Dossiê Temático Biblioteca da Escola Secundária D. Sancho I “Na época em que a caixa me veio parar às mãos, já eu era um voraz camiliano. O universo do autor de Amor de Perdição interessava-me pouco. Atraía-me (ainda me atrai) a riqueza vocabular. Camilo Castelo Branco foi o primeiro escritor de língua portuguesa a viver em exclusivo da venda dos seus livros. Um camiliano, em comparação, por exemplo, com um queirosiano, goza de um proveito insuperável: pode desfrutar do seu escritor preferido durante meses consecutivos, eventualmente anos, sem jamais repetir um título. Ao suicidar-se, em 1890, cego, desesperado, Camilo havia escrito e publicado para cima de duzentos e sessenta diferentes exercícios literários, entre romances, novelas e peças de teatro. A necessidade, já se sabe, aguça o engenho. A agitada vida do escritor, oriundo de uma família da aristocracia rural, mas a quem os desaires da vida forçaram a conviver com todo o tipo de gente, explica, em parte, a riqueza do seu vocabulário. A insaciável curiosidade que o caracterizava também terá ajudado. Não é difícil imaginá-lo a recolher regionalismos e expressões caídas em desuso junto de pescadores, na Póvoa do Varzim, de lavradores, em Viseu, ou de salteadores, nos estabelecimentos prisionais por onde passou. Camilo Castelo Branco fazia sucesso entre o sexo oposto. Uma vulgaridade — já o meu pai pensava assim. Difícil é um homem encontrar uma mulher diante da qual todas as restantes pareçam uma redundância. Camilo teve sorte. Encontrou-a. Chamava--se Ana Plácido e nas poucas fotografias que chegaram até nós exibe um rosto largo, branco e apático, como um pires. Custa a crer que alguma vez a beleza a tenha visitado. Ia nos dezasseis anos, e ainda era solteira, quando o atarefado escritor a conheceu. Camilo preferiu vê-la casada para depois a seduzir. Há-de parecer-vos uma canalhice, e talvez tenha sido, mas revelou-se, a médio prazo, uma decisão bastante acertada. O marido, um «brasileiro», como se chamava na época aos emigrantes torna-viagem, ricos ou quase ricos, após anos a juntarem tostões em terras de Vera Cruz, chamava-se Manuel Pinheiro Alves, tinha quarenta e três anos, e mandara construir uma belíssima casa senhorial em São Miguel de Ceide, Famalicão, no Norte do país. Em i86o, o escritor raptou a amada. O «brasileiro» coçou a ampla testa, enfastiado, e apresentou queixa à justiça. Ana não demorou a ser presa. O amante escapou, mas por pouco tempo. A condenação veio a revelar-se proveitosa. Em primeiro lugar; o casal atraiu a geral simpatia do público, comovido por um drama que parecia arrancado às páginas chorosas de uma novela do próprio sedutor aprisionado. Em segundo lugar, forneceu, é claro, material para várias. Em terceiro lugar, foi na prisão que Camilo conheceu José Teixeira da Silva. O marido de Ana morreu poucos anos depois de o casal ser libertado, e este pôde mudar-se para a casa de São Miguel de Ceide. 1 Dossiê Temático Biblioteca da Escola Secundária D. Sancho I Voltemos ao encontro de Camilo com Zé do Telhado. O escritor, como seria de esperar, aproximou-se do bandido. A figura desiludiu-o: «Vulto de romance não o tem, porque neste país nem se completam ladrões para o romance», escreveu nas Memórias do Cárcere. Nas linhas seguintes denuncia a natureza predatória do pai e avô de Zé do Telhado: «Seu pai era o famigerado Joaquim do Telhado, capitão de ladrões, valente com as armas, e raio devastador em franceses, que ele matava, porque eram franceses, e porque eram ladrões, posto que, na qualidade de membro da nação espoliada, o senhor Joaquim chamasse somente a si o que era fazenda nacional. Um tio-avô de José Teixeira já tinha sido salteador de porte, e infestara o Marão durante muitos anos. Se arrepiássemos carreira na linhagem do senhor José do Telhado, iríamos encontrar-lhe um avoengo em Roma, com uma sabina roubada no colo.» É Camilo quem nos conta que, fugindo a um amor contrariado, Zé do Telhado se alistou no segundo regimento de lanceiros, participando, em 1837, nos combates de Chão da Feira e de Ruivães. Segundo o que o próprio contou ao escritor; distinguiuse pela fleuma frente ao perigo: «Lá ouvi a cantiga das primeiras balas, e algumas me queimaram o cabelo, e vinham dizer-me ao ouvido que estivesse sossegado. O barão de Setúbal disse-me uma vez que choviam balas; e eu mostrei-lhe a lança, e disse: Cá está o guarda-chuva, meu general: deixe chover!» A transição de herói para bandido foi rápida, confirmando a minha suspeita de que a natureza de ambos pouco difere. No seu testemunho, Camilo desenrola a longa lista dos crimes e das bravatas de José do Telhado, até à sua prisão, condenação e degredo. Na segunda edição do livro, acrescenta uma nota: «Os jornais têm contado façanhas de José Teixeira do Telhado contra a negraria. O comércio de África deve-lhe muito, e espera muito mais daquele braço de ferro, e sede de sangue. Os pretos é que pagam os agravos que os brancos lhe fizeram cá. Se José Teixeira for esperto, pode morrer, pelo menos, rei daqueles sítios.» O escritor manteve-se em contacto com o criminoso após o degredo deste para Angola. As cartas na minha posse, dispersas no tempo, entre 1861 e 1874, sugerem que Camilo terá trocado intensa correspondência com José do Telhado. Publiquei, há muitos anos, uma breve comunicação sobre estas cartas numa revista da minha especialidade. Esforcei-me, nessa época, por encontrar algumas das cartas perdidas. Pretendia publicá-las em livro. Desisti. Esqueci-me, fui-me esquecendo, de José do Telhado e da sua relação com Camilo Castelo Branco. Então Iara entrou em minha casa com a novidade dos neologismos. Uma noite despertei de sopetão, assustando Fafnir, que dormia enroscado aos pés da cama. In “ Milagrário pessoal”.Agualusa, José Eduardo, Editora D. Quixote 2