqui e ali incongruências entre os colaboradores e o poder político local, mas mostrar os dois lados no plano durável e generalizador das formas, discursos onde apoios e discórdias eram elementos comuns na existência do semanário. Em lugar da oposição absoluta entre o jornal e poder político da cidade, da instrumentalização geral e do correspondente radicalismo crítico, existiam a comunidade de interesses, crenças e costumes de ambos os lados. Favores, cooptações, sutilezas das conformidades locais, obediências estavam no miolo e nas margens das produções semanais do semanário campomaiorense. Território de subjetividades e de entrelaçamentos sociais, os discursos dos colaboradores procuravam legitimar suas propostas e práticas semanais, com destaque para temáticas recorrentes e informações relevantes sobre aquela época e espaço, enquanto possibilidade hoje, para uma chave de pesquisa e hipóteses de investigação da história de Campo Maior/PI. Discursos direcionados para compreender o fragmentário que foram aqueles escritos e formas de linguagens e as diferenças que os constituíram, pois “Nós, os historiadores, que lidamos com os vestígios de antigas civilizações, com camadas de memórias de antigas sociedades e pretéritos homens, devemos pensar que as palavras ou os vestígios que nos chegam do passado são como “conchas de clamores antigos””.256 Portanto, o nome “A LUTA” não significava confronto ou oposição a um determinado poder – local ou nacional – ou ponto de partida para reprodução do mesmo, mas como território que buscava cimentar experiências de diversos 255 SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012. ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de, História a Arte de Inventar o Passado. Ensaios de teoria da história, Bauru, SP: EDUSC, 2007. p. 91. 256 76 colaboradores num período atravessado por diferentes fluxos sociais e políticos. Os vários anos de sua existência, suas várias práticas, não se unificavam numa única representação, mas no movimento e deslocamento entre elas, das ressonâncias que as atravessavam. Como vimos nos diversos exemplos de colunas e editoriais, o semanário não era lugar somente de antagonismos, mas também de coesões, preenchido por acontecimentos da cidade de Campo Maior/PI e do cotidiano de sua população. Para José Miranda Filho, “O conceito mesmo de A LUTA, visando à denominação do jornal, era fundamentado no espírito batalhador do povo campomaiorense, com o qual participava afetiva e efetivamente o jornal A LUTA. Em suma, o nome do nosso veículo de comunicação tinha a ver com essa peleja coletiva, geral. Nada a ver com uma suposta contestação ao regime político da época, um enfrentamento, um desafio às autoridades impostas pelo regime militar”. 257 Capítulo III COLUNAS E EDITORIAIS: A CONSTRUÇÃO DE CENÁRIOS DISCURSIVOS 257 FILHO, José Miranda, entrevista do dia 04/08/2012. 77 “Ocorreu na última terça-feira, com o esperado brilhantismo, a inauguração ao Monumento aos mortos da Batalha do Jenipapo. Estiveram presente à solenidade as mais altas autoridades civis, militares e eclesiásticas de nosso Estado [...] Uso o espaço que me concedem em “A LUTA”, como sempre pensando naqueles que amando esta terra, estão fisicamente privados do doce convívio de sua natureza, para nós inigualável. Terra bonita, de sempre exaltada por seus oradores oficiais que nunca se cansam [...]”. 258 3.1 - O Jornal A LUTA e as festas populares como espaço de sociabilidade em Campo Maior/PI O objetivo deste capítulo é investigar os discursos como prática social através dos textos, das colunas e dos editoriais, entendendo-os como lugar de produção social de sentido, inseridos em contextos históricos determinados. Procuraremos analisar como aquelas práticas discursivas contribuíram na construção de práticas culturais, reforçaram laços políticos, articularam relações de poder e atribuíram sentido às práticas sociais da população campomaiorense naquele contexto, em especial, às famílias que se apresentavam e/ou representavam as figuras da elite daquele lugar. Os editoriais e as colunas mostravam e demonstravam um conjunto de enunciados que não se restringiam somente aos escritos, mas integravam também imagens de lugares e fotos diversas de pessoas daquela comunidade.259 Para Paulo Fernando Lopes, “Desse modo, podemos, agora, afirmar que as notícias são como são, devido às condições de produção, circulação e consumo do processo produtivo, cujas etapas estão intimamente inter-relacionadas, em movimento extremamente complexo, o qual favorece ou impede a produção de certos discursos”.260 Neste capítulo vamos demonstrar também, como o semanário A LUTA se apropriou de práticas discursivas para produzir e reproduzir um saber local sobre fatos, heróis, memórias e lugares, desviando um olhar e/ou fala para representações e 258 A primeira citação, “Do alto deste monumento 150 anos são contemplados”, Editorial do dia 11/11/1973. A segunda, FILHO, Antônio Andrade (Irmão Turuka), Coluna “Conterrâneos Ausentes”, edição de 15/09/1968. 259 Vale salientar, que embora a maioria das fotos ou retratos fossem de pessoas da região, o jornal também editava fotos de autoridades e pessoas de outros lugares e até mesmo de santos. Como exemplo, as edições dos dias 13/03/1969, 11/09/1969, 07/06/1970 e 08/04/1972. 260 LOPES, Paulo Fernando de Carvalho, O Jornalismo na Teoria dos Discursos Sociais, IN: SAID, Gustavo (Org.), Comunicação – Novo Objeto, Novas teorias?, Teresina, EDUFPI, 2008. p. 138. 78 invenções sobre a cidade de Campo Maior/PI e os munícipes, no período entre o final da década de 1960 e 1970. Para isso, faremos a história da emergência de um objeto de saber – o periódico A LUTA – e a cidade de Campo Maior/PI, mostrando como se formulou um arquivo de enunciados e imagens, um acúmulo de “verdades”, uma dizibilidade e visibilidade daquela cidade, direcionando atitudes e comportamentos em relação aos campomaiorenses daquele período, em uma engrenagem social complexa, saturada de interesses, forças e poderes.261 Como as práticas discursivas dos colaboradores – através das colunas e editoriais – fizeram estas questões emergirem e as constituíram como objetos para o pensamento. Ao invés de considerarmos a região apenas como inscrita na natureza, definida geograficamente ou regionalizada por alguma particularidade, buscaremos pensar Campo Maior/PI como uma identidade histórico-espacial, a partir de um determinado momento histórico – 1967 a 1979 - como resultado do entrecruzamento de práticas e discursos locais, afinal, “a identidade nacional ou regional é uma construção mental, são conceitos sintéticos e abstratos que procuram dar conta de uma generalização intelectual [...]”.262Ali, nas colunas e editoriais, os colaboradores se apegavam a fragmentos de memórias referentes a situações passadas, como prenunciadoras daquele presente em que viviam. A cidade renascia do encontro de poder e linguagem, da produção imagética e textual a partir da espacialização das relações de poder, construindo uma geografia e uma distribuição espacial dos sentidos. Campo Maior/PI era repensada pela repetição regular de determinados enunciados, tidos como definidores do caráter da região e de sua população, que falavam e diziam de sua verdade mais interior. Ela era gestada como espaço das saudades dos tempos de glória, saudades do açude grande, da praça Bona Primo e arredores, do sertão e do sertanejo puro e natural, força telúrica da região. Não tomamos os discursos que eram feitos através do semanário como documentos de uma verdade sobre a região, mas como monumentos de sua construção. Este capítulo, também, busca suspeitar daquelas continuidades, pondo em questão algumas identidades e fronteiras fixas, introduzindo a dúvida sobre aqueles objetos históricos consagrados, seguindo a proposta de Paul Veyne: “Em nenhum momento, as fronteiras e territórios regionais podem se situar num plano a-histórico, porque são criações eminentemente 261 Nunca é por demais lembrar aquele contexto histórico que perpassava a nação brasileira e também a presença de uma sociedade local eivada de aspectos conservadores e tradicionalistas, onde o poder político, econômico circulava entre algumas famílias da cidade de Campo Maior/PI. 262 ALBUQUERQE JÚNIOR, Durval Muniz de, A invenção do Nordeste e outras artes, Recife: FJN, Editora Massangana, São Paulo, Cortez, 2006. p. 27. 79 históricas e esta dimensão histórica é multiforme, dependendo de que perspectiva de espaço se coloca o foco, se visualizado como espaço econômico, político, jurídico ou cultural, ou seja, o espaço regional é produto de uma rede de relações entre agentes que se reproduzem e agem com dimensões espaciais diferentes”.263 As festas folclóricas de Campo Maior/PI – no contexto da existência do jornal A LUTA – representavam manifestações sociais de grande importância local. Acreditamos que o folclore é genuíno e específico de cada povo, distinguindo-o das outras coletividades e que é encontrado em literaturas e costumes tradicionais sob a forma de danças, jogos, superstições, crendices, poemas, lendas e contos: “Por outro lado, sendo uma releitura fantástica de uma realidade imaginada pelo povo, integram o Folclore e, como tal, preservam todas as características de que fala Câmara Cascudo: a antiguidade, a persistência, o anonimato e a oralidade”. 264 É bem verdade que o termo “folclore” se encontra entre os que comportam vários conceitos e se adaptam a múltiplos discursos, conforme se estendem em espaços geográficos/temporais específicos e que os pontos de convergências muitas vezes se reduzem à concordância das multiplicidades discursivas. Porém, “O folclore, apesar de não percebermos, acompanha a nossa existência e tem grande influência na nossa maneira de pensar, sentir e agir”. 265 Assim, defendemos que toda sociedade participa da criação e manutenção das festas folclóricas e que elas externam e resumem as esperanças e tradições de uma coletividade. E que apesar de ter base no passado, está em constante dinamicidade, acomodando-se às mentalidades e às reivindicações do presente, pois “fiel ao passado, mas alerta às solicitações da hora presente, o folclore preserva e sedimenta os principais distintivos de cada povo”. 266 As festas campomaiorenses, neste caso, constituíam importantes espaços de sociabilidade, com suas alegorias, representações e elaborações dos conflitos sociais locais, que possibilitava e materializava a vida comunitária da localidade. Para Ferlini, as festas representam “o momento de desarranjo/rearranjo que equilibra a sociedade e torna possível sua manutenção e reprodução”.267 Naquele lapso aberto no espaço e no tempo 263 VEYNE, Paul, O inventário das diferenças e ORLANDI, Luiz B., Do enunciado em Foucault à teoria da multiciplicidade em Deleuze IN: TRONCA, Ítalo A.(org.), Foucault Vivo, Campinas(SP), Pontes editora, 1987. pp. 11-42. 264 MENDES, Maria Cecília, As lendas do Piauí, IN: SANTANA, R. N. Monteiro de e SANTOS, Cineas, O Piauí e a Unidade Nacional, Teresina, FUNDAPI, 2003. p. 95. 265 MEGALE, Nilza Botelho, Folclore Brasileiro, Petrópolis-RJ, Editora Vozes, 2003. p. 12. 266 Idem, ibidem, p. 14. 267 FERLINI, Vera Lúcia Amaral, Folguedos, Feiras e Feriados: aspectos socioeconômicos das festas no mundo dos engenhos, IN: JANCSÓ, István e KANTOR, Íris (orgs.), Festa: Cultura & Sociabilidade na América portuguesa, São Paulo, FAPESP (Editora da Universidade de São Paulo), 2001, Volume II. p.449. 80 campomaiorense circulavam bens materiais, influência e poder. Estamos seguindo a proposta de Guarinello para quem “a festa não apaga as diferenças, mas antes une os diferentes [..]. Toda festa implica uma determinada estrutura de produção e de consumo e, portanto, uma estrutura de poder, passível de controle diferenciado [...]”. 268 As festas populares de um povo e região não são uma questão estética apenas, mas englobam em si processos produtivos e simbólicos que iluminam também os valores de uma comunidade em seu espaço temporal, podendo refletir ações de reforços ou de contestações aos valores ali dominantes. As festas religiosas de 31 de maio a 13 de junho são conhecidas como festejos de Santo Antônio - ansiosamente esperadas pela população local e dos que moravam fora – com suas barraquinhas e quermesses, vendedores ambulantes, fogos de artifícios e atividades em frente à igreja. Elas eram objetos de editoriais e colunas no jornal A LUTA, conclamando a população da cidade e de outras localidades para o engrandecimento do evento: “Uma das mais simpáticas e das mais tradicionais Festas religiosas do Piauí é a de Santo Antônio de Campo Maior, começa a trinta e um de maio já com a passeata e hasteamento da bandeira, e tem seu encerramento com a procissão do Santo ao dia 13 de junho. Tudo ali, este ano, como nos anos anteriores, tem sido alegria, vida e entusiasmo [...]”.269 Estas festas movimentavam a cidade, aumentando as vendas no comércio, além de reverter a renda dos festejos à paróquia local. Nos leilões, eram arrematados frangos, bolos, porcos, bezerros, bodes, ovelhas, joias e outras prendas, fazendo a alegria dos festeiros e a grande arrecadação da paróquia de Santo Antônio, tido e conhecido como o santo “casamenteiro”.270 A noite dos vaqueiros e pecuaristas era uma das mais esperadas e com maior destaque dos festejos, especialmente pelo valor agregado “às joias”, quase sempre animais. Dentro das táticas definidas pela paróquia e organizadores, este dia era eleito como um dos principais do evento, por causa do simbolismo e representatividade que a atividade tinha para a cidade. Nesse dia, as imagens dos vaqueiros e dos agropecuaristas 268 GUARINELLO, Norberto Luiz, Festa, Trabalho e Cotidiano, IN: JANCSÓ, István e KANTOR, Íris (orgs.), Festa: Cultura & Sociabilidade na América portuguesa, São Paulo, FAPESP (Editora da Universidade de São Paulo), 2001, Volume II. p.973. 269 Editorial “A TRADICIONAL FESTA DE CAMPO MAIOR”, edição sem data. 270 Seu grande saber o tornou uma das mais respeitadas figuras da Igreja Católica de seu tempo. Padroeiro dos pobres e considerado o santo “casamenteiro”, também é invocado por pessoas que queriam encontrar objetos desaparecidos. 81 eram usadas como símbolos de forças sociais em atuação na sociedade local e como reforço de mitos formadores da região, afinal, “O museu do vaqueiro do Piauí ficará possivelmente instalado em Campo Maior e nele serão expostos os mais variados tipos de produtos sertanejos inerentes à vida do vaqueiro”.271 O interessante é que as prendas eram doadas pelos fiéis e por eles mesmos arrematados entre si, o que acontecia sempre após as rezas. Ali, naquele contexto, o periódico A LUTA se envolvia, captava, tecia os fios dos acontecimentos, buscava perceber a forma de interseção dos atores sociais locais, suas vivências culturais múltiplas, além de retratar e divulgar as festividades: “A cidade está em festa! Tudo é alegria, animação, júbilo! Desde as crianças às moças e os rapazes, aos homens e às senhoras, aos velhinhos e às velhinhas exteriorizam a satisfação que lhes vai no íntimo, transbordante de contentamento. As crianças a brincarem no parque, as moças e os rapazes a namorarem e passearem na praça, os adultos a arrematarem jóias no leilão e os velhos a recordarem saudosos os festejos passados.”272 Por se tratar de uma região muito ligada a economia agrária e aos ciclos da natureza – a plantação e produção dos grãos dependiam do ciclo das chuvas – as festividades eram o momento que a comunidade local se congregava para celebrar, agradecer ou pedir proteção aos santos. Para Ferlini, “Estas formas de culto a divindades protetoras da natureza estão na origem das festas portuguesas, transplantadas mais tarde para a colônia”.273 A relevância do evento aumentava pelo fato de se tornar oportunidade para a reunião de muitos moradores da cidade que viviam em outras localidades. As famílias dos moradores rurais chegavam de todos os lados. Os homens e senhoras vinham à cavalo. As festas eram momentos de congraçamento das populações urbanas e rurais, demarcando aquele contexto e lugar como janelas para um horizonte de lembranças e nostalgias locais, cristalizando-se como uma temporalidade de memórias para seus frequentadores. Para a autora Janete Rodrigues, as danças folclóricas fazem conhecer as identidades de um grupo e “evoluem de forma 271 Editorial “Campo Maior terá o museu dos vaqueiros”, edição de 03/06/1972. Editorial “A cidade está em festa”, edição de 07/06/1970, 273 FERLINI, Vera Lúcia Amaral, Folguedos, Feiras e Feriados: aspectos socioeconômicos das festas no mundo dos engenhos, IN: JANCSÓ, István e KANTOR, Íris (orgs.), Festa: Cultura & Sociabilidade na América portuguesa, São Paulo, FAPESP (Editora da Universidade de São Paulo), 2001, Volume II. p.449. 272 82 inconsciente na vida da comunidade através dos tempos, uma vez que a comunidade determina o que deve ser incorporado à tradição”.274 As grandes festas da Igreja Matriz de Santo Antônio eram celebradas com grande aparato: banda de música, fogos de artifício, danças e espetáculos que lembravam as primitivas representações locais. Nessas festas, Antônio Andrade Filho (Irmão Turuka), um dos principais colaboradores do jornal, falava do cotidiano, das lembranças, dos momentos marcantes e inesquecíveis dos festejos do glorioso Santo Antônio, 275 sempre com um olhar de rememoração, descrevendo de forma minuciosa e detalhada, o que para ele e com certeza para muitos de seus contemporâneos foram fatos memoráveis, reminiscências. Como exemplo, a coluna do dia 08/06/1969 onde ele retratava os acontecimentos da época dos festejos do padroeiro da cidade, enfatizando o que acontecia ao redor da igreja e das praças que a cercavam. Com detalhes para as bandas de músicas e o comércio que se formava nas redondezas: “Festa de junho. Mais uma vez a trezena de Santo Antônio é animada pela velha e querida banda de música [...]. Atrás do coreto, dezenas de banquinhas se enfileiravam para a venda do “bagulho”, do gostoso cafezinho, bolos e frutas e o apreciado frito de tripa que a Iracema vende, mas parecendo tudo isso um complemento da orquestra”.276 Essas festas foram, também, produção de memória sobre a cidade e a sociedade de Campo Maior/PI, expressando aquela realidade, suas tensões, censuras, conflitos e ao mesmo tempo, o que atuava sobre eles. Mostrava o desacordo entre as representações e práticas locais e o que, pensando bem, sabemos ser aquele contexto. A inércia social da cidade se perdia na imensidão dos movimentos que gravitavam ao redor daquele cotidiano festivo. Para Guarinello, “Festa é um ponto de confluência das ações sociais cujo fim é a própria reunião de seus participantes. Sempre uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que se dá num tempo e lugar definidos e especiais, implicando a concentração de afetos e emoções em torno de um objeto que é celebrado e comemorado e cujo produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na esfera de uma determinada identidade”. 277 274 RODRIGUES, Janete de Páscoa, Ofertas de Sentidos de Identidades Culturais nas Mídias Impressas Piauienses, IN: SAID, Gustavo (Org.), Comunicação – Novo Objeto, Novas teorias?, Teresina, EDUFPI, 2008. p. 144. 275 ANDRADE FILHO, Antônio (Irmão Turuka), Jornal A LUTA, Edição do dia 14/04/1968, Coluna “Em junho de 1936”. 276 ANDRADE FILHO, Antônio (Irmão Turuka), Jornal A LUTA, Edição do dia 08/06/1969, Coluna “Lyra Santo Antônio”. 277 GUARINELLO, Norberto Luiz, Festa, Trabalho e Cotidiano, IN: JANCSÓ, István e KANTOR, Íris (orgs.), Festa: Cultura & Sociabilidade na América portuguesa, São Paulo, FAPESP (Editora da Universidade de São Paulo), 2001, Volume II. p.972. 83 E o jornal A LUTA estava presente como meio e/ou ferramenta na divulgação da produção material daquelas festas, de seus objetos, vestimentas, bens de consumo, bem como no papel ou lugar de cada participante em sua execução e, de modo mais amplo, à definição do sentido da própria identidade que produzia. 278 As narrativas pareciam, às vezes, sem sentido, tal a contradição que se estabeleciam nos discursos, entre o visto e o previsto. Ali os colaboradores do semanário contemplavam uma pluralidade de olhares sobre a cidade e construíam um complexo cruzamento de diferentes tradições e distintos saberes daquela comunidade. É o que mostra o editorial “Festa de Santo Antônio”, edição do dia 27/05/1979: “[...] É nossa festa, nosso povo, nossos costumes, nossa cultura. Vamos viver, de coração, mais este grande momento da vida campomaiorense”.279 No editorial “Está chegando a grande festa de C. Maior”, edição de 29/05/1971: “O inverno, que foi abundante, vai aos poucos se afastando, e junho aproxima-se cheio de luzes e com ele – para os campomaiorenses – as alegrias dos festejos do padroeiro Santo Antônio [...]”,280. Mas as colunas e editoriais do semanário também tratavam de outras festas da cidade de Campo Maior/PI, especialmente aquelas ocorridas no Campo Maior Clube, no Iate Clube de Campo Maior, no Grêmio Recreativo e na AABB (Associação Atlética do Banco do Brasil), como a coluna “A LUTA Sociais”, edição de 25/12/1970: “[...] Finalmente ontem aconteceu a muito esperada festa do Campo Maior Clube, tradicional acontecimento daquela associação. Na oportunidade a menina-moça Marlene Sousa Lima foi apresentada à sociedade e houve o desfile das debutantes do ano”. 281 Importante frisar que em um processo natural, cada um desses clubes representava um nicho dos estratos sociais existentes na cidade, com o Iate Clube representando um espaço social da elite campomaiorense, o Grêmio Recreativo atraindo para seus eventos os membros das classes mais populares e os outros clubes se comportando como atrações “intermediárias” da população local. E, no período carnavalesco, cada um desses clubes tentava demonstrar para a cidade e seus representados uma multiplicidade de sentidos particulares, segmentados, buscando a presença dos participantes – eventuais e/ou desejados – cujas presenças e envolvimentos determinavam o sucesso e o significado último de cada clube, criando fragmentos imagéticos e enunciativos em torno de um espaço-lugar. É o caso da coluna “Carnaval e Arrozina”, editado no dia 278 Nos 14 dias de festa, cada dia e noite representava uma categoria profissional ou social, como “a noite dos comerciantes”, “a noite dos professores”, e a mais importante: “a noite dos vaqueiros”. 279 Editorial “Festa de Santo Antônio”, edição do dia 27/05/1979. 280 Editorial “Está chegando a grande festa de C. Maior”, edição de 29/05/1971. 281 ARAÚJO, Maria de Jesus, coluna “A LUTA Sociais”, edição de 25/12/1970. 84 18/02/1968, onde o colaborador Francisco Jacinto da Silva, na devida proporção, vislumbrava várias formas de excessos praticados por alguns elementos frequentadores daqueles clubes sociais: “Como é do conhecimento de todos que têm freqüentado os recentes assaltos carnavalescos nos clubes de nossa cidade, continua o excesso de brincadeira por parte de pessoas altamente gabaritadas, que, depois de ingerirem alguns pileques, não respeitam cara de quem quer que seja, com os tais banhos de massa-arrozina e maisena, caso que vem deixando inúmeros associados dos clubes de nossa terra bastante constrangidos”. 282 Ainda, o jornal campomaiorense acompanhava e divulgava as diversas festas que ocorriam na cidade – festas familiares, grupais e cívicas – que, como em qualquer sociedade, manifestava um conjunto articulado de festas - cíclicas ou episódicas -, mas que dialogavam entre si, repartindo seus sentidos, se articulando, acumulando ou negando elos que se inscreviam na memória coletiva e individual daqueles participantes, embora os afetos presentes em cada um daqueles eventos fossem diferentes, suas relações com o sagrado e o profano, suas fronteiras, suas periodicidades, bem como seus objetos focais. Pois, além das festas folclóricas que ocorriam em dezembro e janeiro (Reisados, São Gonçalo e Marujadas), em junho (Santo Antônio, São João, São Pedro) a cidade, através de seus clubes sociais, elaborava calendários de outras festas mundanas, incluindo o carnaval. E o jornal A LUTA estava quase sempre presente na divulgação e chamamento da população. Como exemplo, a coluna “Nossa High-Society”, edição de 24/11/1968: “Sábado, dia 16 do corrente, no Campo Maior Clube, foi eleita a segunda “Miss Tertúlia”, o bonito broto Elizabeth Bastos – Bebeta” 283 e a coluna “A LUTA Sociais”, edição de 06/02/1971: “Festa no Grêmio Recreativo será amanhã. O conjunto que animará as danças será “Azes do Planalto”, da cidade de Ubajara no Ceará”.284 Os colaboradores produziam através de seus textos, imagens e discursos de um espaço da saudade, da música, da tradição, expressando uma realidade coletiva, fiel ao comportamento de um povo e às características de uma região, legitimando assim a identidade que as festas populares de Campo Maior/PI adquiriram na memória e recordações entrecruzadas e afloradas nos dias atuais. As festas textualizadas pelos colaboradores do periódico A LUTA criaram uma ponte ligando aquele passado ao hoje, testemunhando a existência de um espaço que nunca desapareceu. Espaço sempre dito e visto a partir dos sentimentos de saudades, construídos a partir de memórias dos 282 283 284 DA SILVA, Francisco Jacinto, coluna “CARNAVAL E ARROZINA”, edição de 18/02/1968. Ver MELLO, Silvia, edição de 24/11/1968, coluna “Nossa High-Society”. Coluna “A LUTA Sociais”, edição de 06/02/1971. 85 antepassados e evocações nostálgicas. Para Ecléa Bosi, “Um mundo social que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos pode chegar-nos pela memória dos velhos. Momentos desse mundo perdido podem ser compreendidos por quem não os viveu e até humanizar o presente”.285 Faziam a ligação da alma humana dos participantes daqueles eventos sociais com os espaços naturais e sociais à sua volta. É o que se constata no editorial “Festa de Santo Antônio”, edição de 27/05/1979: “É uma festa que mexe com o coração dos campomaiorenses. A comunidade religiosa, padres, freiras, grupos de trabalho, movimento de jovens, casais, professores, alunos, comerciantes e fazendeiros, todos se preparam para o grande evento”.286 O interessante é que as narrativas descritivas das festas populares e dos espaços onde elas ocorriam eram vistas por um só ângulo, iluminados por um único foco de luz, não problematizados, que se impunham como verdadeiras e reais. As ações dos colaboradores se dão no sentido de reforçar os fatos passados, tornar visíveis as emoções primitivas e naturais das festas que marcaram aquela época. Sensibilidades que se tornaram evidentes com as análises daqueles lugares de memória, tal como observamos na coluna “recordar é viver” de 25/08/1968, tratando da praça onde ocorriam as principais festas: “Na Praça Bona Primo tudo agora é beleza, mas quem nela viveu desde o começo de sua existência, agora como sempre, tudo é saudade”, 287 e do editorial “Campo Maior Clube passa por boa fase”, de 27/11/1977, onde o colaborador explica as mudanças naquele lugar de saudades: “O nosso velho e tradicional Campo Maior Clube passou por regulares reformas, que o capacitaram à realização de festas consideradas as melhores dentre todas do ano, na terra dos carnaubais”.288 Naquele “mundo” e circunstâncias, qualquer novidade era motivo para conexões imaginárias de alguma coluna ou editorial do semanário com as camadas sociais da cidade. Eles buscavam usar uma linguagem que fosse radicada e focada na localidade, que não fosse uma fuga ou trégua daquela realidade, mas sua expressão maior. As festas principais de Campo Maior, mais do que ser ditas pela linguagem, seriam uma forma de ver, falar, de reorganizar o pensamento: “[...] O dia dez, dia do vaqueiro de Campo Maior será uma página de ouro na tradição e folclore popular de Campo Maior. Este ano mais do que nunca de todas as partes do Piauí e do Brasil, velhos 285 286 287 288 BOSI, Ecléa, Memória e Sociedade: lembranças de velhos, São Paulo, Cia das letras, 1994, p. 82. Editorial “Festa de Santo Antônio”, edição de 27/05/1979. FILHO, Antônio Andrade, coluna “recordar é viver”, de 25/08/1968. Editorial “Campo Maior Clube passa por boa fase”, edição de 27/11/1977. 86 campomaiorenses e amigos de Campo Maior já se movimentam em direção da terra querida para homenagear Santo Antônio e levar para sua igreja a sua contribuição generosa [...]”.289 Os tradicionais nomes familiares da região não desapareciam, somavam-se com os recém-chegados, por gente que havia deixado raízes, que representavam toda a luta e todo o suor derramado para a conquista daquela terra: “Ah! Campo Maior, berço dourado dos sonhos meus, perdidos no silêncio de um sub-consciente que só despertou ao divisar teus carnaubais, tuas ruas, enfim olhei o sub ventre de onde nasci”. 290 Nos escritos, os colaboradores traziam à tona um passado belo e distante misturado por um presente entrecortado por uma paisagem natural e poética e um tecido social alegre, festivo, de renovação espiritual. Constituíam espaços de sociabilidades, onde as narrativas atribuíam um novo sentido totalizador e quase universal às suas ações. Tratava-se de fluxos e cruzamentos oportunos para aqueles que produziam o semanário. É o que se vê no editorial do dia 30/01/1971: “[...] Hoje, contudo, ao fitarmos a fisionomia da nossa gloriosa cidade, berço esplêndido dos heróis do Jenipapo, vemos sensibilizados que a decadência cedeu lugar ao desenvolvimento”.291 Discursos que terminavam por reforçar uma imagem ufanística da cidade e arredores, fundamental não só para sua manutenção imagética, mas também para a reprodução do poder e da riqueza de um grupo social ali dominante. Para Durval Muniz, “poder que atua tanto de forma ascendente, como na descendente. Poder que, embora se cristalize em instituições como o tribunal, não existe fora das relações sociais, sendo imanentes a elas”.292 3.2 – Olhares e percepções vivenciados a partir do Jornal A LUTA para a construção do Monumento/Museu em homenagem à Batalha do Jenipapo “Minha cidade é histórica por ter lutado de pé. Contra a famosa comitiva do Major Cunha Fidié. Do largo do Santo Antônio partiram nossos soldados. Em marcha rumo ao combate, quase todos desarmados. Em 1823, no dia 13 de março, iniciaram a luta sem pensar no fracasso. Contra as tropas portuguesas, travaram luta sangrenta. O combate não foi fácil, quase tudo se arrebenta. Naquele dia, às duas horas, já estava tudo em farrapos. O sangue corria por terra, nos campos do jenipapo. Fidié tinha vencido. Nossos soldados perderam, porém foram heróis porque nunca se 289 Editorial “A tradicional festa de Campo Maior”, edição de 25/05/1973. Editorial “Eu te amo, Campo Maior”, edição de 06/02/1971. 291 Editorial Imagem de Campo Maior, edição de 30/01/1971. Ibidem. 292 ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de, História a Arte de Inventar o Passado. Ensaios de teoria da história, Bauru, SP: EDUSC, 2007. p. 74. 290 87 renderam. Minha cidade é histórica, por ter lutado com fé. De vencer a comitiva do major Cunha Fidié”.293 Foi inaugurado em 1973, nas margens do rio Jenipapo, nas proximidades de Campo Maior/PI, um monumento (Ver figura abaixo) aos que lutaram e morreram na Batalha do Jenipapo.294 Antes dessa inauguração, o semanário A LUTA - através dos seus colaboradores – se envolveu em forte campanha e discurso em Campo Maior/PI pela construção daquele prédio arquitetônico. Para isso, teceu levantamentos, pistas e indícios do fato histórico, resgatando distintos traços que ficaram de outro tempo, criando uma representação sobre aquele passado. Construiu memória e reconstruiu lembranças de lugares, de pessoas e práticas sociais, descrevendo minuciosamente o enfrentamento e a batalha em si. Para Pierre Nora, “A lembrança é passado completo em sua reconstituição a mais minuciosa”, é “memória registradora” que incumbe ao arquivo a função de se lembrar por ela.295 Assim o jornal fez ver para seus leitores daquele momento, a importância daquele fato para a independência do Brasil e consolidação da unidade nacional brasileira no século XIX.296 Colunas e às vezes editoriais dispersos e ao mesmo tempo repetitivos, mas que seguiam os mesmos caminhos e objetivos, se articulavam e recaíam nos mesmos temas, retomavam os mesmos conceitos à respeito daquele fato. Não é intenção nossa tratar do acontecimento da Batalha em si, mas analisar como o semanário A LUTA, abordando sistematicamente daquele acontecimento, influenciou as autoridades políticas do Piauí na decisão de edificação do citado monumento e de um 293 CAVALCANTE, Johnson Ibiapina, coluna “MINHA CIDADE É HISTÓRICA”, edição sem data. Projeto do Monumento do Jenipapo – construído nas margens do rio do mesmo nome, nas proximidades da cidade de Campo Maior/PI – Jornal A LUTA, edição 08/04/1972. 295 NORA, Pierre, Entre memória e história: a problemática dos lugares, PUC-SP, Revista projeto de História, n. 10, dezembro/93. pp. 07-28. p. 9. 296 Um dos historiadores piauienses que defenderam a Batalha do Jenipapo como fato importante na consolidação da independência do Brasil, foi o professor Arimatéa Tito Filho. Ver edição sem data, editorial “O PIAUÍ FEZ A INDEPENDÊNCIA”. Outro autor que trata o acontecimento histórico campomaiorense como fato importante para a consolidação da unidade nacional brasileira foi Bugyja Britto. Ver BRITTO, Bugyja, O Piauí e a Unidade Nacional, IN: SANTANA, R. N. Monteiro de e SANTOS, Cineas, O Piauí e a Unidade Nacional, Teresina, FUNDAPI, 2007. p. 57. 294 88 museu297 para homenagear aos que combateram naquele episódio histórico, colaborando na construção de um lugar de memória.298 A esse respeito Pierre Nora afirma: “Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, porque essas operações não são naturais”.299 Ainda segundo Nora, uma minoria com focos privilegiados pode fazer “incandescência” sobre a verdade dos lugares de memória e que se não houvesse “vigilância comemorativa”, depressa a história os esqueceria. E ainda: “E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrifica-los eles não se tornariam lugares de memória”.300 Ali então era feito o que se poderia chamar de eficácia das ofensivas dispersas, porém contínuas, o “murmúrio” durante muito tempo não interrompido, penetrando na prática cotidiana da sociedade campomaiorense. Emergiu o lugar considerável de memória ocupado pela ambivalência dos sentimentos e pensamentos dos colaboradores. Não só para os colaboradores do semanário, mas também para autores de outros contextos, como Joaquim Chaves: “não há história da independência do Brasil uma página mais épica, mais emocionante do que a que escreveram, com sangue e bravura, aqueles homens, no dia 13 de março de 1823, nas margens do Jenipapo”.301 Os textos apresentados nas colunas e editoriais do jornal – com destaque para alguns colaboradores302 – constituem, em conjunto, um repositório de referências aos fatos da Batalha e conseqüências, e destacado lugar de confluência daquela geração. Acreditamos também que as iniciativas do semanário iluminaram os significados do protagonismo campomaiorense em homenagear aos que participaram daquele embate militar de 1823 e nos atos de adesão do governo estadual piauiense da década de 1970, colando fatos conhecidos, além de conferir certa atualidade à discussão sobre a temática 297 O monumento foi inaugurado em 19/10/1973 e o museu em 13/11/1974. Por muito tempo a data foi esquecida, não constando nos livros de História do Brasil e poucos sabendo do ocorrido, mesmo no Piauí, onde ocorreu a batalha. Mas, após alguns movimentos por parte de políticos, historiadores e da população – especialmente da população campomaiorense e também dos colaboradores do jornal A LUTA - a data foi acrescida à bandeira do Piauí em 2005 (Lei 5.507, 17/11/2005, iniciativa do Deputado Estadual Homero Castelo Branco). 299 NORA, Pierre, Entre memória e história: a problemática dos lugares, PUC-SP, Revista projeto de História, n. 10, dezembro/93. pp. 07-28. p. 13. 300 Idem. Ibidem. 301 CHAVES, Monsenhor Joaquim, O Piauí nas Lutas da Independência do Brasil, Teresina, Alínea Publicações Editora, 2005. p. 87. 302 Segundo o Professor Francisco de Assis Lima, diversos colaboradores do jornal A LUTA se empenharam pela construção do Monumento, entre eles, Antônio Andrade Filho (Irmão Turuka), Monsenhor Mateus Rufino, Raimundo Antunes Ribeiro (Totó), mas o destaque foi para Octacílio Eulálio. LIMA, Francisco de Assis, A Batalha- O reconhecimento, Campo Maior-PI, edição do autor, 2009. p. 80. 298 89 respectiva. Era como se “fragmentos libertos” fossem desenterrados e multiplicados na construção de um discurso unitário buscando homenagear o episódio da batalha. Um exemplo claro da impregnação de novas ideias transformadas que se transmitiu a outros escritos, transformou espaços, atribuiu novos valores e significados diferentes ao episódio da batalha do Jenipapo: “A problemática do “mundo como representação”, moldado através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real”.303 Portanto, parece não haver dúvidas que o periódico A LUTA em um processo sistemático no decorrer de sua existência, tenha se referido ao tema da Batalha do Jenipapo em suas colunas e editoriais. Ganhou destaque durante as obras de construção e inauguração do edifício construído em homenagem aos que se envolveram naquele embate. É o que se observa na tabela abaixo:304 Tabela 4 – Mostra a quantidade de colunas e editoriais retratando a Batalha do Jenipapo - por ano. Ano: Número de artigos: 1969 02 1970 02 1971 04 1972 05 1973 52 1974 04 1975 01 1976 06 1977 03 1978 04 1979 02 Essas quantidades de artigos tratando da batalha do Jenipapo não representam a totalidade das colunas e editorias do jornal A LUTA, mas reforçam a tese do empenho dos colaboradores do semanário no ano de 1973, quando foi construído e inaugurado o monumento que homenageou aquele fato histórico.305 A tenacidade com que o periódico se envolveu no processo de influência da sociedade local – inclusive dos prefeitos municipais e outras autoridades locais daquele 303 CHARTIER, Roger, A História cultural – entre práticas e representações, Lisboa (Portugal), Difel, 1990. pp. 23-24. 304 Essas quantidades não representam a totalidade das colunas e editorias do jornal A LUTA e sim o que foi possível pesquisar no acervo que se encontra no arquivo particular do professor Francisco de Assis Lima na cidade de Campo Maior/PI. Contudo, a grande quantidade de colunas e editoriais no ano de 1973 reforça o empenho dos colaboradores para influenciar as autoridades políticas da cidade e do Estado para a construção e inauguração do monumento em outubro daquele ano. 305 Lembrando que o monumento foi inaugurado em 19/10/1973. 90 contexto – e das autoridades estaduais foi sobremaneira marcante e decisiva no resultado final alcançado. Inclui-se nesse processo, o acompanhamento contra os silenciamentos dos responsáveis pelo andamento do projeto arquitetônico: “O dia 13 de março assinala a passagem de mais um aniversário da épica façanha de heróis anônimos, que se celebrizaram por imolar no campo de batalha, o ideal de ver a Pátria livre e independente [...]. Comissões interessadas em fazer sanar estas irregularidades e propugnar também pela construção de um monumento digno da bravura do Jenipapo já se formaram. As dificuldades com que esbarram de início, fazem desanimar e arrefecer o entusiasmo dos que a integram: a falta, ou quase isso, de interesse demonstrado por parte das autoridades que poderiam e deveriam tomar as providências justas e necessárias para se resolver o impasse é patente. E aqui fica o nosso protesto por esta atitude, que com algum rigor, é verdade, consideramos comodista e antipatriótica”.306 Na história assiste-se muitas vezes “minorias atuantes” influenciando mais nos acontecimentos que “maiorias silenciosas”. Como defende Becker, não importa a origem da opinião e sim o seu papel no processo histórico: “A opinião pública integrase no processo histórico e muito em particular na história política: se a história é também explicação do passado, não existe explicação completa sem que seja elucidado o papel desempenhado pela opinião pública”.307 Faz-se necessário dizer que Octacílio Eulálio - outro importante colaborador do jornal campomaiorense - foi destaque persistente e contumaz na campanha pelo reconhecimento dos heróis do Jenipapo, chegando inclusive a abrir conta na agência do Banco do Brasil de Campo Maior308 para arrecadar recursos financeiros em prol da construção de um monumento no lugar onde aconteceu o enfrentamento dos soldados portugueses liderados por João José da Cunha Fidié e os campomaiorenses, cearenses e maranhenses unidos em barrá-los. Como afirma José Miranda Filho, colaborador e diretor do jornal: “O prezado e ilustre amigo Octacílio Eulálio continua a trilhar palmo a palmo a grande estrada que o conduzirá à consumação de seus ideais sagrados: Monumento aos mortos do Jenipapo. Meritória sob todos os ângulos a campanha a que deu início já algum tempo”.309 306 Editorial “Os Heróis Esquecidos”, edição 01/07/1973. BECKER, Jean-Jacques, A opinião pública, IN: RÉMOND, René, Por uma História Política, Rio de Janeiro, FGV, 2003. p. 201. 308 LIMA, Francisco de Assis de, A Batalha – o reconhecimento, Campo Maior, edição do autor, 2009, p. 59. 309 FILHO, José Miranda, coluna “Documentos preciosos”, edição de 17/05/1970. 307 91 O periódico em muitas outras colunas tratou da expressão “Batalha do Jenipapo” no sentido de construção de memória, ou seja, da percepção da realidade daquele acontecimento, recuperando lembranças essenciais à compreensão do episódio,310 inclusive em editorial mostrando que aquele fato histórico seria transformado em filme.311 O semanário procurou relacionar aquele lugar de memória às lembranças da cidade de Campo Maior: “Algumas dessas imagens, como acontece nos cemitérios, nos lembram pessoas que não mais existem. Outras, como os sacrários ou nos cemitérios de guerra, relacionam a lembrança dos indivíduos à dos grandes eventos ou das grandes tragédias. Outras ainda, como acontece nos monumentos, nos remetem ao passado de nossas histórias, à sua continuidade presumível ou real com o presente”.312 Citamos, como exemplo, a coluna “Independência do Norte”, que era pensada e escrita pelo colaborador Macário Oliveira. Nela, o autor redefine os fundamentos, e em certo sentido, redesenha o ordenamento dos fatos desde o século XVIII até o acontecimento histórico ocorrido às margens do rio Jenipapo, levando para os leitores do jornal muitas análises e informações a respeito daquele fato e como se encontrava o Piauí e o Brasil naquela conjuntura do século XIX. 313 Oliveira vai ao ponto, narrando e descrevendo sobre o acontecimento, recuperando uma memória essencial à compreensão dos episódios daquele evento e de seu contexto. A coluna nos possibilita pensar e imaginar uma “cartografia” sentimental daquela localidade sobre esse fato histórico. Nesta mesma direção, muitas outras colunas e editoriais se destacaram abordando o tema da Batalha: “Campo Maior comemorou condizentemente mais um aniversário da Batalha do Jenipapo, no último sábado. Em cerca de três dias, o Prefeito Jaime da Paz elaborou o programa das festividades. E esse programa, mesmo feito às pressas, foi cumprido pelos campomaiorenses. As autoridades civis, militares e eclesiásticas e o povo em geral, jubilosos e 310 Ver POLLAK, Michel, Memória e Identidade Social, IN: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992. pp. 200-212. 311 Editorial “Batalha do Jenipapo transportada para o cinema”, edição de 27/06/1976. 312 ROSSI, Paolo, O Passado, A Memória, O Esquecimento: seis ensaios da história das idéias, São Paulo, Editora UNESP, 2010. p. 23. Sobre lugares de memória ver também: NORA, Pierre, Entre memória e história: a problemática dos lugares, PUC-SP, Revista projeto de História, n. 10, dezembro/93. pp. 07-28. 313 Coluna tratando do contexto antes: “INDEPENDÊNCIA DO NORTE – 2”. Edição sem data. Do contexto durante: “INDEPENDÊNCIA DO NORTE – 17-A”. Edição 07/10/1973. E por fim, do contexto depois da batalha: “INDEPENDÊNCIA DO NORTE – 22”. Edição 25/11/1973. 92 emocionados, na linda manhã do dia 13 de março de 1971, lembraram o feito brilhante de conterrâneos que fizeram o mais bonito quadro de heroísmo das lutas pela emancipação política do Brasil”.314 Sabendo que existe entrelaçamento entre memória e esquecimento e que as lembranças são fragmentos que nos fazem recordar e refletir, relataremos aqui um fato acontecido quando da inauguração do monumento do jenipapo em 1973.315 Naquele contexto, os organizadores do evento se dirigiram às escolas públicas da cidade de Campo Maior/PI selecionando alunos adolescentes para compor o quadro que iria encenar e representar uma batalha fictícia no dia da cerimônia. 316 Os selecionados que tinham pele clara e alguma característica européia317 receberam acessórios para confecção do fardamento português e aqueles que não se enquadravam nessas particularidades aceitaram se apresentar como aqueles que enfrentaram as tropas de Cunha Fidié no episódio de março de 1823. Aconteceu então, em outubro de 1973, a montagem e encenação de práticas de um confronto entre as tropas portuguesas e os que se uniram para barrá-los nas margens do rio Jenipapo, resultando em uma representação daquele acontecimento para a platéia que assistia o evento inauguratório: “Deste modo, a noção de representação pode ser construída a partir das acepções antigas. Ela é um dos conceitos mais importantes utilizados pelos homens do Antigo Regime, quando pretendem compreender o funcionamento da sua sociedade ou definir as operações intelectuais que lhes permitem apreender o mundo”.318 A conjunção dos dois movimentos, o primeiro, tratando da Batalha do Jenipapo como argumento para construção de um monumento e de um museu nas margens do rio do mesmo nome e, o segundo, formando acervo memorial, fizeram ressurgir contribuições que vieram detalhar e explicitar os principais aspectos, componentes e prolongamentos do episódio da Batalha. E o jornal A LUTA, apropriando-se daquele acontecimento e desenhando a amplitude dos movimentos acima citados, nos permitiu medir seu alcance provável e apreciar sua significação no cotidiano da sociedade de 314 Editorial “FORAM HOMENAGEADOS OS HERÓIS DO JENIPAPO”, edição do dia 20/03/1971. Ver BOSI, Ecléa, Memória e sociedade: lembranças de velhos, São Paulo, Cia das letras, 1994. p. 53. 316 De acordo com a coluna “Estudantes encenarão a batalha do jenipapo”, edição do dia 20/10/1973, foram selecionados 500 alunos para fazer a encenação da batalha do jenipapo. 317 Eu fui selecionado e me apresentei como soldado português naquela representação de inauguração do monumento histórico. 318 CHARTIER, Roger, A História cultural – entre práticas e representações, Lisboa (Portugal), Difel, 1990. p. 23. 315 93 Campo Maior daquele período, especialmente para seus leitores e seus postulados.319Assim, os relatos feitos pelos colaboradores do jornal sobre aquela Batalha representam um conteúdo, um objetivo, mas representam também reconstrução do passado, no qual o discurso produzido caracteriza-se menos pela maneira de se exercer e mais pela coisa que mostra, produzindo efeitos desejados a seu respeito e não objetos.320 As imagens produzidas pelos relatos dos colaboradores eram imagens vivas, imagens que se alteravam, pois “à medida que se recua no passado, muda, porque algumas impressões se apagam e outras se sobressaem”.321 Podemos dizer então, que alguns colaboradores – com o apoio dos editores do semanário – assumiram a função de encontrar os fragmentos da memória em direção à circunstância de construção do prédio e do museu que homenageou os que lutaram e enfrentaram as tropas lideradas por Fidié em 1823. Atualmente, naquele lugar de memória são outorgadas medalhas às personalidades que se destacaram ou contribuíram para o desenvolvimento da cidade de Campo Maior e/ou do Estado do Piauí,322 além de servir de palco para encenação de espetáculos – feitos ao ar livre – narrando os fatos daquele acontecimento. Importante sublinhar que a cada ano novas práticas e representações simbólicas são “incorporadas”, tendo com exemplo, a participação no evento de grupos de capoeira da cidade de Teresina e da cavalaria da polícia militar do Piauí: “As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinados pelos interesses de grupo que os forjam”.323 Até mesmo livro em formato de “quadrinhos” foi publicado para descrever e fortalecer as representações que o povo de Campo Maior possui sobre esse acontecimento.324 O certo é que embora já seja lugar-comum em nossa historiografia, especialmente a piauiense, as razões e motivos desse quadro foram pouco estudados em 319 Afinal o monumento e o museu foram construídos e inaugurados e a memória daquele fato histórico hoje faz parte da Bandeira piauiense, Lei 5.507, 17/11/2005. 320 CERTEAU, Michel de, A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de fazer, Petrópolis (RJ), Vozes, 1994. 321 HALBWACHS, Maurice, A Memória Coletiva, São Paulo, Vétice, Editora Revista dos Tribunais, 1990. p. 74. 322 Anualmente no dia 13 de março, são medalhados com a Ordem Estadual do Mérito Renascença pelo governo do Estado e a comenda medalha do jenipapo para personalidades locais da cidade de Campo Maior. 323 CHARTIER, Roger, A História cultural – entre práticas e representações, Lisboa (Portugal), Difel, 1990. p. 17. 324 AURÉLIO, Bernardo e OLIVEIRA, Caio, Foices e Facões – A Batalha do Jenipapo, Teresina, Núcleo de Quadrinhos do Piauí Editora, 2009. 94 seus efeitos. Fica patente que os discursos e produções textuais dos colaboradores a respeito daquele fato histórico terminavam por reforçar as imagens já consolidadas da região e foram importantes para a reprodução do poder dos grupos sociais ali dominantes. É o que mostra o editorial “Terra dos Heróis comemora dia da Pátria”, edição de 07/09/1973: “Pelo transcurso, hoje, de mais um 7 de setembro, data maior de nossa independência, este ano ligada as comemorações do sesquicentenário da Batalha do Jenipapo, que fez a independência do Piauí e do meio norte [...]”.325 Além de pretexto para demonstrar para seus leitores, imaginário de um espaço injustiçado, não olhado pelo resto do estado e do país. Os colaboradores do jornal apresentavam a região e a população como tendo um passado de heroísmo e bravuras, de lutas a serem resgatadas naquele presente: “[...] Morreram para nos dar a nossa libertação. Hoje somos independentes. É forte a nossa união. E aqui neste local, a pedra fundamental marcará a construção [...]”. 326 A cidade de Campo Maior da sociedade da pecuária, da sociedade da carnaúba, da religião familiar, da Batalha do Jenipapo, onde imperavam as decisões de Deus e dos proprietários de terras. Elementos de ligações e não de antagonismos, que empurravam as descontinuidades pessoais para segundo plano, enquanto vinham à frente as continuidades das proteções – divinas ou não - estas sim, as verdadeiras forças dos valores da vida: “[...] Minha terra, tu me enchias de encantos! Volvo novamente meus olhos saudosos: teus campos estão áridos, como se uma chama te houvesse queimado [...].327 As narrativas textuais dos colaboradores na maioria das vezes se iniciavam pela emergência de um acontecimento local que instaurava a ruptura com o cotidiano – a exemplo as diversas colunas sobre o episódio Jenipapo – estabeleciam a singularidade de uma situação, anunciavam uma diferença lá onde basicamente só havia repetição e rotina. Em seus textos, podemos hoje detectar uma série de temas, personagens e figuras que retornavam sempre, conectadas com os fatos que se queria compreender. Eram práticas que se diferenciavam da ordem, que se alteravam, que emergiam e irrompiam num horizonte de repetições e continuidades. Foram escritos que surgiram a partir do ponto de vista de homens e mulheres mergulhados em seu cotidiano, que pressentiam que faziam parte de algo maior e que eram peças de uma engrenagem social complexa, 325 326 327 Editorial “Terra dos Heróis comemora dia da Pátria”, edição de 07/09/1973. NETO, Cunha, poesia “Os heróis e a revolução”, edição 15/04/1973. NASCIMENTO, Teresinha, coluna “Visita ao meu torrão”, edição de 21/12/1969. 95 conflitiva, onde só se poderiam conhecer verdades interessadas e relativas a lugares, tempos e contextos locais: “Poderá ser repetida a encenação da Batalha do Jenipapo no próximo dia 13 de março, data consagrada aos Heróis brasileiros naquela vitoriosa campanha [...]. Uma equipe de cinegrafistas da EMBRAFILME chegou neste começo de mês a Teresina com a finalidade de iniciar trabalho de levantamento de área com vista à filmagem da histórica Batalha do Jenipapo, numa produção do cineasta Sidney Loureiro [...]”.328 No caso das insistências de alguns colaboradores na sucessão de colunas e editoriais que se articulavam sobre o episódio ocorrido nas margens do rio Jenipapo em 1823, buscavam para aquele presente uma condição de lugar de memória renovado, aprendendo a ver os fatos daquele acontecimento de vários ângulos, reproduzindo a memória dos campomaiorenses que combateram e enfrentaram os portugueses naquele fato do século XIX, porque “[...] só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica”.329 Eram discursos de construção voltados para unir e compreender os aspectos fragmentários daquele fato, os restos, as diferenças que o constituía, formando depósito de camadas de discursos, sedimentando memórias a partir dos textos. Todas as formas de linguagens e instrumentos imaginados por aqueles que produziam o jornal A LUTA: “O monumento será um dos mais majestosos do Brasil, e ficará como perpetuidade aos heróis brasileiros que derrotaram as forças de Fidié [...] O Piauí comemorará neste ano o seu dia, reverenciando a memória dos heróis do Jenipapo [...]”.330 O jornal, por intermédio de seus colaboradores, produziu e reproduziu uma versão com novo olhar daquele passado histórico de 1823, buscando capturar e promover uma construção imaginária que convergisse e apontasse para um discurso enunciador de verdade única para aquele presente dos anos 1970.331 Para isso, se apropriaram de novas linguagens, de novos conceitos para ressaltar a opulência e grandeza dos homens e dos 328 A primeira citação é do editorial “PIEMTUR que repetir guerra simulada do Jenipapo”, edição 10/02/1974. A segunda é do editorial “Cinegrafistas chegam para filmar Jenipapo”, edição de 11/07/1976. 329 NORA, Pierre, Entre memória e história: a problemática dos lugares, PUC-SP, Revista projeto de História, n. 10, dezembro/93. pp. 07-28. p. 21. 330 A primeira citação: Editorial “Secretaria de obras inicia trabalhos em Campo Maior”, edição 23/07/1973. A segunda: Editorial “Murilo Rezende: Vamos prestigiar a história”, 23/07/1973. 331 Na ânsia de ver construído um memorial que representasse o episódio histórico, os colaboradores se apegaram á técnicas – inclusive iconoclastas – de convencimento dos grupos políticos que mandavam na cidade e no Estado do Piauí. 96 fatos que emergiram do episódio, atravessados por diferentes fluxos sociais e vistos a partir dos valores e crenças que mostrasse uma visão de Campo Maior/PI como espaço de memórias e abundâncias: “Porque é efetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções”.332 Os colunistas do semanário procuravam reencontrar por baixo da memória dominante do fato em si, outra memória que permitisse encontrar a história da Batalha do Jenipapo e desfiá-la num outro sentido. Tentava-se, pois, de recontar a mesma história a partir de outro olhar, não o olhar dos perdedores, 333 mas dos heróis que lutaram pela causa brasileira, a independência nacional: “O dia 13 de março assinala a passagem de mais um aniversário da épica façanha de heróis anônimos, que se celebrizaram por imolar no campo de batalha, o ideal de ver a Pátria livre e independente”.334 Às vezes eufóricos por ter conseguido seus intentos, às vezes derrotados por sequer conseguirem escrever e relatar aquele episódio, eles seguiam buscando as palavras que causassem os efeitos desejados. E eram os desejos e vontades que encontramos nos escritos daqueles que escreviam a respeito da batalha. Desejos de que fosse construído um prédio-monumento que representasse e retratasse aquele acontecimento de 1823. Para aqueles colaboradores, escrever e relatar o passado longínquo do fato poderia se tornar promessa futura e desafio à ordem estabelecida em Campo Maior/PI e no estado do Piauí. Para Pollak, “Locais muito longínquos, fora do espaço-tempo da vida de uma pessoa, podem constituir lugar importante para a memória do grupo, e por conseguinte da própria pessoa, seja por tabela, seja por pertencimento a esse grupo”.335 3.3 - Jornal A LUTA - Discursos regionais e locais e formas dominantes de pensamentos como redefinidores da identidade de Campo Maior/PI 332 NORA, Pierre, Entre memória e história: a problemática dos lugares, PUC-SP, Revista projeto de História, n. 10, dezembro/93. p. 9. 333 As tropas portuguesas lideradas João José da Cunha Fidié venceram seus adversários locais em uma batalha de poucas horas. Para melhor entender e compreender aquele fato, ver CHAVES, Monsenhor Joaquim, O Piauí nas lutas da independência do Brasil, Teresina, Alíneas Publicações Editora, 2005. 334 Editorial “Os Heróis esquecidos”, edição 01/07/1973. 335 POLLAK, Michel, Memória e Identidade Social, IN: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992. p. 202.. 97 Vimos nos itens anteriores deste capítulo, que os signos, figuras e temas eram destacados para preencher a imagem da cidade e da região de Campo Maior/PI, e que se impunham como verdades pela repetição, o que lhes dava solidez interna e fazia com que tal arquivos de textos e imagens pudessem ser agenciados e virem a produzir discursos que saíam de paradigmas teóricos os mais distintos: “[...] Campo Maior é tão bela Pela estação pluvial! Ostenta a vegetação Todo o vigor tropical! [...] Na Praça Bona Primo, mais um canteiro foi concluído, e cremos que muito breve o último deles será feito [...]”.336 O semanário toma elementos do folclore, das festas populares e dos acontecimentos históricos, abordando-os com indisfarçável postura de distanciamento, procurando marcar com um olhar neutro – inclusive na própria escritura das colunas e editoriais – o pertencimento a diversos mundos, fazendo o que afirma Michel de Certeau: “Por um paradoxo apenas aparente, o discurso que leva a crer é aquele que priva do que impõe, ou que jamais dá aquilo que promete. Muito longe de exprimir um vazio, de descrever uma falta, ele o cria”.337 Através do jornal e da diversidade de colaboradores teria sido iniciada a busca da origem da cidade, do seu passado, da sua gente, dos seus costumes e tradições. A influência do ambiente sobre o caráter e comunidade em formação, esboçam elementos formadores de uma crescente identidade regional. Nele são fornecidos enunciados e imagens para diferentes discursos regionais. A cidade e região eram ali muito mais um espaço substancial, emocional, do que um recorte territorial preciso. Era uma imagemforça que procurava juntar elementos lingüísticos, geográficos, culturais, modos de vida, bem como fatos históricos locais marcantes. Uma ideia referenciando ao interior, à alma, à essência da cidade, onde estariam ocultas suas raízes, sua cultura: “Velho açude, eu te contemplo as águas revoltas em mini-ondas sucessivas a quebrar em espumas como a beijar esta terra que tanto amo [...]”. 338 Havia ali uma centralização de sentidos em empatia com os dados regionais e locais, para diluí-los ou integrá-los a um discurso, a uma imagem, a um texto que os resgatasse como signos soltos e livres dos antigos territórios a que pertenciam de suas antigas espacialidades. O açude grande, as festas populares, a praça principal da cidade, a Batalha do Jenipapo passaram a serem signos representativos da região, arquivados e rearrumados numa nova imagem, em um novo 336 A primeira citação, coluna “Poema Campo Maior”, edição de 17/04/1977 de David M. Caldas. A segunda, a coluna “Urbanização de Campo Maior”, edição de 27/04/1969 de Tomé Dídimo. 337 CERTEAU, Michel de, A Invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer, Petrópolis (RJ), Vozes, 1994. p. 186. 338 EULÁLIO, Octacílio, coluna “Açude grande”, edição sem data. 98 texto para aquele espaço territorial, direcionando ao que propõe Foucault: “Era o discurso que, profetizando o futuro, não somente anunciava o que ia se passar, mas contribuía para a sua realização, suscitava a adesão dos homens e se tramava assim com o destino”.339 A formação discursiva dos colaboradores fez surgir um tipo de regionalismo, característico do movimento regionalista brasileiro, assentado no discurso da tradição e numa posição nostálgica em relação ao passado da cidade e seu povo. Um recorte espacial onde os sujeitos se inclinariam na mesma direção e sentido. No caso da Batalha do Jenipapo, Campo Maior/PI renasceu do reconhecimento de uma derrota perante os portugueses, militarmente superiores, porém foram criadas imagens e discursos imaginários e simbólicos de um povo heroico, que lutou por sua terra e destino, inclusive a independência nacional, como no caso do editorial de 20 de março de 1971: “[...] lembraram o feito brilhante de conterrâneos que fizeram o mais bonito quadro de heroísmo das lutas pela emancipação política do Brasil [...]”.340 Interesses que passaram a ser pensados como de um todo maior. Tornou-se o principal veículo de disseminação de reivindicações para a construção de um monumento-museu e divulgador de formulações em defesa de uma nova identidade local. Nele, os desenhos, as configurações, o relevo formado pelos constantes depósitos de camadas de discursos, a acumulação das memórias dos textos dos colaboradores, suas formas de linguagens, ao se sedimentarem, reproduziram uma geografia do passado da cidade e davam a esses sedimentos consistência sólida, de construção de uma verdade indiscutível. Vai ser nas páginas do semanário A LUTA que o colaborador Macário Oliveira publicará a sua série de vinte e duas colunas numeradas, enviadas de Teresina/PI, onde ele fez o delineamento de um pensamento regionalista sobre os fatos que levaram ao acontecimento da batalha do Jenipapo. Na coluna de abertura, Oliveira afirma “No final do século XVIII e começo do século XIX as ideias liberais dominaram o mundo ocidental, muito embora, na Inglaterra elas já fossem uma realidade desde há séculos”.341 Uma série de práticas e eventos dispersos, porém constantes, fizeram emergir e se institucionalizar a ideia da batalha como fato marcante da região. Essa ideia foi sendo 339 FOUCAULT, Michel, A ordem do discurso, São Paulo, Edições Loyola, 15 edição, 2007. p. 15. Editorial “Foram homenageados os heróis do Jenipapo”, edição de 20/03/1971. 341 OLIVEIRA, Macário, “Independência do Norte – 1, (Batalha do Jenipapo)”, edição de 05/05/1973. 340 99 lapidada até se constituir em uma bem acabada produção da região de Campo Maior/PI, culminando com a inscrição da data do acontecido na bandeira do Estado do Piauí em 2005.342 Nas colunas e editoriais do jornal olhava-se para o passado e alinhava-se a uma série de acontecimentos para demonstrar que a identidade da região já estava lá, naturalizando-a, retirando seu aspecto de construção social. Passava a falar da história da região e do Brasil desde o século XVIII, lançando para trás uma problemática da região e um recorte do espaço, dado a saber só na década de 1970. A região se redefiniria, então, por histórias diferentes, com usos, tradições e heróis convergentes. A legitimação de recorte regional da cidade já não se dava com argumentos territoriais, mas com argumentos históricos da batalha, dos lugares e mitos fundadores da localidade. Usar-se-á, sobretudo, do recurso à memória individual e coletiva da cidade e seus heróis, como aquela que emite a tranquilidade de uma realidade sem rupturas, de um discurso que produzido por analogias, garantiria a sobrevivência de um passado que se via condenado pela história: “Nesta terça-feira, 13 de março, comemora-se mais um aniversário da Batalha do Jenipapo. Os cento e cinqüenta e seis anos. O dia é feriado municipal e, por isso, podem todos, povo e autoridades constituídas do Município reverenciar mais à vontade os seus grandes heróis autores incontestáveis de um dos maiores feitos no campo da luta pela emancipação política deste País, que não obstante isso, nos fastos da História pátria nada consta, numa inominável injustiça [...] Na luta idealista pela independência do Brasil, os piauienses e quiça os campomaiorenses, pagaram o mais alto preço, o preço da vida. Não foram poucos os que preferiram “viver pouco para morrer bem, morrer jovens para viver sempre” [...]”.343 Os discursos que o periódico se apropriava, tomavam a história como um lugar de produção da memória, de reminiscências. Eles faziam da história o processo de afirmação de uma identidade, da continuidade e da tradição da cidade de Campo Maior/PI e seus habitantes. Como afirma Hobsbawm e Ranger: “Isso porque toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal”.344 Construíam um espaço regional através do 342 Lei 5.507, 17/11/2005. A primeira citação está na edição de 11/03/1979, editorial “No Jenipapo a mais sangrenta Batalha pela Independência”. A segunda está na edição de 30/031969, coluna “Julgue você: valeu a pena mudar?”, de Antônio Andrade Filho (Irmão Turuka). . 344 HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence, A Invenção das Tradições, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997. p. 21. 343 100 agenciamento de monumentos, tipos humanos locais, símbolos e paisagens que pontilhavam aquele território dominado pelo poder das famílias tradicionais e mandantes daquela localidade. Para Foucault, “Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder”.345 A idealização da cidade e da região passou a ser pensada como questões históricas, sociais e culturais, com a emergência de uma nova formação discursiva feita pelos colaboradores do semanário. Eles moviam as narrativas em linhas que guardavam contato com as práticas multiformes e quase romanescas do passado e de valores “sagrados” de personagens e heróis de Campo Maior/PI. A vida familiar era a esfera reparadora e enfática em que as disparidades sociais e naturais da região deveriam achar consolo e sublimação. Sem esquecer que uma doutrina autoritária imposta pelo regime civil-militar brasileiro se entrelaçava com naturalidade às tradições católicas e patriarcais muito presente na região: “Assim como águas passadas não enchem rios, mas no seu curso aprofundam o leito para torná-lo maior, muitos dos simples e humildes cidadãos campomaiorenses passaram pela vida, enchendo de graça as ruas da cidade, arrancando sorrisos ou fazendo maior o folclore que enriquece a nossa história [...]. [...] Quantos poetas, filósofos e pensadores inatos brotaram deste solo querido, fazendo Campo Maior um lugar mais divertido, cheio de risos e de prosas, distanciado da ciência e da mecânica, porém mais aproximado da inocência feliz de nossos pais e avós! [...] Esta terra que foi de Lívio Lopes Castelo Branco, dos Titos, de Emydio Genuíno de Oliveira e seus brilhantes filhos, de Vicente Pacheco, de Honório Bona, Rafael Oliveira e de Antônio da Costa Araújo, de Antônio Maria Eulálio, de Clemente Pires, de Pergentino Lobão, Monsenhor Fernando Lopes e centenas de outros vultos, uns poderosos, outros brilhantes pela inteligência [...]”.346 Para o colaborador Antônio Andrade Filho, o campomaiorense era imaginoso, fantasioso, sensitivo, delirante e compadecido e sua cidade era o lugar da história e do passar do tempo, uma região onde o passado pesava sobre o presente. Ele produzia uma elaborada discussão imagética da cidade e seu passado através da impregnação de 345 FOUCAULT, Michel, Microfísica do Poder, Rido de Janeiro, Edições Graal, 1979. p. 180. FILHO, Antônio Andrade (Irmão Truka), coluna “Bem aventurados os simples”, edição de 16/02/1969. 346 101 tradições, saudades e ideias abstratas da região: “Ah! Pela perpendicular que nos eleva a Deus e pelo nível que nos iguala os túmulos, nunca me cansarei de lembrar e repetir os nomes destes sempre lembrados conterrâneos meus, que ainda hoje tornam alegres os meus dias [...]”347 Esse colaborador expressava uma realidade coletiva fiel às tendências de um discurso regionalista, evocando as características de uma região – Campo Maior e redondezas – relacionando as lembranças ao que havia de supostamente mais essencial na estrutura da sociedade local: memórias, amor à terra e tradições. Em suas colunas, Andrade Filho propunha captar as singularidades das raízes populares, da realidade do povo campomaiorense, levando para seus textos as falas, imagens e crenças do nascimento de um novo mundo do qual a cidade deveria tomar parte. Ele procurava caracterizar aquela comunidade, buscar sua essência, retratando a região a partir de sua fala e visão. Preocupava-se em fazer a cidade enxergar o seu povo com suas lutas, suores, misérias e malandragens. Suas atitudes simbolizavam uma dada condição naquela sociedade e uma verdade única a expressar naquele contexto. Verdade que era feita daquilo que era visto e também imaginado. Seus textos pregavam fazer uma vetorização entre o passado e presente de Campo Maior/PI, testemunhando a existência de espaço territorial que não deveria desaparecer. Ele vai deixando entrever conexões com processos externos que se passavam em outros lugares e em outros tempos e com outras personagens, deixando o inconsciente maquinar outros nexos. Falava da principal praça da cidade com os casarões onde moravam as pessoas que representavam a elite local e como o administrador municipal procurava atrair os visitantes para aquele espaço perpassado por fortes influências conservadoras: “Detive-me outro dia a olhar os canteiros multiformes de variedades matizes, com que o atual Prefeito se esmera em mostrar aos visitantes a mais bela praça do Piauí, “Bona Primo”. Corri os olhos nos velhos casarões, feios mais nobres, delimitando a área do belo quadrângulo. Casas que abrigavam no passado as mais nobres Patentes da Guarda Nacional e os mais ilustres nomes de cidadãos campomaiorenses – quantas gerações desaparecidas sem que ousássemos esquecê-las”.348 O fato é que Campo Maior não é um fato inerte na natureza. Não está dado desde sempre, pois “Os recortes geográficos, as regiões são fatos humanos, são pedaços de 347 348 Idem, ibidem. ANDRADE FILHO, Antônio (Irmão Turuka), coluna “Recordar é viver”, edição do dia 25/08/1968. 102 história, magma de enfrentamentos que se cristalizaram, são ilusórios ancoradouros da lava da luta social [...]”.349 E que é melhor que fiquem todos em seu lugar e conheçam a sua condição. Não porque as diferenças sociais sejam justas ou injustas ou porque as tradições as justifique, mas porque os mediadores daqueles movimentos – os colaboradores e leitores do jornal A LUTA – estavam impregnados de memórias e nostalgias e suas escrituras não eram pontos de chegada e nem de partida, mas de travessia, de transversalidade de diferentes fluxos sociais: “[...] Minha Campo Maior é linda. Seus íncolas, sua fauna, sua floresta vivem num regalo, festejam a lacre festa. És cidade bendita, mercê ao labor dos filhos seus. És albergadora, gentil e promissora. Do Piauí és uma cidade paradigma Pelos óbolos donairosos que lhe deu Deus. [...] Linda como um presépio ornado de vidrilhos, Perto da vasta várzea ela se ergue e se espalma. Terra de tradições, de heroísmos e de brilhos, Onde o ar é puro, o sol é santo e a vida é calma”.350 São escritos de recordações, feitos a partir do passado e linhas de sonho de continuidade. Muitos são construídos a partir de memórias de infâncias ou adolescências que surgiam como presenças vivas, sempre atuais, formando uma paisagem espacial e social onde eles pareciam se reconhecer. Por conseguinte, alguma coisa ficava obscura e, sobretudo, as proporções ficavam incertas e prejudicadas. A presença do conservadorismo, tradicionalismo e paternalismo era poderosa e comandava às vezes colunas e editoriais inteiros. Basta ver o editorial “Exaltemos nossos valores”, edição sem data351 e a coluna “Recordações”, do colaborador Octacílio Eulálio.352 Era um contexto saturado de impedimentos, preenchido por acontecimentos secundários, pois o Piauí e o Brasil viviam um momento político peculiar.353 Mas não havia como separar a política nacional da política local, pois alguns colaboradores conciliavam em suas colunas os interesses dos campomaiorenses da cidade, dos proprietários da região e ao mesmo tempo, as inspirações desenvolvimentistas, análogas 349 ALBUQUERQE JÚNIOR, Durval Muniz de, A invenção do Nordeste e outras artes, Recife: FJN, Editora Massangana, São Paulo, Cortez, 2006. p. 66. 350 A primeira citação é da poesia “Minha Campo Maior”, edição sem data. A segunda é do editorial “Campo Maior de ontem e de hoje”, edição de 24/07/1977. 351 O colaborador se refere às várias pessoas de famílias tradicionais e do passado da cidade de Campo Maior/PI. 352 Na coluna Octacílio se refere às lembranças da infância, do cantar dos pássaros, dos tamarindeiros que existiam próximo à igreja, das escolas tradicionais da cidade. Ibidem. 353 A diferença leva longe, pois os grandes centros do país passavam pelos chamados “anos de chumbo”. 103 ao governo civil-militar. Era necessário que a região se amoldasse às transformações que estavam ocorrendo no estado e no país, para que não viesse perder o controle sobre a situação das relações e valores tradicionais de poder da cidade. O jornal por vezes apoiava o regime como no caso do editorial de 01 de abril de 1973: “Entre o entusiasmo dos campomaiorenses, na manhã do dia 31, data do nono aniversário da vitoriosa Revolução democrática de 64, o Governador Alberto Silva presidiu o ato de lançamento da pedra fundamental do Monumento-Museu [...]”. 354 e o editorial de 01 de abril de 1979: “As Forças Armadas, por seus comandos, organizaram um bem elaborado programa para festejarem o evento, que em 31 de março de 64 deu um Não definitivo ao comunismo, assim implantando no país um regime de segurança e desenvolvimento”.355 De 1967 a 1979 foram momentos de intensas disputas entre os diferentes projetos ideológicos no Brasil, momentos em que as organizações e instituições – incluindo as empresas midiáticas e seus componentes – travaram uma intensa batalha em torno de um novo rumo para a história nacional, para a nação e seu povo, bipolarizado entre a esquerda comunista e a direita autoritária. Naquele momento, a imprensa se converteu num meio de luta importante para se impor com uma visão e com uma fala sobre aquela realidade, oferecendo uma interpretação e uma linguagem afinados aos objetivos estratégicos traçados por cada agente detentor do poder. E o jornal A LUTA não fugiu à regra. Ali os significados das colunas e editoriais tendiam a ficar restritos a um campo de saber já conhecido e consagrado pelo receptor. Muitos eram textos que queriam ser um reclamo, um brado de alerta local, às vezes beirando até o panfleto, fiéis angústias que afligiam aquela cidade e por extensão toda a região, inscritas no jogo do poder entre as forças ali existentes: “O poder que circula em todas as direções, que é prática produtora de sentido, que se inscreve nos corpos, que os tornam sujeitos e que os assujeitam”.356 Nesta mesma direção, nota-se que o essencial ou parte dele não era dito pelos os colaboradores e editores do semanário357. A maior parte das narrativas tinha o caráter local, preenchidos por acontecimentos apoiados nas imbricações com o poder das 354 Editorial “Alberto Silva lança Pedra fundamental do Monumento-Museu”, edição de 01/04/1973. Editorial “Em 64 uma revolução salva o Brasil do Comunismo”, edição de 01/04/1979. 356 ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de, História a Arte de Inventar o Passado. Ensaios de teoria da história, Bauru, SP: EDUSC, 2007. p. 74. 357 Registramos mais uma vez a conformidade dos colaboradores diante do regime brasileiro imposto naquele contexto a partir de 1964. Em algumas colunas encontramos elogios ao governo civil-militar. Ver Colunas dos dias 17/03/1974, 16/05/1976, 01/04/1979 e 01/04/1973. 355 104 famílias mandantes da cidade de Campo Maior/PI. Do ponto de vista prático, as colunas e editoriais funcionavam para ajudar a manter a ordem local reinante, mais do que para mudá-la. Ajudavam no ajustamento formal do tecido social da cidade e suas inconsistências. Mas a paisagem social não mudava: as boas famílias que controlavam a riqueza e influenciavam a política eram retratadas com freqüência nas páginas de A LUTA. Resultava numa espécie de conformismo consentido, desembaraçado, antepassado da modernização reacionária de hoje, em que inteligência, aversão, diferenças, incompatibilidades e vigor se dão as mãos. As idealizações familiares moviam as narrativas dos colaboradores em linhas que reforçavam os valores morais da sociedade: “Uma das mais fortes escoras da família é, sem dúvida, a probidade conjugal. O dever da fidelidade compete a ambos os cônjuges, o que é certo”.358 Não se deve confundir fidelidade conjugal, um valor moral, com paternalismo, uma prática de manter em condições precárias os seus subordinados, concedendo-lhes pequenos agrados. Se não era dado ao raciocínio reduzir a família a posições menos sagradas, os valores dela eram elementos acatados, finais e determinantes. Construíam rotas, linhas que ligavam pontos no espaço e no tempo: “O casal Luiz Miranda e Zelinda Carvalho viu passar na última quarta-feira mais um aniversário de seu casamento, que foi festivamente comemorado [...]”.359 Os valores familiares locais oscilavam entre o passado deixado para trás e a construção de uma memória presente, invadidos através dos ouvidos, olhos e boca. Era um território onde as notícias do semanário buscavam rejuntar os tijolos das experiências cotidianas do passado e do presente: “A cidade inteira começa a movimentar-se com vistas às tradicionais festas do padroeiro Santo Antônio, acontecimento máximo da terra dos carnaubais”.360 Mas a existência de Campo Maior/PI e região como um espaço de tradição, de saudades, não se fez apenas pelos discursos textuais dos colaboradores do periódico. Dela também participaram as imagens e fotos dos lugares e de pessoas – típicas da região – exercendo grande influência na formação de um arquivo de imagens-símbolos fundamentais para a transformação em formas visuais, sempre que se queria fazer ver aquele espaço territorial. Imagens simbólicas e exemplares que construíam um dado 358 359 360 MIRANDA, José, coluna “Mulheres feias”, Edição sem data. Editorial “Família recebe benção do Papa”, edição de 05/12/1975. Editorial “Festa de Santo Antônio”, edição de 27/05/1979. 105 espaço pictórico da cidade e região e que lhes atribuíam formas “verdadeiras e definitivas”.361 Eram imagens regionalistas e por vezes conservadoras, objetivando fixar as formas regionais de Campo Maior/PI.362 A dizibilidade e visibilidade de Campo Maior/PI e região, como qualquer espaço, também eram compostos por produtos imaginados nas colunas e editoriais do semanário, aos quais se atribuíam realidade. Compunham-se de fatos que, uma vez escutados, vistos, lidos e contados, eram fixados, impostos como verdades, repetidos, tomavam consistência, criavam raízes. Eram personagens, fatos, textos, imagens que se tornavam mitológicos, que pareciam flutuar para aquém ou além da história local. No entanto, possuíam uma positividade ao se transformarem em práticas, hábitos, em instituições e subjetividades sociais locais. Eram regularidades discursivas que se solidificavam como características típicas, expressivas, essenciais para aquela região: “Conta velha tradição de nossa história que pelo mês de outubro de 1923, passou por Campo Maior um grupo de Romeiros de nossa Mãe das Dores com destino ao juazeiro do norte, em visita ao padrinho Cícero Romão Batista. Um dos nossos coronéis-de-interior, por troça ou por deboche, entregou ao chefe dos romeiros uma moeda e falou: “Diga lá a teu padrinho que se ele tem poderes sobrenaturais me mande de lá este Cruzado de chuva”. Quando retornou, cheio de bênçãos e de Fé o sincero viajante trouxe 380 réis de troco e a resposta do Padre Cícero que “para não prejudicar demais mandaria somente dois vinténs de chuva do próximo inverno”. Dizem que nesse ano a fazenda do blasfemo coronel sumiu na enxurrada”.363 Nas narrativas mitológicas desenvolvidas pelos colaboradores do jornal, as informações históricas eram construídas geralmente para dar verossimilhança ao que se narrava. Seguia uma estrutura imagética e discursiva já traçada, uns interessados nas transformações, outros na manutenção da ordem conservadora das famílias campomaiorenses. Era do ponto de vista do poder ou da luta pelo poder da região que os conteúdos das colunas e editoriais mais se posicionavam. Muitos falavam de um passado local como exemplaridade do que se deveria fazer naquele presente, além de fazerem suas queixas aos grupos dirigentes. Outros veiculavam suas demandas tomando 361 Para ver mais sobre similitude e semelhança, representação e apresentação, ver FOUCAULT, Michel, Isto não é um cachimbo, São Paulo, editora Paz e Terra, 2008. p. 20. 362 Ver item 3.4 – Anexos, figuras 1, 2, 3, 4 e 5. 363 FILHO, Antônio Andrade (Irmão Turuka), coluna “Inverno de Vinte e Quatro”, edição de 02/02/1969. 106 a visão e a voz do povo para si. Mostravam-se preocupados com a justiça e a liberdade da comunidade local, dando novos sentidos aos seus enunciados e imagens. É o que se vê no editorial “Todo o Piauí vem presenciar a guerra simulada do Jenipapo”, edição de 06/10/1973364 e no editorial “Aqui, o leitor escreve” que começa assim: “O jornal “A Luta” completa seis anos de luta. Luta no afã de comunicar valores positivos a uma comunidade que progride. Um progresso que, oxalá seja em função da pessoa humana indiscriminadamente e não em função de grupos”.365 Quando naquele contexto os colaboradores do semanário se apropriaram de Campo Maior/PI e região como tema de suas colunas e editoriais, ela não se apresentou como objeto neutro. Já trazia embutido em si enunciados e imagens que foram frutos de várias estratégias de discursos e poder que se cruzaram no decorrer do tempo. De várias convenções que estavam dadas, consagradas e ordenadas historicamente. Tornou-se um espaço povoado por fatos e personagens que, como mitos, venceram o tempo que decretou o seu fim, e quase sempre, passaram a ser venerados, permaneceram como enigmas que se inscreveram nos discursos que os tomaram como objetos e imagens. 366 Para Foucault, “Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo o caso; e é nesta prática que os acontecimentos do discurso encontram o principio de sua regularidade”.367 Os ajustamentos formais sugeridos pelas colunas e editoriais solucionavam e/ou amenizavam as inconsistências sociais e políticas daquele contexto, mas produziam também outras novas. Eram confusões que não havia como escapar, fugir, pois o semanário selecionava alguns assuntos e ideias de sentido impróprio para aquela comunidade, já que não podemos esquecer que um pensamento conservador, em que a família tradicional dava o paradigma à sociedade, se entrelaçava naturalmente às tradições católicas e patriarcais da região: “Foi num dos caminhos escabrosos da vida que um dia encontrei uma mártir do destino. Sentada à mesa de um bar, sobre a qual se via uma 364 Nessa edição o colaborador do jornal retrata a inauguração do monumento e autoridades que se farão presentes e como 500 alunos da cidade farão um representação para o público presente. 365 Editorial “Aqui, o leitor escreve”, edição sem data. 366 Para melhor esclarecer estes aspectos, ver NETO, Adrião, A Epopéia do Jenipapo, Teresina, Edições geração 70, 2006. DE LIMA, Reginaldo Gonçalves, Geração Campo Maior-Anotações para uma enciclopédia, Teresina, Gráfica e Editora Júnior Ltda, 1995. LIMA, Francisco de Assis de, Campo Maior em Recortes, Campo Maior/PI, Edição do autor, 2008. CHAVES, Monsenhor Joaquim, O Piauí nas Lutas da Independência do Brasil, Teresina, Alínea Publicações Editora, 2005. 367 FOUCAULT, Michel, A ordem do discurso, São Paulo, Edições Loyola, 15 edição, 2007. p. 53. 107 cerveja e um copo ao lado de uma radiola a rodar um disco, ouvindo uma música nostálgica, estava uma mulher ebriada, de rosto enrubescido, olhos tristes, cabisbaixa, parecendo estar perdida no mundo das ilusões que se perderam com o tempo [...]. Fez-se guia de si mesma, ouvindo só os lampejos instintivos do seu coração sedento de amor [...]. Renunciou à sociedade pelo coito ilícito, vendeu a sua honra pelo preço que lhe ofereceram[...].368 Todavia essas falas e posições dos colaboradores não dão conta da complexidade das relações em que se inseria Campo Maior/PI, uma vez ter este ultrapassado esses limites. Deixam na penumbra outras faces também pertencentes a esta, forte presença de forças políticas e sociais conservadoras e tradicionais locais.369 Ficou claro que o processo social ocorrido entre o semanário A LUTA e seus componentes e a população de Campo Maior/PI esteve envolvido e submetido ao jogo do poder local, o qual estava rodeado de outros elementos, incluindo, as estruturas internas das instituições ali presentes.370 Assim, a construção dos conteúdos das colunas e editoriais não seguiam uma trajetória livre, ao contrário, correspondiam às aparências locais, tomadas por vozes de uma realidade parcial, encobrindo uma parte essencial, a situação nacional. Obedeciam a prescrições previamente preparadas, exigências do contexto e das ações dos agentes sociais do lugar. Para Dominique Wolton “A comunicação é tanto um processo de confiança, um jogo simbólico, quanto uma realidade técnica concreta”.371 Desde suas edições iniciais, o semanário tentava captar através de suas narrativas textuais uma singularidade para a cidade a partir de uma busca das raízes populares, da realidade do povo, procurando apresentar soluções para os problemas sociais e locais da população campomaiorense. Os colaboradores, a partir de suas visões e falas procuravam caracterizar a cidade de Campo Maior/PI e sua população mostrando suas essências e retratando suas verdades internas, denunciando as injustiças sociais, as 368 NETO, Soares, coluna “Caminhos da Vida”, edição de 21/01/1968. É sempre bom lembrar do contexto histórico em que existiu o semanário. Situação Nacional complicada onde imperava um sistema político singular. Situação regional com forte presença e domínio de redes familiares, onde uma elite detinha as maiores propriedades rurais da região. Em geral aqueles latifundiários se agregavam em um ou outro lado político. 369 370 Vimos no primeiro capítulo que existia uma espécie de rotatividade dos membros das famílias tradicionais da cidade no poder político local. Vimos também que o fundador do jornal, Raimundo Antunes Ribeiro participou na criação de clubes sociais, esportivos, maçonaria, etc. Que algumas escolas públicas iam buscar professores em outras instituições da cidade, como a igreja, bancos e judiciário. 371 WOLTON, Dominique, É preciso salvar a comunicação, São Paulo, Paulus, 2006, p. 119. 108 condições em que vivia a maioria do povo daquela região. Alguns desses colaboradores tentavam conciliar o lado belo da sua terra, de sua comunidade, com o social, pobre, dificultoso, juntando uma visão muitas vezes lírica da natureza e da sociedade com uma visão romântica de positividade daquela realidade presente e a busca da construção de uma nova imagem da cidade. Como é o caso da coluna de Octacílio Eulálio: “Não poderá existir ponto melhor de turismo que a poética Serra Azul de Campo Maior; visitar olhos-d’água permanentes, presenciar a existência de furnas colossais naturais e a beleza da paisagem que deixará por certo , em êxtase, qualquer visitante”.372 Através de seus escritos eles tentavam encontrar brechas, frestas, passagens para as percepções daquela realidade, uma linha de fuga para escapar das engrenagens, provocar fricções nos desejos e poderes ali dominantes. Assim, como propõe Durval Albuquerque, “Poder e desejo não são entes metafísicos ou coisas que podem ser localizadas em algum lugar específico; ambos nascem nas relações entre os homens, só existem entre lugares de sujeito e formas de objetos, por isso nascem irmanados”.373 Por fim, o semanário A LUTA como espaço divulgador da cidade de Campo Maior e sua população parecia estar sempre no passado, na memória. Cidade evocada como o lugar para o qual se queria voltar e que permaneceria a mesma. A família, os amores, os lugares ficavam como que suspensos no tempo a esperarem que um dia seus filhos voltassem e reencontrassem tudo como deixaram. Preocupações em entender a alma da terra e sua espiritualidade assentada no sobrenatural e na religiosidade atravessaram toda a existência do periódico campomaiorense. Nele, os discursos conservadores e tradicionalistas tomavam a história como o lugar da produção de memórias e reminiscências, onde os sujeitos daquele presente se reconheciam no passado. Faziam da história processo de afirmação de uma identidade local, ressalvada sempre pela relação produtiva de uma linguagem própria e base assegurada pelos poderes tradicionais da região. As festas populares da cidade, os fatos históricos, os lugares apresentavam uma função disciplinadora, de formação de uma sensibilidade, baseados na perpetuação de hábitos, costumes e concepções, construindo novos códigos sociais para seu povo, capazes de arrefecer os conflitos trazidos pela sociabilidade daquele contexto de 1970. Códigos que ressoavam novas maneiras de ver, dizer, sentir e agir e que estabeleciam um equilíbrio entre a nova ordem e as anteriores. Para o jornal e seus 372 EULÁLIO Octacílio, coluna “Turismo”, edição sem data. ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de, História a Arte de Inventar o Passado. Ensaios de teoria da história, Bauru, SP: EDUSC, 2007. p. 78. 373 109 colaboradores, a legitimação do recorte regional já não se daria somente com argumentos naturalistas, mas também com argumentos históricos.374 3.4 – Anexos Figura 1 – Projeto para construção do monumento do Jenipapo – Jornal A LUTA, edição sem data. Figura 2 – Praça Bona Primo – Jornal A LUTA – Edição sem data Figura 3 – Estrada de Campo Maior – Jornal A LUTA, edição sem data 374 Para melhor entender esse assunto ver FREYRE, Gilberto, Região e tradição, Rio de Janeiro, Editora Record, 1968. p. 107 e seguintes. 110 Figura 4 – Imagem de Santo Antônio – Edição sem data Figura 6 – Rua Santo Antônio ou Rua dos cabarés – edição sem data Figura 5 – Governador inaugura o monumento do Jenipapo – Edição de 11/11/1973 31111111111/11/1973 CONCLUSÃO Por ser veículo, suporte, meio, um jornal permite acesso do historiador às representações com a qual uma determinada época trabalha. Além disso, permite sondar a historicidade dessas representações. Analisar o semanário A LUTA como objeto e fonte de pesquisa implicou apontar possíveis direções da historicização dos atos 111 comunicativos dos colaboradores, ressaltando que comunicar é mais do que repassar informação: “A comunicação é como a vida. É levantar-se, olhar, falar, ligar o rádio, a televisão, o computador, ler, conversar por telefone”.375 E encontrar no jornal as falas e práticas – discursos - que se firmaram pelo caminho ou escolheram atalhos ao se relacionar com uma sociedade plural e suas diversas formas de interseções num período atravessado por tensões que foram ao mesmo tempo fronteiras e possibilidades. Não estávamos interessados somente no periódico em si, mas principalmente na forma como ele nos permitiu acesso ao contexto e como ele mesmo se fez contexto histórico. Assim, o recurso às poesias, colunas, editoriais e entrevistas se tornaram fundamentais para nossa investigação. Revelamos as construções imagético-discursivas e as constelações de sentidos que o periódico se apropriou para ver e dizer a cidade de Campo Maior/PI e seus habitantes no período de 1967 a 1979. A cidade e a região eram vistas e ditas de formas diferentes, dependendo do lugar social que cada colaborador ocupava na sociedade local e da teia de poder e saber que a esta se vinculava. Submetidos a condições históricas dadas, ocupando lugares específicos nas relações sociais e políticas da cidade, os componentes do jornal produziram diferentes textos e imagens de Campo Maior/PI e sua comunidade, pois “O jornalista transforma o acontecimento (matéria-prima) em notícia (produto), a partir das condições de produção ao qual está submetido, considerando todas variáveis intrínsecas ao processo”.376 Quando uma representação chega ao público por intermédio de um jornal, isso não ocorre sem mediação. Ao passar por aquele dispositivo, aspectos conjunturais confluentes e influentes relacionados ao meio de comunicação são engendrados. Era o que acontecia com os discursos do jornal campomaiorense. Eles articulavam não apenas representações e marcas identitárias, mas também gestos, comportamentos sociais, políticos e religiosos. Alcançavam públicos variados, criando tensões entre emissores e receptores, apontando para a materialidade dos próprios processos comunicativos: “Os aspectos relacionados à imprensa, ou seja, à própria materialidade dos processos de divulgação e circulação dos textos dizem respeito não apenas às variações de público em sua segmentação (numa vulgarização poderíamos ficar na dicotomia entre alfabetizados e não-alfabetizados), 375 376 WOLTON, Dominique, É preciso salvar a comunicação, São Paulo, Paulus, 2006, p. 13. REGO, Ana Regina, Jornalismo, Cultura e Poder, Teresina, EDUFPI, 2007. p. 96. 112 mas as formas como este articula pensamentos e cria sentidos sobre o que está lendo”.377 Essa discussão pressupõe hoje abordagem salutar e interessante dentro do conhecimento histórico, porque os pequenos jornais empoeirados das pequenas cidades brasileiras, mais do que peças esquecidas, mortas quanto a um sentido ou utilidades práticas, são, sobretudo, um canal de comunicação entre presente e passado, entre memórias e histórias passadas de lugares e pessoas378 e refletem, muitas vezes, as marcas das diferenças e lutas sociais que assistiram a sua criação e existência. No nosso caso, fez com que entendêssemos as circunstâncias e os comportamentos da sociedade de Campo Maior/PI e mesmo dos editores e colaboradores do semanário A LUTA naquele espaço temporal, embora a produção e circulação dos discursos não tivessem “[...] o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa”.379 Nos esforçamos em arrastar para a claridade um conjunto de fatores locais da cidade de Campo Maior/PI e sua população,380 mostrando aspectos simbólicos que nos permitissem analisar as formas como os seus produtores se relacionavam com seu tempo e espaço, procurando inscrever sentidos sobre aquele período. A partir da leitura das reportagens ambientadas no seio das colunas e editoriais, tentamos entender e compreender aquela época de valores e conceitos, destacando o jornal não somente a partir das interpretações significantes ou mesmo pelo ineditismo das fontes, de resto já divulgados por outros pesquisadores,381mas principalmente, pelas narrativas que se centravam em Campo Maior/PI e no contexto histórico que as perpassavam. Lutando ao mesmo tempo contra as deficiências técnicas de seus equipamentos 382 e pela escassez de recursos financeiros, os editores e colaboradores se apropriaram e 377 SANTIAGO JÚNIOR, Francisco das Chagas Fernandes, História e Comunicação: a Rádio Pioneira de Teresina e seu público nos anos 1990, IN: NASCIMENTO, Francisco Alcides do e SANTIAGO JR, F. C. Fernandes, Encruzilhadas da História: Rádio e Memória, Recife, Bagaço, 2006. p. 251. 378 Muitos colaboradores e leitores do jornal ainda estão vivos e presentes na sociedade de Campo Maior. 379 FOUCAULT, Michel, A ordem do discurso, São Paulo, Edições Loyola, 15 edição, 2007. p. 9. 380 Neste caso, a situação das pequenas cidades do nordeste brasileiro no contexto do governo civilmilitar, os pequenos jornais dessas cidades – quando tinham -, os comportamentos das elites conservadoras desses lugares, etc. 381 Vários autores já citaram o jornal em suas obras, como exemplo: LIMA, Reginaldo Gonçalves de, Geração Campo Maior – Anotações para uma enciclopédia -, Teresina, Gráfica e Editora Júnior Ltda, 1995, pp. 292-309. LIMA, Francisco de Assis de, Campo Maior em recortes, Campo Maior(PI), 2008, pp. 27-43. 382 Vimos que as reportagens eram montadas letra por letra e a máquina que fazia a impressão do jornal era movida a pedal. Ver SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012. 113 empreenderam estratégias, práticas, astúcias e movimentos táticos para criar e às vezes manter discursos, formas de nomeação daquela realidade, enquadrando e detendo diferentes subjetividades. Eles procuravam também, dar outros significados ao semanário, como é o caso de colunas e editorias com intenções políticas, 383 agindo e se comportando com vistas a conviverem com o cotidiano que os transpassava. Ali, movimentos permaneciam e outros se modificavam em uma sociedade atravessada por particularidades e temporalidades. Mostramos que o periódico foi contemporâneo do regime civil-militar brasileiro iniciado em 1964 - onde as opiniões discordantes eram combatidas e institucionalizadas - e atravessou e presenciou todo um complexo processo de rupturas, sobretudo políticas e sociais. Diversas colunas e editoriais se referiam àquela época como “revolução”, tecendo recorrentes elogios e prestigiadas homenagens, que em boa medida, apontou para a condição de consenso àquele regime autoritário, demonstrando constituições de sentidos e delimitação de fronteiras sensíveis. Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat chamaram de “ambivalência” às frequentes dicotomias colaboracionismos/resistências aos regimes ditatoriais. Para elas, se referindo ao período de 1964 a 1985 no Brasil, pouco se pesquisou e escreveu no sentido de compreender as relações da sociedade com aquele regime, embora exista vasta bibliografia sobre a época e que “A academia já tendo produzido tanto sobre a ditadura, mas tão pouco sob esse ângulo, contribui, de certa forma, contraditoriamente, para esse desconhecimento”.384 Na mesma direção, segundo as autoras, muitas sociedades “Diante do espelho, não raro, descobrem-se mesmo como parte de sua engrenagem, a gestá-lo, a alimentá-lo”.385 Ao tratarmos de colunas e editoriais abordando as festas populares de Campo Maior e do fato histórico da batalha do Jenipapo como processo de influência e convencimento para a construção do monumento e museu, a intenção era deixar surgir alguns mecanismos de saber e poder que produziram aquelas fraturas regionais e deram a elas identidades. O não esquecer daqueles acontecimentos pareciam para alguns 383 Ficou claro que durante a sua existência (11 anos e 8 meses) o periódico se posicionava contra ou a favor do poder político local e sempre apoiando a situação nacional. Para o colaborador Severo Sampaio, o jornal fazia oposição local sem ferir, sem agredir. Para ele, o jornal fazia críticas construtivas. Ver SAMPAIO, Severo Visgueira de, entrevista do dia 21/02/2012. 384 ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samantha Viz, A construção social dos regimes autoritários (orgs), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010. p. 10. 385 Idem, Ibidem. 114 colaboradores não somente uma questão política ou cultural, mas como lugares de sujeitos que estabeleciam aproximações e deslocamentos na formação de imagens e enunciados sobre aqueles espaços de memórias. A construção dos discursos se pautavam em marcos, que chamamos de matizes. Esses matizes tratados e retratados no terceiro capítulo puderam ser percebidos como tentativas de construção - na sociedade campomaiorense – de imaginário acerca daqueles fatos para justificar seus objetivos: construção de memória refletida e reproduzida a partir daqueles temas locais, pois “A utilização de discursos retirados das páginas de um jornal tem a sua relevância relacionada à memória que nele se condensou”.386 Os registros orais feitos através das entrevistas se transformaram em chaves para a compreensão dos comportamentos e atitudes de homens e mulheres que fizeram o semanário no período estudado e forneceram subsídios importantes e necessários para o desenrolar do nosso estudo, uma vez que, ao selecionar as fontes escritas sobre a existência do jornal, especificamente de como ele era produzido e distribuído, nos deparamos com escassez de bibliografia sobre tal memória. Entrevistamos Ernani Napoleão Lima, José Miranda Filho e Severo Visgueira Sampaio ambos colaboradores e Luís Edwiges, militante do movimento camponês, preso em 1964, juntamente com Raimundo Antunes Ribeiro, fundador do periódico. Para Alcides Nascimento “A história oral não pode e não deve ser vista como uma panacéia, mas como um instrumento que permite a construção de documentos, que levam para dentro da história, vozes ignoradas pelas fontes tradicionais”.387 Nossa hipótese é que a cidade e região são uma espacialidade fundada historicamente no qual concorreram para sua formação tradições de pensamentos, textos e uma imagística que lhe forjaram realidade e presença. E que o jornal A LUTA forneceu alguns elementos para a coesão social local, reforçando os espaços do poder das famílias conservadoras da cidade, as quais guardavam contato com as práticas multiformes e quase universal do tradicionalismo. Ajustando-se à ordem estabelecida e às novidades da modernidade presente, as narrativas dos colaboradores procuravam 386 OLIVEIRA, Marylu Alves de, Considerações sobre o discurso anticomunista no jornal “O DIA”, IN: NASCIMENTO, Francisco Alcides do e SANTIAGO JR, F. C. Fernandes, Encruzilhadas da História: Rádio e Memória, Recife, Bagaço, 2006, p. 201. 387 NASCIMENTO, Francisco Alcides do, História Oral, IN: NASCIMENTO, Francisco Alcides do e VAINFAS, Ronaldo, História e historiografia, Recife, Bagaço, 2006. p. 140. 115 difundir assuntos definidores da conformidade social, política e cultural da região, contribuindo para reforçar a memória e a identidade da cidade. Lembrando que todos - jornal, população e colaboradores – estavam submetidos às influências do lugar e do tempo, cujas graças, desgraças, ilusões e ambigüidades eram também singulares. Buscando uma perfeição de perspectivas – pouco realizável com as técnicas, recursos e materiais disponíveis – o semanário sugeria ambientação e ajustamentos de interesses de uma paisagem social local, ingredientes essenciais para acompanhar os tempos e reforçar as imagens construídas de um dado universo e de uma memória regional, os quais se materializavam nas colunas e/ou editoriais e nos discursos que representavam tudo que havia de mais desejável na cidade à época: “Era o discurso que, profetizando o futuro, não somente anunciava o que ia se passar, mas contribuía para a sua realização, suscitava a adesão dos homens e se tramava assim com o destino”.388 Tentamos fornecer uma visão que abra novas possibilidades de interpretações e de significações a respeito dos jornais de cidades interioranas. Não se buscou, a partir dos sinais deixados pelo passado, construir uma verdade definitiva. Tratou-se de revolver as camadas de conhecimento que ainda permaneciam “naturalizadas” e que pareciam fugir da corrosão do tempo, para sermos capazes de pensar o diferente e, ao pensá-lo, fazer diferente. E também, estimular um novo tipo de olhar entre os jornais das pequenas cidades do nordeste e o contexto do último regime civil-militar brasileiro. Precisamos de novas vozes e novos olhares que compliquem aquele espaço-tempo, que mostre suas segmentações e cumplicidades sociais para dar lugar a novas espacialidades de poder e saber. E o mais importante, nos preparando para suportar as diferenças e respeitá-las. Para Durval Muniz, “A história não é um ritual de apaziguamento, mas de devoração, de despedaçamento. Ela não é bálsamo, é fogueira que reduz a cinzas nossas verdades estabelecidas, que solta fagulhas de dúvidas, que não torna as coisas claras, que não dissipa a fumaça do passado, mas busca entender como esta fumaça se produziu. O problema, antes de ser coberto pelas cinzas de uma resolução teórica, deve ser soprado para que apareça em todo o seu ardor de brasa”.389 388 FOUCAULT, Michel, A ordem do discurso, São Paulo, Edições Loyola, 15 edição, 2007. p. 15. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de, A Invenção do Nordeste e outras artes, Recife, FJN, Ed. Massangana; São Paulo, Cortez, 2006. p. 317. 389 116 Dessa forma foi vasculhando e problematizando as camadas constitutivas de dados saberes e dizeres, de dados acontecimentos históricos, de dados fatos sociais e políticos que podemos apreender e ver emergir práticas e discursos que vão delineando e cristalizando um conhecimento de um novo vir a ser da cidade de Campo Maior/PI e região, do recorte temporal, da sociedade, numa dada configuração de forças, atento para os silêncios e permanências praticadas por aqueles que faziam o periódico, consciente que “Nada nos chega do passado que não seja convocado por uma estratégia, armado por uma tática, visando a atender alguma demanda de nosso próprio tempo”. 390 Assim, historicizar as perspectivas temporais e espaciais naquele momento de transição foi decisivo para entender e compreender seu papel na construção e distribuição de sentidos, os quais definiam as representações daquela engrenagem social a partir da visão, linguagem e imaginação dos componentes do semanário. 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