Lumina - Facom/UFJF - v.4, n.1, p. 45-56, jan./jun. 2001 - www.facom.ufjf.br JOÃO DO RIO Atuações do Corpo-Viajante Edmundo Bouças* > Como João do Rio - nos relatos acerca das quatro viagens que realizou à Europa - atiça modalidades de escrita que deslocam a literatura de panegírico, emblemática do escritor-viajante da Belle Époque, emitindo sintomas modernistas de desvelamento nacional. Jornalismo - Literatura – Modernidade > Based upon the reports on his four trips to Europe, reproduction of the way João do Rio teases manners of writing that push away the litterature of panegyric of the traveller-writer of the Belle Époque, leading to modern symptoms of revealing the nation. Journalism - Litterature - Modernity No ensaio Viagens reais, viagens literárias: escritores brasileiros na França1, Sandra Nitrini lembra que durante a Belle Époque a tradição cultural da prática de viagem à Europa voltou-se para uma atração pelo luxo e luxúria de Paris, gerando narrativas – como as traçadas por Theo Filho (365 dias de boulevar), Tomás Lopes (Corpo e alma de Paris) e José Augusto Correia (Paris Luz, Paris Trevas) – que tematizam uma “literatura de viagem epidérmica, caracterizada por descrições superficiais e paisagísticas”, de modo geral comprometida em louvar a capital francesa como “modelo, mito e meta”, conforme aponta Jorge Schwartz, ao refletir sobre a experiência de autores latino-americanos, “cosmopolitas de bagagem”2 das primeiras décadas do século. Estimulados pela ressonância dessas questões, percebemos o interesse de proceder a um exame dos textos distribuídos por João do Rio em livros, artigos na imprensa, conferências e cartas, contendo relatos acerca das quatro viagens que realizou à Europa. Como se sabe, a literatura brasileira do início do século XX – dramatizando as poses da modernização – consolida na obra de João do Rio um acabamento altamente representativo. Pelo remake da estética decadentista, o escritor absorveu marcações que, ao nortearem o ingresso de seus textos nos domínios teatrais postulados pelo dandismo, procuraram fazer com que o cenário renovador da capital desdobrasse na escrita uma encenação paralela. Nessa dobra, João do Rio enfoca as transformações da cidade, diante do script por meio do qual a sociedade imaginava absorver as representações do moderno e do cosmopolita na percepção do espaço urbano decidido de forma cênica ou teatral. Tais posturas o autor referendaria nos artifícios com que textualizou as ribaltas do próprio teatro, na superposição de suas muitas máscaras, nas atuações camaleônicas com que expandiu para o interior do espaço ficcional a vertigem sofrida pelo Rio de Janeiro em face da cirurgia levada a termo por Pereira Passos, que pretendeu instituir nos trópicos uma versão da Paris reformada por Haussmann3. Ao incorporar as inflexões cenográficas desse cosmopolitismo, João do Rio não poderia deixar de responder às rubricas que requisitavam as modalidades modernas de se exibir como cidadão do mundo, destacando nas figurações do viajante uma prática em consonância com a fisionomia da cidade, ela própria uma instância confirmadora da aventura do novo. Na análise dos roteiros de viagem cumpridos por alguns de nossos autores no início do século, Brito Broca4 considera o cosmopolitismo visceral de João do Rio afetado pelos sintomas que nutriam o vício de uma romaria indefectível a Paris. Certamente diversos textos do escritor corroboram os reclames formulados pela galomania da época. Inúmeras Lumina - Facom/UFJF - v.4, n.1, p. 45-56, jan./jun. 2001 - www.facom.ufjf.br de suas narrativas esmiuçam contrapontos entre a provinciana cabeça urbana do país5 e a cabeça luminosa do mundo, enredando um evidente encanto pela capital francesa, metrópole da arte e da moda. Por outro lado, de acordo com pistas levantadas por Raúl Antelo, podemos considerar que os relatos das viagens de João do Rio atiçam uma performance ambígua (ou contraditória), capaz de afrontar a literatura de panegírico que endossava a hegemonia de Paris como emblema do viajante da Belle Époque. Raúl Antelo divisa no horizonte da experiência de João do Rio no estrangeiro procedimentos de escrita que perfilam um comportamento proto-modernista, destacando a antecipação do “juízo oswaldiano”6 com que o escritor carioca abre as crônicas de Portugal d’agora: “O homem que viaja é o ser dominante do momento universal. É preciso ser o homem que viaja”. O entrecho desse “olhar transitivo”7 leva o crítico a reconhecer em João do Rio um corpo-viajante que desbrava signos de repatriamento: “... para o cronista, viajar ainda é a melhor escola de patriotismo”8. Tal leitura corre paralela ao campo desdobrado por Jorge Schwartz, em As vanguardas latino-americanas, ao observar Oswald de Andrade redescobrindo o Brasil em Paris, indicação que arremata diretamente os comentários de Pierre Rivas, em Paris como capital literária da América Latina9, ao examinar a experiência do détour parisiense como revelação do escritor da periferia: o afastamento que favorece o desvelamento nacional. No consagrado artigo “Quando o brasileiro descobrirá o Brasil?”, publicado na Gazeta de Notícias, em 6 de agosto de 1908, João do Rio critica a ignorância do brasileiro diante das questões nacionais, mostrando como a dependência e o interesse pela realidade européia abastecem nosso desconhecimento das coisas nativas. Tal artigo anunciaria a intenção do autor de verificar em suas viagens a possibilidade de redescobrir lá fora o Brasil, de exercitar no interior dos próprios textos novas rotas do reenraizamento? De acordo com indicações de R. Magalhães Júnior10, a primeira viagem de João do Rio à Europa desdobrou-se do interesse imediato por parte da Gazeta de Notícias – jornal para o qual o cronista trabalhava – de fornecer aos integrantes da numerosa colônia lusitana no Rio de Janeiro informações mais diretas sobre a realidade de Portugal, de modo a esclarecer as notícias desencontradas a propósito dos fatores que sugeriam a precipitação de um clima satisfatório à proclamação da República naquele país. O traçado da viagem pode ser acompanhado a partir dos artigos que João do Rio enviou à imprensa desde o seu embarque no porto do Rio de Janeiro, em 2 de dezembro de 1908. Originalmente, trata-se de um deslocamento que requisita as investidas do repórter, as atuações do jornalista. Porém, desde as primeiras impressões, salientando o clima a bordo do paquete Araguaya da Mala Real Inglesa, percebe-se um regime textual que aponta para uma espécie de journal de bord, convocando o apetite do escritor-viajante. É possível dizer que muitos desses relatos assumem uma estrutura compósita em que a viagem real e a viagem literária se confundem. Torna-se muitas vezes difícil verificar onde termina a reportagem no sentido documental e começa a narrativa no sentido literário. Certos registros contaminam a entonação do repórter assumindo um lugar fronteiriço, entre o flagrante jornalístico e o entrecho que aponta para uma certa disposição de engendrar recursos da própria narrativa, traço que evoca os deslizamentos com os quais o escritor dimensiona os ditames da crônica como gênero híbrido apto à apreensão do semovente, atento à captação do cotidiano da viagem, às oscilações de um olhar em trânsito pelas variantes geográficas e culturais das cidades. Desde o momento em que aporta em Lisboa, João do Rio endereça suas notas à construção de uma cartografia eminentemente guardiã de fabulações da subjetividade. Nas Lumina - Facom/UFJF - v.4, n.1, p. 45-56, jan./jun. 2001 - www.facom.ufjf.br palavras de J. Carlos Rodrigues, João do Rio “apaixonou-se de tal modo por Lisboa que isso marcou sua vida pessoal e profissional daqui por diante”11. Segundo Antelo, a passagem por Portugal facultaria ao escritor carioca uma experiência de reencontro, que pode ser classificada como “retorno à utopia de uma felicidade primigênia”12. Ativando os impulsos do flâneur, João do Rio aparelha seus registros sobre Lisboa a partir de deambulações que, inicialmente, buscam permear o ambiente pitoresco do Chiado, os recortes arquitetônicos do Castelo de São Jorge, os contornos esculturais do Mosteiro dos Jerônimos; mas que, ao se estenderem pelo baixo mundo da Alfama e da Mouraria, percorrem casas de fado comprometidas com a prostituição e o ciganismo, impulsionando a concretização de textos cujas tramas mostram-se bastante próximas das investidas de suas narrativas pelo submundo carioca, que, de um lado, pinçam o interesse decadente pela perversidade e, de outro, vislumbram os componentes da miséria urbana, contracenando a contracorrente dos ideais de civilização. João do Rio manifesta o prazer de reconhecer no Porto, como ele diz, “ruas evidentemente mães da antiga rua da Carioca”, expondo um tratamento textual que procura atender às sondagens de uma memória afetiva, enquadrando as terras lusitanas a partir de uma moldura idílica de visitação às fontes. Ao visitar o Douro, o Minho, a Beira, o escritor menciona a satisfação que o campo português proporciona à sua “vida febril de degenerado Homem da Cidade”, esclarecendo que suas passadas não circunscrevem os parâmetros externos do “viajante apressado”, do clássico turista “de Baedecker em punho”, mas do homem arrebatado por uma “secreta simpatia do Destino”. Portanto, a relação de João do Rio com Portugal deflagra situações de deslocamento que afetam o contexto da exagerada e dependente francofilia da Belle Époque. Como o próprio autor observa na apresentação de Fados, canções e danças de Portugal, produzida em Nice, no mês de março de 1909, mostrando que o seu convívio com a memória lusitana destoa das noções de civilização e de pátria praticadas pelos “snobs” e “snobinnetes” freqüentadores dos salões cariocas. No momento em que a modernização da cidade conclama – pelas miragens do progresso – uma evidente ordenação anti-lusa, mostrar-se simpatizante do propósito de fortalecer os laços com o Antigo Reino equivalia, indiscutivelmente, a construir um discurso provocador. Diante dos diagramas jacobinos desse contexto, como interpretar as indicações condensadas por João do Rio na exposição que faz de seu trabalho em Portugal d’Agora, “o único livro de um brasileiro sobre Portugal e de um brasileiro que, certo do futuro de sua pátria, ama fervorosamente Portugal”? Como é notório, os textos de João do Rio alinham cidade e escrita numa relação indissociável, revelando o comportamento de um ser empenhado na incorporação dos ícones de sua época. Através dessa esteira, o autor pretende conferir as marcas européias da visualidade citadina. Assim, suas anotações de viagem traduzem um exercício atento a detalhes que refinem a apreensão do modus vivendi urbano, a avidez por discorrer sobre ruas, boulevares, praças e avenidas. Num investimento paralelo, percebemos que inúmeros registros evidenciam o interesse de João do Rio em ampliar o próprio repertório cultural e artístico, reconhecendo na viagem uma atribuição dupla: “as viagens repousam e educam”. Prisma que requisita explanações como as que tece diante dos quadros de Gustave Moreau, do túmulo de Oscar Wilde no Père Lachaise, das esculturas gregas do Louvre, da apresentação de Isadora Duncan no Gaité-Lyrique, sugerindo passadas que credenciam o tradutor de culturas, como concebe Sylvia Molloy13. Lumina - Facom/UFJF - v.4, n.1, p. 45-56, jan./jun. 2001 - www.facom.ufjf.br Em Paris, naturalmente além da tourné boêmia por diversos cabarés de Montmartre, o escritor não deixa escapar a oportunidade de medir a pulsação da própria escrita diante de suas matrizes decadentistas. Revelando o desejo de decalcar na paisagem original os acentos de Huysmans e Lorrain, João do Rio consolida artigos sobre o bas-fonds parisiense, mobilizados por orientações do tipo: “Para conhecer uma cidade vale conhecer a camada alta e a camada baixa. A média é perfeitamente inútil e desinteressante”. Nesses relatos, a dobradura que literaliza o texto é de tal maneira consistente que chega a introduzir figuras fictícias, como a do apache Lulu la Brosse, com quem o escritor diz ter percorrido a pé os “lugares sinistros, os banhos de vapor baratos, as maisons louches, os bares macabros”, junto ao Sena, e a de Olegário Pradal, convidado a atuar como parceiro de sua flânerie pelas ruas de Nice. Como ouvimos de Luiz Edmundo14, o modismo das conferências no Rio de Janeiro da Belle époque favoreceu à elite letrada instituir um espaço propício à explanação de suas impressões de elite viajante, especialmente das tão aplaudidas peregrinações parisianas. Poucos dias após o regresso de sua primeira viagem à Europa, João do Rio apresentou o que poderíamos chamar de um “relatório mesclado” sobre sua passagem por Paris. Ao longo da conferência “O figurino”, o escritor parece caricaturar o tempo de sua estada na Cidade Luz, ao enlaçar seus passos com os de F. de Croisset, Ernesto La Jeunesse, Pierre Loti, Montesquiou de Fezansac, enfatizando um convívio, evidentemente irreal, com figuras que naquela sociedade notabilizaram-se pelo dandismo. A segunda viagem transoceânica de João do Rio teve como projeto original o compromisso de levantar dados sobre o jornalismo europeu, com vista à criação de “um vespertino de feitio moderno”, que seria concretizado em A Noite. Em grande parte, os textos que relatam os cinco meses dessa nova estada na Europa foram recolhidos numa espécie de reportagem epistolar, procedente de cartas enviadas especialmente a Irineu Marinho e a Medeiros e Albuquerque. Nos registros dessa viagem, percebemos que João do Rio procurou dar destaque às suas impressões sobre a Itália, país que o escritor estaria visitando pela primeira vez. As impressões são de tal modo significativas que encaminham a promessa de um livro sobre a terra de D’Annunzio, o Supremo, um de seus modelos literários: “Levo notas de um livro, que será o mais interessante de quantos se tem escrito sobre a Itália”. O impacto provocado por Roma parece revigorar no escritor carioca as lições recolhidas de Walter Pater e o interesse pela arte clássica: “... os dias passo-os na contemplação dos mármores dos museus”. Suas observações diante dos monumentos históricos e da paisagem italiana ordenam um esteticismo que recolhe a imagem de Florença como “uma grande casa de ourives artistas”, mapeando um percurso descritivo que tem culminância em Veneza, “terra cenográfica”, onde descortina o clima propício para escrever o Prefácio à sua tradução de Intenções: “... senti que em nenhuma outra cidade poderia falar de Wilde”. Na compreensão de João do Rio, a obra do escritor irlandês fez-se gêmea dos deslizamentos de Veneza, “a pátria das máscaras”, assim, pontuando afinidades entre o autor de The truth of masks e a “cidade movediça”, o viajante discorre sobre o cenário adequado para começar a tradução de O retrato de Dorian Gray. Em sua terceira viagem à Europa, João do Rio articula um roteiro bastante distinto dos desdobrados por suas visitas anteriores. Segundo alguns estudiosos, as descrições desse trajeto fariam parte de um livro planejado pelo escritor sob o título Impressões de viagem. Percebemos que tais apontamentos expandem um olhar que não procura apenas a novidade, no sentido aventureiro da viagem, como diria Sandra Nitrini, mas o olhar que pretende ratificar no real o contorno do imaginário, o que resulta, evidentemente, em expressões que Lumina - Facom/UFJF - v.4, n.1, p. 45-56, jan./jun. 2001 - www.facom.ufjf.br alternam euforia e desapontamento. Nesse percurso – que cumpre passagens por várias cidades da Alemanha e monta, entre outras, incursões por Atenas, Istambul, Beirute, Jerusalém e Cairo – são freqüentes as situações que desencadearam no viajante lembranças saudosas do Brasil. Em alguns momentos, fazendo vibrar um sentimento que o autor nomeia “minha saudade patriótica”, essas lembranças são ativadas pela surpresa de deparar com a presença da música popular brasileira em lugares tão distantes, tais como as noites em que ouve, “sob a égide da Acrópole”, uma orquestra executar “Vem cá, mulata”, ou, em Constantinopla, uma sanfona tocar “um estribilho carnavalesco”. Atendendo diretamente a um convite feito pelo jornal O País, a última viagem do escritor à Europa teve como propósito cobrir a Conferência do Armistício em Versalhes. Diversos críticos mencionam a marcante atuação jornalística de João do Rio, que escreveu cerca de oitenta reportagens, concentradas em três volumes, com mais de oitocentas páginas, enfocando as mudanças do cenário europeu provocadas pela Grande Guerra. Na opinião de Raimundo Magalhães Junior, nessas reportagens, mais que as impressões pessoais, podemos recolher “o espelho do pensamento do mundo ocidental no momento”. Contudo, apesar do compromisso de cobertura jornalística ou documental, diversos segmentos dessas notas não excluem as atuações do cronista-mundano, efetivamente empenhado em mandar notícias sobre o que se passa tanto no palco como nos bastidores da Conferência da Paz. Com especial habilidade, João do Rio disponibiliza recursos para registrar suas andanças pelo Cercle Inter-Allié no Faubourg Saint-Honoré, suas idas ao palácio da condessa de Béarn, suas visitas a celebridades, constituindo textos que parecem armar um contraponto com as anotações de sua ida a Bruxelas, para entrevistar o rei Alberto e o prefeito Adolphe Max, ou a Roma, para acompanhar a passeata pela anexação da cidade de Fiume. Para Raúl Antelo, João do Rio teria absorvido de Enrique Gómez Carrillo não apenas o jogo adandinado de temas e situações wildianas, mas, especialmente, a paixão urbana, as aspirações de escrever as urdiduras da cidade moderna, reduplicando as irradiações do deslumbramento cosmopolita com as quais o escritor hispano-americano apresentou-se como um viajante impenitente. Na compreensão de Amancio Sabugo Abril15, a obra de Gómez Carrillo desdobra a curiosidade do escritor periférico no esforço de confirmar o cidadano del mundo como viajero por el mundo. Procedimento que levou Unamuno a registrar : Carrillo es un curioso, un hombre que percorre paises y tierras a la busca de nuevas sensaciones, de novedades en fin. Em diversos momentos, João do Rio recorda a imagem de Carrillo viajero por el mundo, percebendo os atributos pelos quais a crítica é levada a considerar que o melhor da produção literária do escritor guatemalteco provém exatamente das crônicas de suas viagens, reunidas em livros como La sonrisa de la esfinge, El Japón heróico y galante, La Grecia eterna, De Marsella a Tokio, Vistas de Europa, Sensaciones de Egito, la India, la China y el Japón, El encanto de Buenos Aires. Assim como A alma encantadora das ruas trilha as rotas de El alma encantadora de Paris, diversos pontos dos relatos de viagem de João do Rio seguem contornos decadentistas emoldurados pelas viagens de Gómez Carrillo. Seguramente, João do Rio recolheu do cronista de Vistas de Europa dispositivos textuais que estimulam os ensaios modernos do escritor-viajante. Satisfazendo seus próprios anseios de persona cosmopolita, João do Rio rememora Carrillo, ao sintetizar o movimento do homem que viaja nas inflexões de um verbo único: partir. “O único verbo realmente delicioso de todos os dicionários. (...) Partir é a aventura, é o aceno do novo”. Esse aceno do novo conclama a experiência do corpo na aventura da Modernidade. Mas até que ponto é preciso ser o Lumina - Facom/UFJF - v.4, n.1, p. 45-56, jan./jun. 2001 - www.facom.ufjf.br homem que viaja para ler a fragmentação do corpo e a homogeneização das cidades modernas? Como adverte Guedes Veneu16, a obra de João do Rio apreende a tensão do progresso metropolitano como uma “utopia ambígua, ao mesmo tempo sedutora e destruidora como As flores do Mal de Baudelaire”. Esse enfoque é igualmente destacado por Mônica Pimenta Veloso17, ao verificar que João do Rio habilita como contraparte de sua admiração pelos sinais do progresso uma escrita voltada para um olhar consternador, que desnuda o horizonte de perdas provocado pela modernização. A herança baudelairiana de João do Rio notifica o arremesso decadentista de sua escrita, como menciona Orna Messer Levin18, reconhecendo nas figurações do dandismo tropical do escritor uma performance feita em nome da individualidade vitimada pelo progresso. Em Vida vertiginosa, João do Rio ilustra a nevrose a partir da qual o sujeito se vê fragmentado pelos aparatos da cidade moderna. No repasse do dandismo decadentista, o escritor dramatiza a vertigem do corpo atravessado pela grande cidade, mostrando o labirinto da metrópole que, nas palavras de Renato Cordeiro Gomes19, não dimensiona o espelho que confirme a identidade do corpo inteiro. Assim, até que ponto, no relato do corpo-viajante, João do Rio reporta a resistência crítica do dandy ao espaço que anula os vestígios do indivíduo na multidão? Em diversos relatos de sua última viagem à Europa, João do Rio faz comparecer um olhar melancólico na observação das paisagens de um tempo afetado pela guerra, mas um olhar igualmente empenhado em recolher nas “cintilações do progresso” o crepúsculo de uma época: “...criaturas de sensibilidade, podeis ter a certeza: parou a divina sinfonia da alegria de Paris”. Durante a viagem de volta, João do Rio produziu o conhecido texto “O Brasil após a guerra”, apresentado como conferência na Faculdade de Direito de Pernambuco, por ocasião da escala do navio Cuiabá, na cidade do Recife, em 6 de agosto de 1919. Nesse texto, ele critica os pais brasileiros que mandam educar os filhos no estrangeiro “para fazê-los pedantes, alheios à sua pátria (...) a espera dos transatlânticos para cair em êxtase admirativo diante do que vem de fora (...) Como ir adiante, quando julgamos mal tudo que é nosso?” Que intenções levam o escritor a propor nessa conferência uma espécie de intertexto com o artigo “Quando o brasileiro descobrirá o Brasil?”, publicado, exatamente, onze anos antes, às vésperas de sua primeira viagem à Europa? Que signos encadeiam o viajante entre o texto-arremate e o texto-prefácio dessas quatro viagens? Percebemos que nas anotações desses deslocamentos o escritor carioca não engendra esboços ou rascunhos que comprometessem seus anunciados livros de viagem com as configurações de uma literatura epidérmica ou de panegírico. Ao contrário. Nos textos que relatam suas passagens pela Europa, João do Rio fez com que a lente do cronista filtrasse a mirada do repórter, nutrindo o desejo de tecer a fala de um narrador ambíguo, ao arregimentar comentários que esgarçam os limites entre o eu-civil e o eu-da-escrita, tramitando a ficção de segmentos que mobilizam uma atitude desconstrutora do contorno entre “viagem real e viagem literária”20, emitindo jogos intercalados entre o “cosmopolita de bagagem e o cosmopolitismo livresco”21. Podemos dizer que as premissas desses relatos – protocolados pelo alçamento concreto do corpo-viajante – encampam a disposição do autor em conferir os recursos decadentistas da própria escrita, desafiada a cruzar fronteiras que confirmassem o visto de seu passaporte para a Modernidade, desdobrando “o détour europeu como busca para o retour a si mesmo”22, numa singular experiência de repatriamento. Lumina - Facom/UFJF - v.4, n.1, p. 45-56, jan./jun. 2001 - www.facom.ufjf.br Notas * Doutor em Poética (UFRJ). Professor e coordenador do Curso de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (UFRJ). Ex-pesquisador-visitante na Università degli Studi di Roma “La Sapienza”. Líder dos Grupos “Estéticas de fim de século” e “Seminário Permanente de Teorias Contemporâneas”, (Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil/CNPq). 1. NITRINI, Sandra. “Viagens reais, viagens literárias: escritores brasileiros na França” In: Literatura e sociedade. São Paulo: 1998, n. 3, p. 51/61. 2. SCHWARTZ, Jorge. “A cosmópolis: do referente ao texto”. In: Vanguarda e cosmopolitismo. São Paulo: Perspectiva, 1983. 3. Ver CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 95. 4. BROCA, Brito. A vida literária no Brasil 1900. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960, p.98. 5. Ver BENCHIMOL, Jaime Larry. “Os deserdados da urbe renovada”. In: Pereira Passos: um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1990. 6. ANTELO, Raúl. João do Rio: o dândi e a especulação. Rio de Janeiro: Taurus-Timbre, 1989. p. 82. 7. ______, p. 80. 8. ______, p. 83. 9. RIVAS, Pierre. “Paris como capital literária da América Latina”. In: CHIAPPINI, Ligia e AGUIAR, Flávio Wolf de (orgs.). Literatura e história na América Latina. São Paulo: EDUSP, 1993, p.97/114. 10. MAGALHÃES Jr., Raimundo. A vida vertiginosa de João do Rio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.93. 11. Grande parte das informações acerca das viagens de João do Rio à Europa recolhemos do trabalho desenvolvido pelo jornalista e pesquisador João Carlos Rodrigues em João do Rio: uma bibliografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. 12. ANTELO, 1989: 86. 13. MOLLOY, Sylvia. “Decadentismo e Ideologia: Economias de desejo na América Hispânica finissecular”. In: CHIAPPINI, Ligia e AGUIAR, Flávio Wolf de (orgs). Literatura e história na América Latina. São Paulo: EDUSP, 1993, p.13/27. 14. LUIZ EDMUNDO. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Conquista, 1957, v. 3. 15. SABUGO ABRIL, A. “Cosmópolis”. In: Cuadernos hispanoamericanos. São Paulo : Abril,1986, n. 430, p. 182. 16. VENEU, M. G. O flâneur e a vertigem: metrópole e subjetividade na obra de João do Rio. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1987. 17. VELLOSO, Monica. As tradições populares na Belle Époque carioca. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1988. 18. LEVIN, Orna Messer. As figurações do dândi : um estudo sobre a obra de João do Rio. Campinas: UNICAMP, 1996. 19. GOMES, Renato Cordeiro. João do Rio. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996. 20. NITRINI, 1998: 51. Lumina - Facom/UFJF - v.4, n.1, p. 45-56, jan./jun. 2001 - www.facom.ufjf.br 21. SCHWARTZ, 1983: 26. 22. RIVAS, 1993: 98.