ECOCIDADES Esboço de idéias-sementes para um Projeto de Desenvolvimento Urbano Integral 1. Referência Teórica: o Socialismo Democrático. 2. Definições: Socialismo = Sociedade como sujeito do seu próprio desenvolvimento econômico e tecnológico, social e humano. Tal condição implica a emancipação do trabalho humano, seu saber e sua criatividade. Estado como suporte subsidiário para o empoderamento da sociedade para exercer essa função de sujeito do seu próprio desenvolvimento. Sociedade entendida como sociedade civil, constituída sobretudo por jovens e adultos trabalhadores (atuais ou jubilados), desde as suas menores unidades – a pessoa, a família, a comunidade, a empresa ou local de trabalho – através de suas redes, até o conjunto que forma a sociedade como um todo orgânico. Desenvolvimento entendido como o desabrochar consciente, organizado e sistemático dos atributos e potenciais inerentes à sociedade e a cada um dos seus componentes. O desenvolvimento econômico e tecnológico, no Socialismo Democrático, não seriam fins em si, mas meios para um desenvolvimento humano e social sempre qualitativamente superior. Democrático = o poder compartilhado por todos os membros da sociedade. Que poder? Não apenas o poder de votar, mas o poder de possuir bens produtivos, o poder de gerir a produção, a distribuição, as finanças e o consumo, o poder de tomar decisões que afetam cada unidade e o conjunto da sociedade, o poder de influir na formulação e implementação das leis, o poder de supervisionar os seus representantes, o poder de auto- e co-governar-se. A democracia genuína tem três componentes fundamentais: (1) empoderamento de cada componente da sociedade para exercer a liberdade de pensar, agir, aprender, trabalhar e criar com autonomia, de forma auto- e cogestionária; este empoderamento passa pela crescente personalização, ou o aprofundametno da subjetividade e da singularidade de cada um; (2) solidariedade consciente, ou a escolha da partilha, do respeito e acolhimento da diversidade e da cooperação, ou da colaboração solidária, como modo de relação dominante entre as pessoas e instituições da sociedade; (3) sustentabilidade, ou a aprendizagem, contínua e sempre renovada, da integração harmônica e durável com o ecossistema em que vive cada componente e a sociedade como um todo. 3. Essência do Conceito de EcoCidade: Conjunto humano que compartilha de um espaço de vida em comum, e adota conscientemente o projeto de tranformar a cidade numa grande casa (do grego oikos, eco) compartilhada, na qual tudo será organizado e realizado para o fim de aumentar sempre mais o bem-viver de cada habitante da casa, o que inclui o crescente empoderamento de cada habitante para tornar-se o sujeito do seu próprio desenvolvimento. Bem-viver é um conceito qualitativo, em que a dimensão quantitativa da acumulação de riqueza material está subordinada à qualidade da vida e das relações entre os componentes da sociedade e entre estes e o ecossistema. Na EcoCidade a crescente personalização ocorre simultaneamente à crescente socialização, que consiste na partilha consciente dos bens e recursos disponíveis a fim de aumentar o bem-viver de cada um e de todos. Ambos estes processos se situam no contexto da integração harmônica e durável com o ecossistema em que vive cada cidadã/cidadão e a sociedade como um todo. Portanto, na EcoCidade estão dados os elementos que constituem o Socialismo Democrático. 4. Fatores da EcoCidade: 4.1. Unidades de referência: a pessoa e a família. Ainda que a característica dominante da cidade seja a massa dos seus habitantes, a referência da EcoCidade é a do grande lar, no qual cada pessoa é importante e indispensável para que o conjunto da sociedade tenha uma existência sã e um desenvolvimento pleno. O contexto imediato de cada pessoa é sua família, não apenas sanguínea, mas a família ampliada, ou o conjunto de pessoas com quem cada um tem uma interação cotidiana de partilha (de espaço vital, de comunicação, de objetos, de atividades). Vista a partir da produção de bens de uso, a pessoa e a família são efetivamente a unidade primeira da economia da EcoCidade. O Estado deve, portanto, distribuir harmonicamente os recursos públicos a fim de que toda pessoa e família tenha o acesso aos bens e serviços necessários ao seu autodesenvolvimento. 4.2. Produção e reprodução da vida: os elementos básicos para ambas devem estar disponíveis para cada pessoa, família e comunidade (=unidade com) que compõe a EcoCidade. Uma política de transição da economia privatista e consumista hoje dominante para uma socioeconomia solidária e sustentável se faz indispensável e urgente. Por sua vez, cabe às famílias e comunidades que compõem a EcoCidade assumir a iniciativa e o controle sobre a maior parte das atividades relacionadas com a produção da vida (consumo ético e sustentável, produção de bens e serviços, sistema equitativo de distribuição destes, controle e co-gestão das finanças, moradia, saúde, educação, etc.) e com a reprodução ampliada da vida (entendida como o aumento sempre maior da qualidade da vida de cada pessoa, família e comunidade). Caberá ao Estado prover a infraestrutura necessária (energia, recursos para a saúde, moradia, educação, saneamento, transporte, telecomunicações, pesquisa científica, desenvolvimento técnico, etc.) para tornar viável a vida compartilhada em progresso qualitativo sempre superior. 4.3. Políticas de transição: (1) Visam viabilizar uma crescente autonomia da EcoCidade em relação à satisfação das suas necessidades. Produzir localmente, de forma harmônica e sustentável, tudo aquilo que é necessário e possível, usando ao máximo os próprios recursos, e recorrendo a recursos externos de forma apenas complementar. Investimento maciço e qualitativo numa educação emancipadora (não se trata da educação reprodutiva e meramente funcional hoje dominante), ciência e tecnologia são indispensáveis. (2) Visam também uma distribuição sempre mais equitativa e democrática dos recursos públicos – através dos fundos públicos, de uma política fiscal redistributiva e de modos participativos de tomadas de decisão (orçamento participativo, por exemplo). (3) Visam, enfim, construir um corpo de legislação que dê fundamento jurídico a este processo de construção coletiva, reconhecendo a sociedade civil e cada um dos seus componentes como os sujeitos principais do seu próprio desenvolvimento e, portanto, os portadores dos direitos de posse e de gestão dos meios para realizar esse desenvolvimento. O primeiro passo seria o reconhecimento da Economia Solidária ou do Setor Social da economia como um setor legítimo da economia do município, ao lado dos Setores Estatal e Privado. O segundo seria garantir a justa distribuição de recursos públicos para o fortalecimento crescente do Setor Social, dado que lhe cabe a responsabilidade de empoderar-se para realizar o papel de sujeito principal do seu próprio desenvolvimento. 5. Instituições promotoras da EcoCidade 5.1. A própria população das cidades que serão o sujeito principal desta construção coletiva. Um trabalho de educação e mobilização se faz necessário. Entre as cidades que melhores condições apresentam hoje, devido à sua história de duas décadas de governos participativos, estão Porto Alegre, RS, e Ipatinga, MG. 5.2. O Governo Municipal e suas unidades administrativas. Seria urgente a criação de uma Secretaria Municipal de Economia Solidária. Mas a responsabilidade pública efetiva pelo planejamento e implementação da EcoCidade pertence ao conjunto do governo municipal, liderado por uma Secretaria de Planejamento do Desenvolvimento, que seria responsável pela orquestração harmoniosa da ação das diversas secretarias junto à sociedade do município. Entende-se Planejamento como a atividade de coordenar as ações de planejamento participativo da EcoCidade a partir das suas Unidades de Referência e integrá-las num Plano de Desenvolvimento Integral da EcoCidade. Caberia à Secretaria de Planejamento coordenar também as atividades de implementação harmônica do desenvolvimento a nível municipal, orquestrando a atividade das diversas secretarias em torno do Plano construído em comum, em diálogo com o conjunto das comunidades que compõem a EcoCidade, visando a participação ativa e crescente destas como o sujeito principal do desenvolvimento da EcoCidade. 5.3. Estruturas subregionais de governo participativo, a serem criadas para descentralizar de forma mais eficaz e efetiva o planejamento e a gestão do desenvolvimento. 5.4. O Governo Estadual e suas unidades administrativas. Teriam que construir uma estrutura de governo homotética em relação à estrutura municipal do item 5.2 e 5.3, a fim de poderem articular harmônica e criativamente o desenvolvimento das diversas EcoCidades do estado. 5.5. O Ministério das Cidades. Se o Governo Federal decidir canalizar recursos financeiros adequados para que este Ministério cumpra plenamente suas funções, o MC poderá desempenhar o papel de catalizador político da construção de EcoCidades em todo o território nacional. Para isto é urgente a inversão das prioridades do Orçamento da União, através de uma auditoria pública e renegociação das dívidas financeiras, dando prioridade principal à economia interna e às dívidas social e ecológica. 6. Energia na EcoCidade. O objetivo seria democratizar o mais possível a produção e o controle da energia. O horizonte de médio prazo é a superação da cultura do petróleo e das grandes hidroelétricas, à medida que se desenvolvem fontes e tecnologias energéticas alternativas – de biomassa, solar, eólica, físico-química, pequenas usinas hidroelétricas e outras. A produção de gás de cozinha e para aquecimento a partir de biodigestores que transformam os esgotos domésticos já é viável em escala doméstica a baixo custo. A produção de água para irrigação e até para uso humano a partir da purificação dos rejeitos humanos através de tanques de plantas aquáticas, gerando adubo orgânico como subproduto, também já está acessível em escala comunitária. O Brasil carece de pesquisa e desenvolvimento em energia solar, para escapar do monopólio da Siemens sobre sistemas de placas solares. Carece também de uma política de investimento em energia a partir da biomassa. É um dos país mais ricos em biomassa, e corre o risco de cair nas malhas de monopólios como a Monsanto, para a qual a introdução de produtos transgênicos teria como objetivo estratégico o controle monopólico da energia de biomassa. O PRONAL é um projeto – até hoje não implementado – de produção integrada de álcool e leite, usando tecnologia simples e acessível a pequenos produtores rurais. Com 3ha de plantação de cana-de-açúcar e uma pequena distilaria é possível a uma família rural produzir 100 litros de álcool combustível por dia, segundo o geólogo Marcello Guimarães (Mello, 1993 e Vasconcellos, 2002). Os rejeitos da cana são utilizados para o abastecimento de um rebanho que produz leite e carne suficiente para nutrir a família e gerar um excedente. Este projeto pode ser desenvolvido em EcoVilas em áreas rurbanas, tornando-se um componente importante do abastecimento energético da EcoCidade. 7. Transporte na EcoCidade. O objetivo seria maximizar o uso de transportes coletivos de baixa intensidade de poluição, como bondes, trens e metrôs eletromagnéticos etc. Seria também desenvolver veículos individuais ou de pequeno porte usando combustíveis não fósseis (bicicletas, carros movidos a biomassa ou a energia elétrica, etc.) O planejamento urbano da EcoCidade teria que incluir a infraestrutura de ciclovias, ferrovias, rodovias e podovias necessária para ir reduzindo sempre mais o uso dos veículos movidos a combustíveis fósseis e ir ampliando as áreas livres de CO2 e outros gases nocivos. Este tipo de discussão precisa ser feita para cada outro aspecto e dimensão da vida da EcoCidade – consumo, comércio, finanças, educação, saúde, moradia, áreas verdes, cultura, lazer, etc. A visão da EcoCidade é abrangente e aberta. Não comporta receitas. Cada população terá que encontrar soluções próprias para a sua construção, a partir dos recursos disponíveis e da sua própria cultura local. Nela a Mulher terá um papel decisivo, não só porque tem sido particularmente explorada e oprimida pela cultura dominada pelo Patriarcalismo, mas também por ser portadora do tipo de consciência que permeia o projeto da EcoCidade, a consciência Ecológica (que aplica a lógica da Casa, em vez da lógica do Ego, tão marcante no comportamento masculino hoje dominante). A Metodologia da Práxis (Arruda, 2004) pode ser um instrumento efetivo para a realização participativa do planejamento da EcoCidade. Trata-se de um conjunto de procedimentos que associa a pesquisa das necessidades com a dos recursos de uma comunidade, incluindo os recursos materiais e não materiais disponíveis; associa a pesquisa com o planejamento estratégico e tático feitos com a participação ativa da própria comunidade que será a principal responsável pela implementação do plano; articula de forma contínua e permanente a teoria com a prática, a avaliação e o planejamento com a implementação. BIBLIOGRAFIA Arruda, Marcos, 2004, Tornar Possível o que Parece Impossível - A Formação do Ser Humano Integral: Educação da Práxis e Economia Solidária, livro, Editora Vozes, Petrópolis (lançamento em 2004). Mello, Marcello Guimarães, 1993, Autodesenvolvimento, o Brasil descobre a Energia Tropical, C.I., São Paulo. Vasconcellos, Gilberto Felisberto, 2002, A Salvação da Lavoura: Receita da Fartura para o Povo Brasileiro, Editora Casa Amarela, São Paulo. Favor enviar comentários e sugestões para Marcos Arruda – [email protected] ou [email protected]