DA PAISAGEM NATURAL À PAISAGEM TRANSFORMADA: o conceito da desconstrução para uma interpretação da produção do espaço José Francisco Arquiteto; professor do Departamento de Engenharia Civil da Universidade Federal de São Carlos. Resumo Este trabalho tem como objetivo discutir o conceito da “desconstrução” como um instrumento analítico que facilita desvelar a produção do espaço social. O homem não apreendeu as implicações da produção, cada vez mais complexa, do espaço, portanto alienou-se do processo, deixando-o sob o comando de uma técnica subjugada aos interesses econômicos e alheia às aspirações humanas mais amplas. A desconstrução espacial precisa ser melhor compreendida e praticada, para realizar uma interação mais harmônica e justa entre sociedade e natureza e entre os homens. Palavras-chave: desconstrução; espaço; paisagem. Abstract The goal of this paper is to discuss the concept of “deconstruction” as an analytic tool that makes it easy to unveil the production of social space. Man did not apprehend the implications of increasingly complex production of space, thus, being alienated from the process, leaving it under the command of economically concerned interests, distancing from humanistic values. The spatial deconstruction should be better understood and practiced so that to make it possible to accomplish a harmonic and human interaction between society and nature. 169 Keywords: deconstruction; space; landscape. n. 33 2008 p. 169-186 Introdução Este trabalho desenvolve-se a partir de reflexões prático-teóricas sobre a dinâmica físico-espacial das aglomerações humanas e se constituiu, posteriormente, nos primeiros capítulos da tese de doutorado intitulada “Desconstrução do Lugar – o aterro da Praia da Frente do centro histórico da cidade de São Sebastião – SP” (Francisco, 2002). Nesta, elabora-se um trajeto, ao mesmo tempo, da representação da constituição do humano e da sua expressão físicoespacial mais significativa – a cidade. Para melhor compreensão e orientação do leitor, o trabalho apresenta-se em quatro etapas. Em “Da paisagem natural ao trabalho do homem”, mostra-se a importância das ações humanas que transformam a paisagem em espaço. Destaca-se o papel das mãos nessas ações, além da necessidade de se considerar o processo da relação homem-natureza como natureza única. A seguir, apresenta-se o “Desenvolvimento do conceito de desconstrução” espacial e realizar-se uma tentativa de classificação de espaços desconstruídos, para um aprofundamento do conhecimento da dinâmica espacial. Dada a importância do tema, em termos social e político, a terceira etapa, “Desconstrução como consciência e prática político-social”, justifica-se como necessidade da superação das questões relativas à produção do espaço. Por fim, em “A natureza e o desenvolvimento do processo de conhecimento – a desconstrução espacial”, esta é apresentada como elemento importante no processo de conhecimento espacial, da teoria e da prática. O novo conhecimento espacial deriva de uma nova consciência social. Da paisagem natural ao trabalho do homem A quatro mãos, da paisagem natural, mesmo que exuberante, pouco se dizia, pois a cara estava rente ao chão. Mas, sobre as árvores ou de pé, atracandose a alguma presa para encher o estômago, as visadas tênues ampliam-se e atingem horizontes desconhecidos. A busca errante e inconsciente do alimento que garante a sobrevivência, só ou em bando, num cenário inexplorado, é a primeira tarefa da nossa ascendência primata. No andar ereto, a paisagem, então, se descortina. Vê-se um horizonte maior, num primeiro momento para, em seguida, começar o processo de apropriação. A paisagem passa a ser cada vez mais familiar. Perde-se a maior velocidade do quadrúpede para se passar, na nova postura, simplesmente a andar, ver e, conseqüentemente, sentir e aprender mais com a paisagem natural. Então, as mãos livres e a paisagem vêm juntas no bipedalismo homínida. A partir daí – o vertical do corpo conduzido pelas mãos e o horizontal representado pela paisagem – não param de interagir. O trabalho das mãos na paisagem-natureza inaugura a grande caminhada, cada vez mais presente, da construção, ao mesmo tempo, do humano e do espaço físico. A ação humana sobre esse espaço deve ser considerada desconstrução. 170 Aos poucos, no desconstruir o espaço, emergem os artefatos e as ferramentas, estas como prolongamento das mãos. A mão – e sua ação no espaço – se consolida como uma fábrica de idéias, e a linguagem, ao lado delas, aparece para consolidar a sociedade humana. A fixação de grupos em pontos escolhidos do espaço dá origem a aldeias e, posteriormente, a vilas e cidades, como manifestações inequívocas do trabalho consciente das mãos na paisagem. Em termos físico-espaciais, a cidade é o grande trabalho do homem. Esse trabalho é, ao mesmo tempo, um elemento formador do n. 33 2008 p. 169-186 homem e transformador da natureza. Engels (1991, p.217) vê a liberação das mãos como passo decisivo para a inauguração do trabalho enquanto elemento, ao mesmo tempo, constituinte e transformador do homem. Assim ele se expressa: “A dominação da natureza que começa com o desenvolvimento da mão, com o trabalho, cresceu a cada progresso o horizonte do homem. Nos objetos naturais, ele descobriria constantemente novas propriedades até então desconhecidas. Por outro lado, o desenvolvimento do trabalho contribuiu necessariamente para estreitar os laços entre os membros da sociedade multiplicando os casos de ajuda mútua, de cooperação comum, e tornando mais claro para cada indivíduo a consciência da utilidade dessa cooperação. Resumindo, os homens em formação chegaram ao ponto onde teriam reciprocamente alguma coisa a falar entre eles”. Na sociedade atual, em que o modo capitalista de produção é dominante, produz-se de tudo, e tudo que se produz, direta ou indiretamente, é espaço. Lefèbvre (1974, p.253), filósofo e estudioso do espaço, assim se manifesta: “Produzir, afinal de contas, hoje, não é produzir isto ou aquilo, coisas ou obras, é produzir espaço [...]. A mercadoria (o mercado mundial) ocupará o espaço inteiro”. Produz-se, então, espaço sobretudo na forma de valor – e não se pode esquecer que a noção de valor é social – e hoje, mais ainda, na forma de valor de troca. O espaço é a grande mercadoria, produto do trabalho. Se ele é a grande mercadoria, a força de trabalho que o esculpe não poderia deixar de ser a mercadoria por excelência! O trabalho do homem, inicialmente, na natureza primeira e, em seguida, por causa dele próprio, num processo contínuo e ininterrupto, criando a natureza segunda, é sinônimo de desconstrução. Por mais conseqüentes que sejam os pensamentos e as idéias, só a ação das mãos agindo na paisagem a desconstrói, a transforma. O trabalho com as mãos antecede a construção, assim como o novo se soma ao velho, deixando uma nova paisagem – agora tornada espaço pela presença do homem – novamente à mão e carregada de heranças do passado. A natureza única O conceito de natureza única foi utilizado por Marx (1972) e Gomes (1990). Para estes, o mundo da natureza e o mundo da sociedade formam uma só totalidade desenvolvendo-se no espaço e no tempo. Das transformações produzidas pelo homem, as que mais aparecem são aquelas que ele impinge ao meio ambiente. Acontece que essas transformações no meio são produzidas pelo corpo humano, diretamente ou por seu intermédio, quando ele utiliza rotineiramente uma ferramenta ou uma máquina. Corpo e meio se moldam no processo histórico/espacial do trabalho e, desse modo, o corpo faz parte da desconstrução espacial. Mas não houve evolução do corpo no tempo histórico civilizatório, talvez devido ao próprio conceito convencionado de história. A biogeografia talvez amplie essa escala temporal e incorpore a evolução do homem. n. 33 2008 p. 169-186 171 Tanto num caso como noutro, o corpo do homem recebe impactos e influências do meio, transformando-se também. Hoje, pode-se afirmar, há mais consciência das transformações que ocorrem com nosso corpo, em função do avanço da pesquisa em arqueologia (Johanson; Edey, 1996, p.445). Assim, Lefèbvre (1974, p.227) indaga se a história do corpo humano tem relação com a do espaço: “Todo organismo vivo se reflete, se refrata, nas modificações que ele produz no 'seu meio', 'seu meio ambiente': seu espaço. [...] A história do corpo terá ela uma relação com aquela do espaço?” Nosso corpo é parte integrante e fundamental do processo de desconstrução espacial; assim, a resposta só pode ser afirmativa. Sabe-se que há dois corpos: o orgânico, comensurável, o qual ainda se aprende a conhecer pela biotecnologia, de carne e osso, de contornos nítidos e palpáveis – do fio de cabelo ao dedão do pé –, e o outro, inorgânico, externo ao primeiro, do que está à mão, pronto para nos servir, ser transformado e nos transformar, e que deve acontecer, por menor porção que seja considerada, como prolongamento do primeiro. A rigor não há fronteiras entre eles, pois os dois interagem e se transformam num só – engenharia e mão, terra e corpo. O desafio é produzir o conhecimento para entendê-lo e, efetivamente, transformá-lo agora num só. O corpo ou espaço inorgânico é conhecido, no meio acadêmico, como ambiente construído, e só raras vezes dele faz parte o espaço natural, como se este desaparecesse intra e inter edificações e utilizações. Pode-se afirmar, a partir de Lefèbvre (1974), que a desconstrução é de espaço – e o homem faz parte, com seu corpo, da dimensão espacial – e tudo o que se desconstrói é espaço, na medida em que a desconstrução é entendida como processo mais completo de produção espacial. O termo “produção” usado por ele tem a mesma complexidade de “desconstrução”. O trabalho do homem – representado e embasado na cultura – cria o mundo social a partir de transformações espaciais; a natureza, com seus movimentos e mudanças ininterruptos, compõe, ela própria, o mundo natural. Ambos, o mundo social e o mundo natural, são uma só coisa – a natureza única. O homem pertence a ela e a modifica; também é modificado por ela, na medida em que a modifica. Há, e deve continuar existindo (até quando?), uma “unidade do homem e da natureza” (Marx, 1972, p.57) e, com a adoção dessa natureza única, caminhase para o resgate, ao mesmo tempo, da compreensão científica do saber espacial e da totalidade dialética dos universos da natureza e da sociedade. Desenvolvimento do conceito de desconstrução 172 A desconstrução espacial pode ser entendida de duas maneiras: primeiro, como sendo o processo de transformação constante a que o espaço existente está antropicamente submetido através da técnica; segundo, como a tarefa ou o esforço de se rever o papel do espaço na análise da evolução e do desenvolvimento da humanidade. As duas formas de entendimento da desconstrução se completam e se somam para formar um todo maior de preocupação com os espaços social e natural-transformado e de possibilidade de conhecimento desses espaços. Podese dizer que a primeira se aproxima mais da compreensão do quotidiano, do espaço físico em nível prático, operativo e instrumental. Já a outra forma significa um esforço teórico de investigação histórica. Assim, prática e teoria, somadas, compõem um referencial para o espaço e para as suas transformações e sua evolução, processo que se pode chamar de práxis espacial. n. 33 2008 p. 169-186 A desconstrução possibilita resgatar a totalidade-essência da construção. Ao construir, destrói-se uma natureza, natural ou artificial, geralmente várias vezes desconstruída. A instância da destruição é, no entanto, negligenciada, com pouco peso nas decisões, alienando-se de todas as implicações do processo de construção. A desconstrução do espaço, talvez pela arrogância de quem a planeja, carrega a sensação de que, em alguns casos, os espaços estejam vazios. O espaço/paisagem considerado como vazio é o uso político do espaço. Nossas primeiras reflexões sobre o espaço físico, no bojo dos estudos acadêmicos, se dão acerca do que se chama “espaço vazio” (Campos Filho, 1992, p.38 e seg.; Francisco, 1997, p.35). Mas o espaço vazio é um falso problema, pois normalmente ele é considerado como terra nua e urbana. Ele é a negação da paisagem. O vazio, tanto no rural quanto no urbano, faz pensar na necessidade de ocupá-lo. A conceituação de vazio mostrou-se insuficiente e inadequada: vazio, finalmente, de quê? A resposta a esse questionamento levou-nos a um avanço teórico no aprofundamento da questão. Substituindo “espaço vazio”, passa-se, de início, a espaço desconstruído (Francisco, 2000, p.18), como já a intuir o que acontece. Na produção do espaço, destrói-se primeiro para, em seguida, construir, completando a desconstrução. Mas o conceito de desconstrução originalmente adotado (Francisco, 1997, p.42) representa somente o começo do processo de transformações espaciais. Em seguida, passa-se a entender a desconstrução de forma mais abrangente e conseqüente. Ela pode ser o processo completo da intervenção espacial, incluindo também o produto acabado. Assim, esse conceito é mais amplo que o de construção. A desconstrução, então, além de abarcar as implicações decorrentes das modificações no espaço previamente existente, contém também os imperativos da nova construção e de seus impactos. Nela consegue-se apreender toda a dinâmica da produção espacial. Para Marx, o homem produz (novas) necessidades, como primeiro fato histórico, as quais são supridas pelo trabalho aplicado na natureza, transformandoa e a si próprio. Pode-se considerar essa transformação com o mesmo significado de desconstrução. A própria consciência humana estaria relacionada ao que estava próximo, à mão, para ser tocado: “Minha consciência é minha relação com aquilo que me rodeia” (Marx, 1972, p.63; passagem grifada por Marx nos manuscritos). Se toda transformação espacial é, em última análise, desconstrução, pode-se considerar a desconstrução como síntese do espaço em movimento. O futuro é aumentar a capacidade de desconstruir o espaço, pelo uso da técnica, talvez reduzindo a existência humana a um pragmatismo utilitário. A ferramenta, como extensão do corpo, aliena-se dele, à medida que avança a divisão do trabalho. Fabricam-se ferramentas para uso de outros e para apropriação do seu trabalho e mais-trabalho. O corpo, o espaço e as ferramentas transformadas em máquinas passam a ser mediações de exploração entre os n. 33 2008 p. 169-186 173 Entre sociedade e natureza, em desconstrução, as mediações mudam, dialeticamente, na medida em que ambas se transformam, se condicionam e interagem. A alienação tende a crescer porque o meio torna-se fim e cria-se uma razão instrumental, que passa a ter crescente autonomia relativa. Tende-se a esquecê-los tão logo se satisfaz ao utilizá-los. homens. Construções e destruições – ou seja, a desconstrução do mundo – têm ônus e bônus distribuídos desigualmente entre os homens. Há uma certa (in)consciência desse processo político e socioespacial a mascarar a realidade. É necessário, portanto, o homem conscientizar-se da destruição dos espaços, não se omitindo de responsabilidades. Ao se falar de construção, fala-se de desconstrução, resgatando-se a totalidade destruição-construção da ação antrópica, com todas as suas vicissitudes. Perguntado se a desconstrução contempla uma maneira própria de fazer política, Derrida (1998, p.4), expoente da desconstrução, responde: “faço tudo que posso para que meu 'engajamento' político se ajuste na afirmação incondicional que a perpassa”. “Em 1983, Derrida, em 'Carta a um amigo japonês', discutiu profundamente o significado da palavra desconstrução. [...] embora seu significado, à primeira vista, possa indicar certa atenção à análise ou à crítica das estruturas, [...] na realidade sua essência se identifica melhor com a organização. [...] Desconstrução envolve discernimento, interpretação, escolha, julgamento, decisão, movimento. A palavra desconstrução, como qualquer outra palavra, extrai seu valor só a partir da inscrição em uma cadeia de substituições possíveis, daquilo que se chama contexto” (Leite, 1994, p.67, citando Derrida). Para Derrida, desconstrução não quer dizer simplesmente destruição. Pode-se entender essa palavra-chave do pós-modernismo no sentido de “análise”, como afirmado por Leite (1994). Por outro lado, significa também “ato de desfazer”, um virtual sinônimo de “des-construir”. Acredita-se que a análise da produção espacial através da desconstrução pode representar um avanço, “uma mão”, na execução da tarefa de conhecimento da realidade. Faz-se uma crítica à tecnologia alienada, como um fim em si mesma, na perspectiva da prática da engenharia, da arquitetura e do planejamento territorial. No entanto deve-se lembrar que o próprio Marx, no Grundrisse, ressalta a importância das técnicas e sua relação com o processo civilizatório. Através da história das técnicas, conta-se também a história social. Santos (1994, 1997) é outro estudioso que dá importância às técnicas, em vários trabalhos, através do seu conceito de “meio técnico-científico-informacional”. A questão da desconstrução espacial 174 Da paisagem natural passa-se, através da desconstrução, para o espaço – a paisagem cultural. A palavra “desconstrução” com recorte físico-espacial, carrega a afirmação de que o espaço está em constante transformação. Não há construção sem destruição. O termo “desconstrução” ajuda o homem a tornar-se consciente e responsável pela destruição, pela perda do bem preterido, pelo impacto ambiental e pelo aumento do conhecimento que se tem do espaço. Seja o espaço natural ou transformado, vivem ambos em desconstrução permanente, como produtos de ação antrópica, direta ou indireta. A reestruturação físicoespacial urbana passa necessariamente pelo espaço desconstruído. A preocupação com a desconstrução espacial deve existir não só como postura dos agentes envolvidos, buscando a harmonia com o espaço existente, mas como direito da sociedade, representada nos seus diversos segmentos, sobretudo pela sociedade organizada: do proprietário fundiário aos donos do capital, da sociedade civil às diversas esferas de poder do Estado. Esse pressuposto de ação, nas intervenções espaciais, pode levar a uma mudança n. 33 2008 p. 169-186 qualitativa no desenho espacial, como processo maior, obtido por uma somatória de intervenções portadoras de preocupação com a desconstrução espacial. No fundo, o que se advoga é que a preocupação com projetos de intervenção espacial possa vir a partir da própria prática projetual em si, e do que ela pode acarretar em termos de preservação da riqueza estética da paisagem, e não a partir da constatação de erros sucessivos que se cometem ao se destruírem nossas paisagens. Como num processo dialético, uma sucessão quantitativa de eventos levando a uma mudança qualitativa no ato de projetar. Não se projeta a paisagem, até hoje, ou se faz raramente. Ela é fruto de prolongamentos pontuais, parciais e sucessivos, dos espaços que a compõem. A consciência dela se dá mais em nível micro de que no macro. Os loteamentos, por exemplo, fazem tábula rasa do existente e pouco se pensa além da terra mercadoria. Projeta-se a edificação do lote (individual), enquanto a paisagem, pode-se afirmar, acontece a partir da quadra, da rua ou do quarteirão (coletivo), resultando numa imagem maior em três dimensões. A necessidade de uma consciência coletiva da paisagem e de sua continuidade como garantia de qualidade de vida desemboca na desconstrução. Nesse contexto, o que a paisagem tem a ver com a desconstrução? Pode-se afirmar que ela, a paisagem, é sempre a matéria-prima da desconstrução. Deve-se saber aplicar, convenientemente, na paisagem a desconstrução adequada para transformá-la em espaço. O espaço tornado urbano é ocupado, construído, destruído, transformado, habitado, salpicado de verde, sempre trazendo algo de novo e de diferente como o motor das construções. O acontecer contínuo entre o existente e o novo chama-se de espaço desconstruído. Não se trata de novo tipo de espaço, mas de começar a entender o espaço que cerca a todos de uma nova maneira, mais abrangente talvez, sobretudo superando a divisão rural-urbana preconizada por Marx (1972, p.95). A desconstrução pode ser entendida como uma forma plena e consciente de trabalhar o espaço físico, daí sua especificidade. Na cidade, local do espaço adaptado (e edificado) por excelência, dada a ausência quase total de espaços naturais (pelo uso abusivo e indiscriminado de práticas de engenharias descoladas da realidade), a desconstrução tradicional incorpora o conceito de “terra vazia”. O termo “engenharias” aqui empregado significa, para nós, o uso excessivo da força manual e mecânica na modificação dos espaços naturais em espaços transformados. Qualquer quinhão de espaço natural a ser transformado deve ser tocado com cuidado e dedicação, a partir de projetos executivos detalhados, de tal sorte n. 33 2008 p. 169-186 175 O entendimento corriqueiro da desconstrução pode se manifestar na existência de glebas e de lotes vagos na cidade. Aquelas à espera do parcelamento e uso, e estes, da edificação, ambos normalmente representados por um quinhão de terra nua com um latente valor de troca, a ser realizado por uso urbano. Não há, nas glebas e lotes, assim entendidos, nenhuma preocupação em relação à preservação ambiental ou à conservação e manutenção da paisagem, certamente tão cara aos habitantes do local e do entorno. Berno (1973, p.21), num trabalho sobre o parcelamento do solo na região de Paris, nos chama a atenção sobre a prevalência do novo sobre o existente. Assim ela se manifesta: “o problema da existência de terrenos disponíveis se coloca em função da nova atribuição que vai se dar, e não nele em si”. O que se vai empreender pode suplantar o antigo, sobretudo como motivação e, nesse movimento, pode-se justificar sua destruição. que nada, ou quase nada, escape à análise e não se descaracterize o lugar. É fundamental que se tenha consciência, sobretudo, das conseqüências quanto à não-conservação do meio ambiente, das ações nele praticadas. A desconstrução, em termos físico-espaciais, pode dar-se de duas formas: ou se desconstrói o espaço natural ou se desconstrói também o espaço já transformado. Aqui se chama a atenção para o fato de que, em ambos os casos, se desconstrói o existente. Do velho cria-se o novo. Entre o antigo e o novo há três formas de intervenção no espaço: reabilitação (sem desconstrução alguma), renovação (com desconstrução) e destruição (com desconstrução máxima). Tem-se, então, a desconstrução referindo-se a áreas com conotações diferentes. O ideal é que não se tenha a forma que leva à alienação da desconstrução máxima. A reabilitação/renovação de espaços estaria, assim, sempre presente, mantendo-se parte da história viva da paisagem do homem. As cidades, tradicionalmente, crescem de duas maneiras: por adensamento (normalmente crescimento vertical, reutilizando espaços anteriormente utilizados) e por dispersão (crescimento horizontal, freqüentemente inaugurando novos espaços ganhos da área rural). A desconstrução é o processo completo entre o antigo e o novo espaço; é o resgate da consciência da destruição que viabiliza a construção; é o resgate da identidade destruição-construção. Nas intervenções espaciais, há uma desconstrução, muitas vezes, freqüentemente mesmo, alienada, desnecessária e abusiva, normalmente atendendo à rentabilidade econômica, principalmente quando se destrói valores de uso. Uma nova utilização do solo, a partir da sua liberação, se dá somente em função daquilo que se vai empreender, como já se viu, e não em função do existente. Esse fato é significativo: o novo comanda. O que, então, conservar do passado? Os espaços, para serem adaptados, devem ser convenientemente planejados e projetados, como lembra Le Corbusier (1972). Nos desenhos, os traços marcantes do espaço existente devem ser mantidos, como que a assinalar e garantir a documentação da evolução espacial, o que vale dizer não só desconstruir o mínimo, mas deixando marcado o que deve permanecer. Os projetos arquitetônicos devem pousar no solo, isto é, relacionar-se criativamente com as peculiaridades dos objetos naturais e artificiais existentes; por exemplo, o verde e a água devem fazer parte dos novos espaços e penetrar neles. Além disso, o ambiente construído resultante deve ter garantidas a sua organicidade e a sua integração com o entorno. Entende-se a desconstrução do espaço como possibilidade prática que se apresenta de intervenção espacial com preocupações socialmente engajadas. 176 Por uma classificação de espaços desconstruídos O homem deve ter como objetivo maior inter-relacionar-se em harmonia com a natureza, devendo, assim, ele próprio praticar uma “desconstrução mínima.” Então, a questão é saber de que maneira se pode modificar o espaço fazendo-se o mínimo de alterações. Aprende-se com a natureza; ela é nosso modelo e guia, e tem-se a tarefa precípua de conservá-la, entendendo-se as suas leis, pois elas são imutáveis diante da ação humana. Deve-se investir, cada vez mais, na teorização da desconstrução, para que as práticas desconstrutivas possam objetivamente deixar que continuem vivos n. 33 2008 p. 169-186 e cheios de história os espaços a serem trabalhados. A ocupação deve, então, levar em conta as peculiaridades locais. Com o espaço desconstruído via apelo conservacionista, político-social, etc., podem-se reparar os erros cometidos no passado da evolução da ocupação e/ou utilização do espaço, não só reconstruindo-se, mas possibilitando-se a melhora da solução anterior. Constrói-se e ocupa-se espaço mudando ou não seu uso anterior. O avanço das técnicas construtivas faz com que se possam aumentar as densidades de ocupação. É natural que as cidades cresçam em altura, ou se reestruturem, tanto a partir de processos de intervenção de reabilitação e/ou renovação de espaços previamente ocupados quanto pela ocupação de espaços naturais. Busca-se um equilíbrio entre o existente e o novo no processo de produção espacial: a desconstrução mínima pode ser entendida como equilíbrio do movimento espacial? Essa indagação, para ser respondida, merece uma explicitação maior do significado da palavra “equilíbrio”. É no equilíbrio que se redobram as forças, que se pensa e indaga, que se examina o movimento incessante a que se está exposto, enfim é com ele que, simplesmente, buscam-se condições de vivenciar concretamente o quotidiano. Com Boff (2001, p.3) pensa-se também na dinâmica e metamorfose do espaço. Para esse autor, a criação da vida é o grande objetivo do cosmos, permanentemente em movimento, e esta surge como produto do equilíbrio desse mesmo movimento. Equilíbrio seria a justa medida entre o mais e o menos, atingindo o ótimo relativo. Assim se expressa o autor: “Possui equilíbrio o movimento que se realiza dentro da justa medida e não é excessivo ou insuficiente. A paz é esse ponto de equilíbrio sutil e sempre em construção. [...] A justa medida é a capacidade de usar potencialidades naturais, sociais e pessoais de tal forma que elas possam durar o mais possível e possam, sem perda, se reproduzir.” Boff (2001) termina seu artigo deixando antever que a crise atual é causada pelo pouco equilíbrio e pelo excesso de movimento. As transformações, ou os movimentos incessantes a que o espaço está submetido, a ponto de perder sua história, são fruto da velocidade dos acontecimentos. O que está mudando, além do aumento da velocidade da mudança (Le Corbusier, 1972, p.5; Virilio; Lotringer, 1984, p.49; Manta, 2000), é o espaço, que a acompanha. Destrói-se por destruir nossos espaços, mas, obviamente também, para dar outro uso ao novo espaço. Muitas vezes, deixa-se de discutir se, mesmo uma carcaça do anterior não merecia ficar de pé, o que nem sempre é interessante, sob a ótica da rentabilidade econômica, palavra mágica do modo de produção dominante. Fala-se somente a linguagem do aumento do lucro, no lugar da linguagem do usufruto do novo espaço. Mas, se o movimento gera a vida a partir de seu equilíbrio, que papel tem o espaço para sua constituição? O espaço, como a matéria e a energia, faz parte intrínseca da vida. Pode-se dizer que sem o espaço – e seu dinamismo – ela não ocorreria. Com o estudo crítico da desconstrução espacial resgata-se o papel do espaço na explicação do social. No Quadro 1 apresenta-se uma tentativa de classificação da desconstrução espacial, enumerando-se critérios, tipologias e exemplos práticos. Os tipos estão apresentados aos pares, com o intuito de se mostrar sua essência através de posições extremas. Entre os dois pontos, há uma gama de valores e situações que caracterizam a riqueza da desconstrução. n. 33 2008 p. 169-186 177 Acredita-se que a desconstrução mínima, isto é, aquela que preserva ao máximo o espaço existente – sobretudo o natural –, dando suporte à vida que aí se desenrola, numa perspectiva de animação da história social, pode ser entendida como equilíbrio do movimento espacial. A cada intervenção prática no espaço, cabe a descoberta consciente sobre o que mudar e de que maneira fazê-lo, devendo-se atentar, sobretudo, para o que conservar do existente. O novo espaço deve ser organizado a ponto de garantir uma continuidade sem rupturas absolutas. A desconstrução mínima é uma das diversas tipologias apresentadas. Quadro 1. Desconstrução do espaço existente – uma tentativa de classificação critério exemplo natural derrubada de mata ciliar ou galeria, ao lado de cursos d'água; loteamento novo; sucessão de cortes e aterros para a definição do sistema viário de área loteada; construção de lagos artificiais; qualquer tipo de canalização de córregos e rios adaptada empreendimentos de reflorestamento; reformas de edificações; demolições de edifícios 2 pertencer ou não a área objeto de intervenção direta construção de enrocamento de acesso e de cais de porto indireta assoreamento a montante da corrente marítima provocado por obra a jusante; impermeabilização generalizada do solo nas cidades, embora as enchentes aconteçam em pontos determinados; "piscinões" 3 intensidade mínima aplicação de gabião em trecho de margem de corpo d'água; reforma de edificações; revitalização urbana máxima canalização de córrego; demolição de edificações; reurbanização parcial destruição parcial de mata ciliar; renovação e/ou reabilitação de edificação ou área urbana; total destruição total de mata ciliar em trecho de rio; implosão de edifício rural derrubada de mata; loteamento de chácaras; introdução de novos cultivos urbana remodelações de jardins/parques públicos; reforma de edifício; loteamentos habitacionais e industriais urbanos 6 tipificação intra-urbana lote derrubada de árvores para permitir edificação; corte e aterro para implantação de projetos; reformas e ampliações residenciais e de plantas industriais gleba construção de arruamento/loteamento; aterros sistemáticos de pequenos cursos d'água e suas nascentes 7 duração curta demolição seguida de nova construção longa demolição não seguida de nova construção; "verdissement" conservada reforma / remodelação de edificações não deterioradas deteriorada reforma / recuperação de edificações deterioradas; intervenções em áreas degradadas (zonas portuárias, industriais, áreas aterradas) 9 existência de ocupação/uso livre vilas operárias desabitadas em fazendas; terras sem uso definido; "terra improdutiva"; prédios industriais e residenciais desocupados; "vazios urbanos" ocupada remodelações/ampliações e/ou obras de conservação de espaços ocupados 10 existência de construção não construída obras de loteamento; implantação de parque urbano linear ao longo de corpo d'água construída ampliação de edificação; execução de arborização urbana 11 preocupação político-social alienada espaços definidos sem preocupação social e com prevalência da técnica sem controle social engajada espaços trabalhados com ética, preocupação e engajamento social pacífica obras espaciais necessárias em geral; o quotidiano espacial, com suas reformas e transformações constantes violenta espaço destruído em atentado terrorista de Estado ou de grupo político (exemplo das guerras e do desmanche do World Trade Centre em Nova York - USA) artística obra em que se tem a preocupação de buscar o belo, seja no objeto ou pelo julgamento do observador Não-artística obra sem nenhuma preocupação artística, na qual domina o econômico numa funcionalidade duvidosa 1 natureza 4 abrangência 5 localização 8 estado de conservação 12 motivação político-ideológica 178 tipologia 13 preocupação artística n. 33 2008 p. 169-186 Após esse rol de exemplos, muitos deles portadores de notória simplicidade, resolve-se apresentar, como imagem ilustrativa de espaço desconstruído, um fato geopolítico bastante significativo, como mostrado no Figura 1. Figura 1. As torres gêmeas do WTC em Nova York e sua desconstrução violenta em andamento. O desmanche das torres se enquadra, pelo que é indicado pela mídia, como exemplo de desconstrução violenta por motivação político-ideológica (Fotografia: Francisco, J., 1973; Associated Press/Folha de S. Paulo, 12 set. 2001). Desconstrução como consciência e prática político-social Sabendo-se que a exploração da natureza pelo homem se transforma na exploração do homem pelo homem (Axelos, 1961), a desconstrução, pela sua prática consciente pode levar a uma dinamização maior do processo de democratização da sociedade. A história nos acompanha e a liberdade nos garante a consciência que se pode ter dela. Devem-se conhecer os espaços e sua história e, assim, se a sociedade desejar, o espaço anterior pode ser construído novamente. O exemplo que pode ser dado é o da derrubada de matas-galerias ou matas ciliares, ao longo dos cursos d'água. “Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde. [...] O homem sempre vê mais do que aquilo que percebe imediatamente. A n. 33 2008 p. 169-186 179 Quando se fala de desconstrução, fala-se de concreticidade ou de pseudoconcreticidade? Esse questionamento sobre a desconstrução espacial pode-se colocar a partir das afirmações de Kosik (1995, p.16 e 30): casa diante da qual me encontro, não a percebo como um conjunto de formas geométricas, de qualidades físicas do material de construção, de meras relações quantitativas; dela tomo consciência antes de tudo como habitação humana e como harmonia, não claramente percebida, de formas, cores, superfícies etc.”. Ao construir novos espaços, é comum o homem abstrair-se do existente como se não houvesse conseqüências, pouco ou nada tivesse a ver com o novo. Constrói-se, muitas vezes, sem se saber destruir. O novo é o espaço da pseudoconcreticidade, se o entendemos como o único alavancador do desenvolvimento urbano. Precisa-se “destruí-lo”, como tal, para inaugurar-se a concreticidade do espaço desconstruído. Portanto, a desconstrução precisa deixar de ser abstrata ou pseudoconcreta para passar a ser concreta, pela explicitação da desconstrução, do abstrato ao concreto. Assim Kosik (1995, p.37) se refere ao ensejo do concreto: “O progresso da abstratividade à concretividade é, por conseguinte, em geral movimento da parte para o todo e do todo para a parte; do fenômeno para a essência e da essência para o fenômeno; da totalidade para a contradição e da contradição para a totalidade; do objeto para o sujeito e do sujeito para o objeto”. Pode-se afirmar, então, que os espaços da cultura, do belo, do funcional, do histórico, do preservar, do social, do espaço geográfico, da engenharia e da arquitetura socialmente engajadas, dos espaços naturais e humanizados, podem passar agora a ser considerados, não só de forma harmônica, mas na sua plena objetividade e concretude, com a introdução do conceito e da categoria de análise chamada desconstrução. No lugar de adaptações ou transformações intensas e da descaracterização ou destruição de espaços, deve-se optar, se for esse o caso (e deve-se esforçar para tanto!) pela desconstrução mínima e socialmente engajada. Mesmo que a destruição espacial seja realmente necessária e imprescindível – em função de transformações radicais socialmente requeridas –, ela agora será concebida de forma a minimizar sua possível interferência negativa. Em Serra (1987), vê-se que só a topografia (e, às vezes, nem isso!) acaba normalmente restando do existente nas intervenções espaciais. Mas isso só, efetivamente, não basta. É necessário que se aprofunde, sempre que possível, a discussão construção/desconstrução. As transformações são concebidas, em termos projetuais, de forma a ignorar, ou mesmo menosprezar, os espaços existentes, como algo que está ali simplesmente para ser usado, sem que nada de maior e mais nobre permaneça. 180 O que será que Le Corbusier tinha em mente quando formulou o princípio de liberação do térreo pela utilização de pilotis? Podem-se depreender duas coisas: a solução de projeto, com a característica de ser sobre pilotis, e a implantação no terreno através de elementos bem delimitados que fazem com que o edifício simplesmente pouse no solo. Esse pousar no solo é objetivado também a partir de um número mínimo de pilotis convenientemente espaçados, com a utilização de vigas de transição, que descarrega os pilares antes de tocarem o solo. Os pilotis e o brise-soleil, este como solução de projeto adotado no controle térmico, pode-se dizer, são contribuições da arquitetura para a desconstrução espacial engajada. Há exemplos clássicos de desconstrução, como o da rotatividade de cultivo de terras. Sabe-se que elas se esgotam, daí deixar-se que elas descansem por um certo tempo. Além disso, quase todos os povos antigos cultivavam, mesmo em terreno inclinado, construindo pequenos muros de arrimo, que não só nivelavam o terreno, mas também retinham nele a água e seus nutrientes, tornando-o mais fértil, além de facilitar a circulação na área, pela existência dos platôs. n. 33 2008 p. 169-186 A ecologia desemboca hoje na figura da sustentabilidade, talvez como forma de ganhos de capital e manutenção do status quo socioespacial. Há um esforço, atualmente, para quantificar as “perdas” do meio ambiente a fim de se poder atribuir-lhes valor monetário. Tudo passa a ser mercadoria, reafirmando a tese de Lefèbvre. O que mais choca, na questão do planejamento espacial, é que os elementos naturais raramente são considerados como tendo um valor em si, a ponto de só o trabalho a eles incorporado em objetos artificiais passar a ter valor, o que justificaria a transformação. Ao contrário, atualmente, a consciência ecológica acompanha o aumento da degradação espacial, então o homem só se torna consciente da importância do espaço, nesse contexto, a partir da sua degradação. Cabe teorizar incansavelmente sobre a desconstrução, a fim de se mostrar, na prática, sua importância, na linha da dialética do trabalho versus história. O novo conhecimento espacial desejado, através do conceito de desconstrução, impõe uma nova consciência social. Ela deve vir através de uma nova prática espacial. A natureza e o desenvolvimento do processo de conhecimento – a desconstrução espacial O principal produto do homem é o conhecimento, no sentido mais amplo da palavra: da natureza que o envolve, de si próprio e de suas criações. O homem está inserido num processo constante de conhecer o espaço e a si mesmo, no qual ambos se encontram na história. Se o primeiro objeto é a natureza, obra dada, pode-se dizer que o segundo seria o urbano (lato sensu) como obra humana da aplicação do conhecimento na natureza, visando transformá-la, desconstruí-la. A mão, ícone do trabalho e da técnica, estende-se com a ferramenta e também com a necessidade de maior conhecimento pela possibilidade de continuar transformando a natureza. O conhecimento passa a ser o mais amplo dos meios de o homem relacionar-se com o espaço, num processo incessante de desconstrução. Além da tarefa de precisar da natureza – quotidianamente e mesmo a cada instante – até para as atividades mais elementares, o homem enfrenta, ao mesmo tempo, um grande desafio para entendê-la. Segundo Marx (1972, p.60), “[...] é necessário, antes de tudo, comer, beber, vestir-se e ainda outras coisas mais. O primeiro fato histórico é, então, a produção de meios permitindo a satisfação de necessidades, a produção da própria vida material, e isto é, com efeito, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, a qual deverá ser continuada, ainda hoje, como há milhares de anos, a cada hora, apenas para manter a vida dos homens”. “O que permite ao homem se colocar enquanto homem e de se opor à natureza para extorqui-la de seus bens, é a ferramenta...” (Axelos, 1961, p.139) e, “...em seguida, uma vez satisfeita, a primeira necessidade conduz, ela própria, a ação da satisfação e o instrumento já adquirido da satisfação, a novas necessidades” (Marx, 1972, p.60). Tal fato representa não só o motor da história da humanidade como o da formação das forças produtivas responsáveis pela desconstrução espacial. n. 33 2008 p. 169-186 181 É necessário o esforço do conhecimento para compreendê-la. A atividade de conhecer é impar no ser humano, e este a exerce como função primordial em relação à natureza. Não há laboratório de pesquisa que não tenha a natureza – ou parte dela – como objeto a ser investigado. Vale dizer, portanto, que a natureza – nos seus mais variados aspectos, considerações e complexidades – é nosso laboratório. Toda atividade do conhecimento pode começar pela análise. Esta consiste em dividir o objeto a ser conhecido em tantas partes – ou etapas de um fenômeno – quantas sejam necessárias para sua melhor compreensão. Essa divisão deve processar-se de tal forma que, em cada parte, possa-se perceber o todo e, a qualquer momento, também, reconstituir todo o objeto – a síntese. O movimento de análise e síntese é um dos recursos da tarefa do conhecimento. A própria natureza nos ensina a compreendê-la, aprendendo a escutá-la e vê-la – nas suas partes e na sua totalidade. Os procedimentos naturais de análise e síntese estão prontos na natureza. A vida na sua total plenitude deve acabar na morte. Ou, em outras palavras, o todo sucumbe às suas partes, pois na morte tem-se a decomposição – em partes – do objeto. Volta-se ao pó, às inúmeras partículas de pó. Os movimentos do nascimento e da morte são os fatos mais significativos da natureza. O primeiro é juntar elementos, e o segundo separá-los ambos fazem parte da vida, do movimento da vida. Quando falamos em desconstrução espacial, estamos nos referindo, também, a nascimento e morte. Juntamos partes – as quais retiramos de um todo – para formar um outro todo. Nossas edificações, por exemplo, e demais obras espaciais significam a busca de elementos da natureza, para arranjá-los de outra forma, segundo interesses e necessidades. Para Heidegger (1997, p.67), a definição de “técnica”, através da qual se transforma a natureza, é aquilo que desabriga, desoculta, mostra o que está oculto. Para o filósofo, a essência do termo é a armação, denotando mesmo a montagem de objetos a partir de partes da natureza. Em termos espaciais, constantemente, se analisa a natureza – dividindo-a em partes – para, em seguida, fazer-se a síntese, montando algum objeto. Desconstrução-construção formam uma unidade dialética, assim como análisesíntese. Então, se na síntese obtém-se o todo – a partir da análise –, na construção atinge-se um todo a partir da desconstrução. Numa edificação, tem-se sua totalidade – como se vê espacialmente, a partir das suas partes articuladas: a estrutura, os planos de fachada, as aberturas, as diversas texturas e cores, a cobertura, etc. É tão importante a idéia do todo quanto a das partes que o compõem. Mas é fundamental que se entenda o processo: a natureza é um todo, e a desconstruímos para formar um outro todo menor. A edificação, apesar de um todo, é uma série articulada de partes da natureza. A edificação pode, então, ao mesmo tempo, ser entendida como um todo ou como uma somatória de partes. A própria natureza é um todo e também uma somatória de elementos. A mesma coisa podese dizer do nascimento e da morte. O todo e as partes, considerados para agregar ou desagregar, estão sempre presentes, em cada um deles. 182 Mas a morte também pode ser considerada como parte da vida – a última. O primeiro e o último se encontram. O que se pensa da desconstrução e da construção? O que há entre elas? Certamente há dispêndio de trabalho, vida e movimento. Entre desconstrução e construção, como na vida, deve também haver movimento. Os elementos se arranjam para a formação efetiva dos objetos do espaço, e esse espaço, em si, vai de novo animando a vida, que vai sustentar e sofrer transformações, até sua total desconstrução, para uma nova construção. Uma edificação, ou qualquer objeto espacial considerado, pode, ao mesmo tempo, ser um todo ou a somatória de suas partes, o que vale dizer uma construção ou uma desconstrução. Então, tanto a construção como a desconstrução são o todo e as partes, dependendo de como se quer considerá-las, como objetos de investigação. Partindo-se da consideração do objeto maior – a natureza, a síntese –, tudo é desconstrução. Tudo deriva dela e toda nova construção é uma n. 33 2008 p. 169-186 desconstrução dela própria. Considerando-se que, efetivamente, partes da natureza transformam-se, qualquer mudança é considerada desconstrução. A síntese é a natureza, que possibilita novas sínteses, a construção nova a partir da desconstrução. Fazem-se sempre novas desconstruções. Assim, pode-se considerar a desconstrução como uma nova natureza ou uma natureza segunda. E ela é, ao mesmo tempo, análise e síntese. A natureza é dialética. A natureza segunda é produto e conseqüência da desconstrução da primeira, não podendo deixar de ser também dialética. O método, então, de conhecimento da realidade, sobretudo espacial, que vale só pode ser o dialético. Através da utilização da dialética, pode-se conhecer a natureza de maneira profunda. Assim, ela, a dialética, garante a busca do entendimento da natureza como um todo articulado em suas partes. Ela representa uma conquista do homem na busca do conhecimento. O conhecimento da categoria espaço, como busca da compreensão da sociedade, fica contemplado e tende a se completar, valendo-se do uso das unidades dialéticas. A dialética representa o esforço humano na direção de encontrar um instrumental que lhe garanta o conhecimento científico? Mas o que é dialética? É a recriação através do diálogo dos contrários. É movimento. Através dela, percebem-se momentos de totalidade como explicações do real. Essas totalidades – na realidade são totalidades parciais – estão sempre a se completar, num processo ininterrupto de totalização. A cada momento tem-se uma totalização do real. O espaço como categoria social esteve negligenciado e ofuscado pela categoria tempo. Que explicações se tem para isso? “[...] agora, é mais o espaço do que o tempo que oculta as coisas de nós, de que a mistificação da espacialidade e da sua velada instrumentação do poder, é a chave para dar um sentido prático, político e teórico à era contemporânea” (Soja, 1993, p.78). O espaço foi entendido, durante muito tempo, como algo que aí está, e que o homem admitia como coisa dada. Se tudo se desenrolava no espaço era, praticamente, como se ele se mantivesse estático. Sartre (1960, p.354) chega a chamá-lo de “prático-inerte”, no sentido de que toda a nossa prática social tem como suporte o espaço, apesar da relação dialética entre eles. Ele é transpassado pelo tempo, este sim objeto de questionamento e indagação sobre a realidade. O espaço funciona como um palco onde os acontecimentos se desenrolam no tempo. O moderno hoje significa a espacialização do tempo, ao contrário do que já se conhecia, que era a temporalização do espaço. “Começo, meio e fim”, e “ontem, hoje e amanhã” são duas tríades inseparáveis do trabalho científico, quando este trata das questões espaciais. Camadas de espaço-tempo da constatação do hoje são o produto com o qual se deve planejar e projetar o espaço. O produto final tem a marca da cultura. É cultura. Esta pode ser entendida de duas formas: cultura pela ação antrópica e cultura pela preservação do natural/transformado. Trata-se de interagir, como processo, tanto sobre a desconstrução do espaço – seja ele natural ou transformado – quanto pela preservação de ambos. n. 33 2008 p. 169-186 183 A toda construção corresponde uma destruição, logo não há apenas construção do espaço, mas sim a desconstrução do espaço. Na medida em que pudermos trabalhar na sociedade o significado e a importância dessa afirmação, tal propositura certamente fará com que as paisagens estejam mais presentes no lugar, para o deleite dos nossos olhos, o respeito a elas e a construção plástica do lugar. Considerações finais A fixação em pontos do território, a divisão do trabalho, a produção do excedente e a estruturação em classes sociais são as causas da formação e caracterização das aglomerações humanas. A produção do excedente pode ser entendida como superexploração da natureza e, com o poder político que se tem pela apropriação desta, podem-se explorar outros homens. Até hoje ainda se mantém uma relação de superexploração com a natureza e, ainda mais, a partir dela, pela propriedade privada da terra, uma relação de exploração entre os homens. Não raras vezes, então, a exploração do homem pelo homem tem como modelo uma forma incorreta de utilização do espaço, como ainda a lembrar aquela exploração arcaica e primeira. Vê-se, em resumo, o espaço natural e o trabalho humano nele aplicado, ou, numa expressão única, o espaço desconstruído. Na desconstrução, então, tem-se incorporado o eterno refazer espacial, com suas características não só físico-espaciais mas também político-sociais. Cada sociedade, em função de suas características e de técnicas disponíveis, desconstrói o espaço à sua maneira. Há heranças não só especificamente espaciais (desenvolvimento físico) como humanas (desenvolvimento social). As pessoas são de tal maneira talhadas para a desconstrução que, pode-se afirmar, não sabem fazer nada que não seja desconstruir. As diversas técnicas aplicadas podem significar diferentes estágios de complexidade na inexorabilidade da desconstrução espacial. O intelectual e o braçal, como formas de divisão do trabalho, podem buscar arranjos políticos de complementaridade entre eles na desconstrução do espaço. Há um ponto em comum entre a exploração da natureza e a exploração entre os homens: as mãos. Com elas, explora-se a natureza e também os homens. A natureza pode estar mais do que apalpada, mexida e transformada, muitas vezes em excesso, pelo trabalho manual. O homem escraviza o outro homem inicialmente pelo trabalho manual. A cabeça pensa, mas são as “mãos alheias que trabalham”, na feliz colocação de Engels (1991, p.217). No trabalho cooperado, a mão está, como nunca, presente, mas em corpos humanos diferentes. Com ela, faz-se também um resgate histórico da evolução da exploração da natureza pelo homem através do processo alienante do trabalho. Talvez a compreensão da exploração primeira da natureza pelo homem – questionamento primeiro da desconstrução – possa levar ao entendimento da necessidade efetiva de superação da exploração do homem pelo homem. Após as reflexões sobre o papel das mãos como agente primeiro das transformações do espaço local no contexto de paisagem e, por isso mesmo, ícone do trabalho humano, falta-nos agora algo que possa ligar, nesse contexto, o desenvolvimento das forças produtivas e o da luta de classes. 184 Tal preocupação se insere também no contexto de entendimento das sucessivas transformações da paisagem – urbana, periurbana e rural –, ela própria como testemunha da história humana como cenário das ações antrópicas. Podese dizer que a história do homem se confunde com a da paisagem que ele esculpe, como força produtiva, humanizando-a e transformando-a em espaço pela desconstrução. Quando se pode delegar (ou obrigar) a outras mãos as ações que não se pode ou não se quer empreender naquele momento, é comum planejá-las para um tempo oportuno. Assim, há tempo de planejar a atividade de outrem, ou, com outras n. 33 2008 p. 169-186 palavras, definem-se ações futuras, enquanto o cidadão é explorado pela alienação conduzida que se faz do processo total da desconstrução espacial. A manualidade está, portanto, no cerne da estrutura de classe e das forças produtivas de uma sociedade, o que confere às mãos papel de magna importância na relação entre as pessoas e, ao mesmo tempo, no trabalho espacial. A história humana é conhecida a partir do trabalho incessante do homem no meio ambiente. Classicamente, o início da História é considerado como sendo a partir de um ato simbólico, quando fica documentado por ele o trabalho social através da escrita. É incorporado ao meio através do papiro, na madeira, à argila, à pedra etc. Pergunta-se por que só agora, por sua destruição, dá-se conta da importância desse meio ambiente? Com a desconstrução, junta-se o meio ambiente ao homem, e vice-versa, pois os dois são interdependentes. Nunca se esteve tão ligado à preservação do meio ambiente. Acredita-se que a consciência da desconstrução signifique um avanço na práxis espacial e no conhecimento e conservação do espaço. O ser humano sempre esteve no centro das questões que ele mesmo formula. Pode-se dizer que, por diversos motivos, o umbigo do homem não está mais no centro do universo das preocupações, e sim que há necessidade de se eleger um novo paradigma com abrangência maior: a desconstrução espacial. REFERÊNCIAS AXELOS, Kostas. Marx penseur de la technique, de l'alienation de l'homme à la conquête du monde. Paris: Éditions de Minuit, 1961. BERNO, Simone. 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