UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS
RAQUEL LIMA BESNOSIK
NOS LABIRINTOS DO AMOR DE MARINA COLASANTI
SALVADOR
2010
RAQUEL LIMA BESNOSIK
NOS LABIRINTOS DO AMOR DE MARINA COLASANTI
Dissertação apresentada como requisito para a
obtenção do grau de Mestre em Estudos de
Linguagens, ao Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagens, da Universidade do Estado
da Bahia.
Orientadora: Profª. Drª. Verbena Maria Rocha
Cordeiro
SALVADOR
2010
FICHA CATALOGRÁFICA – Biblioteca Central da UNEB
Bibliotecária : Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592
Besnosik, Raquel Lima
Nos labirintos do amor de Marina Colasanti / Raquel Lima Besnosik. – Salvador, 2010.
93f.
Orientadora: Verbena Maria Rocha Cordeiro.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências
Humanas. Campus I. 2010.
Inclui referências.
1. Colasanti, Marina, 1937. 2. Amor na literatura. 3. Feminilidade. 4. Psicanálise.
I. Cordeiro, Verbena Maria Rocha. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de
Ciências Humanas.
CDD: B869.8
RAQUEL LIMA BESNOSIK
NOS LABIRINTOS DO AMOR DE MARINA COLASANTI
Dissertação apresentada como requisito para a
obtenção do grau de Mestre em Estudos de
Linguagens, ao Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagens, da Universidade do Estado
da Bahia.
Aprovada em 31 de março de 2010
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Profa. Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro (orientadora)
Universidade do Estado da Bahia
_____________________________________________
Profa. Dra. Márcia Rios da Silva
Universidade do Estado da Bahia
_________________________________________________
Profa. Dra. Maria Zaira Turchi
Universidade Federal de Goiás
AGRADECIMENTOS
À minha tia querida, Malena, que sempre foi minha moça do labirinto do vento,
impulsionando-me a trilhar novos caminhos.
À minha orientadora, Verbena, minha bússola no labirinto do mestrado e no
percurso de escrita desse texto.
À Sonia Cabeda, por sua delicadeza em atender aos meus pedidos, por sua
leitura cuidadosa do meu texto e por seus preciosos comentários, que tanto me ajudaram
durante todo esse processo.
À minha família e aos meus amigos, por estarem sempre de mãos dadas comigo
ao longo dessa caminhada pelo labirinto do mestrado.
Ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da UNEB, por todo
o suporte oferecido durante minha formação.
À FAPESB, cujo apoio foi de fundamental importância para a realização desse
projeto.
À Profa. Dra. Márcia Rios da Silva e à Profa. Dra. Maria Zaira Turchi pelos
comentários valiosos sobre o meu texto de qualificação.
A vida é a arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela
vida
Vinicius de Moraes
RESUMO
Esse estudo tenciona investigar, a partir dos contos da escritora Marina Colasanti, o
lugar do amor na constituição da feminilidade e as (im)possibilidades para o encontro
amoroso, recorrendo a conceitos básicos da psicanálise e a outros teóricos com estudos
sobre o tema. Ainda que o amor seja um tema recorrente na obra da escritora, fizemos
um recorte, optando por sete contos que tematizam o amor e o encontro amoroso:
“Entre as Folhas do Verde O”, do livro Uma idéia toda azul (1979); “A Mulher
Ramada” e “Doze reis e moça no labirinto do vento”, do livro Doze reis e moça no
labirinto do vento (1982); “Prova de Amor” e “Verdadeira História de Amor Ardente”,
do livro Contos de amor rasgados (1986); “Entre a Espada e a Rosa”, do livro
homônimo (1992) e “De Muito Procurar”, do livro 23 histórias de um viajante (2005).
Este estudo foi desenvolvido no âmbito de uma abordagem qualitativa, com ênfase na
análise dos contos de Marina Colasanti. Para tanto, procedemos a uma revisão da sua
fortuna crítica, especificamente no âmbito dos estudos já produzidos dentro da temática
do amor e da feminilidade, a exemplo de livros, dissertações e teses. Além disso,
utilizamos nessa análise o suporte de alguns estudiosos sobre o tema, a exemplo de
Sigmund Freud, Maria Rita Kehl, Juan-David Nasio, bem como Platão, Denis de
Rougemont, Octavio Paz e Zygmunt Bauman. A partir dos sete contos selecionados,
definimos duas categorias de análise – “Os desencontros nos caminhos do amor” e “As
possibilidades de encontro nos caminhos do amor” – para orientar a leitura de cada um
dos contos separadamente e estabelecer pontos de encontro e de desencontro entre eles,
articulando-os com referencial teórico escolhido. Observamos que a ideia de Marina
Colasanti sobre o amor, retratada em contos de diferentes momentos de sua produção,
não é linear; ela desliza entre a possibilidade e a impossibilidade de encontro entre os
amantes e que, independente das (im)possibilidades para o encontro, o amor possui um
lugar estruturante na construção da feminilidade.
Palavras-chave: Amor; Feminilidade; Marina Colasanti; Literatura brasileira;
Psicanálise.
ABSTRACT
This study does intend to investigate, starting from the tales of writer Marina Colasanti,
the place of love in the formation of feminality and the possibilities and impossibilities
for assignation, taking into account the basic concepts of psychoanalysis and the studies
about the same theme by others theorists. Even love is a recurring theme in work of
writer, we make a cutting, choosing seven tales that thematized the love and the
assignation: “Entre as Folhas do Verde O”, from the book An entire blue idea (Uma
idéia toda azul) (1979); “A Mulher Ramada” and “Doze reis e moça no labirinto do
vento”, from the book Twelve kings and girl in the maze of wind (Doze reis e moça no
labirinto do vento) (1982); “Prova de Amor” and “Verdadeira História de Amor
Ardente”, from the book Tales of torn loves (Contos de amor rasgados) (1986); “Entre
a Espada e a Rosa”, from the homonymous book (1992) and “De Muito Procurar”, from
the book 23 stories of a traveler (23 histórias de um viajante) (2005). This study was
developed in the scope of a qualitative approach, emphasizing the analysis of the tales
of Marina Colasanti. So, we carried out a review of her critical fortune, especially in the
scope of studies already produced within the theme of love and feminality, like books,
monographs and thesis. Besides, we use in this analysis the support due to some
scholars on the theme, like Sigmund Freud, Maria Rita Kehl, Juan-David Nasio as well
as Platão, Denis de Rougemont, Octavio Paz and Zygmunt Bauman. From the seven
selected tales, we establish two categories for analysis – “Os desencontros no caminhos
do amor” (The mismatch in the ways of love) and “As possibilidades de encontro nos
caminhos do amor” (The possibilities of assignation in the ways of love) – to guide the
reading of each one of the tales separately and to set up points of convergence and
divergence among them, articulating them with the chosen theoretical. We note that the
idea about love by Marina Colasanti, portrayed on tales from different moments of her
production, is not linear; she slides between the possibility and the impossibility of tryst
between lovers, and independently of the possibilities and impossibilities of this
assignation, the love has a structuring place in the construction of the feminality.
Keywords: Love, Feminality, Marina Colasanti, Brazilian Literature, Psychoanalysis.
SUMÁRIO
POR ENTRE OS LABIRINTOS DE MARINA COLASANTI: SOBRE O AMOR E A
FEMINILIDADE .................................................................................................................... 8
1 OS DESENCONTROS NOS CAMINHOS DO AMOR .................................................... 23
1.1 “Entre as Folhas do Verde O”: a renúncia do amor ......................................................... 25
1.2 “Prova de Amor”: o preço do amor .................................................................................. 36
1.3 “Verdadeira Estória de um Amor Ardente”: sobre o desejo ............................................ 39
1.4 “A Mulher Ramada”: o reconhecimento do outro............................................................ 44
2 AS POSSIBILIDADES DE ENCONTRO NOS CAMINHOS DO AMOR....................... 50
2.1 “Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento”: sobre a sedução feminina ....................... 51
2.2 “Entre a Espada e a Rosa”: o mistério da feminilidade.................................................... 58
2.3 “De muito procurar”: (re)descobrindo o amor ................................................................. 68
O AMOR POSSÍVEL: ENCONTRANDO SAÍDAS NO LABIRINTO DO AMOR............ 78
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 89
POR ENTRE OS LABIRINTOS DE MARINA COLASANTI: SOBRE O AMOR E A
FEMINILIDADE
– Para que o labirinto, meu pai? – perguntou a filha.
– Para domar o vento – responde o pai –, que em cada quina se
gasta, abranda o sopro, e sai afinal, leve brisa, sem estragar as flores
(COLASANTI, 2003, p.82).
Entramos no labirinto e seguimos o caminho do vento. Adentramos os
corredores do amor levados pelos contos da escritora Marina Colasanti. E muitos foram
os achados ao longo do caminho. E muitos foram os desencontros, as ruas sem saída, as
bifurcações. Perdidos no labirinto, encontramos Marina Colasanti, moça do labirinto do
vento, e foram suas palavras que seguimos para adentrar na complexa e instigante
temática do amor.
Marina Colasanti nasceu em 1937, em Asmara, Eritréia, na África, onde viveu
sua infância. Depois seguiu para a Itália, morou lá por onze anos, chegando ao Brasil
em 1948. Nos versos e nas histórias que escreve estão presentes as marcas de uma
infância permeada pela guerra, por inúmeras mudanças e pela literatura:
A guerra me levou para nascer na África, [...] aonde meu pai havia
ido, voluntário, para as guerras italianas de colonização [...]. O resto
do mundo, o que não está em guerra, é o lado de fora. E os que estão
do lado de fora olham para os moradores da casa e se surpreendem
que ainda tenham do que rir, que dancem, que inventem modelos de
roupa fashion para aproveitar cobertores velhos porque já não há lãs,
ou que, como fazia minha mãe, maquiem as pernas de escuro e tracem
a costura com lápis de sobrancelhas para simular meias que não
existem mais para comprar. Os de fora não sabem que inventar a
normalidade no meio da tragédia é o que torna a tragédia suportável.
Acham estranho que a vaidade e o senso de humor permaneçam,
quando toda noite se desce a um abrigo antiaéreo. Mas é assim que se
tolera o abrigo. E permanece o desejo de ouvir música, que leva as
pessoas a concertos mesmo quando os víveres escasseiam. E o de ir ao
teatro. E o de ler. Essa invenção da normalidade é a casa. Durante
cinco anos, morei nessa casa. Mudei de cidade vezes sem conta.
Mudei de professores outras tantas [...]. Mas em pleno nomadismo,
uma normalidade estável foi criada pelos meus pais, para mim e para
meu irmão. Essa normalidade foi a leitura (COLASANTI, 2003).
A leitura, para Marina Colasanti, dava sentido de continuidade à sua vida,
porque nela se abrigava, resistindo aos horrores de uma guerra. Muitas vezes, mudava
de cidade com sua família sem levar nada, somente a roupa do corpo. Os livros que
compravam lhes conferiam um sentido de sobrevivência. “A literatura era um fio que
nos percorria”, comenta Colasanti (2003). Assim, desde muito cedo, a literatura ganha,
para a escritora, um significado particular. Marina Colasanti (2004, p.248) conta que sua
mãe lia para ela, quando criança: “Minha mãe não contava, inventando o texto ao sabor
da fala. Ela lia. O encantamento da narrativa me chegou através da palavra organizada
em escrita, e amei as palavras tanto quanto amei as histórias”. Assim, tanto a literatura
quanto a escrita começam a ter um lugar de importância na vida da autora, tecendo,
certamente, sua sensibilidade estética. Por isso, Marina Colasanti (2005c, p. 81) revela
que:
Quando Nero queria ver
o mundo melhor
olhava-o através de
uma esmeralda.
Quando quero ver melhor
o mundo
eu o olho através
das palavras.
E é recorrendo às suas palavras que, neste estudo, escolhemos “ver melhor” o
amor. Este é um tema, como sabemos, polêmico, que tem produzido muitos debates.
São muitos os estudos sobre o amor e a feminilidade ainda com uma marcante presença
na contemporaneidade. Esta pesquisa pretende contribuir para estas discussões, ao trazer
uma reflexão sobre o amor e sobre a constituição da identidade feminina, partindo do
estudo de contos de Marina Colasanti.
Lembremos que a autora tem uma história peculiar com o público feminino. Foi
colaboradora durante dezoito anos para a Revista Nova, da editora Abril, lançada em
1973, com uma linha editorial que falava diretamente para as mulheres, abrindo assim
um espaço inovador de discussão de temas voltados para o universo feminino. Colasanti
(1980, p. 9, grifo da autora) comenta que “falar para elas logo transformou-se em falar
delas e com elas”, por isso publicou livros como A nova mulher, com artigos escritos
para a Revista Nova, que versam sobre diversos aspectos da identidade feminina. O
universo feminino, de maneira geral, está bastante presente nas obras da autora e ela o
percorre com uma singular sensibilidade, desvendando seus desejos, seus amores, suas
frustrações, suas dores, suas percepções de vida. Colasanti (2005b) corrobora isso
quando enfatiza, numa entrevista, que o feminino e o papel da mulher na sociedade são
temas constantes em sua obra porque ela é “antes de mais nada, uma fêmea da [sua]
minha espécie, uma mulher com todos os atributos e todas as cargas das mulheres. Só
que intensamente crítica”.
Esse viés crítico da escritora parece ter se intensificado com sua atuação como
jornalista. Durante vinte e nove anos, ela trabalhou em redações de jornais, sendo onze
deles no “Caderno B”, do Jornal do Brasil1 – além de atuar mais seis na área de
publicidade – concomitantemente com a escrita de livros literários. Por isso, quando
questionada sobre o que a inspira a escrever, Marina Colasanti (2007), afirma:
Se eu tivesse uma só fonte, acho que era uma pobreza pra mim.
Depende do que eu vou escrever. Se eu vou fazer crônica, [...] eu
trabalho muito a partir do noticiário, porque a crônica está dentro de
um jornal, portanto inserida no meio do noticiário. Se ela só trabalhar
com noticiário talvez fique um pouco árida, mas aí a gente faz um
jogo. Então, você alterna uma crônica de viagem, com uma crítica de
uma notícia, com uma questão social, então ali entra tudo. Se eu vou
1
O Jornal do Brasil é um tradicional jornal brasileiro, fundado em 1891, publicado diariamente no Rio de
Janeiro. O “Caderno B” é uma das seções do jornal, que inclui resenhas sobre atividades culturais e
crônicas de diversos autores.
trabalhar com a questão feminina, o que me motiva são questões
sociais, políticas, econômicas e históricas, que são as que criam a
situação que a gente vai criticar, tentar modificar. Agora se eu vou
trabalhar com a fantasia, a fantasia usa tudo. Usa o real, usa o irreal.
Uma cor pode te dar o ponto de partida para um texto ou uma pessoa
ou essa cadeira que é tão magrinha. Eu cheguei aqui e pensei ‘essa
cadeira é boa para gordo porque emagrece a gente só de olhar a
cadeira’. É o olhar da gente que está ‘tchum’, ‘tchum’, ‘tchum’,
olhando, analisando, fazendo correlações, daí saem os pontos de
partida para uma ficção.
Observamos que muitas são as fontes de inspiração da autora para sua vasta e
diversificada produção, que transita entre contos, crônicas, poesias e ensaios2. A
escritora Marina Colasanti destaca-se ainda pela produção destinada ao público infantojuvenil. Também artista plástica, ela ilustra alguns de seus livros. Escritora de
reconhecimento nacional, Colasanti ocupa um lugar relevante no panorama brasileiro da
literatura contemporânea, estando em cena há mais de trinta anos, tendo sido premiada
por muitas de suas obras3.
Mas são, particularmente, os contos de Colasanti que mais nos estimulam a
desenvolver uma discussão sobre o lugar do amor na constituição da feminilidade.
2
A produção de Colasanti inclui doze livros de contos: Zoológico (1975), A morada do ser (1978), Uma
idéia toda azul (1979), Doze reis e a moça no labirinto do vento (1982), Contos de amor rasgados
(1986), Agosto 91, estávamos em Moscou (1991), Entre a espada e a rosa (1992), Longe como o meu
querer (1997), O Leopardo é um animal delicado (1998), Um espinho de marfim e outras histórias
(1999), Penélope manda lembranças (2001) e 23 histórias de um viajante (2005); uma novela: Eu
Sozinha (1968); catorze livros infanto-juvenis: A menina arco-íris (1984), O lobo e o carneiro no sonho
da menina (1985), Uma estrada junto ao rio (1985), O verde brilha no poço (1986), O menino que achou
uma estrela (1988), Um amigo para sempre (1988), Será que tem asas? (1989), Ofélia, a ovelha (1989),
Mão na massa (1990), Ana Z, aonde vai você? (1993), Um amor sem palavras (1995), O homem que não
parava de crescer (1995), A amizade abana o rabo (2002) e Minha tia me contou (2007); cinco de
poesias: Cada bicho seu capricho (1992), Rota de colisão (1993), Gargantas abertas (1998), Fino sangue
(2005) e Poesia em 4 tempos (2008); três de crônicas: Nada na Manga (1975), Eu sei, mas não devia
(1997) e A casa das palavras (2002); um ensaio: E por falar em amor (1984); dois livros de citações: De
mulheres sobre tudo (1995) e Esse amor de todos nós (2000); cinco coletâneas de artigos: A nova mulher
(1980), Mulher daqui pra frente (1981), Aqui entre nós (1988), Intimidade pública (1990) e Fragatas
para terras distantes (2004); e um livro disponível na internet: Vinte vezes você (mercatus.com.br).
3
Por Uma idéia toda azul (1979), primeiro livro de “contos de fadas” escrito (e ilustrado) por Marina
Colasanti, a autora ganhou o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte e o “Melhor Livro para
Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, um dos maiores prêmios do Brasil nessa
categoria. Foi contemplada também com o Prêmio Jabuti de Poesia por Rota de Colisão (1993) e com
Prêmio Jabuti Infantil ou Juvenil por Ana Z Aonde Vai Você? (1993), Eu sei, mas não devia (1995) e
Entre a espada e a rosa (1992), dentre muitas outros.
Assim, nossa escolha por Marina Colasanti parte inicialmente de uma grande
identificação com esse gênero textual. O conto “De muito procurar” (também escolhido
para este estudo) representa o nosso momento de encontro com a ficção de Colasanti e
de apaixonamento pela escritora. O conto relata a história de um homem que vivia à
procura. Quando uma mulher chega à sua porta, pedindo sua ajuda para encontrar um
“juízo perdido”, tudo se modifica na vida dele. Pela primeira vez, ele passa a procurar
por algo que nem ele mesmo sabia e nesse desconcerto faz outras descobertas. Na busca
desse homem, que se faz acompanhado por uma mulher, encontramos o tema para essa
dissertação e a autora que deveríamos estudar. Também a nossa inserção no Projeto de
Extensão Rodapalavra4, desde 2007, foi fundamental na opção desse estudo, na medida
em que podemos nos aprofundar no universo literário brasileiro e, em especial, ampliar
nossos estudos sobre Marina Colasanti. Ser mediadora dos círculos de formação desse
projeto constituiu-se num fator mobilizador para conhecermos mais sobre a vida e a
obra dessa escritora.
Tendo o amor como questão que deveria nortear nosso estudo, seguimos com
curiosidade os rastros deixados por Colasanti em seus contos. Chama particularmente a
nossa atenção a forma que a escritora percorre a temática do amor como se caminhasse
por um labirinto, abordando encontros, desencontros, impasses, bifurcações, becos sem
saída, perdas e descobertas. A partir daí, abre-se a trilha para investigarmos como a
escritora aborda o amor na feminilidade, em contos publicados em diferentes momentos
de sua produção. Ainda que o amor seja um tema recorrente na obra da escritora,
4
O RODAPALAVRA é um projeto de extensão do Departamento de Educação / Campus I / UNEB
que tem como coordenadora a Profa. Verbena Maria Rocha Cordeiro e como vice-coordenadora a Profa.
Luciana Moreno. O projeto, que teve início em 2004, “se integra às políticas públicas voltadas para uma
sociedade leitora. Dentre as ações socialmente relevantes, destacam-se a experiência de contação de
histórias e a formação de agentes mediadores de leitura – constituída por um grupo multidisciplinar de
professores, alunos universitários e funcionários da UNEB” (CORDEIRO, 2003). O RODAPALAVRA
tem um núcleo que funciona em Salvador, no Campus I, sob a responsabilidade de Raquel Besnosik,
aluna do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens, e outro, em Itaberaba, que fica sob a
responsabilidade da Profa. Luciana Moreno.
fazemos um recorte para esse estudo, optando por sete contos que tematizam o amor e o
encontro amoroso: “Entre as Folhas do Verde O”, do livro Uma idéia toda azul (1979);
“A Mulher Ramada” e “Doze reis e moça no labirinto do vento”, do livro Doze reis e
moça no labirinto do vento (1982); “Prova de Amor” e “Verdadeira História de Amor
Ardente”, do livro Contos de amor rasgados (1986); “Entre a Espada e a Rosa”, do
livro homônimo (1992) e “De Muito Procurar”, do livro 23 histórias de um viajante
(2005)5. Para efeito de nosso trabalho, optamos por uma leitura focada na feminilidade,
embora esses contos abordem também o universo masculino.
Vale ressaltar algumas informações sobre os livros com os quais estamos
trabalhando. Ainda que dois dos sete contos selecionados para esse estudo sejam minicontos, estamos considerando todos eles como contos, seguindo as teses de Piglia
(2004). A primeira delas diz que “o conto sempre conta duas histórias” (Ibid., p. 89).
Isso significa que “um relato visível esconde um relato secreto, narrado de um modo
elíptico e fragmentário. O efeito surpresa se produz quando o final da história secreta
aparece na superfície” (Ibid., p. 90). A segunda tese afirma que “a história secreta é a
chave da forma do conto e de suas variantes. [...] A versão moderna do conto [...]
abandona o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tensão entre as duas
histórias sem nunca resolvê-la” (Ibid., p. 91); conta as duas como se fossem apenas uma
e “o mais importante nunca se conta”. Para Piglia (2004, p. 92), a história se constrói
“com o não-dito, com o subentendido e a alusão”. É assim que Marina Colasanti narra
as histórias que constituem esse estudo.
Nessa perspectiva, Marina Colasanti constitui-se numa grande contista, que sabe
escolher bem seus temas e desenvolvê-los com muita sensibilidade. Cortázar (1993 p.
154) confirma essa ideia, ao enfatizar que o contista precisa saber escolher um bom
5
Todas as datas dos livros de contos de Marina Colasanti utilizados nesse estudo e respectivas citações
usadas no corpo do texto referem-se às suas primeiras edições.
tema, na medida em que “um bom tema atrai todo um sistema de relações conexas,
coagula no autor, e mais tarde no leitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões,
sentimentos e até ideias que lhe flutuavam virtualmente na memória ou na
sensibilidade”.
Livros como Uma idéia toda azul, Doze reis e moça no labirinto do vento, Entre
a espada e a rosa e 23 histórias de um viajante podem ser classificados como “contos
de fadas”. Para Marina Colasanti (2004, p. 44), a essência dos contos de fadas está na
“fusão de duas tendências contrárias do ser humano – o amor pelo real e a atração pelo
fantástico”. A autora pontua que
o que os constitui contos de fadas, no sentido mais profundo, é a
aparente gratuidade de certos elementos que surgem sem explicação e
sem necessidade para a estrutura da história, mas que se revelam
poderosos no estabelecimento de um diálogo com o inconsciente
(Ibid., p. 44).
Nos contos dos livros mencionados o impossível não existe e são as emoções
humanas que ganham evidência na história narrada. Colasanti (2004, p. 202) enfatiza:
“o que me interessa não é contar uma história. É utilizar uma história para lidar com o
amor e com o ódio, com o medo, o ciúme, o desejo, a grandeza humana, sua pequenez e
sua morte”. A obra Contos de amor rasgados apresenta-nos mini-contos – mas
igualmente ricos de significados como os outros – sobre os desencontros, as
adversidades, as incertezas e as imprevisibilidades do amor.
Buscamos, nesse estudo, destacar, nos contos de Marina Colasanti, as figurações
em sua narrativa no que se refere à construção da ideia do amor. A pesquisa visa
também analisar, nos contos da autora, que lugar o amor e o encontro amoroso ocupam
na constituição da feminilidade, recorrendo a alguns estudiosos sobre o tema, a exemplo
de Platão, Denis de Rougemont, Octavio Paz e Zygmunt Bauman, bem como
psicanalistas como Sigmund Freud, Maria Rita Kehl e Juan-David Nasio.
Este estudo foi concebido e desenvolvido no âmbito de uma abordagem
qualitativa, com ênfase na análise dos contos de Marina Colasanti, na perspectiva de
compreender como as relações amorosas se constroem em sua narrativa, especialmente
na constituição da feminilidade. Para tanto, procedemos a uma revisão da fortuna crítica
sobre a escritora, especificamente no âmbito dos estudos já produzidos dentro da
temática do amor e da feminilidade, a exemplo de livros, dissertações e teses. Além
disso, utilizamos nessa análise o suporte de alguns estudiosos sobre o tema, que
especificaremos mais adiante.
A leitura das narrativas implica uma análise de conteúdo, que, de acordo com
Chizzotti (1998, p. 98), permite ao investigador “compreender criticamente o sentido
das comunicações, seu conteúdo manifesto ou latente, as significações explícitas ou
ocultas”. Para Bauer (2002), esse método de análise de texto significa construir uma
interpretação através da seleção, da criação de unidades e da categorização de dados,
que orientam a leitura das categorias de análise definidas por cada pesquisador. Nesse
sentido, a partir dos indícios encontrados nos contos de Colasanti, definimos duas
categorias de análise, eixos balizadores de nossa leitura: “Os desencontros nos caminhos
do amor” e “As possibilidades de encontro nos caminhos do amor”. Num primeiro
momento, trabalhamos cada um dos contos separadamente e, em seguida,
estabelecemos pontos de encontro e de desencontro entre eles, respaldando-nos no
suporte teórico utilizado.
Para um melhor entendimento das questões do amor e da feminilidade,
recorremos à psicanálise, por ser um campo de conhecimento que possibilita e estimula
uma interpretação do movimento das mulheres na busca de um “ideal” de feminilidade
e de amor. Ademais, convocamos também autores de outras áreas de conhecimento, que
refletem sobre as diferentes perspectivas do amor. Levando em conta a complexidade
desse tema e os limites do saber psicanalítico, é que incluímos essas outras
contribuições para dar mais consistência ao nosso estudo, a exemplo de Platão (1962),
Denis de Rougemont (1988), Octavio Paz (1994) e Zygmunt Bauman (2004). A escolha
pela psicanálise justifica-se também porque seus conceitos fundamentais permanecem
atuais e representam, portanto, importantes referenciais na investigação do lugar
ocupado pelo amor na identidade feminina.
Vera Tietzmann Silva (2004), em seus estudos sobre a autora, nos indica uma
pista preciosa, ao ressaltar que os contos de Marina Colasanti se voltam “para dentro”.
Seu referencial inscreve-se, sobretudo, no âmbito do psiquismo humano e das relações
interpessoais. Levando isso em consideração, a psicanálise se constitui como um
suporte significativo na análise dos contos da autora.
Marini (1997), por sua vez, assinala que, na história do saber psicanalítico, estão
presentes muitos encontros com os mitos, os contos e as obras literárias. Literatura e
psicanálise “se fundem ambas num trabalho da linguagem e do imaginário” (MARINI,
1997, p.46), influenciando-se mutuamente. Freud6 demonstra seu interesse pela
literatura em diversos ensaios, recorrendo ao texto literário para sustentar conceitos
teóricos da sua teoria psicanalítica. Da mesma forma, autores e críticos literários fazem
uso da psicanálise como suporte para suas leituras, buscando, nessa área, elementos que
auxiliam na investigação de alguns dos múltiplos sentidos da obra literária. Nessa
relação entre literatura e psicanálise têm-se produzido diálogos férteis e instigantes.
6
Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907[1906]), Resposta a um questionário sobre leitura (1906),
Escritores criativos e devaneios (1908[1907]), Romances familiares (1909[1908]) e O prêmio Goethe
(1930) são alguns exemplos do diálogo de Freud com a Literatura.
Recorremos a alguns autores como suporte teórico para nosso estudo.
Consultamos o Banquete, de Platão (1962), o primeiro texto filosófico sobre o amorpaixão, escrito por volta de 380 a.C. Jurandir Freire Costa (1998), em seu livro Sem
fraude nem favor – estudos sobre o amor romântico, comenta diversos discursos sobre
o amor e, ao abordar especificamente Platão, afirma que a erótica platônica se
assemelha bastante à nossa ideia atual de amor. Os discursos do Banquete, segundo
Costa (1998, p. 36) “foram reapropriados pela mentalidade moderna romântica, visando
a legitimar a ideia de que o ‘verdadeiro amor’ seria um sentimento único, inconfundível,
universal e intrínseco à natureza humana”.
Seguindo o caminho do amor-paixão, recorremos também a Denis de
Rougemont (1988), que discorre sobre o tema do amor no ocidente e é quem, de fato,
discute o conceito de amor-paixão pela primeira vez. Em O amor e o ocidente, o autor
analisa o mito de Tristão e Isolda7 e observa que a visão de amor surgida no século XII
perdura até os dias atuais. Quando fala sobre o romance de Tristão e Isolda e sobre as
7
Tristão é sobrinho do Rei Marcos da Cornualha. Órfão, Tristão foi adotado e educado pelo tio. Quando o
Rei Marcos decide se casar, envia o sobrinho para buscar sua noiva. Tristão encontra Isolda, a “loura”, e,
juntos, navegam ao encontro do Rei Marcos. Em alto-mar, não há vento e o calor é sufocante. Os dois
sentem muita sede e a aia Briolanja oferece por engano o “vinho ervado” que é destinado aos esposos.
Tristão e Isolda bebem o vinho, apaixonam-se e entregam-se ao amor. A duração do filtro seria de três
anos. Tristão, entretanto, permanece preso ao compromisso com seu tio. Isolda é levada ao Rei Marcos. A
traição de Tristão é denunciada e ele é banido. Hospeda-se próximo ao castelo e continua se encontrando
com sua amada. Marcos tenta surpreendê-los no local onde se encontram, mas Tristão e Isolda,
percebendo sua presença, convencem-no de sua inocência. O Rei se reconcilia com o sobrinho e este
retorna ao castelo. Mas logo os encontros furtivos dos dois são descobertos. Tristão é condenado à morte
e Isolda é entregue aos leprosos. Tristão, contudo, consegue salvá-la e juntos vão para a floresta de
Morrois. Durante três anos vivem uma vida difícil. Um dia o Rei Marcos os surpreende dormindo. Como
Tristão tinha colocado entre eles uma espada desembainhada, Marcos considera aquele gesto um sinal de
castidade e deixa, no lugar da espada de Tristão, uma espada real. Após três anos, sem o efeito do vinho,
Tristão se arrepende e Isolda começa a sentir saudade da corte. Os amantes vão ao encontro do eremita
Ogrino e, por intermédio dele, Tristão propõe devolver Isolda ao Rei Marcos. O rei promete perdoar.
Chegando ao castelo, Isolda pede a Tristão que ainda permaneça no reino até que ela tenha certeza de que
Marcos a tratará bem. Assim, os amantes ainda se encontram algumas vezes clandestinamente. Mas novas
aventuras levam Tristão para terras distantes e ele se separa de Isolda. Acredita que ela deixou de amá-lo.
Dessa forma, ele se casa com outra Isolda, a “das mãos alvas”, que deixará virgem porque ainda chora
pela outra Isolda. Mortalmente ferido numa emboscada, Tristão pede para ver uma última vez sua amada.
Isolda vem ao seu encontro, ostentando uma vela branca em sua nau, sinal de esperança e de que estava
chegando para ver Tristão. Isolda das mãos alvas espreita sua chegada e, atormentada pelo ciúme, diz a
Tristão que é uma vela negra que se aproxima, indicando que Isolda não viera. Tristão morre e Isolda,
quando desembarca, abraça o corpo de seu amado e morre de tristeza (ROUGEMONT, 1988).
separações e reencontros sucessivos dos amantes – observando, inclusive, que muitos
desses afastamentos foram provocados por eles próprios –, Rougemont (1988) verifica
que o que eles amam de fato é o próprio amor. Os amantes buscam a paixão que está
vinculada ao sofrimento, buscam o romance. E o romance, na perspectiva desse autor, é
constituído pelas dificuldades, pela intensidade, pelas variações e pela fugacidade da
paixão.
Outro autor que também se debruça sobre o tema do amor é Octavio Paz (1994),
em sua obra A dupla chama: amor e erotismo. Ele diferencia amor, sexo e erotismo e
aborda os grandes dilemas da paixão amorosa. Para Paz (1994, p. 113), o amor é um nó
“feito de duas liberdades entrelaçadas”. E para adentrar um pouco mais nos “nós” do
amor, buscamos também Zygmunt Bauman que, em Amor líquido: sobre a fragilidade
dos laços humanos (2004), discute como o homem moderno compreende e vivencia o
amor e as relações amorosas. José Luiz Furtado (2008) também nos oferece suporte
nesse estudo. Em seu livro Amor, o autor mapeia a história desse sentimento desde a
filosofia grega, discutindo o mito do amor-paixão, através de obras como as de Platão e
de Rougemont, até a contemporaneidade, com o surgimento moderno do amor
romântico.
Para avançarmos mais na discussão sobre o amor e sobre o lugar que ele ocupa
na constituição da feminilidade, a psicanálise nos pareceu a via mais indicada. Além de
textos de Freud, utilizamos em nossa análise a psicanalista e estudiosa Maria Rita Kehl,
que dedica especial interesse às questões da feminilidade e do amor. Da autora, foram
usados, em nosso estudo, os livros A mínima diferença: masculino e feminino na cultura
(1996) e Deslocamentos do feminino (2008) e os artigos “Masculino / feminino: o olhar
da sedução” (do livro O olhar, 1988, organizado por Adauto Novaes), “A psicanálise e
o domínio das paixões” (do livro Os sentidos da paixão, 2009, também organizado por
Adauto Novaes) e “O que um homem quer saber?” (do livro Sobre o desejo masculino,
1995, organizado por Ângela Teixeira).
Em Sobre o desejo masculino, buscamos ainda os artigos dos psicanalistas
Ricardo Estacolchic, que aborda os encontros e desencontros do casal através de
exemplos da clínica e da literatura, e Ricardo Goldenberg, que discute, a partir da
literatura, o desejo fetichista masculino. O estudos da pesquisadora Sonia Cabeda em
“‘O que quer uma mulher?’ A construção do corpo pela cirurgia plástica” ( em O corpo
ainda é pouco: II Seminário sobre a contemporaneidade, 2000) nos ajuda também a
compreender melhor o lugar ocupado pela mulher no jogo amoroso. O livro
Feminilidades (2002), organizado por Joel Birman, revisa esse conceito que dá nome ao
livro, com a colaboração de quatro psicanalistas. Em nosso estudo, utilizamos
especificamente o ensaio de Silvia Alexim Nunes, “O feminino e seus destinos:
maternidade, enigma e feminilidade”.
Para uma breve introdução à temática do amor, buscamos Betty Milan, com seu
livro O que é amor (1985). E com a finalidade de investigar um pouco mais o processo
de apaixonamento e de amor, recorremos a Juan-David Nasio (1997), que em O livro da
dor e do amor, aborda a relação entre essas duas instâncias (dor e amor), a pessoa do
amado eleito, a fantasia construída em torno dele e a ruptura do laço amoroso, vista
como uma perda. Além de Nasio, os comentários de Ana Lila Lejarraga nos auxiliaram
no processo de investigação da paixão amorosa, em sua obra Paixão e ternura: um
estudo sobre a noção de amor na obra freudiana (2002).
Como Marina Colasanti é o foco de nosso estudo, buscamos outros livros da
autora que abordam a temática em questão. A nova mulher (1980) e Mulher daqui pra
frente (1981) versam sobre diversos aspectos da identidade feminina, dentre eles o
amor. E por falar em amor (1984) é um livro no qual a autora reflete sobre as formas de
amar masculina e feminina, deixando transparecer seu próprio conceito de amor. E em
Fragatas para terras distantes (2004), Colasanti nos conduz para uma série de
reflexões, passando por suas experiências como leitora e como escritora, que não
deixam de ser também experiências amorosas com a leitura.
Para o levantamento das produções acadêmicas sobre Marina Colasanti,
recorremos ao Banco de Dissertações e Teses da CAPES (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)8 do que já foi produzido sobre Marina
Colasanti e verificamos que há vinte dissertações e duas teses sobre a autora. Refinamos
nossa busca pelas pesquisas já feitas sobre Colasanti e a questão do feminino e do amor
e encontramos as dissertações de Anderson Gomes, da Universidade Federal de Santa
Catarina, “E por falar em mulheres: relatos, intimidades e ficções na escrita de Marina
Colasanti” (2004); de Claudineide Dantas de Oliveira, da Universidade Federal da
Paraíba, “A Figura Feminina do Texto em ‘A Moça Tecelã’ de Marina Colasanti”
(2002); de Joselia Rocha dos Santos, “Variações sobre o mesmo tema: a representação
do corpo nos contos de Clarice Lispector, Helena Parente Cunha, Lygia Fagundes
Telles e Marina Colasanti” (2004), de Luciana Faria Le-Roy, “A representação da
mulher na literatura para crianças: um estudo de obras de Júlia Lopes, Ana Maria
Machado, Lygia Bojunga Nunes e Marina Colasanti” (2003), de Valquiria da Cunha
Paladino, “A experiência do vivido e a sua contextualização no romance de formação do
feminino” (2000), as três da Universidade Federal do Rio de Janeiro; de Leandro
Passos, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, “Rapto e absorção:
referências clássicas em Contos de Amor Rasgados de Marina Colasanti” (2008); de
Márcia Correia Rama Massa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, “A
constituição do ethos feminino no conto ‘A Moça Tecelã’, de Marina Colasanti” (2004);
8
Disponível em: <http://servicos.capes.gov.br/capesdw/Nav.do?inicio=0>. Acesso em: 20 jan 2010.
de Marly Camargo de Barros Vidal, da Universidade de São Paulo, “A dialogia
escritural em Marina Colasanti”, 2001 (que resultou no livro Mil e um fios: a escrita de
Marina Colasanti9); de Salma Divina da Silva, “Eros no imaginário de Marina
Colasanti”, 1999 (publicada posteriormente com o título O mito do amor em Marina
Colasanti10) e de Silvana Augusta Barbosa Carrijo Silva, “Marina Colasanti: Mulher em
Prosa e Verso” (2003), ambas da Universidade Federal de Goiás. Encontramos ainda as
teses de Maria Helena Miscow Ferraz de Mendonça, “A crônica e as cronistas
brasileiras: questão de gêneros” (2002) e de Rosa Maria Cuba Riche, “O feminino na
Literatura Infantil e Juvenil Brasileira: poder, desejo, memória e os casos Edy Lima,
Lygia Bojunga Nunes e Marina Colasanti” (1996), ambas da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
Lembramos também o importante estudo de Vera Tietzmann Silva, que
organizou o livro E por falar em Marina… Estudos sobre Marina Colasanti11, resultado
de um projeto de pesquisa desenvolvido por ela com as turmas de concluintes do curso
de Letras da Universidade Federal de Goiás, com a finalidade de iniciar os estudantes da
graduação na produção de crítica literária. O livro reúne vários artigos que foram
produzidos com base nos contos, nos poemas e nos livros infanto-juvenis de Marina
Colasanti, onde os autores analisam e comparam temas, personagens e situações
abordados pela autora em suas obras.
9
VIDAL, M. C. B. Mil e um fios: a escrita de Marina Colasanti. São Paulo: Alexa Cultural,
Comunicação e Cultura, 2003. A autora investiga, nas crônicas e nos ensaios jornalísticos de Marina
Colasanti, como se processa a estruturação dos elementos constituintes do discurso, “de como a
construção composicional dos textos se concretiza” (VIDAL, 2003, p. 5).
10
SILVA, S. O mito do amor em Marina Colasanti. Goiânia: Cânone, 2003. Buscando suporte na
teoria do imaginário e na mitocrítica, de Gilbert Durand, o trabalho da autora aborda o mito de Eros, nos
contos de Marina Colasanti, numa articulação com mitos de outras épocas. “Com competência e
profundidade, a obra dá conta do processo de atualização do mito de Eros nos contos de Marina Colasanti
e da inserção dessa questão no mundo contemporâneo” (TURCHI, M. Z. In: SILVA, S. 2003, p. 13).
11
SILVA, V. M. T. (org.) E por falar em Marina… Estudos sobre Marina Colasanti. Goiânia: Cânone
Editorial, 2003.
Diante desse panorama do que já foi produzido sobre Marina Colasanti, nosso
estudo busca contribuir para estas discussões, analisando o lugar do amor na
constituição da feminilidade e as (im)possibilidades para o encontro amoroso, a partir
dos contos da autora. Adentramos os corredores do labirinto do amor conduzidos pelos
fios das palavras de Colasanti, organizando o presente trabalho em quatro segmentos.
Nesse primeiro segmento, abordamos a questão de pesquisa, a escolha do tema,
o objeto de estudo, os fundamentos teóricos, a metodologia utilizada, um breve percurso
intelectual da autora e sua fortuna crítica, especificamente sobre a temática do amor e da
feminilidade.
No primeiro capítulo “Os desencontros nos caminhos do amor”, analisamos
quatro contos de Marina Colasanti, assim estruturados: “‘Entre as Folhas do Verde O’: a
renúncia do amor”, “‘Prova de Amor’: o preço do amor”, “‘Verdadeira Estória de um
Amor Ardente’: sobre o desejo” e “‘A Mulher Ramada’: o reconhecimento do outro”.
Nesse capítulo, buscamos investigar, o que se constitui, para a autora, impossibilidades
ou entraves para o encontro amoroso, articulando os contos entre si e com referencial
teórico escolhido.
No segundo capítulo “As possibilidades de encontro nos caminhos do amor”,
desdobrado em três sub-capítulos: “‘Doze Reis e Moça no Labirinto do Vento’: sobre a
sedução feminina”, “‘Entre a Espada e Rosa’: o mistério da feminilidade” e “‘De Muito
Procurar’: (re)descobrindo o amor”, procuramos salientar, a partir da análise dos contos,
o que se apresentam como possibilidades de encontros amorosos para Marina Colasanti.
Intentamos, assim como no primeiro capítulo, correlacionar os contos entre si e com o
nosso suporte teórico, discutindo como a autora constrói a ideia de amor e o lugar desse
sentimento na constituição da subjetividade feminina.
Finalizando nosso estudo, apresentamos algumas considerações que intitulamos
“O amor possível: encontrando saídas no labirinto do amor”. Nesse segmento,
retomamos os contos trabalhados, buscando os pontos de encontro e de divergência
entre eles, observando a ideia que Marina Colasanti traz sobre o amor, retratada em
contos de diferentes momentos de sua produção.
Este estudo trará, certamente, algumas contribuições para o debate no campo
amoroso, especialmente na perspectiva da feminilidade. Nesse sentido, os contos de
Marina Colasanti, sem dúvida, ricos em símbolos e metáforas, constituem-se num
material primoroso para adentrarmos nesse universo e explorá-lo em múltipos sentidos.
1 OS DESENCONTROS NOS CAMINHOS DO AMOR
Adentramos o labirinto amoroso de Marina Colasanti lentamente, seguindo as
pistas de suas palavras e as imagens desenhadas em seus contos. O amor tem um lugar
de destaque nas obras da autora. Em seu livro Mulher daqui pra frente, Colasanti (1981,
p. 165) enfatiza que “o amor não é um privilégio. É uma escolha”, assinalando que há
pessoas que fazem tudo apaixonadamente, porque procuram o amor em tudo o que
fazem, entregam-se às situações de forma apaixonada. Sentimos que é exatamente dessa
forma que a autora se entrega à escrita. Talvez por isso seus contos tratem com tanta
sensibilidade o amor e o universo feminino e sejam tão ricos de significados. Marina
Colasanti considera que “o amor é um só, aproximação de ternura que nos liga a todas
as coisas” (COLASANTI, 1981, p. 165).
Para avançar no território do amor, entretanto, precisamos estar atentos aos
diversos discursos que o permeiam. Jurandir Freire Costa (1998), em Sem fraude nem
favor – estudos sobre o amor romântico, analisa alguns desses discursos e os divide em
idealistas e realistas. Os realistas, de modo geral, tentam “demonizar o amor” (Ibid., p.
157). O amor deixa de ser algo sagrado e é visto como um produto social simplesmente.
Costa (1998, p. 157) ressalta que “os idealistas querem, a todo preço, preservar o
‘autêntico’ núcleo do amor da poluição ambiental; os realistas só conseguem ver
poluição onde também existe satisfação, alegria, êxtase e, muitas vezes, felicidade”. Os
idealistas consideram o amor “um valor que poderia se tornar um fato” (Ibid., p. 158),
se a sociedade não o corrompesse, enquanto os realistas afirmam que pensar dessa
forma é ignorar a verdadeira natureza do amor. Por um lado, os idealistas, mais
próximos do Romantismo, atribuem um importante papel aos sentimentos na paixão
amorosa, acreditando que o sofrimento é um risco que vale a pena se o que está em jogo
é uma relação de amor. Por outro lado, os realistas, vinculados à tradição iluminista,
questionam as conseqüências das experiências amorosas para a vida ética do sujeito e
acreditam que “a paixão é simplesmente um mau hábito que devemos evitar se
quisermos ser mais livres e autônomos” (Ibid., p. 158). Enquanto os idealistas defendem
a espontaneidade do sentimento, que escapa à racionalidade, os realistas acham que é
possível “intervir racionalmente nas crenças amorosas e reordená-las segundo aquilo
que julgamos melhor, do ponto de vista moral” (Ibid., p. 159).
Costa (1998) considera que são muitas as concepções sobre esse sentimento,
nenhum está completamente certo ou errado. O autor descreve, como idealistas, teóricos
como Zygmunt Bauman e Octavio Paz. Eles não estão nem mais certos nem mais
errados quando tentam “eliminar os desvios narcisistas ou as leituras político-científicas
do ‘verdadeiro sentimento amoroso’” (Ibid., p. 164). Eles só estão mais próximos do
“ideal de vida amorosa dominante no Ocidente”, esclarece Costa (1998, p. 164). A
cultura é grande responsável pelas imagens do amor que adotamos:
basta que a cultura assinale a novas imagens do amor um lugar entre
os ideais aprovados para que tais imagens sejam aceitas como
desejáveis, sem traumas, escândalos, ‘desumanização’ ou
empobrecimento emocional de quem quer que seja.
Costa (1998) apropriadamente enfatiza que há pontos frágeis em ambas as
“verdades”. Os idealistas, focados na espontaneidade e irracionalidade do amor,
considerando-o universal e natural ao ser humano, não conseguem perceber que a
emoção amorosa está sujeita também às influências da cultura; já os realistas
consideram que as escolhas amorosas estão sempre e somente subordinadas à cultura
dominante. Costa (1998, p. 175) frisa que:
Os realistas, ao subestimar as paixões do amor, acabam por reduzir a
emoção amorosa a seu respeito racional e minimizam o valor dos
sentimentos e sensações na prática social da linguagem; os idealistas,
ao subestimar as razões do amor, desconsideram a importância da
vontade e da liberdade do sujeito da experimentação amorosa.
Nem certos nem errados, apenas pontos de vista diferentes face a um mesmo
sentimento. E é seguindo criticamente essa trilha do “ideal de vida amorosa dominante
no Ocidente” (Ibid., p. 164) que percorremos os contos de Marina Colasanti e nos
detemos no universo do amor.
1.1 “Entre as Folhas do Verde O”: a renúncia do amor
Analisando os contos de Colasanti escolhidos para este estudo, percebemos que
o amor não se apresenta de forma linear nos textos da autora, deslizando entre encontros
e desencontros. Ora os amantes encontram caminho livre para o sentimento amoroso,
ora se esbarram com um beco sem saída, ora separam-se numa bifurcação. Não importa
se os caminhos que levam ao amor sejam livres, impossíveis ou bifurcados, o amor
continua sendo um sentimento intenso e único nos contos dessa escritora. Para Colasanti
(1981, p. 22), cada amor cumpre um destino diferente; “cada amor é um novo
acontecimento. São muitos os desencontros, mudanças inesperadas, equívocos,
reencontros, promessas apaixonadas que enfeixam a relação amorosa, conferindo um
certo tom de intensa, mas de fugaz felicidade, a cada amante, que a sente e a vivencia
em suas singularidades.
No conto “Entre as Folhas do Verde O”, o encontro à beira de um regato entre
um príncipe e uma corça-mulher cumpre também um destino diferente para cada
amante. Ao se verem e se olharem, a corça não foge (ou não resiste?) e o príncipe a
captura. Ela é levada para o castelo e trancada num quarto cuja chave pertencia ao
príncipe. Ele a visitava todos os dias. Os dois ficavam horas se olhando. Desejavam
dizer tanto um ao outro, mas não falavam a mesma língua. Quando a primeira lágrima
caiu dos olhos da corça-mulher, o príncipe pensou ter compreendido o que ela desejava.
Mandou chamar o feiticeiro e transformá-la em “toda mulher” (COLASANTI, 1979, p.
40). Coberta com roupas e jóias, “só não tinha a palavra. E o desejo de ser mulher”
(Ibid., p. 41). Assim que aprendeu a andar, voltou à floresta procurando por sua rainha.
Então, somente corça, ela voltou a pastar nas proximidades do castelo.
No conto, capturados pelo amor, os amantes ficam horas e horas calados, apenas
olhando-se. O amor emudece, porque os amantes se expressam em diferentes línguas,
enquanto a “corça-mulher só falava a língua da floresta [...] o príncipe só falava a língua
do palácio” (Ibid., p. 40). Mas o diálogo amoroso parece ser também feito de silêncios,
já nos assinala Colasanti (1984). Mesmo calados, os amantes sustentam uma relação
amorosa feita de não-ditos que abrigam outros significados. Há um embevecimento que
os fascina e os envolve, a despeito de não se falarem. Até mesmo porque “por mais que
duas pessoas se digam tudo, o fato é nunca se dizem tudo” (Ibid., p. 135, grifo da
autora). Embora o lugar da fala se constitua como vital numa relação amorosa, porque é
na partilha com quem se ama que dialogamos também com a vida, a autora ressalta que
as emoções não são objetivas, matemáticas, facéis de identificar. São,
ao contrário, caóticas, conflitantes, quase impossíveis de medir.
Verbalizar com precisão esse caos, acertar ao dizer – quando o
desacerto pode ser tão grande no sentir – é coisa muitíssimo difícil,
que exige alta sofiscação verbal (Ibid., p. 135).
O diálogo amoroso é dotado de grande complexidade: há uma dificuldade em se
expressar os sentimentos, há silêncios que falam mais do que mil palavras e, por mais
que se saiba sobre o outro, é impossível sabermos absolutamente tudo sobre ele. No
conto em questão, os amantes não conseguem expressar o que sentem, entretanto seu
silêncio deixa transparecer o seu sofrimento por não conseguirem romper essa distância
que paradoxalmente os atrai e os afasta. O entrave na comunicação se deve a uma
dificuldade de reconhecimento do outro, algo constitutivo das diferenças entre o
masculino e o feminino e, por isso, eles manifestam linguagens e posições diferentes em
relação ao amor. No conto, tal posição fica clara. Por um lado, o princípe:
[...] Ele queria dizer que a amava tanto, que queria casar com ela e têla para sempre no castelo, que a cobriria de roupas e jóias, que
chamaria o melhor feiticeiro do reino para fazê-la virar toda mulher”
(COLASANTI, 1979, p.40).
E por outro lado, a corça-mulher:
[...] Ela queria dizer que o amava tanto, que queria casar com ele e
levá-lo para a floresta, que lhe ensinaria a gostar dos pássaros e das
flores e que pediria à Rainha das Corças para dar-lhe quatro patas
ágeis e um belo pelo castanho (Ibid., p.40).
E quando o amor perde a fala, são as projeções que ganham voz. Buscamos
apoio em alguns autores, inclusive a própria Marina Colasanti, que defendem esse
argumento. Colasanti (1984, p. 33) assinala que “o amor é basicamente psicológico,
sentimento gerado por nossos desejos, nossas necessidades afetivas, nossas projeções”.
Ricardo Estacolchic (1995, p.31), alinhando-se a essa ideia, afirma que “um par se
forma por engate da fantasia. Isto é: uma zona onde a seqüência da fantasia inconsciente
de um dos parceiros ‘cavalga’ sobre a seqüência da fantasia do outro”. Um pensa
conhecer o que o outro deseja. Na verdade, cada um projeta seu desejo no outro, como
no conto de Marina Colasanti. Quando a corça-mulher chora, o príncipe pensa ter
compreendido o significado de suas lágrimas e pede ao feiticeiro do reino que a
transforme em mulher. No entanto, não é esse o seu desejo. Ele queria tê-la no castelo,
ela desejava levá-lo para a floresta. Ele queria vesti-la com roupas e jóias, ela queria
ensiná-lo a gostar dos pássaros e das flores. Ele a desejava mulher e ela o queria corça.
Os amantes, portanto, falavam línguas diferentes e desejavam coisas diferentes um do
outro. Há algo da ordem da subjetividade de cada um que esgarça esse amor, pela
dificuldade de renunciarem ao ideal do amor. O príncipe, por fim, numa projeção de seu
desejo sobre a corça-mulher, decide transformá-la em “toda mulher” (COLASANTI,
1979, p.40). Para ele, o que importa é tão somente o seu desejo; o seu olhar sobre a
corça-mulher de alguma forma a aprisiona e a submete.
Na ótica de Ricardo Goldenberg (1995) o desejo masculino sempre é fetichista12,
na medida em que ele “recorta” e “cola” as mulheres. Estacolchic (1995) reforça essa
ideia, ao explicitar que homem pode buscar várias mulheres, encontrando nelas um
significante fálico, um pedaço do corpo que é recortado pulsionalmente e que desperta o
circuito do desejo. No conto, o príncipe “recorta” e “cola” seu desejo na corça-mulher (e
vice-versa). Como é ele quem possui a “chave” da porta que a prende, é ele quem
também a modela. E ainda que ele a transforme em mulher e a cubra de roupas e jóias,
nada disso apreende ou alcança o seu desejo da corça. Tudo o que ele faz para capturar
o amor da corça esbarra num obstáculo: “Só não tinha a palavra. E o desejo de ser
mulher” (COLASANTI, 1979, p. 41). Transmutada em apenas mulher sem que esse
fosse o seu desejo, a saída que lhe restou foi retornar a seu lugar de origem e, ao perder
sua condição humana, retorna ao palácio, pastando na nostalgia de um “amor perdido”,
tão próximo do amor cortês. Uma outra leitura seria pensarmos no preço que a corça
12
Segundo Roudinesco (1998, p. 237), o fetiche se refere a qualquer objeto (no sentido psicológico do
termo) que pretenda preencher a falta, “é um substituto do falo, [que] obedece a intenção de destruir a
prova da castração” e, com isso, possibilitar a ilusão de completude, de idealização, e se aplica na vida
amorosa mais ao masculino do que ao feminino.
paga para não ficar submetida ao desejo do princípe. Ela opta por renunciar à realização
do encontro amoroso (no sentido sexual) para ficar com o amor romântico.
Essa cena final do conto remete-nos à sua epígrafe inspirada numa canção
popular da Idade Média (Ibid., p. 38):
Na primeira corça que disparou,
Errou. E na segunda corça acertou.
E beijou. E a terceira fugiu no
Coração de um jovem.
Ela está entre as folhas do verde O
Colasanti, ao tomar essa epígrafe, já anuncia algo da ordem do amor não
consumado, próprio do amor cortês. Rougemont (1988) considera o amor cortês
predecessor do amor-paixão romântico, no que diz respeito ao culto ao sofrimento. A
relação de Tristão e Isolda, analisada pelo autor, traz exatamente essa ideia; eles se
amam no sofrimento, entre encontros e desencontros, provocando eles mesmos
obstáculos para a concretização desse amor. Jurandir Freire Costa (1998), também
comentando o amor cortês e as afirmações de Rougemont, reforça que, para este tipo de
amor, a felicidade está na aceitação da renúncia ao desejo de possuir o ser amado e
talvez isso não seja possível sem sofrimento. O amor cortês se gesta na forma de
enaltecimento dirigido à mulher, uma forma que, em última instância, coloca o amor
num plano prevalente, marcado pela impossibilidade da relação carnal entre os
parceiros, sem jamais se consumar.
O amor muitas vezes fracassa porque os amantes se prendem à ilusão de que
podem completar um ao outro, de que podem ser apenas um. Betty Milan (1985)
enfatiza que o amor só surge porque são dois indivíduos, mas tenta anular a condição de
sua origem quando busca tornar-se um. E esse é um movimento impossível, “seja
porque a identificação entre os sujeitos esbarra na diferença dos sexos, seja porque a
união dos corpos é fugaz” (Ibid., p. 14). No desejo de tornar-se um, o príncipe faz da
corça-mulher, uma mulher apenas. O amor tenta suprimir as diferenças e igualar os
amantes. Milan (1985) afirma que é preciso que um reconheça no outro sua própria
imagem para amá-lo. O amado é tão parecido com seu amante que não o contradiz,
autoriza seu desejo e, por isso, é tão precioso. E talvez, por ser tão precioso, precise
ficar “guardado”, “protegido”, num quarto cuja “chave” somente seu amante possui.
Se o amor é narcísico, não suporta a diferença. O amado não pode contrariar o
desejo do amante, ressalta Milan (1985). Entretanto, exatamente por ser narcísico, o
amor provoca a desavença e pode levar à ruptura ou à submissão. Por amor, o príncipe
encarcera a corça-mulher. Por amor, ela se deixa capturar inicialmente. Por amor, ele a
submete a uma transformação que ela não deseja. Por não suportar ficar submissa ao
desejo do outro, a corça-mulher foge.
O amor vale-se de muitas artimanhas, ele impulsiona, sugere-nos Zygmunt
Bauman (2004), o sujeito a proteger, abrigar, acarinhar o ser amado, mas também o leva
a guardar ou encarcerar quem ele ama. Ele se doa, coloca-se a serviço desse objeto de
amor, embora deseje também possuí-lo. “[...] O amor cresce com a aquisição deste
[objeto] e se realiza na sua durabilidade” (BAUMAN, 2004, p. 24). Nesse sentido, o
amor cria uma rede protetora em torno do seu objeto que acaba por escravizá-lo. Talvez
tenha sido esse o movimento do príncipe: por amor, ele mantém a corça-mulher sua
refém. Por amor, ele a transforma em mulher, projetando nela seu próprio desejo.
A psicanalista Maria Rita Kehl (1995), focando sua leitura numa outra
perspectiva, reconhece que um homem nunca pode saber o que uma mulher quer,
porque o que ela quer é ser seu objeto do desejo. O homem precisaria conhecer e
suportar seu próprio desejo para saber o que a mulher deseja. Dessa forma, a autora
reforça que o “melhor” homem é aquele que “não quer saber”, mas que sabe fazer a
mulher responder ao seu desejo, sabe fazer com que ela lhe minta bem, sabe fazer com
que ela acredite que ele sabe exatamente o que ela quer. Já a mulher sabe o que quer: ela
quer manipular o desejo masculino, mesmo sem nomeá-lo. Ela se coloca como objeto
de desejo, tal como a corça-mulher, no conto de Colasanti, que não foge ao som da
tropa, permanece debruçada no regato e sustenta o olhar do príncipe. Sem opor qualquer
resistência, deixa-se ser aprisionada. Estaria aí mais uma pista para entendermos o
quanto a mulher fica facilmente seduzida pelo canto do amor cortês?
Esta posição de objeto em que a mulher se coloca, contudo, não é tranqüila. É
trabalhosa, muitas vezes dolorosa, e sempre ameaçada. A mulher fica insatisfeita por
não saber quem ela pode ser fora do domínio do jogo amoroso. Kehl (1996) diz ainda
que, quando o amor e o desejo da mulher se libertam do aprisionamento narcísico e
repressivo para corresponder ao desejo do homem, algo parece se esvaziar no seu
próprio ser. Há uma perda de sentido nela mesma. Quando ela ama e deseja tanto
quanto foi amada e desejada, deixa de fazer sentido como mulher, para o amante e para
si mesma. Essa perda de sentido pode ser observada no conto de Colasanti.
Transformada numa mulher que não deseja ser, a corça-mulher nem consegue se
(in)vestir dessa nova identidade, nem concretizar esse encontro amoroso. Daí decorre
sua decisão de, mesmo amando o príncipe, retornar à floresta, procurar sua rainha e
(re)investir-se de seu primeiro desejo: ser somente corça, não mais mulher.
Quando decide retornar à forma de corça, a personagem do conto de Colasanti
escolhe uma outra possibilidade de identificação. Kehl (1996) comenta que, na medida
em que a mulher amplia suas possibilidades de atuação social, ela amplia também suas
possibilidades identificatórias para além da maternidade. A mulher, ao sair do espaço
doméstico, experimenta outras formas de convivência e sociabilidade, que lhe confere
independência econômica, poder, cultura e alternativas de sublimação. Mais ciente de
suas potencialidades, ela passa a fazer suas próprias escolhas, inclusive sua escolha
sexual e, com isso, reduz a distância entre os sexos. O “ser mulher” torna-se mais do
que simplesmente atender ao desejo do homem. O “ser mulher” é identificar-se com seu
próprio desejo e fazer suas próprias escolhas.
Em “Entre as folhas do verde O”, inicialmente, a corça-mulher coloca-se na
posição de objeto de desejo para o príncipe. Depois ela escolhe outra possibilidade de
identificação. Faz uma escolha diferente daquela em que se tornaria mulher apenas para
corresponder aos desejos do amante. Ela tem identidade própria: parte mulher, parte
animal. São duas metades que se complementam. O ser feminino parece se completar,
ao integrar a sua porção humana à instintiva. Quando se torna apenas mulher,
desconecta-se da floresta, da natureza que a constitui. É obrigada a assumir uma nova
identidade que não corresponde ao seu desejo e quem ela é. Por isso, retorna à floresta e
decide ser apenas corça. Talvez essa seja uma forma de fortalecer sua essência
instintiva, de reconectar-se à sua natureza primeira. Aqui a expressão da feminilidade
não está associada a ser somente mulher, mas a ser quem se é, a ser o que se deseja ser,
sem se deixar aprisionar pelo outro.
Por que o amor, tantas vezes, não se sustenta, não se mantém? Quantos
caminhos poderíamos percorrer para responder esse mistério que recobre a condição
humana? Mas o amor, em sua inefabilidade, se constrói, inevitavelmente, em torno de
uma ilusão. No amor, os amantes são sempre dois, singulares e distintos, embora tentem
constantemente fazer-se um. Isso nos remete ao Banquete, de Platão (1962).
Aristófanes, um dos convidados do Banquete, traz a ideia do amor como um desejo de
completude, uma busca de unidade. Segundo ele, nossos ancestrais dividiam-se em
seres masculinos, femininos e andróginos. Por afrontarem os deuses, foram punidos
sendo separados em duas metades. Dentro dessa perspectiva, o amor seria uma tentativa
de restaurar essa unidade perdida, de voltar a ser apenas um. Essa ideia da “carametade”, de que existem pares perfeitos que se encaixam figuram fortemente em nosso
imaginário, especialmente nós mulheres. Apesar de nos sabermos seres distintos,
insistimos em nos iludir com a ideia de que, com o ser amado perfeito, seremos apenas
um.
Marina Colasanti (1984) também fala sobre nossa ilusão de buscarmos um amor
absoluto. Desejamos um amor que seja intenso e eterno. Desejamos prolongar o tempo
desse amor sem considerar o desejo do outro. Insistimos em acreditar que “para ser tão
pleno e total quanto necessitamos, o amor inventado precisa ser eterno” (COLASANTI,
1984, p. 147). Entretanto, quando há um estremecimento nessa relação, podemos
admitir a possibilidade do fim. Se o amor pode chegar ao fim, é porque existe a
possibilidade do desencontro, da imperfeição. Se há desejos diferentes, como o príncipe
e a corça-mulher, a relação de amor pode mesmo acabar, embora o fim da relação não
signifique exatamente o fim do sentimento, como no conto: “O sol brilhava quando a
corça saiu da floresta, só corça, não mais mulher. E se pôs a pastar sob as janelas do
castelo” (COLASANTI, 1979, p. 41). O brilho do sol pode talvez significar a
consciência de um amor perdido, mas reencontrado na plenitude de uma lucidez que ata
seres e desejos inconciliáveis. Reconhecendo-se diferente do príncipe, inteiramente
corça, ela liberta-se da forma humana que não deseja possuir, mas não do amor que
sente e, talvez por isso, retorne às proximidades do castelo.
Embora exista uma impossibilidade de concretização do encontro entre os
amantes de “Entre as Folhas do Verde O”, o sentimento de amor parece, como vimos,
permanecer. A corça retorna da floresta e volta a pastar próximo ao castelo. Ela volta
para perto de seu amado. Na perspectiva de Octavio Paz (1994), paixão, e por extensão
o amor, significam sofrimento. O amor é um sentimento sujeito aos riscos da vida e às
desventuras do tempo. É sofrimento “porque é carência e desejo de possessão daquilo
que desejamos e não temos; por sua vez, a felicidade é possessão, embora instantânea e
sempre precária” (PAZ, 1994, p. 190). Amam e sofrem, corça e príncipe. O amor pode
ser, e muitas vezes é, também desencontro, porque, se o amor é dois, ele pode ser dois
caminhos diferentes, dois corredores de um mesmo labirinto, dois desvios de um
mesmo sentimento.
Seguindo ainda a trilha desse mistério, indagamos: Será que é a ilusão sobre a
qual se constrói o amor que impossibilita o encontro dos amantes? Denis de
Rougemont, grande estudioso do tema do amor no Ocidente (1988, p.42), discorre sobre
o “amor recíproco infeliz”. Ele frisa que os amantes desejam secretamente os obstáculos
que dificultam a realização desse amor, porque sem essas barreiras não há romance.
Para Rougemont (1988, p.42), “o que amamos é o romance, isto é, a consciência, a
intensidade, as variações e os adiamentos da paixão, seu crescendo até a catástrofe – e
não sua chama fugaz”. O príncipe e corça-mulher parecem buscar também o romance.
Tal como Tristão e Isolda, que tentam vivenciar um “amor impossível”, os personagens
do conto de Colasanti tentam dar vazão a esse amor entre dois seres tão diferentes. Eles
transgridem as regras e, ao mesmo tempo, são atraídos pelos obstáculos desse amor.
Rougemont (1988) relata os muitos desencontros vivenciados por Tristão e
Isolda por conta das dificuldades que se colocam entre eles. Isolda estava prometida ao
Rei Marcos, tio de Tristão. Apaixonados, sob o efeito do “vinho do amor”, Tristão e
Isolda se entregam ao sentimento, fogem e iniciam uma verdadeira saga na tentativa de
concretizar esse amor-paixão. No entanto, quando o efeito do vinho cessa, mesmo sem
obstáculos externos que os separem, os próprios amantes decidem retornar à corte do
Rei Marcos (Tristão estava arrependido e Isolda sentia falta da corte). Por que os
amantes decidem voltar quando já estão livres para vivenciar esse amor? Por que o
amor-paixão parece acabar depois de certo tempo? A paixão é mesmo como um “vinho”
que provoca um efeito por tempo determinado? Rougemont (1988, p.17) acredita que,
na poesia, na literatura, nas lendas e nas canções ocidentais, “o amor feliz não tem
história. [...] O que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos nem a paz
fecunda do par amoroso. É menos o amor realizado que a paixão de amor. E a paixão
significa sofrimento”. Assim, “a separação dos amantes resulta de sua própria paixão e
do amor que têm por sua paixão” (Ibid., p.35). Se esse encontro amoroso se concretiza,
a ardência desse amor-paixão fenece. Se isso é mesmo verdade, então o amor seria
sempre desencontro?
Seria então por isso que a corça e o príncipe do conto de Colasanti também não
conseguem concretizar seu amor? Mundos diferentes, línguas diferentes, formas
diferentes colocam os amantes sempre em lados opostos. Vemos que há uma tentativa
de unir esses opostos no conto. São forças contrárias que se atraem para uma mesma
unidade. Salma Silva (2003, p. 71), comentando o conto “Entre as Folhas do Verde O”,
pontua que “os contrários se estabelecem mediante a oposição castelo e floresta,
humano e animal, caçador e caça, e homem e mulher, sendo que o elemento masculino
detém o poder sobre o feminino”. Embora a corça deseje levar o príncipe para a floresta,
ensiná-lo a gostar do seu mundo e transformá-lo num ser de quatro patas, é o príncipe
quem a captura, quem realmente a transforma em mulher e quem a aprisiona em seu
mundo. É o elemento masculino, nesse jogo de opostos, que se impõe.
Os opostos se evidenciam inclusive no sentimento de amor e ódio que o príncipe
vivencia no início do conto. “A mulher tão linda. A corça tão ágil. A mulher ele queria
amar, a corça ele queria matar” (COLASANTI, 1979, p. 39). Mesmo amando-a, ele
atira em sua pata direita e a aprisiona. Há uma ambivalência de sentimentos que se faz
presente em toda relação amorosa. Maria Rita Kehl (2009) explica que o primeiro
sentimento de diferenciação da criança com o mundo é o ódio. Depois que ela se frustra
algumas vezes com a mãe, percebendo que ambas não se completam inteiramente, que a
mãe não é parte dela mesma, surge o ódio a partir do reconhecimento de que o objeto
que satisfaz é o mesmo que a frustra. “O amado e o odiado são um só – ambivalência
que nos acompanha pela vida toda” (Ibid., p. 544). Essa é a essência das relações
amorosas. No conto de Colasanti, esse sentimento de amor e ódio transparece não
apenas no príncipe, mas também na corça-mulher que o ama, mas se afasta dele porque
não deseja ser “toda mulher” (COLASANTI, 1979, p.40).
No conto há um movimento de opostos que não se encontram no final da
narrativa. Corça e príncipe falavam línguas diferentes, pertenciam a mundos diferentes,
possuíam desejos diferentes. Amaram-se na ilusão de que poderiam ser apenas um, de
que poderiam levar um ao outro ao seu próprio mundo, de que poderiam transformar o
outro em alguém que não era. E na frustração dessa ilusão, separaram-se. Alguns
amores não sobrevivem às fantasias iniciais e não se concretizam, resultando em
desencontros.
1.2 “Prova de Amor”: o preço do amor
Em uma dolorosa “Prova de Amor”, o amor novamente se encontra com o
sofrimento. Nesse conto de Colasanti, a pedido do seu amado, para agradá-lo, a mulher
deixou a barba crescer: “num supremo esforço de amor, começou a fiar dentro de si e a
laboriosamente expelir aqueles novos pêlos, que na pele fechada feriam caminho”
(COLASANTI, 1986, p. 165). Quando a barba enfim estava lhe cobrindo o rosto, ao
apresentá-la ao homem, ele disse: “‘você não é mais a mesma’. (...) E se foi” (Ibid., p.
165). Esse conto o mais breve de todos, mas igualmente rico e denso de significados,
deixa entrever outros caminhos que se plasmam na complexidade da relação amorosa.
Esse pedido de amor transforma a mulher em algo que ela não é. Entretanto,
sendo um pedido de seu amado, ela se esforça por agradá-lo. Bauman (2004) comenta
sobre a fragilidade do amor. Ele pode prender e encarcerar tanto quanto proteger ou
cuidar. O amor se esforça para dissipar as incertezas e inseguranças, mas, ao aprisionar
seu amado, o sentimento enfraquece. É muito sutil a fronteira “entre a carícia suave e
gentil e a garra que aperta, implacável. (...) Mãos que acariciam também podem prender
e esmagar”, adverte Bauman (2004, p. 23).
Assim como a corça-mulher, de “Entre as Folhas do Verde O”, ao deixar que o
príncipe a capturasse, sendo aprisionada num corpo e num mundo que não eram seus, a
mulher, de “Prova de Amor”, deixou também que o homem a transformasse em algo
que não era. Colasanti usa palavras como “laboriosamente” e “feriam”, revelando o
quanto essa prova de amor foi árdua e dolorosa. É como se essa tarefa exigisse uma
dose de sofrimento, de “sacrifício”, para além de seus limites. A mulher “fere” caminho
dentro de si para uma natureza que não é sua.
Em nome do amor, para manter-se no relacionamento, a mulher faz muitos
“sacrifícios”, paga um “preço”. A leitura cuidadosa da temática, de acordo com Sonia
Cabeda (2000), revela que, para a psicanálise, não há, no jogo amoroso, um verdadeiro
sacrifício ou renúncia da mulher. Existe um beneficio nessa atitude que toma. Ela faz
isso para obter alguma coisa, para alcançar determinado status ou para ser desejada.
Essa estratégia é, no entanto, muito perigosa porque a mulher confere ao homem um
grande poder, uma vez que ele é quem dá sentido à sua existência. Como não consegue
esconder sua falta por muito tempo, a mulher se vê na iminência de (re)vivenciar o
abandono e a perda, como ela de fato vivencia no conto “Prova de Amor”. A ela só resta
recuperar o conhecimento sobre si mesma que depositou nas mãos do outro. Esse é um
caminho difícil, mas permite à mulher superar o ressentimento e curar seus males numa
relação de amor.
No conto de Colasanti, diante do abandono de seu amado, a mulher (re)vivencia
a perda. Nasio (1997, p. 21) explica que “o funcionamento psíquico é regido pelo
princípio do prazer, que regula a intensidade das tensões pulsionais e as torna
toleráveis”. Quando perdemos a pessoa amada, as tensões desregulam-se e o princípio
do prazer deixa de funcionar. Experimentamos uma dor intensa ao perceber o caos que a
perda provoca em nosso psiquismo. O que dói não é a ausência do outro, mas os efeitos
dessa ausência em nós, porque o ser amado é também uma parte inconsciente ignorada
de nós mesmos. Quando perdemos esse outro, perdemos também a fantasia que
construímos em torno dele, as projeções que depositamos nele. Sem a pessoa amada,
ficamos sem o “espelho” que refletia as imagens interiores do nosso desejo, daí surge a
dor. A mulher do conto de Colasanti perde seu amado, porque ela deixa de ser quem era
quando se torna apenas reflexo do desejo do outro. O homem pede uma prova de amor
que não era na verdade o que ele desejava e, não reconhecendo mais a mulher que
estava diante de si, não encontrando mais o “espelho” que refletia seus desejos, ela a
deixa. E ao final do conto, a mulher se vê diante da perda do ser amado e também do
sofrimento, podemos supor.
A própria Marina Colasanti (1984, p. 154) comenta que “amar é estar em
disponibilidade para o sofrimento”. Se colocamos no ser amado nossos desejos, se ele é
insubstituível, sentimos que estamos extremamente vulneráveis, sujeitos ao outro.
Talvez por isso façamos tudo para agradar o ser amado, particularmente nós mulheres.
Procuramos atender as demandas do outro para mantê-lo ao nosso lado, para preservar o
amor do outro por nós. No entanto, a mulher do conto de Marina Colasanti, quando
atende a esse pedido de amor, perde a si mesma e o seu amado.
Bauman (2004) assume uma posição similar em relação ao amor. Para ele, o
amor se empenha em subjugar o outro em nome desse sentimento, mas, quando
encontra êxito, definha. Quando aprisionado, o outro se transforma em algo que ele não
é e, assim, já não é mais o mesmo que despertou a paixão de seu amado. Isso aparece
claramente no conto: “Com orgulho expectante entregou sua estranheza àquele homem”
(COLASANTI, 1986, p. 165). A mulher era estranha a ela mesma, assim como a corçamulher, de “Entre as Folhas do Verde O”, quando se viu transformada em somente
mulher. As duas vestidas com naturezas que não eram suas. Duas estranhas diante si
mesmas e de um amor que não as reconhece como são.
Em “A prova de amor”, a mulher adquire um elemento tipicamente masculino.
A barba é forçosamente integrada ao corpo da mulher. É o masculino que se impõe. No
entanto, essa mulher permite. Todo o esforço para agradá-lo vem dela. É ela que, para
agradar seu amado, fia essa barba dentro de si. A leitura desse conto, faz-nos
compreender que o amor ocupa um lugar diferenciado na constituição da identidade
feminina. Maria Rita Kehl (1988) afirma que, na mulher, o amor tem um papel
fundante, diferente do papel do amor para o homem. Para o homem, apaixonar-se é
visto como perda de poder. Seu truque, para tentar compensar sua falta, será concentrarse na sua potência sexual, focar no que pensa ter em excesso. Ele separa desejo e amor.
Deseja todas as mulheres, protegendo-se outra vez da castração13 e transformando a
13
De acordo com Maria Rita Kehl (1988), inicialmente, na relação com a mãe, a criança se sente
completa, porque a mãe supre todas as suas necessidades. A entrada de terceiros nessa relação
(inicialmente o pai, depois outras pessoas) informa à criança que o Ego Ideal (ego do desejo materno) é
uma construção impossível. Mãe e criança são castradas e não se completam mesmo que, num primeiro
momento, tenha parecido que sim. Essa dupla narcísica é separada, o que é visto de imediato como uma
ameaça pela criança. No entanto, diante de sua carência, ela substitui a identificação com o desejo da mãe
por vários outros traços identificatórios com outras pessoas. Nesse momento, abre-se a possibilidade para
a construção do Ideal de Ego. Deixar de ser objeto absoluto do desejo materno leva à própria castração,
mas, por outro lado, essa é a primeira oportunidade de individuação. Quando a criança percebe que o pai
mulher num objeto a serviço do falo. A mulher espera pela cura através do amor, mas
reprime o desejo. Ela dá novo valor ao seu corpo quando nega qualquer necessidade de
contato ou de preenchimento. Para Kehl (1988, p. 419), “a defesa do homem é desejar
sem amor, a da mulher é amar sem desejar: continua sendo espantoso que nos
encontremos”.
É por isso que, em meio a tantas diferenças, o desencontro se torna inevitável no
conto de Marina Colasanti. A mulher, diante da solicitação do seu amado, da “Prova de
Amor” que ele lhe pede, entrega para esse homem uma estranha. Como não reconhece
nela a mulher de antes, ele a deixa. O amor acabou? Ou não era amor o que realmente
sentiam?
1.3 “Verdadeira Estória de um Amor Ardente”: sobre o desejo
Em “Verdadeira Estória de um Amor Ardente”, Marina Colasanti narra uma
outra história de amor. O homem, desejando por um fim em sua solidão, providenciou
para si uma companheira. Comprou cera, corantes, aprendeu a técnica necessária e
“começou a moldar aquela que preencheria seus desejos” (COLASANTI, 1986, p. 35).
Quando estava pronta, percebeu que, com sua “suavidade opalinada, rósea palidez que
aqui e ali parecia atenuar-se num rubor” (Ibid., p. 35), ela não era semelhante a
não corresponde à sua fantasia fálica, ela começa a observar a castração como algo da condição humana e
a entender que o falo (significante da falta, que revela ao sujeito sua incompletude) é uma conquista
relativa. A criança percebe que não pertence a ninguém e que toda qualidade humana pode ser investida
de valor fálico, porque “o falo se perde e se conquista” (KEHL, 1988, p. 416). Há duas modalidades de
castração: enquanto o menino passa pelo falo materno, pela castração, pela renúncia ao desejo da mãe e
pela identificação com o pai, a menina passa por tudo e depois tem que refazer o caminho. Ela se sente
duplamente traída pela mãe, porque é sua companheira de castração e porque vai ter que competir com
ela pelo amor do pai. A menina busca compensar a castração tentando resgatar a felicidade infantil
quando era uma só com mãe, procurando agora o amor do pai (depois através de um outro amor, o
“príncipe encantado” talvez).
nenhuma outra mulher que conhecera. Amou-a perdidamente. Depois de um tempo, o
tédio se infiltrou na vida dos dois. “Começava ele a cansar-se de tanta docilidade.
Começava ela a empoeirar-se, turvando em manchas acinzentadas os tons antes
translúcidos” (Ibid., p.36). Numa noite, quando a luz faltou exatamente no momento em
que ele se deliciava com a leitura de um livro, hesitou um pouco, mas levantou-se,
procurou o isqueiro e “inflamou a trança da mulher, iluminando o aposento. Arrastou-a
então para mais perto de si, refastelou-se na poltrona. E, sereno, começou a ler à luz do
seu passado amor, que queimava lentamente.” (Ibid., p. 36).
O amor que cuidadosamente ele moldara no formato do seu desejo, de repente se
esfuma. Talvez ele tenha moldado exatamente o tamanho de sua fantasia. Ele mesmo se
surpreende com sua criação, “com a beleza que quase inconscientemente lhe havia
transmitido” (COLASANTI, 1986, p. 36). Juan-David Nasio (1997, p. 38) ajuda-nos a
melhor entender esse comportamento, quando discorre sobre o processo de amor e sobre
a função da fantasia em nosso psiquismo. Para esse teórico, quando conhecemos alguém
que desperta nosso desejo, nos apegamos a ela até incorporá-la, fazendo dela uma parte
de nós mesmos. A essa imagem do outro em nós agregamos uma série de outras
imagens carregadas dos mais variados sentimentos (amor, ódio, etc.). Então, fixamos
inconscientemente essa imagem do amado eleito “através de uma multidão de
representações simbólicas, cada uma delas ligada a um aspecto seu que nos marcou”
(NASIO, 1997, p. 39). Essa fantasia que construímos do ser amado significa que ele
deixou de ser uma instância puramente exterior para ser também parte de nós mesmos.
Em “Verdadeira Estória de um Amor Ardente”, no molde perfeito que o homem
criou, aquela “era uma dama de nobre silêncio. E só tinha olhos para ele”
(COLASANTI, 1986, p. 35). Mais uma vez, o silêncio exclui o mundo feminino e
marca a figura passiva da mulher, travando seus sonhos e desejos. Vemos o quanto o
seu olhar estava aprisionado ao do seu amado, assim como seu desejo. Feita de cera, ela
era inanimada, não tinha voz, nem vontade própria. Era ele quem imprimia nela o
formato desejado: “O calor dos seus abraços tornando aquele corpo ainda mais macio,
conferia-lhe uma maleabilidade em que todo toque se imprimia, formando e
deformando a amada no fluxo do seu prazer” (Ibid., p.36).
Isso nos remete aos contos analisados anteriormente “Entre as Folhas do Verde
O” e “Prova de Amor”. Os personagens femininos dos três contos passam por
transformações direcionadas pelos personagens masculinos. Eles formam e deformam
suas amadas à luz de seus desejos. Elas, por sua vez, demonstram uma certa passividade
nessa relação, embora os caminhos percorridos por cada uma tenham sido únicos. No
conto “Entre as Folhas de Verde O”, inicialmente a corça-mulher se deixa capturar pelo
príncipe, permitindo que ele a aprisione, mas, no final, ela acaba fugindo do palácio por
não suportar ser uma mulher que não desejava ser. Em “Prova de Amor”, a mulher, ao
apresentar ao seu amado a barba que fiara somente para agradá-lo, é abandonada pelo
homem que não a reconhece mais. Em “Verdadeira Estória de um Amor Ardente”, a
mulher, tão maleável aos desejos do amado, é consumida pelo fogo de um amor que já
tinha chegado ao fim, mergulhado no tédio e na indiferença.
Esse amor parece fenecer talvez pela fragilidade dos laços que unem os amantes.
É
uma
relação
que
nos
faz
lembrar
os
relacionamentos
“virtuais”
da
contemporaneidade. De acordo com Bauman (2004), em Amor líquido: sobre a
fragilidade dos laços humanos, esses são relacionamentos que aparecem e desaparecem
numa velocidade cada vez maior. Cada relação promete ser a melhor, a mais
satisfatória, a mais completa, mas acaba sendo diluída e fracassada. Em “Verdadeira
Estória de um Amor Ardente”, a mulher moldada por aquele homem parece ser a mais
bela e fonte inesgotável de prazer, no entanto, com o passar do tempo, a “rósea palidez
que aqui e ali parecia atenuar-se num rubor” (COLASANTI, 1986, p. 35) começa a
acumular poeira e a ganhar “manchas acinzentadas” (Ibid., p.36). O tédio se apodera da
vida do casal.
O desejo se consome em si mesmo, porque nunca se satisfaz. O amante deseja
sempre mais de seu amado, por isso está sempre insatisfeito. A compreensão dessa
constante insatisfação, desse vazio incessante, podemos buscar em Nasio (1997, p. 35),
quando esclarece que “o trajeto do desejo não descreve pois uma linha reta orientada
para o horizonte, mas uma espiral girando em torno de um vazio central, que atrai e
anima o movimento circular do desejo”. O ser amado nunca nos satisfaz
completamente, há sempre uma falta. Mas essa é exatamente a sua função. Ele nos
insatisfaz porque mobiliza nosso desejo, mas não pode e não quer nos satisfazer por
inteiro. “Ele sabe me excitar, me proporcionar um gozo parcial e, por isso mesmo, me
deixar insatisfeito. Assim, ele garante essa insatisfação que me é necessária para viver e
recentrar meu desejo” (Ibid., p. 36).
Para Nasio (1997), o ser amado é aquele que nos faz acreditar que ele pode levar
a excitação ao ponto máximo. Ele nos excita e nos desaponta. “Nosso amado é nossa
carência” (Ibid., p. 59). Tanto no conto “Prova de Amor”, como em “Verdadeira Estória
de um Amor Ardente”, podemos observar essas nuances do ser amado. O homem não
fica satisfeito diante do desejo atendido e da barba apresentada com tanto orgulho, em
“Prova de Amor”, assim como toda a maleabilidade e toda a beleza que inicialmente
aquela mulher possuía já não eram mais suficientes para o homem, em “Verdadeira
Estória de um Amor Ardente”. Há uma ilusão de completude, de que o ser amado pode
suprir nossa falta, nossa carência. Isso novamente nos remete ao Banquete, de Platão
(1962), à ideia do amor como uma busca de unidade. E enquanto for essa a busca do
amante, ele continuará a se desencontrar do amor, porquanto se sustenta numa suposta e
ilusória completude.
Ana Lila Lejarraga (2002, p. 101) acrescenta que a paixão pode encontrar
diferentes destinos:
[...] transformar-se em gozo perverso, construir um laço de amor ou
dissolver-se. Desse modo, o sujeito apaixonado pode preferir a morte
a renunciar a sua fantasia de uma completude sem falhas ou pode
transformar a impossível fusão na instrumentalização do outro no seu
gozo perverso.
A paixão pode se transformar em amor, mas não é necessariamente o que
acontece. Quando a paixão não é correspondida ou quando os obstáculos externos são
muito grandes, o sentimento se dilui ou predominam as potencialidades destrutivas em
detrimento dos destinos amorosos, adverte Lejarraga (2002). No conto “Verdadeira
Estória de um Amor Ardente”, observamos que a paixão acaba se diluindo e
desencontra-se do amor. Talvez para o homem tenha sido muito difícil renunciar à
fantasia da mulher perfeita. E diante das falhas no modelo feminino criado, ele sente sua
paixão fenecer. Da mesma forma, dilui-se o amor do homem pela mulher, em “Prova de
Amor”, quando ele não consegue mais reconhecê-la de barba. Transformada, ela não é
capaz de refletir os desejos de seu amado, portanto, não pode ser mais objeto de amor
para ele. Outras vezes, como em “Entre as Folhas do Verde O”, os obstáculos entre os
amantes se tornam intransponíveis e a paixão se transforma em desencontro.
Pertencentes a mundos tão diferentes, corça e príncipe não conseguem estabelecer um
ponto de encontro para o amor que sentem.
Mesmo (re)vivenciando tantos desencontros, os amantes se buscam e buscam o
amor. Maria Rita Kehl (1988) avança nessa discussão e comenta que homens e
mulheres, entre encontros e desencontros, procuram um no outro o que falta em si
mesmos, mas sempre temem ver a extensão dessa falta. Eles temem e buscam o contato.
“Se temem o contato é porque de alguma forma o amor fere. Se mesmo assim
continuam buscando contato é que o amor também cura” (KEHL, 1988, p. 420).
1.4 “A Mulher Ramada”: o reconhecimento do outro
E é buscando o contato de um amor que cure a dor de sua solidão que um
jardineiro planta para si uma “Rosamulher” (COLASANTI, 1982, p. 24). Em “A
Mulher Ramada”, Marina Colasanti narra a história de um jardineiro que cultiva seu
amor. Duas mudas de rosa plantadas, aos poucos, vão dando formato a uma mulher. O
jardineiro esperou pacientemente a brotação e “durante meses trabalhou conduzindo os
ramos de forma a preencher o desenho que só ele sabia, podando os espigões teimosos
que escapavam à harmonia exigida” (Ibid., p. 24). Depois de pronta, era para ela que o
jardineiro direcionava seu olhar sempre que levantava a cabeça do trabalho. Com o
passar das estações, chegou a primavera. Todos os arbustos ficaram recobertos de
flores, menos “Rosamulher” que “obedecia ao esforço de seu jardineiro que, temendo
que viesse a floração a romper tanta beleza, cortava rente todos os botões. De tanto
contrariar a primavera, adoeceu porém o jardineiro” (Ibid., p. 26). Passaram muitos dias
até que ele pudesse ver novamente sua amada. Quando voltou ao jardim, “Rosamulher”
tinha florescido. Havia uma rosa entre seus olhos e outra despontava no seio. A
expressão da mulher tinha se modificado, mas o amor do jardineiro permanecia o
mesmo. Florida, a mulher estava ainda mais bela e o amado soube que não teria mais
coragem de podá-la. Então, ele a abraçou e esperou. “E sentindo sua espera, a mulher-
rosa começou a brotar, lançando galhos, abrindo folhas, envolvendo-o em botões,
casulo de flores e perfumes” (Ibid., p. 28), num estreito abraço de amor.
“Rosamulher” brota a partir do desejo de seu jardineiro. Assim como a mulher
de “Verdadeira Estória de um Amor Ardente”, há aqui uma fantasia projetada. Nasio
(1997) comenta que, no processo de amor, nós “recobrimos” nosso amado fazendo dele
uma parte de nós mesmos, como faz a hera que recobre a pedra. E feito hera que cresce
sobre a pedra, cresce também a “Rosamulher” e, junto com ela, a fantasia do jardineiro.
Ele tenta desenhar a mulher perfeita, conduzindo os ramos, podando-os cuidadosa e
amorosamente para que “Rosamulher” tenha o formato exato de seu desejo. Quando
esse desenho fica pronto, o jardineiro só tem olhos para ela.
Ana Lila Lejarraga (2002, p. 58), comentando a obra Delírios e sonhos na
Gradiva de Jensen, de Freud (1907[1906]), ressalta que o “apaixonamento é a
concentração de pensamentos numa imagem, a atração que exerce um objeto ou
imagem na atividade de fantasiar e pensar”. Assim, estar apaixonado é inevitavelmente
fantasiar com a imagem de alguém e essa atração acontece por “impressões infantis
recalcadas” (Ibid., p.58). Assim parece suceder com o jardineiro, que fantasia a mulher
perfeita na imagem de “Rosamulher”.
Freud (1920) afirma que as paixões se originam de duas grandes vertentes: as
pulsões de vida (Eros) e as pulsões de mortes (Thanatos). As pulsões de vida mantêm a
sobrevivência do indivíduo, por isso, buscam o sono, o alimento, a excreção do que é
tóxico ao organismo. Nessas pulsões estão inclusas também as pulsões eróticas. Numa
releitura de Freud, Maria Rita Kehl (2009, p. 543) assinala que “enquanto o vetor
erótico impulsiona a vida humana ao contato, ao embate com o outro e com a realidade
(...), o outro vetor da trama pulsional impele o ser humano ao repouso, à entropia”. São
as pulsões de morte que desejam abolir as tensões. É o organismo tentando retornar ao
inorgânico. A representação inconsciente mais próxima que temos do repouso absoluto
é a vida intrauterina, quando estamos em fusão perfeita com o corpo materno e quando
não desejamos nada porque todas as nossas necessidades estão sendo supridas pelo
corpo da mãe. Por isso, a busca do sujeito pelo repouso é também a busca do contato, da
fusão com o outro. Maria Rita Kehl (2009, p. 544) reforça que “Eros e Thanatos no
limite buscam a mesma coisa – o retorno a um estado anterior, prazeroso”. O que move
a vida é a tensão constante entre os dois.
O desejo quer o repouso, quer nos levar à fusão completa com o ser amado. Mas
a realidade, conforme enfatiza Kehl (2009), nos obriga a barganhar com o desejo (que
não pode voltar ao absoluto) em troca de uma série de satisfações não absolutas que
podemos ter ao longo da vida. É o princípio da realidade (que nos diz que não podemos
ser um só com o outro), aliado ao princípio do prazer, que “nos ensina os caminhos para
a vida e para o amor em troca do abandono do narcisismo primário14” (KEHL, 2009, p.
546). No conto “A Mulher Ramada”, é o princípio de realidade (que chega talvez com o
adoecimento do jardineiro e seu afastamento do jardim) que revela ao jardineiro que
“Rosamulher” não forma um “todo indissociável” com ele (Ibid., p. 550). Quando ele
retorna ao jardim, percebe que a mulher não é uma extensão dele simplesmente; ela tem
formas próprias. Aliando o princípio da realidade e o princípio do prazer, o jardineiro
abre espaço para o encontro amoroso.
Desfeitas as fantasias, sofrendo as primeiras desilusões é que o amor se faz
possível. O outro não pode dar tudo, nem pode receber tudo de seu amado. Haverá
sempre uma falta, que é constituinte do ser humano. Mas se os amantes conseguem
suportar essa “desilusão fundamental de não formar um todo indissociável com o objeto
de seu amor” (Ibid., p. 550), se conseguem se movimentar dentro dessa realidade, o
14
Segundo o Vocabulário da Psicanálise, de Laplanche e Pontalis (1992, p. 290), “o narcisismo primário
designa um estado precoce em que a criança investe toda a sua libido em si mesma”. A criança toma a si
mesma como objeto de amor até que possa escolher objetos exteriores.
sentimento de amor pode se instaurar. Permitindo que “Rosamulher” floresça, que a
primavera possa nela se instalar, o jardineiro permite também que o amor se faça
presente. Ele percebe que não seria mais capaz de podá-la apenas para atender ao seu
desejo, para mantê-la presa na fantasia que tinha criado. E libertando-se dessa ilusão de
completude, o jardineiro se entrega ao sentimento de amor.
Quando “Rosamulher” foge ao desenho idealizado pelo jardineiro, ela se revela
mais bela do que nunca. Longe da tesoura do amado que a podava constantemente, ela
floresce e sua primavera enfim chega. Antes seguindo os caminhos que a mão do
jardineiro lhe oferecia, agora a mulher pode seguir o curso de sua própria natureza.
Diferente de “Verdadeira Estória de um Amor Ardente”, que apresenta uma mulher
feita de cera e corantes, sem vida, esse conto de Colasanti mostra uma mulher com
raízes, ramos, folhas e flores, cheia de vitalidade, e que, por isso mesmo, ganha forma
própria, desabrochada.
“Nunca Rosamulher fora tão rosa” (COLASANTI, 1982, p. 26). Diante da nova
e bela mulher revelada, o jardineiro se rende. Ele se desliga das fantasias iniciais, do
desenho da mulher perfeita (que de fato não existe) e se entrega à “mulher-rosa” (Ibid.,
p. 28), florida. Não há como brigar com a natureza. O jardineiro adoece nesse confronto
com a primavera. E a natureza se impõe, absoluta. “Rosamulher” se revela por inteiro,
com uma beleza e um formato que são somente seus. Da mesma forma, no conto “Entre
as Folhas do Verde O”, o príncipe perde a “batalha” contra a natureza. Tentando
aprisionar a corça-mulher num corpo de mulher que não era seu, ela acaba retornando à
floresta e à forma de animal, buscando sua natureza primeira. E é (in)vestida dessa
natureza que ela se apazigua e pode retornar ao palácio para, quem sabe, apenas
saborear esse amor perdido.
Quando o jardineiro reconhece sua amada exatamente como ela é, quando não
exige mais que ela siga o formato do seu desejo, o encontro de amor se torna possível.
“Perdida estava a perfeição do rosto, perdida a expressão do olhar” (COLASANTI,
1982, p. 26), porque “Rosamulher” ganhou rosto próprio, encontrou sua própria
expressão. Mas do amor do jardineiro “nada se perdia” (Ibid., p. 26), porque ele
reconheceu a beleza da mulher e percebeu que não conseguiria mais podá-la. A
primavera inicia uma nova etapa para os amantes. Ela anuncia o encontro que se
aproxima. A primavera desabrocha a “Rosamulher” e o amor que pode enfim ser
compartilhado.
Nesse momento em que o jardineiro reconhece “A Mulher Ramada” tal como
ela é, ele abre mão da fantasia, da vida em plenitude com o outro, da “ilusão de uma
felicidade sem falhas e sem tempo”, como pontua Lejarraga (2002, p. 100). Em Paixão
e ternura: um estudo sobre a noção de amor na obra freudiana, a autora diferencia
paixão e amor. Ela enfatiza que, quando perdemos o objeto de nossa paixão, sentimos
como se não houvesse substituição possível para ele e ficamos completamente
desolados. “A paixão oscila, desse modo, entre o tudo e o nada, o êxtase amoroso ou a
catástrofe” (Ibid., p. 100). O amor, sem a paixão, permite-nos, segundo a autora, aceitar
as restrições da realidade e reconhecer o outro como um sujeito único e autônomo, “o
que implica riscos de frustração e dependência” (Ibid., p. 101). Dentro dessa
perspectiva, podemos refletir sobre o movimento do jardineiro do conto de Colasanti.
Talvez ele tenha conseguido transformar sua paixão em amor, quando deixa
“Rosamulher” florescer, reconhecendo-a como um ser singular, ainda que isso
signifique frustrar-se mais adiante ou tornar-se dependente dela.
Lejarraga (2002, p. 101) acrescenta ainda outros pontos de diferenciação entre
apaixonamento e amor:
O amor, ao se submeter ao regime do ideal do eu, mitiga a aspiração
narcísica, criando outras fontes de prazer e projetando a felicidade
num futuro promissor. Tanto a paixão como o amor se apresentam
como uma promessa de felicidade, mas enquanto no apaixonamento
correspondido essa plenitude é vivida imaginariamente, numa ilusão
de completude [...], no amor correspondido essa plenitude é lançada
num tempo futuro, e condicionada e mediatizada por outros prazeres e
objetos heterogêneos do laço amoroso.
O amor é longamente construído e permite que os amantes tenham vida e
vontade próprias. Lejarraga (2002) entende o amor como o reconhecimento da
singularidade e da autonomia do objeto amado. O laço amoroso é um elo entre dois
seres diferentes e não um nó que aprisiona os amantes numa ilusão de completude.
Acreditamos que o jardineiro conseguiu construir esse elo e iniciar uma relação de amor
com “A Mulher Ramada”. Abrindo mão do desenho da mulher perfeita, percebendo que
ela estava mais bela agora, florida, do que quando estava sendo moldada por suas mãos,
o homem simplesmente se entrega. “Então docemente a abraçou descansando a cabeça
no seu ombro. E esperou” (COLASANTI, 1982, p. 28). Ele espera uma resposta da
“Rosamulher”, espera que ela entenda que ele agora está pronto para amá-la, sem
tesoura para moldá-la de acordo com seu desejo. E então, “sentindo sua espera, a
mulher-rosa começou a brotar, lançando galhos, abrindo folhas, envolvendo-o em
botões, casulo de flores e perfumes” (Ibid., p. 28). A mulher finalmente envolve o
jardineiro num abraço amoroso.
Marina Colasanti, nesse conto, já nos traz para a possibilidade de encontro no
amor. E, seguindo esse caminho tomado pela autora, abordaremos mais três contos no
capítulo seguinte.
2 AS POSSIBILIDADES DE ENCONTRO NOS CAMINHOS DO AMOR
Entre encontros ou desencontros, Marina Colasanti nos convida a percorrer os
caminhos do amor em seus contos. Como vimos, o amor pode conduzir também à
separação, à ruptura do laço afetivo. As paixões, como lembra Maria Rita Kehl (2009),
podem ter diferentes destinos. A autora afirma que:
entre as aspirações de satisfação total das pulsões e a satisfação parcial
que a vida nos permite, há um excedente de energia que não obtém
descarga – um excedente de excitação que não se aquieta porque não
encontra o que o satisfaça plenamente (Ibid., p. 550).
Kehl (2009) esclarece que esse excesso de energia que constitui as paixões pode
seguir caminhos diferentes. Ela pode ser reprimida, sem deixar traços; mas se o
processo não for bem sucedido, pode deixar sintomas, que são tentativas do psiquismo
de trazer à luz da consciência o que está sendo mantido forçosamente no inconsciente.
A repressão é sempre um mecanismo insuficiente para dar conta de toda essa energia
passional. Outro caminho possível, similar à repressão, é “o desvio do objeto, em que a
ideia que representa o afeto não é abolida mas dirige-se a um objeto socialmente
permitido – ou possível – em troca do objeto interditado” (Ibid., p. 551). Uma terceira
possibilidade é transformar a paixão em seu contrário: “transforma-se ódio em amor,
amor proibido em repulsa, desejo sexual perverso em nojo” (Ibid., p. 552).
Por fim, existe o caminho da sublimação, mecanismo que pode produzir os
melhores subprodutos das paixões. É possível transformar “o estado de concretude das
paixões – que querem possuir, fundir, devorar, matar, aniquilar... – [...] numa outra
expressão, mais leve que o ar, que é a expressão simbólica desses mesmos desejos”
(Ibid., p. 552). Para isso, uma parte dos desejos – aquela que está compatível com o
princípio de realidade – precisa estar satisfeita e isso significa que uma renúncia
verdadeira precisa ter acontecido. Essa renúncia vem do contato que fazemos com o
desejo e do reconhecimento de que ele não pode mesmo se satisfazer plenamente. “É só
no simbólico, a partir da renúncia do domínio concreto do princípio do prazer, que eu
‘posso tudo’, posso viver de uma forma compatível com o pacto mínimo de renúncias
que a cultura me exige” (Ibid., p. 553). No nível simbólico, “podemos tudo”, mas, no
nível concreto (do princípio de realidade), para que o caminho do amor seja possível,
precisamos nos dar conta de que nada, nem mesmo o ser amado, pode nos satisfazer
totalmente.
Cientes de nossa falta, de nossa incompletude, avançamos um pouco mais nesse
labirinto amoroso, questionando se o encontro de amor é mesmo possível. Como esse
encontro acontece nos contos de Marina Colasanti? Como ela constrói esse elo entre os
amantes? Como ela compreende a ideia do amor?
2.1 “Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento”: sobre a sedução feminina
Marina Colasanti abre caminho para o encontro amoroso. Depois de tantos
desencontros, de amores que não se concretizam ou que acabam simplesmente, de
casais que não conseguem conciliar desejos diferentes, Colasanti nos apresenta, em
outros contos, possibilidades para encontrar o amor. E assim alcançamos outro corredor
desse imenso labirinto amoroso. Corredor feito de hera e rosas que se abre para o abraço
dos amantes. E é por esse corredor que começamos a caminhar agora.
Vemos então, em “Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento”, uma moça que
percorre o labirinto desafiando seus pretendentes. Doze reis postados em nichos de
azulejos azuis aguardam para casar com ela, diz-lhe o pai, quando chegar a hora. Mas
essa “hora” é a moça que determina. Um dia, seu desejo desperta e ela diz “Este ano,
meu pai, sem falta vou casar” (COLASANTI, 1982, p. 82). Para fazer sua escolha entre
tantos pretendentes, ela impõe provas a todos os reis quando descem de seus nichos.
“Caso com aquele que souber me alcançar” (Ibid., p. 83), ela grita para o primeiro e
corre para o labirinto. “Caso com aquele que seguir meu rastro” (Ibid., p. 83), desafia o
segundo. E ambos fracassam nessa caçada, assim como os quatro subsequentes. Ao
sétimo, ela atira “caso com aquele que cortar meu caminho” (Ibid., p. 84). E este
também não obtém sucesso, assim como o oitavo e o nono. “Caso com aquele que caçar
a minha fuga” (Ibid., p. 85), provoca o décimo. E assim o próximo depois dele também
fracassa. Por fim, ela diz ao último rei “com o homem que desvendar meu labirinto, só
com esse eu casarei” (Ibid., p. 85). Mas esse rei não a persegue pelos corredores. Com a
força de sua espada, “corta e desbasta” (Ibid., p. 85), desfazendo o labirinto, até que só
restam “folhas espalhadas. E a moça. Que livre no gramado lhe sorri” (Ibid., p. 86).
Em “Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento”, Marina Colasanti nos
apresenta um jogo de sedução que se move no labirinto do vento. A moça desafia seus
pretendentes. Os onze reis (exceto o último) entram nesse jogo enganoso e não
conseguem alcançar o seu desejo. A moça os provoca e ri do fracasso de cada um.
Zomba daqueles que se perdem pelos corredores. Eles não conseguem desvendá-lo,
porque esse é um jogo enganador e dissimulado. Eles ficam perdidos e presos na teia da
sedução da moça. Por isso, Maria Rita Kehl (1988, p. 411) frisa que a sedução é uma
“caçada silenciosa entre dois olhares; captura numa rede perigosa de palavras”.
A moça “desafia”, “grita”, “provoca”, dizendo que casa com aquele que a
“alcançar” ou que “seguir seu rastro” ou que “cortar seu caminho” ou que “caçar sua
fuga”. A moça os captura numa rede de palavras e de olhares, leva-os a percorrer seu
labirinto de sedução. E eles se perdem, não encontram a moça e voltam a ser reis de
mármore porque não conseguem desfazer seu jogo enganador. Maria Rita Kehl (1988),
quando discorre sobre o jogo de sedução, esclarece que toda menina aprende com sua
mãe (sua “rival”, aquela que lhe evidencia a castração) os “truques” da feminilidade.
Para proteger seu narcisismo, para se proteger do desprezo, a mulher “derruba o antigo
ídolo fálico do pedestal para desdenhá-lo, suplicante a seus pés” (KEHL, 1988, p. 419),
como a moça do conto de Colasanti faz com os reis que descem dos nichos. Eles ficam
aos seus pés, correm e perseguem a moça, mas fracassam em sua busca. A moça, por
outro lado, sacrifica seu desejo de casar, porque, nesse jogo de sedução, para proteger a
si mesma do desprezo, ela não escolhe nem se deixa ser escolhida por nenhum dos onze
reis. Seu próprio prazer acaba sendo sacrificado porque não há espaço para um encontro
amoroso nesse jogo.
Seduzir para o amor e seduzir pura e simplesmente são movimentos diferentes.
Segundo Kehl (1988, p. 420), a sedução para o amor é uma promessa que se pretende
cumprir, porque “o amoroso quer se dar”, já a sedução por si mesma é destinada à
frustração. A moça do conto em questão inicialmente faz um movimento de seduzir por
si só e talvez por isso todas as tentativas dos onze reis tenham sido fracassadas. Apenas
ao último rei, ela pede que lhe desvende o labirinto e procura seu olhar. Nesse
momento, a moça parece fazer um movimento diferente e seduz porque também “quer
se dar” para o outro.
Kehl (1988) aborda o homem sedutor e a mulher sedutora e, mesmo sabendo
que, no conto analisado, o que fica mais evidente é o movimento da mulher sedutora,
consideramos importante descrever ambas as situações. O sedutor promete refazer o
narcisismo ferido do outro, lembrando sua dor e oferecendo o paraíso. Ele diz “eu sei o
que você quer [...], eu tenho o que você quer” (Ibid., p. 420). Para isso, o sedutor tem
que mentir em primeiro lugar para si mesmo (depois para o outro) para se manter
defendido, narcisista. O homem sedutor se protege da carência entrando na energia do
desejo, mantendo fálico seu órgão sexual, concentrando-se no que ele tem “em
excesso”. Pode até mesmo amar uma mulher, mas, ao mesmo tempo, deseja todas elas.
A mulher seduzida, embarcando no discurso masculino, sente-se escolhida dentre
muitas e, em seu imaginário, há a possibilidade de restaurar a antiga unidade com a mãe
fálica, porque o sedutor lhe diz que “sabe exatamente o que ela quer”. De acordo com
Kehl (1988), ele a faz acreditar que pode levá-la de volta ao lugar onde era somente
uma com a mãe, onde todos os seus desejos eram satisfeitos. Assim a mulher seduzida
vive entre o gozo e a angústia pela iminência da perda. Se cede ao convite do sedutor,
sabe que está prestes a (re)vivenciar a perda e o abandono.
Já a mulher sedutora, conforme descreve Maria Rita Kehl (1988, p. 421),
“oferece ao seduzido a sua indiferença e ao mesmo tempo se recobre de todos os
fetiches da feminilidade: ela é a própria (re)negação da castração”. A sedutora mente,
negando que não deseja, apenas se faz desejar, que não pede nada, porque nada lhe
falta. “Ela fere a pretensão fálica masculina para se oferecer sutilmente como
possibilidade de cura – pois quem conseguir conquistá-la está a salvo” (Ibid., p. 421). A
mulher sedutora alia seus truques à recusa de seu desejo para se manter na posição da
mãe fálica no inconsciente do seduzido. Ela se mostra misteriosa e auto-suficiente,
tornando-se duas vezes mais poderosa. Podemos observar esse movimento da mulher
sedutora no conto de Marina Colasanti. A moça desafia e convida cada um de seus
pretendentes ao labirinto, zomba daqueles que fracassam, indiferente ao sofrimento
deles. Aquele que conseguir alcançá-la estará a salvo, porque a ela não parece faltar
nada, ela parece auto-suficiente, poderosa e conhecedora de todos os caminhos. Se a
alcançarem, os reis acreditam que encontrarão a saída daquele labirinto de sedução.
Misteriosa e sedutora, a moça do conto de Colasanti lança desafios aos reis.
“Indiferente” às dificuldades que os pretendentes enfrentam, ela se faz desejar. Eles a
seguem pelos corredores e fracassam em sua busca, subjugados e presos na teia de sua
sedução. O primeiro rei, com seus pés calçados de ferro, não consegue alcançar a moça
que tão ágil percorre o labirinto. O segundo, mesmo acompanhado de seu cão, não
consegue aguçar seus sentidos o suficiente para seguir o rastro da moça. A moça, mais
uma vez, sorri sozinha do outro lado do labirinto. Os outros quatro reis depois deste
também fracassam. O sétimo pretendente gasta todas as suas flechas e não consegue
cortar o caminho da moça, porque o vento as leva para longe do seu destino. O oitavo e
o nono reis também não encontram sucesso em sua busca. O décimo, quando solta o
falcão que traz consigo, esperando que ele o ajude a caçar a moça, também fracassa,
porque o animal é atraído pela luminosidade do céu e segue livre, enquanto o rei fica
abandonado no labirinto. Por fim, onze reis entram no jogo de sedução da moça e
fracassam ao serem desafiados.
Será que os onze reis usam as “armas” certas para alcançar o coração da moça?
Correr com calçados de ferro atrás de uma moça tão ágil não foi suficiente para o
primeiro rei. Os pés da moça correm rápidos, pois conhecem o caminho do seu jogo de
sedução. O segundo rei tenta seguir o rastro da moça, mas “em vão atiça o rei seus
sentidos, em vão tenta ele próprio adivinhar perfumes que nunca pôde sentir”
(COLASANTI, 1982, p. 83). Se seu olfato não estava apurado o suficiente para o jogo
amoroso, mesmo com o auxilio de seu cão, não poderia encontrar a moça. O sétimo usa
arco e flecha, mas o vento muda o rumo da flechada e não alcança a moça. Sem
compreender como funcionava o labirinto, como o vento circulava pelos corredores da
sedução, o sétimo rei também fracassa. O décimo utiliza seu falcão, que antes ficava
preso, na escuridão do capuz. Tanto tempo longe da claridade, o falcão esquece o
instinto e sua “presa” e vai em busca do azul do céu. O rei, que contava com a ajuda do
animal, fica perdido no labirinto. Ele mesmo parece estar longe dos seus próprios
instintos, distante do jogo amoroso. Nenhum dos reis parece usar a “arma” certa para
desvendar o jogo de sedução da moça. O labirinto parece ter algo da ordem do mistério,
do inacessível, do inalcançável. Os reis são atraídos para uma espécie de armadilha,
porque a moça que os seduz, mas não pretende “se dar”, não abre possibilidade para o
encontro.
Apenas com o último rei é diferente, inclusive no desafio que lhe é lançado.
“Com o homem que desvendar meu labirinto, só com esse eu casarei – diz ela
procurando-lhe o olhar” (COLASANTI, 1982, p. 85, grifo nosso). Na procura do olhar
do outro, talvez a moça tenha deixado transparecer seu desejo. E é esse pretendente
quem desvenda seu labirinto de sedução. O próprio labirinto aqui ganha outros
significados. A moça percorre o labirinto como se estivesse também se preparando para
um rito de passagem; uma moça que se prepara para se tornar mulher. Talvez por isso a
espada seja o elemento mais adequado para esse momento de iniciação. A espada aqui é
também um elemento fálico15 (um significante do desejo inconsciente) que introduz a
moça na vida adulta, que a transforma numa mulher, pronta para casar ou para qualquer
outro destino. Com sua espada, o rei desfaz o labirinto da moça, desvendando seu jogo
15
A espada, nesse conto de Colasanti, possui uma representação fálica, remetendo-nos ao órgão sexual
masculino. Vale a pena, então, esclarecer porque o pênis se constitui o órgão fálico por excelência. Maria
Rita Kehl (2008, p. 190, grifo da autora) explica que, num determinado momento, a criança descobre que
o corpo de sua mãe não é dotado de um pênis, sendo assim, ela faz do pênis do pai “o falo número um da
série das representações imaginárias”. Por isso também, sempre está em presença do falo, a criança
relembra sua falta, tanto meninos quanto meninas. A espada do décimo segundo rei do conto em questão
talvez relembre à princesa o que lhe falta e reconecte-a com seu desejo – não exatamente o desejo de
casar, mas de tornar-se mulher, libertar-se daquele labirinto, que de certa forma a aprisiona, e seguir para
a vida.
de sedução, que parece até mesmo infantil para a mulher que ela agora se tornava.
Diante das folhas espalhadas do labirinto desfeito, a “nova” moça – a mulher – livre,
não zomba do rei, ela apenas lhe sorri. Ela enfim cede a um homem que a encontra sem
entrar em seu jogo de sedução.
A moça passa por uma transformação no conto. Quando o décimo segundo rei
desbasta o labirinto, adentra a intimidade da moça, desvenda seu jogo de sedução. Ou
seja, o rei não entra, como os demais pretendentes, em seu jogo enganosamente
construído para ser seduzida. Talvez aí resida a complexidade da relação amorosa, do
“ser mulher”, que se prefigura nesse jogo de dissimulações e engodos que recobrem o
desejo da mulher. A moça do conto, ao ser tocada nesse ponto, antes inacessível, pela
espada do rei, se desarma e se abre a um possível encontro. Ao cortar e adentrar o
labirinto, é assegurado a esse homem fazer um corte numa etapa na vida (na própria
sexualidade) da moça. É como se ela se revelasse mulher nesse momento, pronta para o
encontro, pronta para o amor. Quando o labirinto se desfaz, abre caminho para o
encontro dos amantes.
É no amor que a moça, agora mulher, vai tentar refazer seu narcisismo. Esse
processo que começa para a moça quando o conto acaba é o mesmo que toda mulher
também vivencia. Kehl (1988) frisa que essa é uma tarefa muito difícil, porque é
exatamente no amor onde sua falta fica mais evidente. No amor, a mulher vai parecer
sempre mais exigente do que o homem, porque ela parece esperar sempre mais, espera
recuperar seu falo nessa relação de amor. Maria Rita Kehl (2009) acrescenta que quando
a paixão sofre suas primeiras desilusões, desfazendo o labirinto das fantasias iniciais, é
que o encontro se torna possível. Em “Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento”, o
jogo de sedução, de aproximação e esquiva se desfaz para dar lugar aos olhares que
finalmente se encontram, ao sentimento amoroso que pode se instaurar, ao lugar de
mulher que a moça de fato assume diante do homem que desvendou seu desejo.
No encontro entre a moça e o último rei entrevê-se uma cena de intimidade entre
os amantes, quando ela se permite olhar e é olhada. A moça procura o olhar do rei no
momento em que o desafia, convidando a desvendar seu labirinto, o rei, por sua vez,
desfaz, com a força de sua espada, os corredores que os separam. Desfeito o impasse
que havia entre eles, dá-se o encontro amoroso. Marina Colasanti (1980, p. 125)
comenta que partilhar “é fazer dos próprios sentimentos uma área livremente transitável.
E isso só se consegue com intimidade”. E a intimidade começa no desejo de conhecer o
outro e permitir-se conhecer por ele. Com a intimidade, não há necessidade de
esconder-se do outro ou fingir para ele. Essa intimidade no conto se insinua com o olhar
dos amantes. Colasanti (1980, p. 126) frisa ainda que “a intimidade não é indispensável
ao amor / paixão. Mas o é ao amor / vida, aquele amor que se pretende mais sólido do
que apenas uma labareda, que se quer responsável”.
2.2 “Entre a Espada e a Rosa”: o mistério da feminilidade
Um amor que se constrói através da convivência com o outro passa por muitos
percalços também. Ora o caminho é suave e tranqüilo, ora é dúvida e incerteza diante de
uma bifurcação. “Entre a Espada e a Rosa”, entre guerreiro e mulher, entre inverno e
primavera, está uma princesa. É uma princesa que não quer se casar por determinação
de seu pai. Angustiada, suplicou à sua mente e ao seu corpo uma solução e cansada
adormeceu. E “na noite sua mente ordenou, e no escuro seu corpo ficou”
(COLASANTI, 1992, p. 23) e, no dia seguinte, a “Princesa percebeu que algo estranho
se passava. Com quanto medo correu ao espelho! Com quanto espanto viu cachos
ruivos rodeando-lhe o queixo! Não podia acreditar, mas era verdade. Em seu rosto, uma
barba havia crescido” (Ibid., p.23). Mergulhando na noite do seu inconsciente, seu
corpo lhe dá uma resposta, que fratura sua identidade.
Expulsa do palácio, não consegue encontrar trabalho nas primeiras aldeias que
chega. Então, vende suas jóias em troca de uma couraça, uma espada, um elmo e um
cavalo. Agora “não seria mais homem, nem mulher. Seria guerreiro” (Ibid., p. 25).
Tornou-se guerreiro valente, servindo aos senhores dos castelos, até chegar ao castelo
de um jovem rei, com quem iniciou uma forte amizade “e parecia natural, com o fluir
dos dias, que suas vidas transcorressem juntas” (Ibid., p. 26). Com o tempo, ambos
percebiam que um sentimento novo começava a florescer entre eles. O príncipe não
conseguia entender o que sentia. Mandava chamar o guerreiro para logo em seguida
arrepender-se e mandá-lo embora novamente. Vivia em tormento e não suportando mais
não ver o rosto do cavaleiro que estava sempre ao seu lado, ordenou que tirasse o elmo,
revelasse sua face ou teria cinco dias para deixar o palácio. A princesa-guerreiro não
podia dizer ao príncipe que, de noite, em seu quarto, sozinha, suspirava pensando nele,
não podia revelar o que sentia. Angustiada, mais uma vez, suplicou ao seu corpo uma
solução. “E na noite sua mente ordenou, e no escuro seu corpo brotou” (Ibid., p. 27).
Pela manhã, no lugar da barba havia rosas rubras rodeando-lhe o queixo. Aos poucos, as
rosas foram murchando e as pétalas, caindo. No quinto dia, a princesa, com seu vestido
rubro, desceu as escadarias na direção do rei, “enquanto um perfume de rosas se
espalhava pelo castelo” (Ibid., p. 27).
A princesa começa, de corpo e de alma, uma jornada de construção de sua
própria identidade. Masculino e feminino dançam por trás da armadura do guerreiro
valente. Desempenhando uma atividade tipicamente masculina, vai de castelo em
castelo, de reino em reino, oferecer seus serviços. Somente quando está cavalgando
sozinha pelos campos, permite-se levantar a viseira e deixar que o vento acaricie seu
rosto. Somente nesse momento, a mulher por trás da armadura transparece. O elmo
funciona como uma máscara, que esconde a verdadeira identidade da princesa, e a
couraça é como um casulo, que a protege até estar pronta para ser mulher. Dentro desse
“casulo”, a princesa desabrocha lentamente, passa por todo um processo de
transformação até revelar-se mulher no final do conto. Dentro do “casulo” da couraça e
protegida pelo elmo, ela trava muitas batalhas – com o auxílio de sua espada – e revelase um valente guerreiro, reconhecido por seus feitos. Sua “batalha” maior, entretanto, é
desabrochar para o amor, é transformar-se em mulher.
Aqui novamente podemos observar com mais força a figura do andrógino,
presente também no conto “Entre as Folhas do Verde O” (na imagem da corça-mulher).
Homem e mulher, masculino e feminino se abrigam na armadura e no corpo do
guerreiro. Até a mulher se revelar por inteiro, o guerreiro terá que cumprir uma longa
jornada. A princesa de “Entre a Espada e a Rosa” percorre os caminhos de sua
feminilidade oscilando entre os dois pólos (masculino e feminino). Colasanti recria
poeticamente a figura do andrógino na Princesa e, quando o amor desponta entre ela e o
jovem
rei,
eles
experimentam
a
tensão
no
enfrentamento
dessa primeira
impossibilidade. Esse conto revela também que a feminilidade integra esses dois
elementos e que uma mulher, para ser inteira e para estar preparada para o amor, precisa
entrar em harmonia com o feminino e o masculino que a habitam.
É interessante retomarmos o conceito de feminilidade, revisto por Freud (1937),
em Análise terminável e interminável, para melhor entendermos essa questão. A
feminilidade é definida como uma característica comum tanto a mulheres quanto a
homens. Para o autor, a feminilidade pode integrar masculino e feminino, tornando-se
elemento constituinte da subjetividade de homens e mulheres. Maria Rita Kehl (2008, p.
183), em Deslocamentos do feminino, faz uma releitura desse discurso de Freud e
considera que o autor, em sua teoria sobre a feminilidade16 e a sexualidade feminina17,
“não reformulou fundamentalmente sua concepção sobre o que deveria ser uma mulher”
e, dessa forma, não foi capaz de perceber que nenhuma mulher poderia “encarnar A
Mulher”18. Ao final da vida, os textos de Freud sobre essa temática “oscilaram entre a
decepção – a psicanálise seria incapaz de curar as mulheres, desajustadas dos ideais de
feminilidade? – e a perplexidade – afinal, quem pode saber o que quer uma mulher?”
(Ibid., p. 183). Por fim, Kehl (2008, p. 184, grifo da autora) considera que:
A manutenção de um ponto enigmático sobre o querer feminino, a
representação da mulher como o continente negro da psicanálise,
seriam a meu ver recursos a que Freud recorreu para manter-se
ignorante a respeito do que ele mesmo não queria saber, embora já
tivesse revelado ao resto do mundo: a diferença fundamental entre
homens e mulheres é tão mínima, que não há mistério sobre o ‘outro’
sexo que um cavalheiro não pudesse responder indagando a si próprio.
A autora, dessa forma, coloca ainda mais próximos homens e mulheres,
corroborando com a ideia de que a feminilidade é parte constituinte da subjetividade de
16
Cf. FREUD, S. Feminilidade (1933[1932]). Edição eletrônica brasileira das obras completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, versão 2.0.
17
FREUD, S. Sexualidade feminina (1931). Edição eletrônica brasileira das obras completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, versão 2.0.
18
Maria Rita Kehl (2008) ressalta que os ideais tradicionais da feminilidade postulados por Freud – a
maternidade e o casamento – foram concebidos de acordo com as necessidades da ordem familiar
burguesa da época e, no final do século XIX, eles começaram a provocar um desajuste entre as mulheres
e a feminilidade, porque já se mostravam “caminhos estreitos demais para dar conta das possibilidades de
identificação a outros atributos e escolhas de destino, tidos como masculinos, que começavam a se
apresentar ao alcance das mulheres com a crescente circulação de informações e de contatos exogâmicos,
produzidos pela modernidade” (Ibid., p. 75). É importante observar, como enfatiza Silvia Alexim Neri
(2002, p. 18), que Freud foi “promotor ativo da positivação do feminino ao ouvir a fala das histéricas”.
Com ele, as mulheres ganharam visibilidade, entraram na cena social e passaram a ser objeto de
investigação. A psicanálise elevou o feminino para o status de cultura. Por outro lado, nesse momento, o
homem ainda era o sujeito do discurso e a mulher, o objeto, por isso, na psicanálise, o feminino ainda era
colocado numa posição de objeto para ser decifrado ou para ter seu mistério delineado.
ambos. Como podemos perceber, no conto de Marina Colasanti, o desabrochar da
feminilidade passa tanto pelo pólo masculino quanto pelo feminino. Dentro do seu
“casulo” de guerreiro, além de desempenhar tarefas tipicamente masculinas, ela
experimenta em seu próprio corpo o elemento da masculinidade – a barba. Somente
quando consegue integrar essas duas polaridades, a barba desaparece e ela desabrocha
como mulher.
Até o seu desabrochar, no entanto, a princesa percorre um longo trajeto. É a
jornada de uma heroína, o que implica passar por muitas provas. Inicia uma busca de
algo ainda desconhecido. Não aceita as determinações do pai e é ordenada a deixar o
palácio. Segue em busca de seu destino. Enfrenta dificuldades e lutas. Como não era
aceita para trabalhar nem como mulher nem como homem, transforma-se em guerreiro.
De batalha em batalha, o guerreiro torna-se mais forte e mais valente. Seus feitos e sua
coragem se espalham. O guerreiro ganha reconhecimento.
Salma Silva (2003) fala sobre a trajetória do herói ou da heroína. A ela, são
impostas muitas provas. Ela precisa perder-se, passar por uma série de dificuldades para
então amadurecer e encontrar o amor. Isso nos remete ao mito platônico da busca pela
metade perdida, que ainda sobrevive fortemente no imaginário coletivo da sociedade
ocidental. Encontrando a cura para seu vazio interior, para a falta de sentido de sua
existência, a heroína amadurece. É o encontro de amor, portanto, que favorece esse
crescimento, essa transformação.
O jovem rei e a princesa-guerreiro, tão próximos e tão distantes, percebem que
um sentimento novo começa a surgir entre eles com o passar do tempo. Para o jovem
rei, esse afeto pela princesa-guerreiro lhe soa estranho e ameaçador: “devoção mais
funda por aquele amigo do que a que um homem sente por um homem” (COLASANTI,
1992, p. 26). O rei, sentindo crescer dentro de si esse sentimento, ora evita ver a
princesa-guerreiro, ora manda chamá-la para, em seguida, arrepender-se e pedir que se
vá novamente. A princesa suspira longamente pensando no jovem rei, mas como
revelar-se para ele com a barba que lhe rodeia o rosto? No encontro com seu amado, a
princesa não pode se mostrar por inteiro. O jovem rei inquieta-se com o que sente pelo
amigo, por isso diz que já não pode mais confiar em alguém que esconde o próprio
rosto. Por fim, a princesa se vê diante de um impasse: ou o guerreiro mostra seu rosto,
revelando sua verdadeira identidade ou teria que deixar o castelo. É o momento de
desnudar-se, de revelar o enigma. E o corpo da mulher, que já tinha passado por tantas
transformações, modifica-se novamente, desabrochando em primavera.
A princesa parece estar num período de transição entre inverno e primavera.
Antes, dentro do “casulo” da couraça e do elmo, a princesa parece experimentar um
período de inverno, quando sua feminilidade ainda está “adormecida” ou “congelada”.
Aos poucos, depois de batalhas e lutas, no contato com o jovem rei, junto com esse
sentimento amoroso que nasce entre eles, a primavera vai chegando para a princesa e
ela vai se transformando em mulher. Passo a passo ela vai experimentando mudanças
profundas em seu corpo e sua alma até o desabrochar da sua feminilidade.
O sentimento novo que surge entre a princesa e o jovem rei é responsável pela
mudança no corpo e na alma da jovem. Essa identidade feminina tecida ao longo da
narrativa passa por transformações e o amor é responsável por essas mudanças. É por
não desejar, por exemplo, um casamento sem amor às expensas de seu desejo que seu
corpo responde a isso e sofre a primeira transformação. Mais tarde, é por desejar o
jovem rei que seu corpo sofre uma outra transformação. Essa é uma transformação bem
diferente daquela que a mulher vivencia em “Prova de Amor”. A mulher cede ao pedido
do seu amado, transforma-se em algo que não era apenas para agradá-lo; a barba que ela
tece é um elemento masculino que “invade” seu corpo. Em “Entre a Espada e a Rosa”, o
corpo da princesa modifica-se a partir de suas necessidades e de seus desejos, até
mesmo sua barba se configura como elemento que brota em sua defesa. O amor que
sente pelo rei é um elemento importante no processo de mudança, mas é por si mesma
que a princesa muda.
Marina Colasanti (1984, p. 116) acredita que o enigma da feminilidade está no
corpo: “um corpo que menstrua, que se altera, que acompanha a lua, que gera e
amamenta. Um corpo que dá prazer ao homem, mas que dá também lassidão, e no qual
precisa entrar fisicamente sem ter conhecimento daquilo que abriga em seu interior”. O
corpo da mulher se transforma e é sempre fonte de mistério. O homem sente desejo e
pavor por esse corpo com tantos recônditos desconhecidos. E é esse corpo, que muda
com as estações, que se abre finalmente para o amor, no final do conto “Entre a espada
e a rosa”. Para Colasanti (1984), o encontro amoroso acena para uma transformação nos
amantes, que pode ser tanto física quanto psíquica.
A princesa passa por um longo processo de transformação, em seu corpo e em
sua alma. E o amor acontece inesperadamente, embora possa vir acompanhado da
amizade. Zygmunt Bauman (2004) afirma existir uma ilusão de que despertar o amor ou
apaixonar-se é uma habilidade que pode ser aprendida ou adquirida ao longo das
experiências amorosas no decorrer da vida. O conhecimento que adquirimos, com tantas
experiências, é apenas o do amor “como episódios intensos, curtos e impactantes,
desencadeados pela consciência a priori de sua própria fragilidade e curta duração”
(Ibid., p. 20). O amor, quando acontece, é sempre inesperado, tem sempre algo que foge
ao controle e é sempre novo, exigindo, portanto, uma nova forma de lidar com ele,
como na história da princesa e do jovem rei. Inesperadamente, ao longo dos dias de
convivência, das lutas partilhadas, o rei sente um sentimento crescer. Um sentimento
novo que o rei ainda não sabe como lidar. Então, tentando fugir do que sentia, evitava
ver o amigo. Mas logo depois mandava chamá-lo para em seguida arrepender-se e
mandá-lo embora novamente. Nesse momento, tanto o jovem rei quanto a princesa
ainda não sabem como lidar com o sentimento amoroso.
A princesa suspira pelo rei, sozinha, em seu quarto, contudo não podia dar vazão
a esse sentimento e revelar-se por inteiro porque uma barba ruiva em seu rosto ainda se
apresentava como um impedimento. Era uma mulher ainda num “casulo”, tecendo-se,
preparando-se para seu desabrochar. Somente à noite, trancada em seu quarto, vestia o
vestido de veludo vermelho, soltava os cabelos e deixava que a mulher saísse de trás da
armadura. E assim, ela suspirava por seu amado, sentindo crescer o sentimento que
tinha por ele.
Por esse amor novo que cresce, a princesa sofre. E, desse sofrimento, nasce a
mulher. Na caminhada pela busca de si mesma e no encontro de amor, a mulher
desabrocha. Sua identidade se fortalece, ganha novas tonalidades e revela-se. Octavio
Paz (1994) pontua que o desejo de todos os apaixonados é o reconhecimento da pessoa
amada. Aquele que ama deseja ser reconhecido pelo sentimento que devota ao outro e
deseja ser amado em troca. Talvez seja o reconhecimento desejado pela princesa.
Depois de lutar como um guerreiro, de conquistar seu espaço no campo de batalha e da
vida, de mostrar seu valor como indivíduo, ela deseja entregar-se ao amor, amar e ser
amada.
O amor é tecido ao longo do conto em seus pequenos gestos. O jovem rei tinha
uma preferência por aquele guerreiro, que era também um amigo fiel. Um já havia salvo
a vida do outro mais de uma vez. Suas vidas transcorriam juntas com naturalidade.
Eram companheiros. Nessa convivência, o amor nasce e cresce. José Luiz Furtado
(2008, p. 45) acredita que “todo amor é uma história de amor”. O amor inclui uma
infinidade de momentos vivenciados com o outro. Ele é uma tarefa, abarca uma série de
dificuldades e requer tempo para que possa “fluir nos atos de amor que o constroem”
(Ibid., p.28).
O amor é gestado em “Entre a espada e a rosa” sem saber ainda que é gestado.
Princesa e rei se identificam um com o outro. Marina Colasanti (1984, p. 75),
comentando Melanie Klein, em seu livro Amor, ódio e reparação (publicado em 1937),
frisa que essa capacidade de identificação com o outro é uma condição necessária para
um sentimento de amor intenso e verdadeiro e que, dessa forma, o amor “é a capacidade
de estar no lugar do outro, de saber como ele pensa, quais são os seus desejos”.
Colasanti (1984, p. 78) acrescenta que “o amor é a volta ao lado de dentro”.
Conhecendo o outro e deixando que ele nos conheça, introjetamos um ao outro. É
preciso que avancemos um no outro com calma e confiança, pois somente assim o amor
será bem gestado.
É com calma e confiança que o amor entre o jovem rei e a princesa se constrói,
lentamente, nos gestos de amizade e na partilha diária. Bauman (2004, p. 22) enfatiza
que, em nossa cultura consumista, existe uma ilusão de que podemos construir a
experiência amorosa como qualquer outra mercadoria que promete “desejo sem
ansiedade, esforço sem suor e resultado sem esforço”. Para Bauman (2004, p. 22), “sem
humildade e coragem não há amor”. Essas são características necessárias para
adentrarmos esse território desconhecido.
Ingressando nesse território, o jovem rei se surpreende com o que sente e, por
não suportar mais ter ao seu lado um amigo que nunca mostra o rosto, o rei dá um
ultimato à princesa: ou mostra seu rosto ou teria que deixar o castelo em cinco dias.
Numa relação de amor (ou de amizade), é preciso desnudar-se, retirar a máscara e
revelar-se para o outro. Somente quando o outro se mostra como é, sem subterfúgios, é
que o encontro de amor se torna possível. Milan (1985, p. 20) enfatiza que “o amor não
suporta a dúvida – a crença lhe é fundamental”. Quem ama, acredita no ser amado e este
deve lhe passar confiança. Mas como confiar sem olhar nos olhos, sem ver o rosto de
quem se ama? Por isso, a princesa do conto de Colasanti precisa mostrar sua face,
desnudar-se para encontrar o rei. É preciso sair de trás da armadura para deixar aflorar o
sentimento de amor. Assim como em “A Mulher Ramada”, somente quando
“Rosamulher” se revela por inteiro é que os amantes podem se encontrar. Somente
quando o labirinto é desfeito, em “Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento”, é que os
olhares finalmente se encontram. Para que o amor seja possível, os sujeitos precisam se
mostrar como são, precisam revelar sua verdadeira face.
Marina Colasanti (1984), em seu livro E por falar em amor, esclarece que o
amor (diferente do afeto) exige um rosto bem definido e inclui o desejo. No amor, existe
um desejo por alguém específico, que tem rosto, que é insubstituível e do qual nos
tornamos dependentes. É pela necessidade de ver esse rosto e, por se sentir tão
vinculado à princesa, que o rei, de “Entre a Espada e a Rosa”, exige que ela se revele.
Seu sentimento inclui um desejo por alguém específico – a princesa – e, para entender
melhor o que sente, o jovem rei pede que o “amigo” retire a máscara que o envolve.
Assim, a princesa vivencia seus últimos momentos de inverno para então tornarse primavera. Os cachos rubros de seu rosto se transformam em rosas, que, aos poucos,
vão murchando e revelando a pele delicada de mulher. Essas rosas, ao se abrirem,
revelam um perfume tão intenso, que a própria princesa se sentia embriagar desse
aroma. É o perfume de uma mulher desabrochada, pronta para o amor. Fora do
“casulo”, como uma borboleta livre para a primavera, a princesa agora é uma mulher e é
esse aroma de feminilidade que ela exala. No rubro da barba, entrelaçada com o
elemento masculino está o vermelho de uma feminilidade presente. Por trás do guerreiro
valente, está uma mulher que se veste de vermelho e sonha com o homem amado. Para
substituir a barba ruiva, rosas vermelhas nascem em seu lugar, anunciando a chegada de
uma primavera feminina e amorosa. Dentro do “casulo”, ainda no período de “inverno”
em que a feminilidade da princesa é gestada, o vermelho está presente tanto na barba
(elemento masculino) quanto no vestido e nas rosas que depois lhe rodeiam o queixo
(elemento feminino). O vermelho faz parte de todos os elementos que constituem a
feminilidade da princesa. É a cor que representa sua identidade feminina, que marca sua
passagem para o “ser mulher”. É o vermelho de uma mulher que desabrocha, o
vermelho de um corpo que se transforma, o vermelho de um amor que nasce.
Da mesma forma, desabrocham também “A Mulher Ramada” e a moça, de
“Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento”. É um rito de passagem, um movimento
de transformar-se em mulher que as três personagens femininas desses contos
vivenciam. Cada uma com seu percurso particular deixa a feminilidade florescer e
encontra a possibilidade de mudança e do amor, diferente da corça-mulher, de “Entre as
Folhas do Verde O” e das mulheres dos contos “Prova de Amor” e “Verdadeira Estória
de um Amor Ardente”, que são aprisionadas em formatos modelados pelo ser amado,
que não leva em consideração seu real desejo.
O amor é o sentimento que possibilita mudanças no conto “Entre a espada e a
rosa”, impulsionando a transformação da princesa, antes aprisionada em seu próprio
corpo numa mulher livre. Marina Colasanti (2004), quando comenta o conto
“Sereiazinha”, de Andersen, enfatiza que, ao renunciar à sua cauda para adquirir pernas
para ir em busca do amor do príncipe, a personagem está nos dizendo que, para realizar
o amor é preciso abrir mão de uma parte de si e incorporar uma parte do outro. É
preciso sofrer uma transformação, como a princesa do conto de Colasanti também
sofreu. Para realizar o amor, seu corpo precisou de uma preparação e de uma permissão
para mudar. Precisou abandonar a barba e incorporar as rosas, que aos poucos
murcharam, deixando em seu lugar o perfume que anunciava a chegada da primavera, a
chegada do amor.
Segundo Paz (1994), os amantes não se procuram, eles se encontram. Num
encontro, princesa e rei se apaixonam (mesmo sem que ele ainda saiba da verdadeira
identidade dela), e constroem um amor através da convivência, do respeito mútuo e da
amizade. Um amor que, superando suas dificuldades, floresce. O momento final desse
encontro de amor, contudo, é apenas anunciado no conto. Fica por conta do leitor
imaginar a cena em que o jovem rei finalmente encontra a princesa-mulher. “A Princesa
soltou os cabelos, trajou seu vestido cor de sangue. E arrastando a cauda de veludo,
desceu as escadarias que a levariam até o Rei, enquanto um perfume de rosas se
espalhava no castelo” (COLASANTI, 1992, p. 27). Como o rei a recebeu? Como reagiu
diante do rosto enfim revelado? Questionou a princesa pelo segredo mantido durante
tanto tempo? Ou perfume de rosas simplesmente o envolveu embriagando-o de amor? O
que aconteceu depois da revelação?
Retirada a máscara que envolvia a relação a dois, o que resta? Kehl (2009)
afirma que somente quando essas fantasias iniciais da paixão se desfazem, quando os
amantes sofrem as primeiras desilusões é que o amor pode se fazer presente. Rei e
princesa passam por essas fases iniciais, pelo início da paixão, pelo segredo, pela
desconfiança e pela necessidade de se revelar ao ser amado. No final do conto, livre de
armaduras, com uma feminilidade primaveril, a princesa vai ao encontro do amor. Um
amor delicadamente construído, um amor partilhado entre lutas e vitórias, um amor que
desabrocha na primavera do corpo da princesa, um amor que exala perfume de rosas
porque enfim se abriu para ser vivenciado sem amarras, sem segredos, sem armaduras.
2.3 “De muito procurar”: (re) descobrindo o amor
Circulando por outro corredor desse imenso labirinto amoroso, vemos um
homem e uma mulher procurando por um “juízo perdido”. Ele é um homem à procura,
por isso anda sempre de cabeça baixa. Encontrava pequenos tesouros, objetos que os
outros deixassem cair inadvertidamente: um botão, uma conta de colar, uma fivela, um
anel muito largo. Ele passava desapercebido, não era visto por ninguém, mas via longe.
De repente, ele foi notado pela velha que se fazia de cega, que disse que o homem
enxergava por dois. Sua fama então se espalha e a mesa de seus haveres se esvazia.
Muitos procuram o homem para encontrar o que haviam perdido.
“Soprava um vento quente, giravam folhas no ar, naquele fim de tarde, nem bem
outono, em que a mulher veio. Não bateu à porta, encontrou-a aberta” (COLASANTI,
2005a, p. 133). Com a voz abafada, ela lhe diz que perdeu o juízo e pede sua ajuda para
encontrá-lo. O olhar do homem permanece voltado para o chão. “Pela primeira vez, o
homem passou a procurar alguma coisa que não sabia como fosse. E para reconhecê-la,
caso desse com ela, levava consigo a mulher” (Ibid., p. 133).
Então, saem os dois a farejar e procurar por esse “juízo perdido”. A mulher,
entretanto, não estava acostumada a abaixar a cabeça. Seu olhar por estar voltado para o
alto, perdia-se, conduzia-se por caminhos outros. O homem passou a acompanhá-la e,
aos poucos, seu olhar também encontrava outros focos. Distraia-se e atraia-se por novas
imagens, novos sons, novos cenários. Quanto mais procuram, mais se perdem. Quanto
mais procuram, mais eles se esquecem do que estão procurando. Quanto mais procuram,
mais eles encontram, mais eles descobrem. Por fim, o homem, descobrindo a primeira
violeta da primavera, finalmente levanta a cabeça e, ao olhar para a mulher, percebe que
ele também acabava de “perder o juízo”.
Ele era um homem que andava sempre de cabeça baixa, mas não por tristeza.
Era um homem atento aos pequenos detalhes, ao que os outros deixassem cair por
distração. Era um homem atento, sempre à procura, não de si, mas daquilo que o outro
perdia. De objetos do cotidiano: “uma moeda, uma conta de colar, um botão de
madrepérola, uma chave, a fivela de um sapato, um brinco frouxo, um anel largo
demais” (Ibid., p. 131). Sempre atento, via longe, qualquer objeto do “outro”, qualquer
coisa tangível a seus olhos atentos.
O conto “De muito procurar” nos revela uma dança de olhares. O olhar sempre
baixo do homem e sempre muito atento parece olhar numa única direção, desfocada de
si mesmo. Olhos sempre voltados para o chão não percebem o mundo à sua volta. Eles
podiam perceber a distração dos outros, mas nunca se distraiam. Até que o homem que
passava pelos outros desapercebido é notado. Sua habilidade especial para encontrar
pequenos objetos perdidos é percebida pela velha que se fazia de cega. Alguém que
finge que não vê, que pode também passar desapercebido, é muito atento a tudo o que
acontece ao seu redor. (Re)conhecido, os olhares a partir de então se voltam para o
homem. À noite, em sua casa, de apenas um cômodo, retira dos seus bolsos gordos seus
pequenos tesouros e os revira sobre a mesa, “para que à luz da vela ganhasse brilho e
vida. Com isso, fazia-se companhia” (COLASANTI, 2005a, p. 132). Sua fama se
espalha e muitos retornam a sua casa para reaver seus objetos, assim “pouco a pouco
esvaziava-se a mesa dos seus haveres” (Ibid, p.132).
Seus haveres se vão e chega a mulher. A porta já estava aberta, quem sabe já a
esperava. O olhar do homem
esbarrou na ponta delicada do sapato, na barra da saia. E manteve-se
baixo. Perdi o juízo, murmurou ela com voz abafada, por favor, me
ajude. Assim, pela primeira vez, o homem passou a procurar alguma
coisa que não sabia como fosse. E para reconhecê-la, caso desse com
ela, levava consigo a mulher (COLASANTI, 2005a, p. 133).
A mulher andava de cabeça alta, com olhos voltados para o mundo. E é o olhar
da mulher que convida o homem a percorrer outros caminhos. O olhar dele, antes tão
atento, começa a se distrair, fazendo novas descobertas. Não se trata mais da
materialidade anterior – chaves, fivelas, moedas, botões –, mas de outra natureza, de
algo que vai tocar a sua alma. É como se o homem pudesse também olhar para dentro de
si mesmo, (re) descobrindo-se. Ele se distrai do mundo exterior e entra na esfera do
inapreensível, do indizível. É aí que ele descobre a primeira violeta da primavera.
Primeira da nova estação que começa para ele e, exatamente porque agora sua
percepção sobre o mundo e sobre si mesmo está diferente, é que ele reconhece, ao
encontrar o olhar da mulher, que também acabava de “perder o juízo”.
Octavio Paz (1994) afirma que o amor começa com um olhar. Olhamos aquele
que desejamos e ele também nos olha. E vemos tudo e nada nos olhos do outro. Isso
acontece com a corça-mulher e o príncipe, em “Entre as folhas do Verde O”, que, no
momento em que se olham, projetam seus desejos, mas não conseguem, de verdade,
“ver” um ao outro, como realmente são. Em “Doze Reis e a Moça no Labirinto do
Vento”, o encontro de olhares entre a princesa e o décimo segundo rei é um momento
de intimidade e de reconhecimento, em que ele desvela o seu desejo, desfazendo o jogo
de sedução que havia entre eles. Em “De Muito Procurar”, o encontro de olhares entre o
homem e a mulher anuncia um “juízo perdido”. Será que perdemos o juízo quando
encontramos o amor?
Quais os caminhos que conduzem à escolha desse objeto de amor? “Taquetaque, conduziam-no os pés pequenos dia após dia. Taque-taque, crescia aquele som no
coração do homem” (COLASANTI, 2005a, p. 135). O homem acompanhava o som
daquela mulher e, dentro do seu coração, surgia também um sentimento diferente. Para
Paz (1994), o amor é constituído por uma atração involuntária e por uma escolha. “[...]
O destino e a liberdade se cruzam no amor. O território do amor é um espaço imantado
pelo encontro de duas pessoas” (Ibid., p.35). O conto de Colasanti ilustra bem isso
quando diz que a porta já estava aberta quando a mulher chegou. O destino se
encarregou de aproximar os dois, mas eles seguem juntos, à procura do “juízo perdido”,
porque escolhem fazer essa busca juntos, embora juntos não signifique aprisionados um
ao outro. Cada um faz seu próprio trajeto e suas próprias descobertas, caminhando com
o seu desejo ao encontro de um possível amor.
É preciso, contudo, estar preparado para o amor. O homem, em “De muito
procurar”, parece se preparar para esse encontro. Marina Colasanti (1984, p. 47) diz que
“atraímos quando estamos prontos para receber”. O homem do conto de Colasanti
percorre um longo caminho de contato com o outro, de esvaziamento de certos haveres,
de ser visto e reconhecido até encontrar a mulher. Talvez, por isso, quando ela chega, a
porta já está aberta. O homem parece estar à sua espera inconscientemente. “O amor se
encontra quando se está aberta para ele. E nem é preciso procurar. Ele esbarra na gente
(COLASANTI, 1980, p. 138)”. E é assim, de porta aberta para o amor que estava
chegando, que o olhar no homem esbarrou na ponta delicada de um “juízo perdido”.
Quando o homem está pronto, a mulher chega e ele inicia com ela uma nova caminhada,
uma nova procura, mas não sozinho. É uma busca a dois. Diferente dos onze reis, em
“Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento”, que perseguem os passos da moça no
labirinto sempre fracassando em sua busca, o homem, em “De Muito Procurar”, segue o
taque-taque dos saltos da mulher e, sempre que se perde, a reencontra porque está atento
ao movimento da parceira de caminhada. E assim como o décimo segundo rei que
desvenda o labirinto da moça, encontrando-a no final, o homem também encontra a
mulher quando finalmente levanta seu olhar na direção de sua parceira. Os amantes
precisaram olhar na mesma direção para se encontrarem. Ao final do conto, o homem
não está mais de cabeça baixa e a mulher também abandona seu olhar sempre voltado
para o alto. Para se encontrarem, homem e mulher tiveram que olhar na direção um do
outro.
É esse encontro de amor que oferece possibilidades de mudança. O encontro, em
“De muito procurar” faz nascer essa estranha dupla que, procurando por um “juízo
perdido”, visita novos espaços, novos caminhos. O encontro faz renascer o homem, que
se modifica no contato com a mulher. “Aos poucos mudavam os sons, chegavam ao
homem latidos, cacarejar de galinhas. O olhar que tudo sabia achar não parecia mais tão
atento. [...] Os bolsos pendiam vazios. O homem distraía-se” (Ibid., p. 134).
A mulher chega no conto como um elemento impulsionador de mudança. Ela
vem acompanhada de um vento quente e da proximidade do outono. É como se ela
trouxesse (ou fosse) a nova estação na vida do homem. É ela quem chega, como se
contasse um segredo, como se revelasse algo muito importante, por isso precisa
sussurrar: “perdi o juízo, murmurou ela com voz abafada, por favor, me ajude” (Ibid., p.
133). No Banquete, de Platão, é através de Diotima que Sócrates discursa sobre o amor.
Ele recorre às palavras de uma mulher. É ela quem detém o conhecimento sobre o amor.
Octavio Paz (1994, p. 42) acredita que Platão, nesse momento, pode ter desejado
resgatar as origens, “o reino das mães, lugar de verdades primordiais”. Por isso, a
profetisa Diotima é quem revela os mistérios do amor.
Em “De muito procurar”, é a mulher quem também parece guardar esses
mistérios. Ela tem a cabeça voltada para o alto e para o mundo. É ela quem determina os
caminhos. O homem a segue. Quando ele se perde da mulher, sem levantar o olhar,
procura pelo taque-taque dos saltos até encontrar novamente a ponta delicada dos
sapatos e recomeçar a busca. É a mulher quem conduz o homem por caminhos
diferentes. Talvez seja ela quem conduz porque, para as mulheres, de um modo geral, o
amor ocupa um lugar importante em suas vidas. Ela parece conduzir (ou fazer parte de)
seu caminho, muito mais do que acontece com os homens. Maria Rita Kehl (2008, p.
269) comenta que as mulheres, com freqüência, levam o amor para além dos limites do
falo, porque “são portadoras de uma certa desmedida”, acreditam que a dor pode valer a
pena diante de determinados prazeres. Não que a dor seja uma condição para o prazer,
mas que vale a pena enfrentar os riscos da dor para sustentar o prazer que pode vir de
uma relação de amor, por exemplo.
Cada um à sua maneira, com olhares focados em diferentes direções, cria um
caminho próprio na busca pelo “juízo perdido”. O homem desconhece os caminhos por
onde ela vai e talvez ela mesma não saiba o próximo passo. Ela segue diferentes sons e
cores, “ia onde pudesse ver árvores e pássaros e largos pedaços de céu, onde houvesse
panos estendidos no varal” (COLASANTI, 2005a, p. 134). Tudo ao redor é mistério e
descoberta para o homem. A dupla se perde e se redescobre.
Esse novo caminho é construído ao longo do conto, pelo taque-taque diário entre
aquela estranha dupla. O sentimento entre os dois cresce devagar e delicadamente no
percurso da busca. Aquele estranho casal, perambulando aparentemente à deriva,
constrói um vínculo de amor. É como se um se encaixasse no outro, como a princesa e o
rei, de “Entre a Espada e a Rosa”, que constroem juntos uma relação de amizade que
desperta o sentimento de amor. Esse encaixe, como sugere Nasio (1997), é feito hera
que rasteja, sobe e se fixa nas reentrâncias de uma pedra. Um se apega ao outro,
tornando-o seu objeto fantasiado. É nas “frestas” do outro, onde o desejo dele irradia e
excita o amante (sem conseguir satisfazê-lo totalmente), que a fantasia deste se fixa e, a
partir daí, a relação amorosa pode ter início. Nessa fantasia, um introjeta uma parte do
outro. Além de uma pessoa real, o outro passa a ser também uma presença fantasiada e
inconsciente no amante.
Exatamente porque o ser amado não pode satisfazer o amante completamente é
que a busca continua. A satisfação proporcionada é sempre parcial, porque a falta é o
que motiva o sujeito para a vida. Talvez por isso o homem e a mulher, em “De muito
procurar”, tenham permanecido na busca. Eles caminham juntos, embora cada um tenha
um percurso particular. O “juízo perdido” deixou de ser o foco principal diante das
descobertas que eram feitas e do que ainda havia por descobrir. A busca e a falta
continuavam a mobilizar o casal e o encontro de olhares, ao final do conto, é apenas o
início de uma nova “estação” para ambos.
O amor que homem e mulher encontram no conto de Colasanti é despertado na
convivência, tal como em “Entre a Espada e a Rosa”. O taque-taque dos saltos da
mulher, ao mesmo tempo em que guia os passos do homem, é também um som que
cresce no seu coração a cada dia que passam juntos. O sentimento vai crescendo e
culmina com a chegada da primavera. É um novo momento para a vida do homem, é um
sentimento novo que desabrocha e floresce, são novas cores e novos perfumes que se
evidenciam com a chegada da nova estação (com a chegada da mulher). Antes tudo
estava adormecido, por trás do olhar sempre baixo daquele homem, que buscava apenas
as coisas tangíveis. Com a primavera, fase de renovação, o homem parece despertar.
Essa estação é uma fase marcante também nos contos “A Mulher Ramada”, “Doze Reis
e a Moça no Labirinto do Vento” e “Entre a Espada e a Rosa”. Como num rito de
passagem, as personagens femininas florescem com a chegada da nova estação. São
tempos de um desabrochar, de um transformar-se que são experimentados pelas
personagens nesses contos.
A nova estação chega e, com ela, o encontro de olhares dos amantes, que
anuncia o sentimento amoroso. Nesses olhares que enfim se encontram há um
arrebatamento, um juízo que se perde no homem no exato momento em que seus olhos
se fixam nos olhos daquela mulher. O casal avança um no outro lentamente até que o
sentimento de amor se instale. Marina Colasanti (1984) pontua que desejamos avançar
no íntimo do outro por amor e também por amor desejamos trazê-lo para nosso íntimo.
Esse movimento requer tempo, porque precisamos ter certeza de que o outro do qual
nos aproximamos é realmente amável e confiável, embora isso não exclua a
possibilidade de desencontros e desilusões, porquanto o amor é imprevisível.
Quando o homem olha para a mulher naquele início de primavera é como se
enfim reconhecesse o sentimento que tem por ela. E ele reconhece também nela seu
objeto de amor. A mulher é quem o conduz e o leva a também perder o juízo. Bauman
(2004, p. 36) frisa que é isso que o amor faz. Ele destaca o ser amado de todos os outros
e o transforma em “alguém bem definido”. O ser amado é especial, único, não há
ninguém como ele. Entretanto, “transformar um outro num alguém definido significa
tornar indefinido o futuro”. O futuro a dois é imprevisível. O amor parece seguir seu
próprio labirinto e os amantes ficam à mercê das curvas, dos becos sem saída, das
mudanças que o amor produz ao longo do percurso. É aí nos interrogamos ao final do
conto: depois do olhar, o que aconteceu? Seguiram caminhos diferentes? Seguiram
caminhando juntos? Viveram “felizes para sempre” acolhidos por violetas de outras
tantas primaveras? Perderam o “juízo” ou o acharam? E quando chegou o inverno,
como ficaram os amantes? O amor acaba por ser sempre um enigma? São tantas as
possibilidades, são tantos os caminhos. Talvez, pudéssemos ficar com a provocação de
Bauman (204, p.35): “Onde há dois não há certeza”.
A única certeza talvez é de que o encontro é possível. Mas, depois dele, todo o
resto é mistério. O homem, contudo, escolheu adentrar nesse mistério: no mistério do
encontro e no mistério da mulher. Ele deixa os bolsos tão cheios de pequenos haveres e
a solidão de seu quarto para andar com leveza, de bolsos vazios ao lado daquela mulher.
O homem a acompanha por um estranho labirinto que começam a trilhar. É interessante
perceber que cada um segue um ritmo próprio nessa caminhada. O homem anda sempre
de cabeça baixa e a mulher não o força a andar de outro modo, pois foi assim que ele
aprendera a andar. Assim como ela, que anda com cabeça voltada para o alto, buscando
lugares onde possa ver árvores e pássaros, também não é pressionada pelo homem.
Quando dela se perde, não reclama, não reage bruscamente, ele apenas busca
novamente o taque-taque dos saltos. São dois indivíduos que caminham juntos e
saboreiam a caminhada.
Os bolsos do homem agora pendiam vazios. Eram outros os seus haveres, da
ordem do imensurável: uma poça d’água, uma pegada na lama, um caracol. Ele
acompanhava a mulher, mas sua caminhada era individual. As descobertas eram suas. O
contato com o outro não anulava sua individualidade. Mas a partilha era necessária.
Sem ela, ele não teria adentrado nesse labirinto, nem procurado algo que ele nem
suspeitara existir. Sem ela, não haveria esse sentimento novo que impulsionou tantas
mudanças.
E o sentimento de amor nasce e cresce sem dificuldades. Lembrando da história
Tristão e Isolda abordada por Rougemont (1988), permeada por dificuldades,
desencontros, intrigas, dores e separações, no conto em questão não há obstáculos para
o encontro amoroso entre o homem e a mulher. Marina Colasanti, em “De Muito
Procurar”, apresenta uma outra imagem de encontro amoroso. Não há, no conto,
impedimentos para que esse encontro aconteça, nem os amantes criam dificuldades para
sua aproximação. No final, basta um olhar para anunciar a chegada do amor: “Na
grama, colhida agora entre dois dedos, o homem havia encontrado a primeira violeta da
primavera. E quando levantou a cabeça e endireitou o corpo para oferecê-la a ela, o
homem soube que ele também acabava de perder o juízo” (COLASANTI, 2005a, p.
135).
Esse homem que tanto procurava, ao seguir as pegadas de uma mulher que
perdera “seu juízo”, confronta-se com outras descobertas, o que lhe permite deslocar seu
olhar, antes focado no chão, para deixar-se vaguear e descortinar o inusitado. Podemos
dizer que estamos diante de uma experiência reveladora, da ordem do indizível. Nesse
conto, é perceptível a experiência epifânica que algumas vezes atravessa o ser que se
percebe tomado de amor.
O AMOR POSSÍVEL: ENCONTRANDO SAÍDAS NO LABIRINTO DO AMOR
Depois de termos percorrido muitos e intricados corredores, ainda estamos
emaranhados no labirinto do amor. Após cada curva, outro caminho se apresenta e,
depois dele, outra bifurcação, depois, uma nova escolha e, assim, o labirinto sempre
apresenta novas possibilidades e novos mistérios. Marina Colasanti percorre os
caminhos do amor com singular sensibilidade. Constrói e desfaz muitos corredores
amorosos, escolhe as estradas mais longas, as mais desafiadoras e adentra a
amorosidade humana. Ela considera toda forma de amor, toda nuance que o sentimento
pode adquirir e frisa: “amor, aprendi, é vário, como são várias as pessoas”
(COLASANTI, 1981, p. 159). E acrescenta:
amar é bom. Amar mesmo soltamente, sem grudar o amor a um
objeto, feito rótulo. Nada é melhor do que um fio de amor escorrendo
pelo ladrão. Dele, desse fio, desse amor, desse todo, fazem-se belas
paixões (Ibid., p. 166).
Foram algumas dessas paixões, narradas por Colasanti, que percorremos nesse
estudo. Guiados por sua linguagem, seguimos as teias do amor. E como a moça no
labirinto do vento, que desafia seus pretendentes, enfrentamos o desafio de ler e
analisar o lugar do amor em seus contos. Após essa caminhada de tantas discussões
sobre o tema, percebemos que Marina Colasanti também questiona o amor, mesmo
quando o aborda tão poeticamente em seus textos. Nos contos que analisamos,
observamos que a autora circula em torno de muitas perguntas: o que é mesmo o amor?
Ele é um sentimento que cerceia, que aprisiona ou permite que os indivíduos sejam
livres apesar de se amarem? O que somos capazes de fazer por amor? De quantas
provas ou sacrifícios o amor precisa? Existe mesmo um “final feliz” ou um “felizes para
sempre”? Só somos mesmo felizes quando amamos? Todos esses questionamentos
parecem estar implícitos nos contos de Colasanti. E assim como a autora discute esse
“credo amoroso”, outros autores também agregam contribuições a esse debate, como
Jurandir Freire Costa (1998, p. 12), por exemplo, que reforça a importância de se
questionar a crença do amor, que, “como toda crença, pode ser mantida, alterada,
dispensada, trocada, melhorada, piorada ou abolida”. A sugestão do autor “é que
tentemos desfazer o monótono pêndulo que oscila entre a culpabilização dos indivíduos
pelos ‘fracassos’ de amor e a condenação da paixão amorosa como desvario
institucionalizado” (Ibid., p. 12).
Consideramos importante trazer essa reflexão uma vez que ela também permeia
a obra de Marina Colasanti. A visão e os questionamentos da autora sobre a temática do
amor partem da crença amorosa dominante na sociedade ocidental. Em Sem fraude nem
favor – estudos sobre o amor romântico, Costa (1998, p. 13) questiona o “credo
amoroso dominante”, que prega que “o amor é um sentimento universal e natural,
presente em todas as épocas e culturas”, não é controlável pela razão ou pela vontade e
é a condição necessária para que sejamos completamente felizes. Quando aprendemos
que o amor é natural, algo “oferecido pela mãe natureza” (Ibid., p. 13), não podemos
proibi-lo ou inibi-lo porque isso seria antinatural. Se pensamos o amor como algo
natural e inato, acreditamos que ele não pode ser controlado por nossa vontade ou
nossas escolhas. A própria Marina Colasanti (1981, p. 19) reconhece que “o amor [...] é
bem mais do que apenas um jogo de espelhos. O amor, ou melhor o conceito de amor,
obedece a ciclos culturais, históricos”.
Costa (1998, p. 17) afirma que “amamos com sentimentos, mas também com
razões e julgamentos”. Quando amamos, somos levados pelo impulso das paixões, mas
também elegemos aquele que podemos ou devemos amar. Somos levados pela paixão e
escolhemos o ser amado, como o príncipe e a corça-mulher, em “Entre as Folhas do
Verde O”, que escolhem um ao outro apesar de tão diferentes, especialmente a corçamulher que não foge à aproximação do príncipe, deixando-se capturar; como a princesa
e o décimo segundo rei, em “Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento”, quando ela
parece tê-lo escolhido para desvendar o seu desejo; e como o homem e a mulher, em
“De Muito Procurar”, que escolhem um ao outro para caminharem juntos.
Outra questão importante que se apresenta como parte do nosso “credo
amoroso” é o amor como a condição fundamental para encontrarmos a felicidade
máxima. Se assim for, conforme pontua Costa (1998), significa que, sem ele, não somos
completos, não somos realmente felizes. Há “o pavor da solidão, o estigma do fracasso
emocional e a exclusão do mundo dos felizes” (Ibid., p. 147). Em “Verdadeira Estória
de um Amor Ardente” e “A Mulher Ramada”, homem e jardineiro, sofrendo com a
solidão, constroem para si companheiras. A tão almejada felicidade só se anuncia com a
chegada do par amoroso. Entre encontros e desencontros, Colasanti também questiona
essa crença amorosa, mostrando que nem todo amor resulta em completude e felicidade.
Em “Verdadeira Estória de um Amor Ardente”, com o passar do tempo, o tédio se
instala entre o casal e o amor que tenta moldar e aprisionar o outro vai se dissolvendo
feito cera que derrete ao calor do fogo. Em “A Mulher Ramada”, somente quando o
jardineiro permite que a “Rosamulher” floresça é que o encontro amoroso se apresenta
como uma possibilidade. Dessa forma, Marina Colasanti discute o amor e as sutilezas
do relacionamento a dois. Só somos realmente felizes quando amamos? Em “Prova de
amor”, há uma mulher que deixa crescer uma barba em seu rosto para agradar um
homem. Os pelos ferem caminho em sua pele para transformá-la em alguém que não era
e, diante de sua estranheza, o homem vai embora. Se o amor segue o caminho do
aprisionamento e da modificação do outro para atender seus próprios desejos, então ele
se torna desencontro e infelicidade.
O que acontece na relação amorosa é que projetamos nosso desejo sobre o outro,
mesmo sem perceber. Nasio (1997), ao abordar o processo de amor e de formação da
fantasia, esclarece que, quando nos apaixonamos, fazemos do ser amado uma parte
inconsciente de nós mesmos, agregando outras imagens nossas carregadas de múltiplos
sentimentos. O risco desse processo é ficarmos presos às fantasias, perdendo de vista o
outro com o qual estamos nos relacionando, como acontece em “Entre as Folhas do
Verde O”, que tanto a corça-mulher quanto o príncipe não conseguem alcançar o que o
outro deseja realmente; separados pela distância da língua, sem conseguirem se
comunicar, eles ficam presos às projeções de seus desejos. Em “Prova de Amor”, o
homem pede que a mulher “teça” uma barba somente para lhe agradar, quando esse não
era o desejo dela, nem mesmo o dele, considerando que ele a abandona depois de
satisfeito seu pedido. Em “Verdadeira Estória de um Amor Ardente” e em “A Mulher
Ramada”, os personagens masculinos tentam imprimir em suas amadas o formato de
seus desejos, mas, somente neste último conto, o homem consegue compreender e
acolher “Rosamulher” tal como ela é.
Marina Colasanti discute para onde nos levam as escolhas amorosas que
fazemos e como elas são diferentes para homens e mulheres. A autora, em seu livro E
por falar em amor (1984), reflete que homens e mulheres se buscam, se desejam, mas
com finalidades diferentes. Por isso, muitas vezes, acabam se afastando. As mulheres se
abrem mais para o estabelecimento do afeto, do encontro. Isso as assusta, mas as
impulsiona também. Os homens, por sua vez, temem experimentar seu afeto, por medo
de perder o domínio de si mesmos. As escolhas amorosas das mulheres se guiam na
expectativa de uma relação duradoura, antes mesmo de serem fisgadas pelo desejo
sexual. Os homens, movidos pelo sexo, preferem fazer suas escolhas depois da primeira
investida, mas desejam fazê-las sem se sentirem pressionados para um possível
relacionamento.
Nessa dinâmica amorosa dos sexos, percebemos que o amor ocupa um lugar
diferenciado na constituição da feminilidade. Por “amor” ou para obter o
reconhecimento do outro ou para mantê-lo junto a si, a mulher é capaz de muitas
“provas de amor”. Por amor, a corça-mulher se deixa aprisionar, em “Entre as Folhas do
Verde O”. Por amor, a mulher aceita fiar uma barba em seu rosto para agradar seu
amado, em “Prova de Amor”. Por amor, em “Entre a Espada e a Rosa”, a princesaguerreiro passou por uma nova transformação, libertando-se da barba que a impedia de
encontrar seu amado, o jovem príncipe.
Talvez porque o amor “pede” alguns sacrifícios ou porque, para alcançá-lo, os
amantes precisam passar por algumas provas, esse sentimento é comumente associado
ao sofrimento. Tanto Rougemont (1988) quanto Paz (1994) compreendem que o amor
ou a paixão significam sofrimento, porque, acima de tudo, buscamos o “romance”, que
inclui as dificuldades, a intensidade e a instabilidade da paixão. Sendo assim, quando
esse romance acaba, a paixão também se dissolve, como em “Verdadeira Estória de um
Amor Ardente”; quando aquela mulher já não lhe desperta mais o mesmo sentimento –
porque ela também não conseguiria atender às expectativas da idealização desse homem
– ele a destrói, deixando que ela se consuma no fogo de um amor que já tinha chegado
ao fim. Em “Prova de Amor”, diante da barba que a mulher “laboriosamente” tinha
tecido, o homem a abandona porque não a reconhece mais; o doloroso esforço de ser
alguém que não era só trouxe o sofrimento da perda do ser amado. Em “Entre as Folhas
do Verde O”, os amantes sofrem porque não conseguem expressar seu amor, a corçamulher sofre porque não deseja ser mulher e esse desencontro de desejos resulta num
desenlace. Nesses casos, o sofrimento significa separação e perda. Já em “Entre a
Espada e a Rosa”, o sofrimento que permeia a vida da princesa-guerreiro faz parte da
sua jornada heróica, do seu processo de transformação que resultará no desabrochar da
sua feminilidade e no seu encontro com o amor. Marina Colasanti, dessa forma, mostra
que o sofrimento pode também ser apenas resultado das dificuldades encontradas no
caminho, parte do processo de encontro amoroso.
E, por amor, muitas transformações acontecem nos contos, especialmente com
as personagens femininas. Em “Verdadeira Estória de um Amor Ardente”, “Entre as
Folhas do Verde O”, “Prova de Amor” e “A Mulher Ramada”, as mulheres passam por
transformações físicas em virtude do desejo do ser amado. É o que eles demandam que
determina a (de)formação nos corpos de suas amadas. No entanto, em “A Mulher
Ramada”, o jardineiro consegue reconhecer a beleza da “Rosamulher” tal como ela é e
ela pode enfim florescer, seguir seus próprios rumos, encontrar sua própria direção. O
jardineiro aqui se permite vivenciar outro tipo de amor, que não cerceia a liberdade do
outro. Marina Colasanti mostra como é diferente a transformação do feminino que é
conduzida ou vivenciada livremente pela própria mulher. Ela tem a possibilidade de
fazer suas escolhas, de seguir seu caminho e de vivenciar as mudanças e o amor em seu
próprio tempo, como acontece em “Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento” e
“Entre a Espada e a Rosa”. O desabrochar da primavera ou da feminilidade chega em
seu próprio tempo tanto para as princesas destes dois contos, quanto para “A Mulher
Ramada”. O amor, dessa forma, se apresenta como um elemento de transformação nos
contos de Colasanti, especialmente no movimento de construção da subjetividade de
cada mulher.
Os corpos das personagens femininas se modificam para receberem o amor.
Especialmente em “A Mulher Ramada” e em “Entre a Espada e a Rosa”, as mulheres se
transformam e seus corpos desabrocham para o encontro amoroso. Marina Colasanti
(1984, p. 109) enfatiza que:
O corpo é a morada do amor. E sua montada. Do meu amado não
lembro a primeira frase, lembro o estremecimento quando lhe percebi
a largura do pescoço. E querendo oferecer-lhe meus sentimentos, foi
com o corpo que me aproximei dele, o corpo foi de mim o que ele
inicialmente percebeu.
Para a autora, corpo e sentimento estão integrados. Isso significa que amor e
sexo não podem ser dissociados, porque o amor é também a união dos corpos. É
especialmente no sexo que os amantes tentam fazer-se apenas um, embora no momento
do gozo percebam que, de fato, são dois. Betty Milan (1985, p. 56) constata: “o teu gozo
não podia ser apenas o do meu, era outro e me apartava de você”. Entretanto, quando os
corpos dos amantes se unem é também um momento de intimidade e de partilha.
Podemos observar isso em “A Mulher Ramada”, quando, no final do conto, os amantes
finalmente se abraçam e, assim, jardineiro e “Rosamulher” unem seus corpos
amorosamente. São dois corpos diferentes, mas que se encontram no amor. Em “Entre a
Espada e a Rosa”, a princesa-guerreiro passa por uma longa transformação até estar
pronta para receber o amor. Somente quando seu corpo está livre de qualquer
impedimento é que ela pode enfim encontrar-se com o jovem rei.
Marina Colasanti (1984, p. 119) acrescenta ainda que “o corpo do amado não é
somente a casa do seu amor por mim. Ele é também a casa do meu amor por ele”. É no
corpo que os sentimentos dos amantes se expressam. Em “Doze Reis e a Moça no
Labirinto do Vento”, essa transformação física no corpo da princesa não fica tão clara,
mas, para encontrar o décimo segundo rei, ela precisou adentrar na vida adulta; a
“moça” teve que abrir mão do jogo de sedução para tornar-se “mulher”. Isso implica
também num processo de modificação do próprio corpo, porque, se ele não estiver
pronto, o amor também não poderá se consumar.
Em contos como “A Mulher Ramada” e “ De Muito Procurar”, as personagens
femininas são também impulsionadoras de mudanças. Como Diotima, do Banquete, de
Platão (1962), que revela os mistérios do amor a Sócrates, “Rosamulher” mostra ao
jardineiro as possibilidades de um amor que não segue as restrições de uma tesoura, que
reconhece e acolhe o outro do jeito que ele é, assim como a mulher, do conto “De Muito
Procurar”, que conduz o homem por caminhos imprevistos, levando-o a fazer novas
descobertas e despertando-o para o sentimento amoroso.
Marina Colasanti apresenta um feminino forte e determinado em seus contos,
ainda que isso signifique desencontrar-se do amor, como em “Entre as Folhas do Verde
O”, em que a corça-mulher prefere ser somente corça a se manter aprisionada em um
corpo de mulher que não é seu. É um feminino que decide quando e com quem casar,
como em “Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento” e “Entre a Espada e a Rosa”,
ainda que, neste caso, signifique romper com o pai e seguir sozinha pelo mundo afora
até que se sinta pronta para abrir-se ao amor. É um feminino que tem a cabeça voltada
para o alto, que impulsiona o masculino a fazer novas descobertas e, com ele, encontra
um amor primaveril como em “De Muito Procurar”. “Ser mulher”, para Marina
Colasanti e, assim como enfatiza Maria Rita Kehl (1996), inclui inúmeras possibilidades
identificatórias. Para além da maternidade, expandindo seus territórios, ser mulher é
mais do que ser objeto de desejo do homem. A expressão da feminilidade adquire muito
mais liberdade quando a mulher pode ser o que ela é, o que ela deseja, sem ser cerceada
ou moldada pelo outro.
Na perspectiva freudiana, o tornar-se mulher se confundia com o tornar-se mãe.
Através da maternidade, a mulher podia atribuir ao filho o papel de significante de sua
identidade. Segundo Serge André (1987), esse conceito de feminilidade construído por
Freud parte de um modo de pensar masculino. Ele apresentava a mulher como um
enigma, portanto, a feminilidade se constituía como um objeto de pensamento
inapreensível e das mulheres não se podia esperar nada porque elas próprias eram esse
enigma.
O que Kehl (2008) sugere é que o mistério da mulher, em Freud, representa
muito mais um sintoma de recalque do que um impasse teórico. Para a autora, a questão
reside no fato de que a mulher está muito mais próxima do homem do que se pensa.
Kehl (2008, p. 264) entende a feminilidade como “a masculinidade-menos-algumacoisa (o pênis) acrescida de alguma outra coisa (a mascarada, o manejo sedutor da face
sexual da castração)”. A mulher, então, é semelhante do homem, seu irmão, seu igual e
a única diferença entre eles é que a mulher é “também mulher” (Ibid., p. 264, grifo da
autora). Kehl (Ibid., p. 264) explica que:
A manobra a mais que a menina precisa efetuar para reconhecer seu
sexo como igual ao de sua mãe, sem se confundir com ela e sem ter
que necessariamente abandonar as identificações construídas quando
ela ainda era ‘um homenzinho’ – é bem isto o que faz dela,
fundamentalmente, uma mulher. O resto – um estilo que a faça
desejável a partir do manejo da castração / uma narrativa que a faça
feliz a partir do manejo do falo – o resto sempre estará por construir.
Sendo assim, verificando que estamos separados apenas por “mínimas”
diferenças, podemos estar mais próximos de um encontro no amor. A completude, o
resgate da unidade perdida, conforme vemos no discurso de Aristófanes, no Banquete,
de Platão (1962), não é possível. Os amantes são sempre dois, embora insistam na
ilusão de fazer-se apenas um. É o que Maria Rita Kehl (2009, p. 550) também reforça,
quando afirma que o amante não pode “formar um todo indissociável com o objeto de
seu amor”. Mas se ele consegue reconhecer e suportar essa realidade, pode abrir espaço
para que o amor se instale. Marina Colasanti (1980, p. 32), em A nova mulher, apresenta
uma ideia similar à de Kehl, quando enfatiza que
embora o desejo do amante da integração total, para formar em dois
uma única pessoa, a verdade é que somos sempre o outro, e que a
grande harmonia do amor é o entendimento das pulsações do amado –
e nosso – em relação ao universo, entendimento que pode nos
aproximar do uníssono.
A escritora aponta para um entendimento possível entre os amantes, se houver
uma compreensão de que o outro possui uma “pulsação” própria, uma vontade própria,
um corpo próprio, uma vida própria. Entender que somos dois, que possuímos desejos
diferentes e que, por isso, não podemos cercear ou subjugar ou “modelar” o outro de
acordo com nossa vontade é condição necessária para que o amor possa se desenvolver.
Marina Colasanti deixa transparecer, em seus contos, que o amor aprisionado ou
escravizado, morre, sufocado num formato que não deseja ter, como em “Entre as
Folhas do Verde O”, “Prova de Amor” e “Verdadeira Estória de um Amor Ardente”. O
amor de “A Mulher Ramada” e o jardineiro só sobrevive porque o homem compreende
que sua amada precisa ser livre para amá-lo; o amor preso dentro de uma imagem
idealizada não passa de uma ilusão difícil de se concretizar.
Cada amor possui sua própria “pulsação” e cada casal de amantes precisa
encontrar seu próprio caminho. Inevitavelmente, nos contos de Colasanti, esse caminho
passa por um “entendimento” entre o masculino e o feminino. É preciso haver uma
harmonia entre esses pólos não só para que o amor seja possível, mas para que a
feminilidade se expresse livremente. É como uma dança que só funciona no compasso
delicado dos pares: o jardineiro abre espaço para “A Mulher Ramada” e ela “dança”,
expandindo sua beleza, revelando-se mulher; a princesa, em “Doze Reis e a Moça no
Labirinto do Vento”, depois de muitos confrontos no labirinto, convida o décimo
segundo rei para “dançar” e ele desfaz o labirinto que os separa; após muitas “danças”
no campo de batalha e na vida, em “Entre a Espada e a Rosa”, livre dos impedimentos
do corpo, pronta para o amor, a princesa pode finalmente ir ao encontro do seu amado; e
em “De Muito Procurar”, seguindo o “taque-taque” dos saltos de uma mulher que havia
perdido o juízo, um homem ensaia uma “nova dança” por lugares desconhecidos,
arriscando novas descobertas.
É importante perceber também que Marina Colasanti valoriza toda expressão de
amor. Toda relação amorosa vivenciada é significativa na vida do sujeito e, mesmo
quando resulta num desencontro, pode ser produtiva e prazerosa. Ela enfatiza que:
Cada amor é um novo acontecimento. Pode ser circunstancial, preso a
um conjunto de situações momentâneas que ao se desfazer o levará
consigo. E ser assim mesmo ótimo. Pode ser intenso, mas
desencontrado, de um desencontro que aumenta com a convivência e
o tempo, colocando o fim como melhor solução. Pode ser
maravilhoso, aparentemente perfeito, e ir mudando aos poucos, à
medida que nós mesmos mudamos. Pode, apesar de impetuoso,
começar em bases erradas, e mais adiante pedir trégua. Ou pode,
desde o início, estar destinado a ter a duração de uma viagem ou de
um período de férias. Enfim, um amor pode ser maravilhoso,
gratificante, apaixonado, sem precisar ser eterno. (COLASANTI,
1981, p. 22).
Todo amor, com todos os seus impasses, pode ser vivenciado intensa e
prazerosamente. Reconhecê-lo em sua finitude e imperfeição é necessário para
aproveitar tudo o que ele tem para nos oferecer, porque, por melhor que o amor seja, ele
será sempre “insuficiente” para dar conta da nossa falta.
É por isso que o ser amado é aquele que nos excita e nos desaponta. “Nosso
amado é nossa carência”, ressalta Nasio (1997, p. 59), porque o desejo nunca se satisfaz,
já que somos seres em falta. Por isso, continuamos buscando o amor nesse imenso
labirinto da vida. “De muito procurar”, continuamos emaranhados nos caminhos do
amor e na trilha de palavras construída por Marina Colasanti. Foi seguindo essa trilha
que percorremos esse labirinto amoroso. Como o homem, em “De Muito Procurar”, que
atentamente busca por pequenos objetos perdidos, encontramos partes de um Banquete
servido há mais de 300 a.C., rastros de um amor-paixão e fragmentos de muitos outros
discursos amorosos. Fomos reunindo essas peças como quem monta um quebra-cabeça,
mas a imagem ainda estava inacabada. Procuramos um pouco mais, atentos, caso
encontrássemos algum “juízo perdido” pelo caminho e adentramos um corredor
freudiano, seguimos uma moça chamada Maria Rita Kehl – além de outros tantos
moços e moças que cantam sobre o amor – e encontramos jogos de sedução, olhares
amorosos e uma feminilidade desabrochando lentamente como a primeira violeta da
primavera. Reunimos então mais algumas peças para nosso quebra-cabeça, mas enfim
percebemos que o jogo se fecha apenas provisoriamente. Ainda que procurássemos,
muito e muito ainda haveria para ser encontrado, porque o amor é múltiplo e os
discursos em torno dele também o são. Nenhum dos caminhos é o melhor ou o mais
correto; eles apenas nos conduzem para diferentes lugares e para diferentes sentidos e
percepções. Escolhemos algumas direções – tendo sempre como bússola os contos de
Marina Colasanti – e chegamos até aqui. Fim desse labirinto, mas o começo de tantos
outros; muitas contribuições ainda serão feitas em torno da temática do amor, porque
esse sentimento ainda mobiliza muitas de nossas faltas e desperta nosso interesse,
aguçando nossa curiosidade.
Ao final desse percurso, a bússola ainda aponta para Marina Colasanti; ela é a
moça do nosso labirinto amoroso, onde o vento dispersa e reúne discursos, sopra na
direção de encontros e desencontros, incitando-nos a refletir sobre a experiência
amorosa. É sua escrita que transforma cada história de amor num acontecimento único e
cada conto num complexo labirinto a ser percorrido.
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