Anais do 5º Encontro do Celsul, Curitiba-PR, 2003 (1083-1088)
ASPECTOS DO TEMPO NOS PROCESSOS DE TRADUÇÃO
Marlova ASEFF (Universidade Federal de Santa Catarina)
ABSTRACT: This article discusses the influence of time on the process of translation. It brings the
example of Borges, who was an experienced writer when a book-lenght collection of his ficction was for
the first time translated to English. The second part is about retranslations according to authors like
Antoine Berman, Goethe, Humboldt and Borges.
KEYWORDS: Translation; retranslation; time; Jorge Luis Borges.
1. Um novato experiente
Em 1962, um “desconhecido” escritor sul-americano teve um de seus livros pela primeira vez
traduzido integralmente para o inglês. Antes, apenas pequenas revistas literárias e antologias haviam
publicado alguns de seus contos nesse idioma. O curioso é que, seguramente, grande parte dos leitores de
língua inglesa não imaginavam que esse “novo” e extraordinário escritor “vindo do nada” havia estado
produzindo sua obra por mais de quarenta anos antes de ser lido por eles. O escritor ainda pouco
conhecido entre os anglo-americanos era o argentino Jorge Luis Borges. Andrew Hurley, professor da
Universidade de Porto Rico e tradutor de El Aleph para a edição da Penguin Books comemorativa ao
centenário do nascimento de Borges, é quem traz à luz essas informações sobre as traduções da obra de
Borges:
The first known English translation of a work of fiction by the Argentine Jorge Luis Borges
appeared in the August 1948 issue of Ellery Queen´s Mystery Magazine, but although seven or
eight more translations appeared in “little magazines” and anthologies during the fifties, and
although Borges clearly had his champions in the literary establishment, it was not until 1962,
fourteen years after the first appearance, that a book-length collection of fiction appeared in
English. (Hurley 2000: 192)
A primeira tradução para o inglês de um trabalho de ficção do argentino Jorge Luis Borges
surgiu na publicação de 1948 da Ellery Queen’s Mystery Magazine, mas, embora sete ou oito
outras traduções tenham surgido em “pequenas revistas” e antologias durante os anos 50, e
embora Borges claramente tivesse seus defensores na comunidade literária, foi somente em 1962,
14 anos depois da primeira aparição, que uma edição integral com suas ficções surgiu em inglês.
(Tradução minha)
Ao incluir essas informações em sua nota sobre a tradução, Hurley acabou por demonstrar que
mesmo os primeiros tradutores de Borges para o inglês já se depararam com um escritor que teve tempo o
bastante para se tornar um consciente e crítico mestre do ofício. Esse fato – de Borges já ser um escritor
maduro quando sua obra começa a ser traduzida nos países de língua inglesa – levou-me a refletir sobre
alguns aspectos do tempo nos processos tradutórios. Mais particularmente, o tempo que uma determinada
obra tem (ou não) para amadurecer1 antes de ser traduzida e como essa circunstância pode influenciar no
resultado da tradução. A massa de estudos críticos que se constrói em torno da produção de um
determinado autor influencia no trabalho do tradutor na procura da “lettre”, tal como a entende Antoine
Berman? As mais recentes traduções de uma obra tendem a ser melhores do que as mais antigas? Esses
são alguns pontos que pretendo abordar aqui, tendo como objeto de referência a tradução de El Aleph
realizada por Hurley.
2. A crítica, a procura da lettre e as salvaguardas do tempo
O estudo crítico do texto é uma etapa indispensável do processo de tradução. Para Berman, a
análise textual deve ser efetuada no horizonte da tradução, pois todo texto a ser traduzido apresenta uma
sistematicidade própria que o movimento da tradução encontra, enfrenta e revela (Berman 2002: 20).
1
Walter Benjamin gostava desta analogia sobre o “amadurecimento” da obra: Dans Sens Unique,
Benjamin dit que la traduction tombe comme um fruit mûr de l´arbre du texte profane, rechtzeitig, au
“temps venu”. C´est-à-dire à l´automne da l´oevre (Berman 1999: 104).
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Portanto, entende que a tradução é uma forma de crítica na medida em que torna manifestas as estruturas
ocultas de um texto, a sua lettre.2
Berman distingue dois tipos de tradução: a que visa à transmissão do sentido do texto (busca
equivalências na língua materna no intuito de naturalizar a obra estrangeira) e a literalizante, que tenta
traduzir o texto enquanto lettre. Defende que a tradução ética deve buscar a transcrição da lettre, e não
apenas do sentido. Esta seria a maneira pela qual é possível abrir-se a outras culturas e não apenas
apropriar-se do texto em uma operação de negação sistemática da estranheza da obra estrangeira
(Berman 2002: 18).
A essência da tradução é ser abertura, diálogo, mestiçagem, descentralização. Ela é relação, ou
não é nada (Berman 2002: 17).
Como o objetivo ético da tradução propõe acolher o estrangeiro, esta deve apegar-se à lettre da
obra, por meio da qual o leitor pode ter uma experiência “alienígena” de leitura. Este objetivo (de acolher
o estrangeiro) foi bem definido na Alemanha romântica e clássica por Friedrich Schleiermacher e Johann
Wolfgang von Goethe (Berman 1999: 78). Schleiermacher delimitou dois modos de traduzir: no primeiro
deles, o tradutor propõe-se a levar o autor até o leitor. No outro, fazer com que o leitor vá ao encontro do
autor. Já Goethe, como veremos adiante, distingue três modos (ou momentos) relativos à tradução. O
terceiro modo/momento é o que mais se aproxima do estrangeiro.
O leitor deve estar se perguntando como tudo isso se relaciona à experiência de Borges, com o
amadurecimento da obra e tudo o mais? Ora, sendo o estudo crítico do texto uma das tarefas do tradutor
para alcançar a compreensão da lettre (e, por conseguinte, chegar à dimensão ética da tradução), é
possível supor que a tradução de um novo autor, que ainda não consolidou um estilo ou cuja obra ainda
não mereceu suficientes estudos por parte da crítica, esteja mais suscetível a deturpações no processo de
tradução. Berman classifica como sistemática da deformação uma série de desvios que deformam e
interferem na tradução da lettre. São eles: a racionalização (recompõe as frases para arranjá-las
conforme uma certa idéia de ordem do discurso); a clarificação (impõe o definido onde o original
guardou o indefinido); o prolongamento (conseqüência das duas tendências anteriores); o enobrecimento
(quer tornar a tradução mais bela do que o original); o empobrecimento qualitativo ( substitui termos do
original por termos que não possuem a mesma riqueza); o empobrecimento quantitativo (não respeita o
tecido lexical de origem); a homogeneização; a destruição dos ritmos (causado, por vezes, pela
pontuação);
destruição das redes significantes subjacentes; destruição das sistematizações (a
racionalização, a clarificação e o prolongamento causam a destruição deste sistema); a destruição ou
exotisation das redes de linguagem vernáculas; a destruição das locuções (substitui uma locução ou um
provérbio); e o apagar das superposições de línguas. (Berman 1999: 53 a 66).
Assim, acredito que a pressa em traduzir pode ser fatal à lettre. Uma obra ainda sem tradição corre
mais riscos de receber uma tradução domesticada (que sofre uma redução etnocêntrica), e seu texto pode
ser mais facilmente traduzido de forma fluente e transparente, modo este que utiliza um nível padrão do
idioma, desprezando a pluralidade lingüística ou estilística (Venuti 1994: 5). O oposto da visada ética
proposta por Berman.
Mas voltemos à obra de Borges, que no momento que começa a ser traduzida em massa para o
inglês3 já havia encontrado seu tom, suas características estilísticas e que, além disso, promovia uma
auto-reflexão no interior de si mesma. Pode-se dizer que esta obra estava (e estará) de alguma maneira
salvaguardada contra alguns possíveis desvios da tradução. Ou, no mínimo, pode-se afirmar que ela tem
mais anticorpos contra os vírus da deformação em comparação com a que não contou com o tempo a seu
favor. No caso de Borges, seus prólogos e ensaios tornam evidente sua consciência sobre o estilo literário
que adota e até sobre a evolução de sua escrita. E, certamente, qualquer tradutor os levará em conta, assim
como o fez Hurley:
The reader of the forewords to the fictions will note that Borges is forever commenting on the style
of the stories or the entire volume, preparing the reader for what is to come stylistically as well as
2
Berman considera a tradução enquanto tradução da letra, o texto enquanto letra. (Berman 1999: 25).
“Nos Estados Unidos, o assim chamado “boom” da literatura sul-americana durante as décadas de 1960
e 1970 foi alimentado pelos editores, romancistas e críticos (...). O boom não foi um aumento repentino
na produção literária sul-americana, mas principalmente uma criação norte-americana, um aumento
repentino nas traduções de língua inglesa apoiadas por fundos privados. As editoras produziram uma onda
de traduções de obras de autores como os argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar e o colombiano
Gabriel García Márquez, formando um novo cânone de literatura estrangeira em inglês, bem como um
público leitor mais sofisticado” (Venuti 2002: 317).
3
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thematically. More than once he draws our attention to the “plain style” of the pieces, in contrast
to his earlier “baroque” (Hurley 2000: 193).
O leitor dos prefácios notará que Borges está sempre comentando o estilo das histórias ou mesmo
o volume inteiro, preparando o leitor para o que está por vir estilisticamente, assim como
tematicamente. Mais de uma vez ele chama nossa atenção ao estilo claro dos escritos, em
contraste com seu passado “barroco”. (Tradução minha)
Como vemos, esse caminho da crítica enquanto análise textual foi percorrido por Hurley na
tradução de El Aleph. Na Nota sobre a Tradução, ele revela as características estilísticas que encontrou no
original e que o nortearam durante o processo de tradução:
Borges´ prose style is characterized by a determined economy of resources in wich every word is
weighted, every word (every mark of ponctuation ) “tells”. It is a quiet style. Whose effects are
achieved not with bombast or pomp, but rather with a single exploding word or phrase, dropped
almost as though offhandedly into a quiet sentence: “He examined his wounds and saw, without
astonishment, that they had healed.” This laconic detail (“without astonishment”), coming at the
very beginning of “The Circular Ruins”, will probably only at the end of the story be recalled by
the reader, who will, retrospectively and somewhat abashedly, see that changes everything in the
story; it is quintessential Borges (Hurley 2000: 193).
A prosa de Borges é caracterizada por uma determinada economia de recursos na qual toda
palavra é pesada, toda palavra (cada sinal de pontuação) “fala”. É um estilo quieto, cujos efeitos
são alcançados não com empolação ou pompa, mas preferivelmente com uma única palavra ou
frase explosiva, pingada quase sempre informalmente numa frase quieta. “Comprovou, sem
espanto, que as feridas haviam cicatrizado.” Este lacônico detalhe (“sem espanto”), logo no
início de As Ruínas Circulares, será provavelmente lembrado pelo leitor apenas no final da
história. Este irá, retrospectivamente e, de alguma maneira, desconcertadamente, ver que isso
muda tudo na história. É Borges quintessencial. (Tradução minha)
O tradutor chama a atenção ainda para outras características que entreviu no texto de Borges e que
o ajudaram na busca da lettre, como a lacônica concisão, frases quase invariavelmente clássicas em sua
simetria, paralelismos e alguns efeitos que o próprio Borges revelava ao leitor. Hurley conta que foi por
meio da leitura de críticas escritas por autores como Mario Vargas Llosa e Carlos Fuentes que descobriu o
quanto o estilo de Borges tinha contribuído para o enriquecimento da língua espanhola (Hurley
1996:293). Durante o processo de tradução, também notou que os escritores e críticos de língua inglesa
costumavam falar da admiração pela temática borgiana e pelo tratamento literário-filosófico das histórias,
enquanto os escritores e críticos de língua espanhola costumavam ressaltar outros aspectos de seu
trabalho, como o estilo e a prosa:
When I began to translate him for the collected fictions – or began to read him carefully in
Spanish before I started translating – I was struck by certain elements of his style, and reading
around the criticism, the biographies, some writers’ memories I discovered that I was on to
something, even if It was fifty years later than the Spanish-language world in discovering it
(Hurley 1996:293).
Quando comecei a traduzi-lo para as ficções reunidas – ou comecei a lê-lo cuidadosamente em
espanhol antes de começar a traduzir – fui arrebatado por certos elementos de seu estilo, e lendo
a crítica, as biografias, algumas memórias de escritores, percebi que estava descobrindo algo,
mesmo que fosse 50 anos atrasado em relação ao mundo de língua espanhola. (Tradução minha)
Vargas Llosa, por exemplo, escreveu um artigo sobre a profunda maneira como Borges mudou não
apenas o espanhol literário, mas a língua espanhola como um todo (Hurley 1996: 294). De acordo com os
testemunhos de Hurley, fica evidente que todo esse percurso de resgate da crítica contribuiu e muito para
que ele se conscientizasse do quão importante para sua tradução seria a transcrição da lettre, bem como o
ajudou a desvendar a sistematicidade do texto.
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3. Retraduções: os últimos serão os primeiros?
A tradução de El Aleph feita por Hurley é, na verdade, uma retradução. Pelo menos 17
profissionais o precederam na tradução de um ou mais livros de Borges para o inglês (Hurley 2000: 195).
Seguindo a meta de se pensar sobre o tempo e sua relação com o processo das traduções, propus, no início
deste artigo, questionarmos se as traduções mais recentes tenderiam a ser melhores do que as primeiras ou
mesmo do que as demais versões predecessoras, uma questão que a princípio pode ser considerada muito
subjetiva, mas que no passado mereceu a reflexão de teóricos da tradução como Goethe, Novalis,
Humboldt e Walter Benjamin. Para Berman, é completamente essencial distinguir dois espaços (e dois
tempos) da tradução: o das primeiras traduções e o das retraduções (Berman 1999: 104). Sobre as
primeiras traduções, o teórico tem uma contundente opinião:
Les premières traductions ne sont pas (et ne peuvent être) les plus grandes. (Berman 1999: 105)
As primeiras traduções não são (e não podem ser) as melhores. (Tradução minha)
Isso se daria porque as retraduções teriam sempre a ganhar em relação às primeiras, pois não se
remetem a apenas um texto, mas a, no mínimo, dois: o original e a primeira tradução (Berman 1999: 105).
Tout se passe comme si la secondarité du traduire se redoublait avec la re-traduction, la
"seconde traduction" (d´une certaine manière, il n´y en jamais une troisième, mais d´autres
"secondes"). Je veux dire par là que la grande traduction est doublement seconde: par rapport à
l´original, par rapport à la première traduction (Berman 1999: 105)
Tudo acontece como se a secundariedade do traduzir fosse redobrada com a nova tradução, “a
segunda tradução” (de uma certa maneira, não há nunca uma terceira, mas outras “segundas”).
Quero dizer que a grande tradução é duas vezes secundária: por se reportar ao original, por se
reportar à primeira tradução.
Berman lembra que a distinção dessas duas categorias é um dos momentos de base da reflexão
sobre a temporalidade do traduzir, tema que foi, segundo ele, apenas esboçado por Goethe e Benjamin.
(Berman 1999: 104). No texto de Goethe O Divã Ocidental-Oriental4, as maneiras de traduzir são
tratadas ao mesmo tempo como modos e períodos distintos. Em consonância com o conceito de Bildung5,
Goethe acredita que a tradução é marcada por etapas, que podem ser consideradas como períodos
históricos, ou como momentos e modos destinados a se repetirem indefinidamente na história de uma
cultura (Berman 2002: 106-108). São eles:
a) O tradutor nos apresenta o estrangeiro à nossa maneira. Os exemplos apresentados por Goethe
são “uma tradução singela em prosa” e a tradução da Bíblia por Lutero. Nesse tipo de tradução, segundo
Goethe, o tradutor reduz o entusiasmo poético a um nível consensual.
b) No segundo tipo (ou momento), se procura a transposição para as condições do estrangeiro, mas
apenas para se apropriar do sentido desconhecido e constituí-lo como sentido próprio. Goethe denomina
esse tipo de tradução como parodístico. Aproxima-se do estrangeiro apenas quando lhe convém.
c) O terceiro “período” (ou forma) é considerado por Goethe como o mais elevado. Nesse tipo,
procura-se tornar a tradução idêntica ao seu original, “de modo que ela pudesse valer não no lugar do
outro, mas em seu próprio lugar” (Goethe, in Berman 2002:107).
No entanto, a terceira fase, como explica Goethe, não é superior às demais:
A razão de termos chamado a terceira época de a última é o que vamos indicar em poucas
palavras. Uma tradução que visa a se identificar com o original tende a se aproximar, no final
das contas, da versão interlinear e facilita altamente a compreensão do original; nesse sentido,
somos de alguma maneira involuntariamente levados de volta ao texto primitivo, e assim se fecha
finalmente o ciclo que se opera com a transição do estrangeiro ao familiar, do conhecido ao
desconhecido (Goethe, in Berman 2002: 108)
4
Berman acredita que esse texto é o que oferece a expressão mais completa do pensamento clássico
alemão sobre a tradução. Ver Berman 2002: 108.
5
A Bildung é um dos conceitos centrais da cultura alemã no final do século 18. Significa cultura, mas
com uma conotação pedagógica e educativa, pela qual um indivíduo, um povo, uma nação, mas também
uma língua, uma obra de arte em geral se formam e adquirem uma forma própria (Berman 2002: 80).
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Goethe entende, assim, a tradução como um processo6, admitindo inclusive que os três tipos
possam ser praticados ao mesmo tempo em um determinado momento histórico. Berman se alia a Goethe
ao manifestar que
O fato de que a tradução seja um processo “progressivo” é evidente; ela nunca é definitiva e
acabada e não pode sonhar em sê-lo. Digamos que as traduções são mais mortais do que as
obras. E que toda obra autoriza uma infinidade de traduções (Berman 2002: 197).
Para Wilhelm Von Humboldt, intelectual representante do classicismo alemão, as traduções, mais
do que obras duradouras, são trabalhos que põem à prova o estado de uma língua em uma determinada
época, o definem e devem influir sobre ele, tendo sempre de ser novamente refeitas. Humboldt defende
que as traduções de uma mesma obra são outras tantas imagens do mesmo espírito, cada qual
reproduzindo aquilo que foi capaz de conceber e representar. No entanto, para Humboldt, o verdadeiro
espírito repousa somente no texto original (Humboldt 2001:103).
A esse grupo de pensadores com afinidades atemporais, Borges se alia para afirmar que o conceito
de texto definitivo corresponde à religião ou ao cansaço (Borges 1972:239). Escreve no ensaio “Las
Versiones Homéricas” (1932):
Presuponer que toda recombinación de elementos es obligatoriamente inferior a su original, es
suponer que el borrador 9 es obligatoriamente inferior al borrador H – ya que no puede haber
sino borradores (Borges 1972: 239).
Em Borges, a inferioridade das traduções não passa de uma superstição, e cada retradução,
somente mais uma versão entre as infinitas possibilidades de leitura de uma obra, un largo sorteo
experimental de omisiones y de énfasis. (Borges 1972: 239). No entanto, Borges vai além e proclama que
uma tradução pode sim superar seu original.
Para fazer a sua “versão” de Borges, Hurley levou em conta as opiniões do autor expressas em
“Las Versiones Homéricas”e também no ensaio “Los Traductores de las Mil y Una Noches”,
principalmente a de não tentar traduzir contra os predecessores:
Borges has tried in his essays to teach us, however, that we should not translate “against” our
predecessors; a new translation is always justified by the new voice given the old work, by the new
life in a new land that the translation confers on it, by the “shock of the new” that both old and
new readers will experience from this inevitably new (or renewed) work . (...) For those who wish
to read Borges as Borges wrote Borges, there is always le voyage à l’espagnol (Hurley 2000:
195).
Em seus ensaios, Borges tentou nos ensinar que não devemos traduzir “contra” nossos
predecessores. Uma nova tradução é sempre justificada pela nova voz dada ao velho trabalho,
pela nova vida numa nova terra, pelo “choque do novo” que ambos velhos e novos leitores vão
experimentar neste inevitavelmente novo (e renovado) trabalho. (...) Para aqueles que desejarem
ler Borges tal qual Borges escreveu Borges, há sempre le voyage à l’espagnol. (Tradução minha)
4. Conclusão: o tempo da tradição versus a pressa da tradução
Iniciei este texto falando do tempo que se passou entre o momento em que Borges começa a
publicar regularmente seus textos e a tradução integral de um livro seu para a língua inglesa. Um tempo
que permitiu a consolidação tanto da crítica como da obra. É o que entendo por “tempo da tradição”, um
tempo lento por excelência, mas que no século 20 se chocou com o ritmo frenético das trocas culturais. Se
um livro tem relativa aceitação, a indústria cultural se apressa em traduzi-lo o mais rapidamente possível.
Me permito imaginar o que aconteceria se Borges fosse traduzido já no início de sua carreira: as
características de seu texto seriam respeitadas ou mesmo percebidas? Sua obra provocaria o mesmo
impacto ? Difícil saber.
Defendi que a consolidação da crítica funciona como uma “salvaguarda” do texto, uma vacina
contra deformações na tradução. E, como provou a experiência de Borges, os prólogos e os ensaios do
autor também têm esse papel. Há sim, como pensava Benjamin, um justo tempo para a tradução de uma
obra literária. O amadurecimento da crítica contribui e até pode trazer à tona a necessidade de novas
6
A tradução, como modo de relação com o estrangeiro, está estruturalmente inscrita na Bildung. O
movimento tradutório parte do conhecido, do cotidiano e familiar para ir em direção do estrangeiro, ao
outro e, a partir dessa experiência, retornar ao seu ponto de partida (Berman 2002:84).
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traduções. Estas, por sua vez, não precisam ser motivadas apenas pelo “envelhecimento” da linguagem,
como geralmente ocorre. Como bem pensou Goethe, a tradução está inserida no processo cultural, e cada
sociedade deve escolher que textos necessita em cada momento histórico de sua formação e de que
maneira os vai traduzir. As traduções - como definiu Humboldt - deveriam ser periodicamente refeitas
para assim “pôr à prova a língua” e influir sobre a mesma. E, com isso, em tese, só se têm a ganhar, pois
as retraduções deverão levar em conta não apenas o original, mas as traduções anteriores e também a
crítica acumulada em torno do texto.
As mais recentes traduções não serão necessariamente melhores ou piores, mas certamente estarão
inscritas na disputa de um projeto hegemônico de cultura e sociedade.
RESUMO: Partindo do exemplo de Borges, que já era um escritor maduro quando sua obra começa a
ser traduzida para o inglês, o artigo questiona como o tempo que uma determinada obra tem (ou não)
para amadurecer antes de ser traduzida influencia no resultado desta tradução. Na segunda parte do
artigo, refletimos sobre o papel das retraduções segundo a visão de Antoine Berman, Goethe, Humboldt
e Borges.
PALAVRAS-CHAVE: tradução; retradução; tempo; Jorge Luis Borges
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