DA PAISAGEM NATURAL
À PAISAGEM TRANSFORMADA:
o conceito da desconstrução para uma
interpretação da produção do espaço
José Francisco
Arquiteto; professor do Departamento de Engenharia Civil
da Universidade Federal de São Carlos.
Resumo
Este trabalho tem como objetivo discutir o conceito da
“desconstrução” como um instrumento analítico que facilita
desvelar a produção do espaço social. O homem não apreendeu as
implicações da produção, cada vez mais complexa, do espaço,
portanto alienou-se do processo, deixando-o sob o comando de
uma técnica subjugada aos interesses econômicos e alheia às
aspirações humanas mais amplas. A desconstrução espacial
precisa ser melhor compreendida e praticada, para realizar uma
interação mais harmônica e justa entre sociedade e natureza e
entre os homens.
Palavras-chave: desconstrução; espaço; paisagem.
Abstract
The goal of this paper is to discuss the concept of “deconstruction”
as an analytic tool that makes it easy to unveil the production of
social space. Man did not apprehend the implications of increasingly
complex production of space, thus, being alienated from the
process, leaving it under the command of economically concerned
interests, distancing from humanistic values. The spatial
deconstruction should be better understood and practiced so that to
make it possible to accomplish a harmonic and human interaction
between society and nature.
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Keywords: deconstruction; space; landscape.
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Introdução
Este trabalho desenvolve-se a partir de reflexões prático-teóricas sobre a
dinâmica físico-espacial das aglomerações humanas e se constituiu,
posteriormente, nos primeiros capítulos da tese de doutorado intitulada
“Desconstrução do Lugar – o aterro da Praia da Frente do centro histórico da cidade
de São Sebastião – SP” (Francisco, 2002). Nesta, elabora-se um trajeto, ao mesmo
tempo, da representação da constituição do humano e da sua expressão físicoespacial mais significativa – a cidade.
Para melhor compreensão e orientação do leitor, o trabalho apresenta-se
em quatro etapas. Em “Da paisagem natural ao trabalho do homem”, mostra-se a
importância das ações humanas que transformam a paisagem em espaço.
Destaca-se o papel das mãos nessas ações, além da necessidade de se
considerar o processo da relação homem-natureza como natureza única. A seguir,
apresenta-se o “Desenvolvimento do conceito de desconstrução” espacial e
realizar-se uma tentativa de classificação de espaços desconstruídos, para um
aprofundamento do conhecimento da dinâmica espacial. Dada a importância do
tema, em termos social e político, a terceira etapa, “Desconstrução como
consciência e prática político-social”, justifica-se como necessidade da superação
das questões relativas à produção do espaço. Por fim, em “A natureza e o
desenvolvimento do processo de conhecimento – a desconstrução espacial”, esta
é apresentada como elemento importante no processo de conhecimento espacial,
da teoria e da prática. O novo conhecimento espacial deriva de uma nova
consciência social.
Da paisagem natural ao trabalho do homem
A quatro mãos, da paisagem natural, mesmo que exuberante, pouco se
dizia, pois a cara estava rente ao chão. Mas, sobre as árvores ou de pé, atracandose a alguma presa para encher o estômago, as visadas tênues ampliam-se e
atingem horizontes desconhecidos. A busca errante e inconsciente do alimento que
garante a sobrevivência, só ou em bando, num cenário inexplorado, é a primeira
tarefa da nossa ascendência primata.
No andar ereto, a paisagem, então, se descortina. Vê-se um horizonte
maior, num primeiro momento para, em seguida, começar o processo de
apropriação. A paisagem passa a ser cada vez mais familiar. Perde-se a maior
velocidade do quadrúpede para se passar, na nova postura, simplesmente a andar,
ver e, conseqüentemente, sentir e aprender mais com a paisagem natural. Então,
as mãos livres e a paisagem vêm juntas no bipedalismo homínida.
A partir daí – o vertical do corpo conduzido pelas mãos e o horizontal
representado pela paisagem – não param de interagir. O trabalho das mãos na
paisagem-natureza inaugura a grande caminhada, cada vez mais presente, da
construção, ao mesmo tempo, do humano e do espaço físico. A ação humana sobre
esse espaço deve ser considerada desconstrução.
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Aos poucos, no desconstruir o espaço, emergem os artefatos e as
ferramentas, estas como prolongamento das mãos. A mão – e sua ação no espaço
– se consolida como uma fábrica de idéias, e a linguagem, ao lado delas, aparece
para consolidar a sociedade humana.
A fixação de grupos em pontos escolhidos do espaço dá origem a aldeias
e, posteriormente, a vilas e cidades, como manifestações inequívocas do trabalho
consciente das mãos na paisagem. Em termos físico-espaciais, a cidade é o grande
trabalho do homem. Esse trabalho é, ao mesmo tempo, um elemento formador do
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homem e transformador da natureza. Engels (1991, p.217) vê a liberação das mãos
como passo decisivo para a inauguração do trabalho enquanto elemento, ao
mesmo tempo, constituinte e transformador do homem. Assim ele se expressa:
“A dominação da natureza que começa com o
desenvolvimento da mão, com o trabalho, cresceu a cada
progresso o horizonte do homem. Nos objetos naturais, ele
descobriria constantemente novas propriedades até então
desconhecidas. Por outro lado, o desenvolvimento do trabalho
contribuiu necessariamente para estreitar os laços entre os
membros da sociedade multiplicando os casos de ajuda
mútua, de cooperação comum, e tornando mais claro para
cada indivíduo a consciência da utilidade dessa cooperação.
Resumindo, os homens em formação chegaram ao ponto
onde teriam reciprocamente alguma coisa a falar entre eles”.
Na sociedade atual, em que o modo capitalista de produção é dominante,
produz-se de tudo, e tudo que se produz, direta ou indiretamente, é espaço.
Lefèbvre (1974, p.253), filósofo e estudioso do espaço, assim se manifesta:
“Produzir, afinal de contas, hoje, não é produzir isto ou aquilo,
coisas ou obras, é produzir espaço [...]. A mercadoria (o
mercado mundial) ocupará o espaço inteiro”.
Produz-se, então, espaço sobretudo na forma de valor – e não se pode
esquecer que a noção de valor é social – e hoje, mais ainda, na forma de valor de
troca. O espaço é a grande mercadoria, produto do trabalho. Se ele é a grande
mercadoria, a força de trabalho que o esculpe não poderia deixar de ser a
mercadoria por excelência!
O trabalho do homem, inicialmente, na natureza primeira e, em seguida,
por causa dele próprio, num processo contínuo e ininterrupto, criando a natureza
segunda, é sinônimo de desconstrução.
Por mais conseqüentes que sejam os pensamentos e as idéias, só a ação
das mãos agindo na paisagem a desconstrói, a transforma. O trabalho com as
mãos antecede a construção, assim como o novo se soma ao velho, deixando uma
nova paisagem – agora tornada espaço pela presença do homem – novamente à
mão e carregada de heranças do passado.
A natureza única
O conceito de natureza única foi utilizado por Marx (1972) e Gomes
(1990). Para estes, o mundo da natureza e o mundo da sociedade formam uma só
totalidade desenvolvendo-se no espaço e no tempo. Das transformações
produzidas pelo homem, as que mais aparecem são aquelas que ele impinge ao
meio ambiente. Acontece que essas transformações no meio são produzidas pelo
corpo humano, diretamente ou por seu intermédio, quando ele utiliza
rotineiramente uma ferramenta ou uma máquina.
Corpo e meio se moldam no processo histórico/espacial do trabalho e,
desse modo, o corpo faz parte da desconstrução espacial. Mas não houve
evolução do corpo no tempo histórico civilizatório, talvez devido ao próprio conceito
convencionado de história. A biogeografia talvez amplie essa escala temporal e
incorpore a evolução do homem.
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Tanto num caso como noutro, o corpo do homem recebe impactos e
influências do meio, transformando-se também. Hoje, pode-se afirmar, há mais
consciência das transformações que ocorrem com nosso corpo, em função do
avanço da pesquisa em arqueologia (Johanson; Edey, 1996, p.445).
Assim, Lefèbvre (1974, p.227) indaga se a história do corpo humano tem
relação com a do espaço:
“Todo organismo vivo se reflete, se refrata, nas modificações que
ele produz no 'seu meio', 'seu meio ambiente': seu espaço. [...] A
história do corpo terá ela uma relação com aquela do espaço?”
Nosso corpo é parte integrante e fundamental do processo de
desconstrução espacial; assim, a resposta só pode ser afirmativa.
Sabe-se que há dois corpos: o orgânico, comensurável, o qual ainda se
aprende a conhecer pela biotecnologia, de carne e osso, de contornos nítidos e
palpáveis – do fio de cabelo ao dedão do pé –, e o outro, inorgânico, externo ao
primeiro, do que está à mão, pronto para nos servir, ser transformado e nos
transformar, e que deve acontecer, por menor porção que seja considerada, como
prolongamento do primeiro.
A rigor não há fronteiras entre eles, pois os dois interagem e se
transformam num só – engenharia e mão, terra e corpo. O desafio é produzir o
conhecimento para entendê-lo e, efetivamente, transformá-lo agora num só.
O corpo ou espaço inorgânico é conhecido, no meio acadêmico, como
ambiente construído, e só raras vezes dele faz parte o espaço natural, como se
este desaparecesse intra e inter edificações e utilizações.
Pode-se afirmar, a partir de Lefèbvre (1974), que a desconstrução é de
espaço – e o homem faz parte, com seu corpo, da dimensão espacial – e tudo o que
se desconstrói é espaço, na medida em que a desconstrução é entendida como
processo mais completo de produção espacial. O termo “produção” usado por ele
tem a mesma complexidade de “desconstrução”.
O trabalho do homem – representado e embasado na cultura – cria o
mundo social a partir de transformações espaciais; a natureza, com seus
movimentos e mudanças ininterruptos, compõe, ela própria, o mundo natural.
Ambos, o mundo social e o mundo natural, são uma só coisa – a natureza única. O
homem pertence a ela e a modifica; também é modificado por ela, na medida em
que a modifica.
Há, e deve continuar existindo (até quando?), uma “unidade do homem e
da natureza” (Marx, 1972, p.57) e, com a adoção dessa natureza única, caminhase para o resgate, ao mesmo tempo, da compreensão científica do saber espacial e
da totalidade dialética dos universos da natureza e da sociedade.
Desenvolvimento do conceito de desconstrução
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A desconstrução espacial pode ser entendida de duas maneiras:
primeiro, como sendo o processo de transformação constante a que o espaço
existente está antropicamente submetido através da técnica; segundo, como a
tarefa ou o esforço de se rever o papel do espaço na análise da evolução e do
desenvolvimento da humanidade.
As duas formas de entendimento da desconstrução se completam e se
somam para formar um todo maior de preocupação com os espaços social e
natural-transformado e de possibilidade de conhecimento desses espaços. Podese dizer que a primeira se aproxima mais da compreensão do quotidiano, do
espaço físico em nível prático, operativo e instrumental. Já a outra forma significa
um esforço teórico de investigação histórica. Assim, prática e teoria, somadas,
compõem um referencial para o espaço e para as suas transformações e sua
evolução, processo que se pode chamar de práxis espacial.
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A desconstrução possibilita resgatar a totalidade-essência da
construção. Ao construir, destrói-se uma natureza, natural ou artificial, geralmente
várias vezes desconstruída. A instância da destruição é, no entanto, negligenciada,
com pouco peso nas decisões, alienando-se de todas as implicações do processo
de construção.
A desconstrução do espaço, talvez pela arrogância de quem a planeja,
carrega a sensação de que, em alguns casos, os espaços estejam vazios. O
espaço/paisagem considerado como vazio é o uso político do espaço. Nossas
primeiras reflexões sobre o espaço físico, no bojo dos estudos acadêmicos, se dão
acerca do que se chama “espaço vazio” (Campos Filho, 1992, p.38 e seg.;
Francisco, 1997, p.35).
Mas o espaço vazio é um falso problema, pois normalmente ele é
considerado como terra nua e urbana. Ele é a negação da paisagem. O vazio, tanto
no rural quanto no urbano, faz pensar na necessidade de ocupá-lo.
A conceituação de vazio mostrou-se insuficiente e inadequada: vazio,
finalmente, de quê? A resposta a esse questionamento levou-nos a um avanço
teórico no aprofundamento da questão. Substituindo “espaço vazio”, passa-se, de
início, a espaço desconstruído (Francisco, 2000, p.18), como já a intuir o que
acontece. Na produção do espaço, destrói-se primeiro para, em seguida, construir,
completando a desconstrução.
Mas o conceito de desconstrução originalmente adotado (Francisco,
1997, p.42) representa somente o começo do processo de transformações
espaciais. Em seguida, passa-se a entender a desconstrução de forma mais
abrangente e conseqüente. Ela pode ser o processo completo da intervenção
espacial, incluindo também o produto acabado. Assim, esse conceito é mais amplo
que o de construção.
A desconstrução, então, além de abarcar as implicações decorrentes das
modificações no espaço previamente existente, contém também os imperativos da
nova construção e de seus impactos. Nela consegue-se apreender toda a dinâmica
da produção espacial.
Para Marx, o homem produz (novas) necessidades, como primeiro fato
histórico, as quais são supridas pelo trabalho aplicado na natureza, transformandoa e a si próprio. Pode-se considerar essa transformação com o mesmo significado
de desconstrução. A própria consciência humana estaria relacionada ao que
estava próximo, à mão, para ser tocado: “Minha consciência é minha relação com
aquilo que me rodeia” (Marx, 1972, p.63; passagem grifada por Marx nos
manuscritos).
Se toda transformação espacial é, em última análise, desconstrução,
pode-se considerar a desconstrução como síntese do espaço em movimento.
O futuro é aumentar a capacidade de desconstruir o espaço, pelo uso da
técnica, talvez reduzindo a existência humana a um pragmatismo utilitário. A
ferramenta, como extensão do corpo, aliena-se dele, à medida que avança a
divisão do trabalho. Fabricam-se ferramentas para uso de outros e para
apropriação do seu trabalho e mais-trabalho. O corpo, o espaço e as ferramentas
transformadas em máquinas passam a ser mediações de exploração entre os
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Entre sociedade e natureza, em desconstrução, as mediações mudam,
dialeticamente, na medida em que ambas se transformam, se condicionam e
interagem. A alienação tende a crescer porque o meio torna-se fim e cria-se uma
razão instrumental, que passa a ter crescente autonomia relativa. Tende-se a
esquecê-los tão logo se satisfaz ao utilizá-los.
homens. Construções e destruições – ou seja, a desconstrução do mundo – têm
ônus e bônus distribuídos desigualmente entre os homens. Há uma certa
(in)consciência desse processo político e socioespacial a mascarar a realidade.
É necessário, portanto, o homem conscientizar-se da destruição dos
espaços, não se omitindo de responsabilidades. Ao se falar de construção, fala-se
de desconstrução, resgatando-se a totalidade destruição-construção da ação
antrópica, com todas as suas vicissitudes.
Perguntado se a desconstrução contempla uma maneira própria de fazer
política, Derrida (1998, p.4), expoente da desconstrução, responde: “faço tudo que
posso para que meu 'engajamento' político se ajuste na afirmação incondicional
que a perpassa”.
“Em 1983, Derrida, em 'Carta a um amigo japonês', discutiu
profundamente o significado da palavra desconstrução. [...]
embora seu significado, à primeira vista, possa indicar certa
atenção à análise ou à crítica das estruturas, [...] na realidade
sua essência se identifica melhor com a organização. [...]
Desconstrução envolve discernimento, interpretação, escolha,
julgamento, decisão, movimento. A palavra desconstrução,
como qualquer outra palavra, extrai seu valor só a partir da
inscrição em uma cadeia de substituições possíveis, daquilo
que se chama contexto” (Leite, 1994, p.67, citando Derrida).
Para Derrida, desconstrução não quer dizer simplesmente destruição.
Pode-se entender essa palavra-chave do pós-modernismo no sentido de “análise”,
como afirmado por Leite (1994). Por outro lado, significa também “ato de desfazer”,
um virtual sinônimo de “des-construir”.
Acredita-se que a análise da produção espacial através da
desconstrução pode representar um avanço, “uma mão”, na execução da tarefa de
conhecimento da realidade. Faz-se uma crítica à tecnologia alienada, como um fim
em si mesma, na perspectiva da prática da engenharia, da arquitetura e do
planejamento territorial. No entanto deve-se lembrar que o próprio Marx, no
Grundrisse, ressalta a importância das técnicas e sua relação com o processo
civilizatório. Através da história das técnicas, conta-se também a história social.
Santos (1994, 1997) é outro estudioso que dá importância às técnicas, em vários
trabalhos, através do seu conceito de “meio técnico-científico-informacional”.
A questão da desconstrução espacial
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Da paisagem natural passa-se, através da desconstrução, para o espaço
– a paisagem cultural. A palavra “desconstrução” com recorte físico-espacial,
carrega a afirmação de que o espaço está em constante transformação. Não há
construção sem destruição. O termo “desconstrução” ajuda o homem a tornar-se
consciente e responsável pela destruição, pela perda do bem preterido, pelo
impacto ambiental e pelo aumento do conhecimento que se tem do espaço. Seja o
espaço natural ou transformado, vivem ambos em desconstrução permanente,
como produtos de ação antrópica, direta ou indireta. A reestruturação físicoespacial urbana passa necessariamente pelo espaço desconstruído.
A preocupação com a desconstrução espacial deve existir não só como
postura dos agentes envolvidos, buscando a harmonia com o espaço existente,
mas como direito da sociedade, representada nos seus diversos segmentos,
sobretudo pela sociedade organizada: do proprietário fundiário aos donos do
capital, da sociedade civil às diversas esferas de poder do Estado. Esse
pressuposto de ação, nas intervenções espaciais, pode levar a uma mudança
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qualitativa no desenho espacial, como processo maior, obtido por uma somatória
de intervenções portadoras de preocupação com a desconstrução espacial. No
fundo, o que se advoga é que a preocupação com projetos de intervenção espacial
possa vir a partir da própria prática projetual em si, e do que ela pode acarretar em
termos de preservação da riqueza estética da paisagem, e não a partir da
constatação de erros sucessivos que se cometem ao se destruírem nossas
paisagens. Como num processo dialético, uma sucessão quantitativa de eventos
levando a uma mudança qualitativa no ato de projetar.
Não se projeta a paisagem, até hoje, ou se faz raramente. Ela é fruto de
prolongamentos pontuais, parciais e sucessivos, dos espaços que a compõem. A
consciência dela se dá mais em nível micro de que no macro. Os loteamentos, por
exemplo, fazem tábula rasa do existente e pouco se pensa além da terra
mercadoria. Projeta-se a edificação do lote (individual), enquanto a paisagem,
pode-se afirmar, acontece a partir da quadra, da rua ou do quarteirão (coletivo),
resultando numa imagem maior em três dimensões.
A necessidade de uma consciência coletiva da paisagem e de sua
continuidade como garantia de qualidade de vida desemboca na desconstrução.
Nesse contexto, o que a paisagem tem a ver com a desconstrução? Pode-se
afirmar que ela, a paisagem, é sempre a matéria-prima da desconstrução. Deve-se
saber aplicar, convenientemente, na paisagem a desconstrução adequada para
transformá-la em espaço.
O espaço tornado urbano é ocupado, construído, destruído,
transformado, habitado, salpicado de verde, sempre trazendo algo de novo e de
diferente como o motor das construções. O acontecer contínuo entre o existente e o
novo chama-se de espaço desconstruído.
Não se trata de novo tipo de espaço, mas de começar a entender o
espaço que cerca a todos de uma nova maneira, mais abrangente talvez,
sobretudo superando a divisão rural-urbana preconizada por Marx (1972, p.95). A
desconstrução pode ser entendida como uma forma plena e consciente de
trabalhar o espaço físico, daí sua especificidade.
Na cidade, local do espaço adaptado (e edificado) por excelência, dada a
ausência quase total de espaços naturais (pelo uso abusivo e indiscriminado de
práticas de engenharias descoladas da realidade), a desconstrução tradicional
incorpora o conceito de “terra vazia”. O termo “engenharias” aqui empregado
significa, para nós, o uso excessivo da força manual e mecânica na modificação
dos espaços naturais em espaços transformados.
Qualquer quinhão de espaço natural a ser transformado deve ser tocado
com cuidado e dedicação, a partir de projetos executivos detalhados, de tal sorte
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O entendimento corriqueiro da desconstrução pode se manifestar na
existência de glebas e de lotes vagos na cidade. Aquelas à espera do parcelamento
e uso, e estes, da edificação, ambos normalmente representados por um quinhão
de terra nua com um latente valor de troca, a ser realizado por uso urbano. Não há,
nas glebas e lotes, assim entendidos, nenhuma preocupação em relação à
preservação ambiental ou à conservação e manutenção da paisagem, certamente
tão cara aos habitantes do local e do entorno. Berno (1973, p.21), num trabalho
sobre o parcelamento do solo na região de Paris, nos chama a atenção sobre a
prevalência do novo sobre o existente. Assim ela se manifesta: “o problema da
existência de terrenos disponíveis se coloca em função da nova atribuição que vai
se dar, e não nele em si”. O que se vai empreender pode suplantar o antigo,
sobretudo como motivação e, nesse movimento, pode-se justificar sua destruição.
que nada, ou quase nada, escape à análise e não se descaracterize o lugar. É
fundamental que se tenha consciência, sobretudo, das conseqüências quanto à
não-conservação do meio ambiente, das ações nele praticadas.
A desconstrução, em termos físico-espaciais, pode dar-se de duas
formas: ou se desconstrói o espaço natural ou se desconstrói também o espaço já
transformado. Aqui se chama a atenção para o fato de que, em ambos os casos, se
desconstrói o existente. Do velho cria-se o novo.
Entre o antigo e o novo há três formas de intervenção no espaço:
reabilitação (sem desconstrução alguma), renovação (com desconstrução) e
destruição (com desconstrução máxima). Tem-se, então, a desconstrução
referindo-se a áreas com conotações diferentes. O ideal é que não se tenha a forma
que leva à alienação da desconstrução máxima. A reabilitação/renovação de
espaços estaria, assim, sempre presente, mantendo-se parte da história viva da
paisagem do homem.
As cidades, tradicionalmente, crescem de duas maneiras: por
adensamento (normalmente crescimento vertical, reutilizando espaços
anteriormente utilizados) e por dispersão (crescimento horizontal, freqüentemente
inaugurando novos espaços ganhos da área rural).
A desconstrução é o processo completo entre o antigo e o novo espaço; é o
resgate da consciência da destruição que viabiliza a construção; é o resgate da
identidade destruição-construção.
Nas intervenções espaciais, há uma desconstrução, muitas vezes,
freqüentemente mesmo, alienada, desnecessária e abusiva, normalmente atendendo
à rentabilidade econômica, principalmente quando se destrói valores de uso.
Uma nova utilização do solo, a partir da sua liberação, se dá somente em
função daquilo que se vai empreender, como já se viu, e não em função do existente.
Esse fato é significativo: o novo comanda. O que, então, conservar do passado?
Os espaços, para serem adaptados, devem ser convenientemente
planejados e projetados, como lembra Le Corbusier (1972). Nos desenhos, os
traços marcantes do espaço existente devem ser mantidos, como que a assinalar e
garantir a documentação da evolução espacial, o que vale dizer não só
desconstruir o mínimo, mas deixando marcado o que deve permanecer. Os
projetos arquitetônicos devem pousar no solo, isto é, relacionar-se criativamente
com as peculiaridades dos objetos naturais e artificiais existentes; por exemplo, o
verde e a água devem fazer parte dos novos espaços e penetrar neles. Além disso,
o ambiente construído resultante deve ter garantidas a sua organicidade e a sua
integração com o entorno. Entende-se a desconstrução do espaço como
possibilidade prática que se apresenta de intervenção espacial com preocupações
socialmente engajadas.
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Por uma classificação de espaços desconstruídos
O homem deve ter como objetivo maior inter-relacionar-se em harmonia
com a natureza, devendo, assim, ele próprio praticar uma “desconstrução mínima.”
Então, a questão é saber de que maneira se pode modificar o espaço fazendo-se o
mínimo de alterações. Aprende-se com a natureza; ela é nosso modelo e guia, e
tem-se a tarefa precípua de conservá-la, entendendo-se as suas leis, pois elas são
imutáveis diante da ação humana.
Deve-se investir, cada vez mais, na teorização da desconstrução, para
que as práticas desconstrutivas possam objetivamente deixar que continuem vivos
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e cheios de história os espaços a serem trabalhados. A ocupação deve, então, levar
em conta as peculiaridades locais. Com o espaço desconstruído via apelo
conservacionista, político-social, etc., podem-se reparar os erros cometidos no
passado da evolução da ocupação e/ou utilização do espaço, não só
reconstruindo-se, mas possibilitando-se a melhora da solução anterior.
Constrói-se e ocupa-se espaço mudando ou não seu uso anterior. O
avanço das técnicas construtivas faz com que se possam aumentar as densidades
de ocupação. É natural que as cidades cresçam em altura, ou se reestruturem,
tanto a partir de processos de intervenção de reabilitação e/ou renovação de
espaços previamente ocupados quanto pela ocupação de espaços naturais.
Busca-se um equilíbrio entre o existente e o novo no processo de
produção espacial: a desconstrução mínima pode ser entendida como equilíbrio do
movimento espacial? Essa indagação, para ser respondida, merece uma
explicitação maior do significado da palavra “equilíbrio”. É no equilíbrio que se
redobram as forças, que se pensa e indaga, que se examina o movimento
incessante a que se está exposto, enfim é com ele que, simplesmente, buscam-se
condições de vivenciar concretamente o quotidiano.
Com Boff (2001, p.3) pensa-se também na dinâmica e metamorfose do
espaço. Para esse autor, a criação da vida é o grande objetivo do cosmos,
permanentemente em movimento, e esta surge como produto do equilíbrio desse
mesmo movimento. Equilíbrio seria a justa medida entre o mais e o menos,
atingindo o ótimo relativo. Assim se expressa o autor:
“Possui equilíbrio o movimento que se realiza dentro da justa
medida e não é excessivo ou insuficiente. A paz é esse ponto
de equilíbrio sutil e sempre em construção. [...] A justa medida é
a capacidade de usar potencialidades naturais, sociais e
pessoais de tal forma que elas possam durar o mais possível e
possam, sem perda, se reproduzir.”
Boff (2001) termina seu artigo deixando antever que a crise atual é causada pelo
pouco equilíbrio e pelo excesso de movimento. As transformações, ou os movimentos
incessantes a que o espaço está submetido, a ponto de perder sua história, são fruto da
velocidade dos acontecimentos. O que está mudando, além do aumento da velocidade da
mudança (Le Corbusier, 1972, p.5; Virilio; Lotringer, 1984, p.49; Manta, 2000), é o espaço,
que a acompanha.
Destrói-se por destruir nossos espaços, mas, obviamente também, para dar outro
uso ao novo espaço. Muitas vezes, deixa-se de discutir se, mesmo uma carcaça do anterior
não merecia ficar de pé, o que nem sempre é interessante, sob a ótica da rentabilidade
econômica, palavra mágica do modo de produção dominante. Fala-se somente a
linguagem do aumento do lucro, no lugar da linguagem do usufruto do novo espaço.
Mas, se o movimento gera a vida a partir de seu equilíbrio, que papel tem o
espaço para sua constituição? O espaço, como a matéria e a energia, faz parte intrínseca
da vida. Pode-se dizer que sem o espaço – e seu dinamismo – ela não ocorreria.
Com o estudo crítico da desconstrução espacial resgata-se o papel do
espaço na explicação do social. No Quadro 1 apresenta-se uma tentativa de
classificação da desconstrução espacial, enumerando-se critérios, tipologias e
exemplos práticos. Os tipos estão apresentados aos pares, com o intuito de se
mostrar sua essência através de posições extremas. Entre os dois pontos, há uma
gama de valores e situações que caracterizam a riqueza da desconstrução.
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Acredita-se que a desconstrução mínima, isto é, aquela que preserva ao
máximo o espaço existente – sobretudo o natural –, dando suporte à vida que aí se
desenrola, numa perspectiva de animação da história social, pode ser entendida
como equilíbrio do movimento espacial.
A cada intervenção prática no espaço, cabe a descoberta consciente
sobre o que mudar e de que maneira fazê-lo, devendo-se atentar, sobretudo, para o
que conservar do existente. O novo espaço deve ser organizado a ponto de garantir
uma continuidade sem rupturas absolutas. A desconstrução mínima é uma das
diversas tipologias apresentadas.
Quadro 1. Desconstrução do espaço existente – uma tentativa de classificação
critério
exemplo
natural
derrubada de mata ciliar ou galeria, ao lado de cursos d'água;
loteamento novo; sucessão de cortes e aterros para a definição do
sistema viário de área loteada; construção de lagos artificiais; qualquer
tipo de canalização de córregos e rios
adaptada
empreendimentos de reflorestamento; reformas de edificações;
demolições de edifícios
2
pertencer ou não
a área objeto de
intervenção
direta
construção de enrocamento de acesso e de cais de porto
indireta
assoreamento a montante da corrente marítima provocado por obra a
jusante; impermeabilização generalizada do solo nas cidades, embora
as enchentes aconteçam em pontos determinados; "piscinões"
3
intensidade
mínima
aplicação de gabião em trecho de margem de corpo d'água; reforma de
edificações; revitalização urbana
máxima
canalização de córrego; demolição de edificações; reurbanização
parcial
destruição parcial de mata ciliar; renovação e/ou reabilitação de
edificação ou área urbana;
total
destruição total de mata ciliar em trecho de rio; implosão de edifício
rural
derrubada de mata; loteamento de chácaras; introdução de novos
cultivos
urbana
remodelações de jardins/parques públicos; reforma de edifício;
loteamentos habitacionais e industriais urbanos
6
tipificação
intra-urbana
lote
derrubada de árvores para permitir edificação; corte e aterro para
implantação de projetos; reformas e ampliações residenciais e de
plantas industriais
gleba
construção de arruamento/loteamento; aterros sistemáticos de
pequenos cursos d'água e suas nascentes
7
duração
curta
demolição seguida de nova construção
longa
demolição não seguida de nova construção; "verdissement"
conservada
reforma / remodelação de edificações não deterioradas
deteriorada
reforma / recuperação de edificações deterioradas; intervenções em
áreas degradadas (zonas portuárias, industriais, áreas aterradas)
9
existência de
ocupação/uso
livre
vilas operárias desabitadas em fazendas; terras sem uso definido; "terra
improdutiva"; prédios industriais e residenciais desocupados; "vazios
urbanos"
ocupada
remodelações/ampliações e/ou obras de conservação de espaços
ocupados
10
existência de
construção
não construída
obras de loteamento; implantação de parque urbano linear ao longo de
corpo d'água
construída
ampliação de edificação; execução de arborização urbana
11
preocupação
político-social
alienada
espaços definidos sem preocupação social e com prevalência da técnica
sem controle social
engajada
espaços trabalhados com ética, preocupação e engajamento social
pacífica
obras espaciais necessárias em geral; o quotidiano espacial, com suas
reformas e transformações constantes
violenta
espaço destruído em atentado terrorista de Estado ou de grupo político
(exemplo das guerras e do desmanche do World Trade Centre em Nova
York - USA)
artística
obra em que se tem a preocupação de buscar o belo, seja no objeto ou
pelo julgamento do observador
Não-artística
obra sem nenhuma preocupação artística, na qual domina o econômico
numa funcionalidade duvidosa
1
natureza
4
abrangência
5
localização
8
estado de
conservação
12
motivação
político-ideológica
178
tipologia
13
preocupação
artística
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Após esse rol de exemplos, muitos deles portadores de notória
simplicidade, resolve-se apresentar, como imagem ilustrativa de espaço
desconstruído, um fato geopolítico bastante significativo, como mostrado no
Figura 1.
Figura 1. As torres gêmeas do WTC em Nova York e sua desconstrução violenta em andamento.
O desmanche das torres se enquadra, pelo que é indicado pela mídia, como exemplo de
desconstrução violenta por motivação político-ideológica (Fotografia: Francisco, J., 1973;
Associated Press/Folha de S. Paulo, 12 set. 2001).
Desconstrução como consciência e prática político-social
Sabendo-se que a exploração da natureza pelo homem se transforma na
exploração do homem pelo homem (Axelos, 1961), a desconstrução, pela sua
prática consciente pode levar a uma dinamização maior do processo de
democratização da sociedade. A história nos acompanha e a liberdade nos garante
a consciência que se pode ter dela. Devem-se conhecer os espaços e sua história
e, assim, se a sociedade desejar, o espaço anterior pode ser construído
novamente. O exemplo que pode ser dado é o da derrubada de matas-galerias ou
matas ciliares, ao longo dos cursos d'água.
“Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e
descrever como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno,
e como ao mesmo tempo nele se esconde. [...] O homem
sempre vê mais do que aquilo que percebe imediatamente. A
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179
Quando se fala de desconstrução, fala-se de concreticidade ou de
pseudoconcreticidade? Esse questionamento sobre a desconstrução espacial
pode-se colocar a partir das afirmações de Kosik (1995, p.16 e 30):
casa diante da qual me encontro, não a percebo como um
conjunto de formas geométricas, de qualidades físicas do
material de construção, de meras relações quantitativas; dela
tomo consciência antes de tudo como habitação humana e
como harmonia, não claramente percebida, de formas, cores,
superfícies etc.”.
Ao construir novos espaços, é comum o homem abstrair-se do existente
como se não houvesse conseqüências, pouco ou nada tivesse a ver com o novo.
Constrói-se, muitas vezes, sem se saber destruir. O novo é o espaço da
pseudoconcreticidade, se o entendemos como o único alavancador do
desenvolvimento urbano. Precisa-se “destruí-lo”, como tal, para inaugurar-se a
concreticidade do espaço desconstruído. Portanto, a desconstrução precisa deixar
de ser abstrata ou pseudoconcreta para passar a ser concreta, pela explicitação da
desconstrução, do abstrato ao concreto. Assim Kosik (1995, p.37) se refere ao
ensejo do concreto:
“O progresso da abstratividade à concretividade é, por
conseguinte, em geral movimento da parte para o todo e do
todo para a parte; do fenômeno para a essência e da essência
para o fenômeno; da totalidade para a contradição e da
contradição para a totalidade; do objeto para o sujeito e do
sujeito para o objeto”.
Pode-se afirmar, então, que os espaços da cultura, do belo, do funcional,
do histórico, do preservar, do social, do espaço geográfico, da engenharia e da
arquitetura socialmente engajadas, dos espaços naturais e humanizados, podem
passar agora a ser considerados, não só de forma harmônica, mas na sua plena
objetividade e concretude, com a introdução do conceito e da categoria de análise
chamada desconstrução. No lugar de adaptações ou transformações intensas e da
descaracterização ou destruição de espaços, deve-se optar, se for esse o caso (e
deve-se esforçar para tanto!) pela desconstrução mínima e socialmente engajada.
Mesmo que a destruição espacial seja realmente necessária e imprescindível – em
função de transformações radicais socialmente requeridas –, ela agora será
concebida de forma a minimizar sua possível interferência negativa.
Em Serra (1987), vê-se que só a topografia (e, às vezes, nem isso!) acaba
normalmente restando do existente nas intervenções espaciais. Mas isso só,
efetivamente, não basta. É necessário que se aprofunde, sempre que possível, a
discussão construção/desconstrução. As transformações são concebidas, em
termos projetuais, de forma a ignorar, ou mesmo menosprezar, os espaços
existentes, como algo que está ali simplesmente para ser usado, sem que nada de
maior e mais nobre permaneça.
180
O que será que Le Corbusier tinha em mente quando formulou o princípio
de liberação do térreo pela utilização de pilotis? Podem-se depreender duas
coisas: a solução de projeto, com a característica de ser sobre pilotis, e a
implantação no terreno através de elementos bem delimitados que fazem com que
o edifício simplesmente pouse no solo. Esse pousar no solo é objetivado também a
partir de um número mínimo de pilotis convenientemente espaçados, com a
utilização de vigas de transição, que descarrega os pilares antes de tocarem o solo.
Os pilotis e o brise-soleil, este como solução de projeto adotado no controle
térmico, pode-se dizer, são contribuições da arquitetura para a desconstrução
espacial engajada.
Há exemplos clássicos de desconstrução, como o da rotatividade de
cultivo de terras. Sabe-se que elas se esgotam, daí deixar-se que elas descansem
por um certo tempo. Além disso, quase todos os povos antigos cultivavam, mesmo
em terreno inclinado, construindo pequenos muros de arrimo, que não só nivelavam
o terreno, mas também retinham nele a água e seus nutrientes, tornando-o mais
fértil, além de facilitar a circulação na área, pela existência dos platôs.
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A ecologia desemboca hoje na figura da sustentabilidade, talvez como
forma de ganhos de capital e manutenção do status quo socioespacial. Há um
esforço, atualmente, para quantificar as “perdas” do meio ambiente a fim de se
poder atribuir-lhes valor monetário. Tudo passa a ser mercadoria, reafirmando a
tese de Lefèbvre.
O que mais choca, na questão do planejamento espacial, é que os
elementos naturais raramente são considerados como tendo um valor em si, a
ponto de só o trabalho a eles incorporado em objetos artificiais passar a ter valor, o
que justificaria a transformação. Ao contrário, atualmente, a consciência ecológica
acompanha o aumento da degradação espacial, então o homem só se torna
consciente da importância do espaço, nesse contexto, a partir da sua degradação.
Cabe teorizar incansavelmente sobre a desconstrução, a fim de se mostrar, na
prática, sua importância, na linha da dialética do trabalho versus história.
O novo conhecimento espacial desejado, através do conceito de
desconstrução, impõe uma nova consciência social. Ela deve vir através de uma
nova prática espacial.
A natureza e o desenvolvimento do processo de conhecimento – a
desconstrução espacial
O principal produto do homem é o conhecimento, no sentido mais amplo
da palavra: da natureza que o envolve, de si próprio e de suas criações. O homem
está inserido num processo constante de conhecer o espaço e a si mesmo, no qual
ambos se encontram na história. Se o primeiro objeto é a natureza, obra dada,
pode-se dizer que o segundo seria o urbano (lato sensu) como obra humana da
aplicação do conhecimento na natureza, visando transformá-la, desconstruí-la.
A mão, ícone do trabalho e da técnica, estende-se com a ferramenta e
também com a necessidade de maior conhecimento pela possibilidade de
continuar transformando a natureza. O conhecimento passa a ser o mais amplo dos
meios de o homem relacionar-se com o espaço, num processo incessante de
desconstrução. Além da tarefa de precisar da natureza – quotidianamente e mesmo
a cada instante – até para as atividades mais elementares, o homem enfrenta, ao
mesmo tempo, um grande desafio para entendê-la. Segundo Marx (1972, p.60),
“[...] é necessário, antes de tudo, comer, beber, vestir-se e
ainda outras coisas mais. O primeiro fato histórico é, então, a
produção de meios permitindo a satisfação de necessidades, a
produção da própria vida material, e isto é, com efeito, um ato
histórico, uma condição fundamental de toda a história, a qual
deverá ser continuada, ainda hoje, como há milhares de anos,
a cada hora, apenas para manter a vida dos homens”.
“O que permite ao homem se colocar enquanto homem e de se opor à
natureza para extorqui-la de seus bens, é a ferramenta...” (Axelos, 1961, p.139) e,
“...em seguida, uma vez satisfeita, a primeira necessidade conduz, ela própria, a
ação da satisfação e o instrumento já adquirido da satisfação, a novas
necessidades” (Marx, 1972, p.60). Tal fato representa não só o motor da história da
humanidade como o da formação das forças produtivas responsáveis pela
desconstrução espacial.
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181
É necessário o esforço do conhecimento para compreendê-la. A atividade
de conhecer é impar no ser humano, e este a exerce como função primordial em
relação à natureza. Não há laboratório de pesquisa que não tenha a natureza – ou
parte dela – como objeto a ser investigado. Vale dizer, portanto, que a natureza –
nos seus mais variados aspectos, considerações e complexidades – é nosso
laboratório.
Toda atividade do conhecimento pode começar pela análise. Esta consiste
em dividir o objeto a ser conhecido em tantas partes – ou etapas de um fenômeno –
quantas sejam necessárias para sua melhor compreensão. Essa divisão deve
processar-se de tal forma que, em cada parte, possa-se perceber o todo e, a
qualquer momento, também, reconstituir todo o objeto – a síntese. O movimento de
análise e síntese é um dos recursos da tarefa do conhecimento.
A própria natureza nos ensina a compreendê-la, aprendendo a escutá-la e
vê-la – nas suas partes e na sua totalidade. Os procedimentos naturais de análise e
síntese estão prontos na natureza. A vida na sua total plenitude deve acabar na morte.
Ou, em outras palavras, o todo sucumbe às suas partes, pois na morte tem-se a
decomposição – em partes – do objeto. Volta-se ao pó, às inúmeras partículas de pó.
Os movimentos do nascimento e da morte são os fatos mais significativos
da natureza. O primeiro é juntar elementos, e o segundo separá-los ambos fazem
parte da vida, do movimento da vida. Quando falamos em desconstrução espacial,
estamos nos referindo, também, a nascimento e morte. Juntamos partes – as quais
retiramos de um todo – para formar um outro todo. Nossas edificações, por
exemplo, e demais obras espaciais significam a busca de elementos da natureza,
para arranjá-los de outra forma, segundo interesses e necessidades.
Para Heidegger (1997, p.67), a definição de “técnica”, através da qual se
transforma a natureza, é aquilo que desabriga, desoculta, mostra o que está oculto.
Para o filósofo, a essência do termo é a armação, denotando mesmo a montagem
de objetos a partir de partes da natureza.
Em termos espaciais, constantemente, se analisa a natureza – dividindo-a
em partes – para, em seguida, fazer-se a síntese, montando algum objeto.
Desconstrução-construção formam uma unidade dialética, assim como análisesíntese. Então, se na síntese obtém-se o todo – a partir da análise –, na construção
atinge-se um todo a partir da desconstrução. Numa edificação, tem-se sua
totalidade – como se vê espacialmente, a partir das suas partes articuladas: a
estrutura, os planos de fachada, as aberturas, as diversas texturas e cores, a
cobertura, etc. É tão importante a idéia do todo quanto a das partes que o compõem.
Mas é fundamental que se entenda o processo: a natureza é um todo, e a
desconstruímos para formar um outro todo menor. A edificação, apesar de um todo,
é uma série articulada de partes da natureza. A edificação pode, então, ao mesmo
tempo, ser entendida como um todo ou como uma somatória de partes. A própria
natureza é um todo e também uma somatória de elementos. A mesma coisa podese dizer do nascimento e da morte. O todo e as partes, considerados para agregar
ou desagregar, estão sempre presentes, em cada um deles.
182
Mas a morte também pode ser considerada como parte da vida – a última.
O primeiro e o último se encontram. O que se pensa da desconstrução e da
construção? O que há entre elas? Certamente há dispêndio de trabalho, vida e
movimento. Entre desconstrução e construção, como na vida, deve também haver
movimento. Os elementos se arranjam para a formação efetiva dos objetos do
espaço, e esse espaço, em si, vai de novo animando a vida, que vai sustentar e
sofrer transformações, até sua total desconstrução, para uma nova construção.
Uma edificação, ou qualquer objeto espacial considerado, pode, ao
mesmo tempo, ser um todo ou a somatória de suas partes, o que vale dizer uma
construção ou uma desconstrução. Então, tanto a construção como a
desconstrução são o todo e as partes, dependendo de como se quer considerá-las,
como objetos de investigação.
Partindo-se da consideração do objeto maior – a natureza, a síntese –,
tudo é desconstrução. Tudo deriva dela e toda nova construção é uma
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desconstrução dela própria. Considerando-se que, efetivamente, partes da
natureza transformam-se, qualquer mudança é considerada desconstrução. A
síntese é a natureza, que possibilita novas sínteses, a construção nova a partir da
desconstrução. Fazem-se sempre novas desconstruções. Assim, pode-se
considerar a desconstrução como uma nova natureza ou uma natureza segunda. E
ela é, ao mesmo tempo, análise e síntese.
A natureza é dialética. A natureza segunda é produto e conseqüência da
desconstrução da primeira, não podendo deixar de ser também dialética. O
método, então, de conhecimento da realidade, sobretudo espacial, que vale só
pode ser o dialético. Através da utilização da dialética, pode-se conhecer a
natureza de maneira profunda. Assim, ela, a dialética, garante a busca do
entendimento da natureza como um todo articulado em suas partes. Ela representa
uma conquista do homem na busca do conhecimento.
O conhecimento da categoria espaço, como busca da compreensão da
sociedade, fica contemplado e tende a se completar, valendo-se do uso das
unidades dialéticas. A dialética representa o esforço humano na direção de
encontrar um instrumental que lhe garanta o conhecimento científico?
Mas o que é dialética? É a recriação através do diálogo dos contrários. É
movimento. Através dela, percebem-se momentos de totalidade como explicações
do real. Essas totalidades – na realidade são totalidades parciais – estão sempre a
se completar, num processo ininterrupto de totalização. A cada momento tem-se
uma totalização do real.
O espaço como categoria social esteve negligenciado e ofuscado pela
categoria tempo. Que explicações se tem para isso?
“[...] agora, é mais o espaço do que o tempo que oculta as
coisas de nós, de que a mistificação da espacialidade e da
sua velada instrumentação do poder, é a chave para dar um
sentido prático, político e teórico à era contemporânea”
(Soja, 1993, p.78).
O espaço foi entendido, durante muito tempo, como algo que aí está, e
que o homem admitia como coisa dada. Se tudo se desenrolava no espaço era,
praticamente, como se ele se mantivesse estático. Sartre (1960, p.354) chega a
chamá-lo de “prático-inerte”, no sentido de que toda a nossa prática social tem
como suporte o espaço, apesar da relação dialética entre eles. Ele é transpassado
pelo tempo, este sim objeto de questionamento e indagação sobre a realidade. O
espaço funciona como um palco onde os acontecimentos se desenrolam no tempo.
O moderno hoje significa a espacialização do tempo, ao contrário do que
já se conhecia, que era a temporalização do espaço.
“Começo, meio e fim”, e “ontem, hoje e amanhã” são duas tríades
inseparáveis do trabalho científico, quando este trata das questões espaciais.
Camadas de espaço-tempo da constatação do hoje são o produto com o qual se
deve planejar e projetar o espaço. O produto final tem a marca da cultura. É cultura.
Esta pode ser entendida de duas formas: cultura pela ação antrópica e cultura pela
preservação do natural/transformado. Trata-se de interagir, como processo, tanto
sobre a desconstrução do espaço – seja ele natural ou transformado – quanto pela
preservação de ambos.
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183
A toda construção corresponde uma destruição, logo não há apenas
construção do espaço, mas sim a desconstrução do espaço. Na medida em que
pudermos trabalhar na sociedade o significado e a importância dessa afirmação, tal
propositura certamente fará com que as paisagens estejam mais presentes no lugar,
para o deleite dos nossos olhos, o respeito a elas e a construção plástica do lugar.
Considerações finais
A fixação em pontos do território, a divisão do trabalho, a produção do
excedente e a estruturação em classes sociais são as causas da formação e
caracterização das aglomerações humanas. A produção do excedente pode ser
entendida como superexploração da natureza e, com o poder político que se tem
pela apropriação desta, podem-se explorar outros homens. Até hoje ainda se
mantém uma relação de superexploração com a natureza e, ainda mais, a partir
dela, pela propriedade privada da terra, uma relação de exploração entre os
homens. Não raras vezes, então, a exploração do homem pelo homem tem como
modelo uma forma incorreta de utilização do espaço, como ainda a lembrar aquela
exploração arcaica e primeira.
Vê-se, em resumo, o espaço natural e o trabalho humano nele aplicado,
ou, numa expressão única, o espaço desconstruído. Na desconstrução, então,
tem-se incorporado o eterno refazer espacial, com suas características não só
físico-espaciais mas também político-sociais.
Cada sociedade, em função de suas características e de técnicas
disponíveis, desconstrói o espaço à sua maneira. Há heranças não só
especificamente espaciais (desenvolvimento físico) como humanas
(desenvolvimento social). As pessoas são de tal maneira talhadas para a
desconstrução que, pode-se afirmar, não sabem fazer nada que não seja
desconstruir. As diversas técnicas aplicadas podem significar diferentes estágios
de complexidade na inexorabilidade da desconstrução espacial.
O intelectual e o braçal, como formas de divisão do trabalho, podem
buscar arranjos políticos de complementaridade entre eles na desconstrução do
espaço. Há um ponto em comum entre a exploração da natureza e a exploração
entre os homens: as mãos. Com elas, explora-se a natureza e também os homens.
A natureza pode estar mais do que apalpada, mexida e transformada, muitas vezes
em excesso, pelo trabalho manual. O homem escraviza o outro homem
inicialmente pelo trabalho manual.
A cabeça pensa, mas são as “mãos alheias que trabalham”, na feliz
colocação de Engels (1991, p.217). No trabalho cooperado, a mão está, como
nunca, presente, mas em corpos humanos diferentes.
Com ela, faz-se também um resgate histórico da evolução da exploração
da natureza pelo homem através do processo alienante do trabalho. Talvez a
compreensão da exploração primeira da natureza pelo homem – questionamento
primeiro da desconstrução – possa levar ao entendimento da necessidade efetiva
de superação da exploração do homem pelo homem.
Após as reflexões sobre o papel das mãos como agente primeiro das
transformações do espaço local no contexto de paisagem e, por isso mesmo, ícone
do trabalho humano, falta-nos agora algo que possa ligar, nesse contexto, o
desenvolvimento das forças produtivas e o da luta de classes.
184
Tal preocupação se insere também no contexto de entendimento das
sucessivas transformações da paisagem – urbana, periurbana e rural –, ela própria
como testemunha da história humana como cenário das ações antrópicas. Podese dizer que a história do homem se confunde com a da paisagem que ele esculpe,
como força produtiva, humanizando-a e transformando-a em espaço pela
desconstrução.
Quando se pode delegar (ou obrigar) a outras mãos as ações que não se
pode ou não se quer empreender naquele momento, é comum planejá-las para um
tempo oportuno. Assim, há tempo de planejar a atividade de outrem, ou, com outras
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palavras, definem-se ações futuras, enquanto o cidadão é explorado pela
alienação conduzida que se faz do processo total da desconstrução espacial. A
manualidade está, portanto, no cerne da estrutura de classe e das forças
produtivas de uma sociedade, o que confere às mãos papel de magna importância
na relação entre as pessoas e, ao mesmo tempo, no trabalho espacial.
A história humana é conhecida a partir do trabalho incessante do homem
no meio ambiente. Classicamente, o início da História é considerado como sendo a
partir de um ato simbólico, quando fica documentado por ele o trabalho social
através da escrita. É incorporado ao meio através do papiro, na madeira, à argila, à
pedra etc. Pergunta-se por que só agora, por sua destruição, dá-se conta da
importância desse meio ambiente? Com a desconstrução, junta-se o meio
ambiente ao homem, e vice-versa, pois os dois são interdependentes.
Nunca se esteve tão ligado à preservação do meio ambiente. Acredita-se
que a consciência da desconstrução signifique um avanço na práxis espacial e no
conhecimento e conservação do espaço.
O ser humano sempre esteve no centro das questões que ele mesmo
formula. Pode-se dizer que, por diversos motivos, o umbigo do homem não está
mais no centro do universo das preocupações, e sim que há necessidade de se
eleger um novo paradigma com abrangência maior: a desconstrução espacial.
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