Tudo e nada1
Jorge Luis Borges
Ninguém existia nele; por trás de seu rosto (que nas toscas pinturas da época não
lembra nenhum outro) e de suas palavras, que eram copiosas, fantásticas e
agitadas, não havia mais que algo frio, um sonho não sonhado por alguém. No
princípio acreditou que todas as pessoas eram como ele, mas o espanto de um
amigo com quem havia comentado essa vacuidade lhe revelou o erro e o fez ver,
para sempre, que o indivíduo não pode diferir da espécie. Uma vez, pensou que nos
livros haveria remédio para o seu mal e assim aprendeu o pouco Latim e menos
Grego do que falava um seu contemporâneo; depois considerou que o exercício de
um rito elementar da humanidade, bem poderia conter o que buscava e se deixou
iniciar por Anne Hathaway, durante uma longa tarde de Junho. Aos vinte anos foi
para Londres. Instintivamente já havia se adestrado no hábito de simular que era
alguém, para que não descobrissem sua condição de ninguém; em Londres
encontrou a profissão a que estava predestinado, a de ator, que em um cenário,
brinca de ser o outro, diante de um grupo de pessoas que brincam acreditando que
ele é esse outro. As tarefas histriônicas lhe trouxeram uma felicidade única, talvez, a
primeira que tenha experimentado; porém, declamado o último verso e retirado de
cena o último morto, o odiado sabor da irrealidade recaía sobre ele. Deixava de ser
Ferrex ou Tamerlião e voltava a ser ninguém.
Pressionado, passou a imaginar outros heróis e outras fábulas trágicas. Assim,
enquanto o corpo cumpria seu destino de corpo, nos lupanares e tavernas de
Londres, a alma que o habitava era o Cesar que não dava ouvidos ao vidente,
Julieta que desprezava a cotovia e Macbeth que, na planície, conversava com as
bruxas que também eram as parcas. Ninguém foi tantos homens como aquele
homem que, semelhante ao egípcio Proteo, pôde esgotar todas as aparências do
ser. Por vezes, deixou em algum canto da obra uma confissão, seguro de que não a
decifrariam; Ricardo afirma que em sua pessoa desempenha o papel de muitos e
Iago proclama as curiosas palavras não sou o que sou. A identidade fundamental do
existir, sonhar e representar inspirou suas famosas passagens.
Por vinte anos persistiu nessa alucinação controlada, mas uma manhã foi tomado
pelo fastio e o horror de ser tantos reis que morreram pela espada e tantos amantes
sofridos que convergem, divergem e agonizam melodiosamente. No mesmo dia
decidiu pela venda do seu teatro. Antes de uma semana já tinha regressado à sua
cidade natal, onde reencontrou as árvores e o rio de sua infância e não os associou
àqueles outros, que sua musa havia celebrado, repletos de alusões mitológicas e
vozes latinas. Tinha que ser alguém; foi um empresário aposentado que fez fortuna
e lidava com empréstimos, litígios e pequena agiotagem. Nesse sentido ditou o árido
testamento que conhecemos, do qual excluiu deliberadamente qualquer traço
literário ou patético. Costumavam visitar seu retiro os amigos de Londres, e ele
retomava para eles o papel de poeta.
A história acrescenta que, antes ou depois de morrer, se colocou diante de Deus e
disse: Eu, que tantos homens tenho sido em vão, queria ser um só, eu. A voz de
Deus, trovejante, lhe respondeu: Nem mesmo eu sou eu; sonhei o mundo como tu
sonhaste tua obra meu Shakespeare, e entre as formas do meu sonho estavas tu
que como eu era muitos e ninguém.
O criador, 1960
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Tradução de R. Marinsky para o conto de Jorge Luis Borges ‘Everything and Nothing’ publicado em 1960
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