ClaraS.qxd 7/9/05 11:49 AM Page 7 Uma mudança se anuncia Lá fora, no corredor, pode-se ouvir o barulho de metal chacoalhando misturado a um murmúrio furioso. Philipp, que mastiga sua caneta, levanta a cabeça e a balança. Ele já sabe o que aconteceu. O pai, ao chegar em casa, não prestou atenção e bateu a cabeça no lustre em frente ao espelho. Isso sempre acontece quando ele está pensativo ou muito cansado. Nessas horas, é melhor deixá-lo sozinho com a sua raiva do lustre. Toda vez ele jura que vai arrancar aquela porcaria balançante do teto. — Stefan? — a mãe chama baixinho. Na verdade, ela só quer que ele saiba que ela está lá. — Sim, sim — ele geme —, já vou. E desaparece em seu escritório durante meia hora. Faz-se silêncio outra vez. Philipp ouve seus dentes mastigando a caneta. Ele não consegue se concentrar no vocabulário de inglês. A barulheira do pai o atrapalhou. Ele fecha o caderno e se encosta na cadeira. Se a mãe o visse assim, ia ficar ClaraS.qxd 7/9/05 11:49 AM Page 8 brava: “Você não consegue se concentrar nem cinco minutos em uma coisa”, ela reclamaria. Philipp fecha os olhos e vê o que quer. Seu cinema particular nunca tem fim. Às vezes ele é mais aventureiro, outras vezes é mais tranqüilo. Quase sempre ele é o personagem principal. Hoje, ele é um entre cinco. Aquilo que imagina agora, ele conhece muito bem. Em sua imaginação, ele simplesmente tira o telhado da casa como se fosse a tampa de uma panela. Como já conhece o conteúdo, olha para dentro bem relaxado — para dentro da casa para onde eles se mudaram há anos. Ela é como uma caixa de sapatos onde cada um deles, os Scheurer, tem seu espaço. O pai diz que a casa é uma cabana, porque alguma coisa sempre pára de funcionar, desmorona, racha ou quebra. “Comprar coisas velhas nos mantêm jovens”, diz ele de vez em quando e dá risada. Philipp sabe o que o pai está fazendo naquele momento e o vê de olhos fechados. O pai sentou-se à mesa ao lado da janela onde fica o seu computador e provavelmente ligou o rádio bem baixinho, esperando o noticiário começar. Lá está ele, sentado com a cabeça apoiada nas mãos. Do escritório, o pai pode ir para o quarto e para o banheiro que, aliás, tem também uma porta que dá para o corredor. 8 ClaraS.qxd 7/9/05 11:49 AM Page 9 No banheiro, ele encontraria a mãe e Therese. A imaginação de Philipp transporta as duas até lá. A mãe está penteando os cabelos de Therese. Ela adora fazer isso. Os cabelos de Therese são loiros e compridos e dá para fazer uma trança bem grossa com eles. Therese é pouco mais de um ano mais nova que ele. Mas nem sempre ele se entende com ela. Quando ela fica chorona ou de mau humor, é insuportável. O pai diz que ela fica espinhenta quando começa assim. Pelo menos as palavras dela são bem espinhentas: “Sai do meu pé, Phelepp!”. Quando ela o ameaça assim, ele fica fora de si. — Philipp! — alguém está chamando lá fora, no corredor. Como é que a mãe pode chamá-lo se está no banheiro fazendo uma trança em Therese? — Philipp! Você não está ouvindo? Ele dá uma sacudidela e se levanta. Justo agora! Ele gostava muito mais da mãe do cinema-imaginário do que daquela de verdade, diante da porta. — Estou — responde não muito alto, o que faz com que o pai agora também grite: — Philipp! E Paul: — Philipp! E Therese: — Phelepp! 9 ClaraS.qxd 7/9/05 11:49 AM Page 10 Ele demorou só um pouquinho para responder, e eles já faziam esse escândalo a quatro vozes. Com um pulo ele alcança a porta, abre-a e responde com toda a força dos pulmões: — Estou aqui! Para seu espanto, o grito funciona. A mãe e Paul vêm para o corredor. A mãe está enxugando as mãos, então ela estava mesmo no banheiro, só que sem Therese. Durante um tempo, eles se entreolham mudos. Quando o pai também aparece no corredor, todos, menos ele, caem na gargalhada. O pai faz uma careta de dor fingida: — Vocês não podem… Mas não consegue continuar. — Não! — A mãe balança a cabeça com força. — Nós não podemos nos comportar, nos portar bem, nos controlar! Você não ia agüentar se a gente fosse assim. Agora Therese também tinha se juntado a eles. A curiosidade a deixava louca. — Agora estamos todos aqui! O pai se encosta no batente da porta. Seu olhar passeia de um para o outro. De repente, ele coloca o dedo nos lábios: — Fiquem todos quietos! Philipp prende a respiração. O pequeno Paul aperta os lábios e franze a testa em grande concentração. 10 ClaraS.qxd 7/9/05 11:49 AM Page 11 Todos prestam atenção. O pai coloca a mão em concha atrás da orelha. — Pronto — diz ele baixinho. — Eu só queria ouvir o barulho dos parafusos soltos. — Eu já tinha imaginado. — A mãe dá dois passos se aproximando do pai e espreme sua cabeça contra seu peito. Ela consegue fazer isso sem nenhum esforço. E saiba que ela é uma cabeça e meia mais baixa que o pai! — Você está ouvindo mais alguma coisa? — ela pergunta. Ele levanta os braços, abaixa-os e desiste: — Não! Nada! E se… — E se? — A mãe está à sua frente, tesa como uma corda esticada. O pai finge que está com medo. — Se eu ouvisse, nunca ia admitir, para não correr o risco de você espremer minha cabeça de novo. A mãe gira nos calcanhares e se encaminha para a cozinha. — Podem pôr a mesa, em alguns minutos o jantar vai estar pronto. — Espere! — O protesto do pai faz com que ela pare. O pai sorri. — O acaso quis que a gente se encontrasse aqui no corredor, e eu não vou deixar esta oportunidade passar. Na sala seria muito festivo e durante o jantar vocês poderiam se engasgar. 11 ClaraS.qxd 7/9/05 11:49 AM Page 12 A mãe cruza os braços: — Não faça tanto suspense! — É alguma coisa comigo? — pergunta Therese. — A gente vai ganhar alguma coisa? — pergunta Paul. Philipp espera. — Bem, eu não quero torturar vocês. Paul, mais uma vez, está na pista certa. Sim, nós vamos ganhar uma coisa. Todos nós. A mãe parece tão insatisfeita com essa introdução quanto com o local da conversa. — Ah, eu não sei não, Stefan. A gente devia ir para a sala ou deixar para mais tarde. Mas foi aí que ela deixou o pai mais agitado. — Nãão, conta você para as crianças, Lene. — Eu? — É, você! A mãe coloca as mãos nas bochechas, fazendo uma moldura em volta do rosto. Ela sempre faz isso quando está um pouco sem graça. E diz: — Eu vou ter um bebê. Vocês vão ganhar uma irmã ou um irmão. Pronto, era isso. Aliviada, ela tira as mãos das bochechas. Philipp precisa de um tempo até entender o que tinha acabado de ouvir. Aparentemente, Therese se sente como ele. 12 ClaraS.qxd 7/9/05 11:49 AM Page 13 Paul é mais rápido. Ele pula em volta da mãe como um bonequinho de corda levantando os braços para cima e exclamando: — Um imãozinho, um imãozinho! Até que foi demais para Therese: — É irmãozinho! Para Paul, isso não importa. Ele chega perto da mãe, a abraça e se aconchega nela. — Bem que eu disse — recorda o pai. Disse o quê? Philipp quer perguntar, mas acha melhor deixar para lá. Os joguinhos do pai o deixam nervoso. Uma irmã, ele pensa, ou um irmão! Só então percebe que Therese está ao seu lado. Ele sente o braço dela no seu. Ela parece estar se sentindo tão estranha quanto ele. — Eu estou com fome — diz Therese. — Eu também — concorda a mãe. Mas o pai quer dizer mais alguma coisa que está presa na sua garganta. — Um minutinho! Logo vocês vão comer. Acho que está claro para todos vocês que a nossa bela caixa de sapatos vai ficar mais apertada quando o bebê chegar. Por isso, Philipp vai ter que dividir o quarto com Paul. Philipp acha que não escutou direito. Paul no seu quarto! Paul, que não pára de se mexer um minuto, que fala bobagem o dia inteiro! 13 ClaraS.qxd 7/9/05 11:49 AM Page 14 — Papi… — Eu sei, Philipp. Quando eu não estiver trabalhando em casa, você pode ficar no meu escritório. Mas você tem que me prometer que não vai espalhar toda a sua tranqueira por lá. Philipp hesita, encolhe os ombros e corre com Therese para a cozinha para pôr a mesa. Com uma pilha de pratos nos braços, ele pára ao lado da janela. No meio da chuva, a nogueira do jardim está preta e sem folhas. Philipp pensa: a árvore está com frio. Na verdade, em janeiro devia nevar, mas o Papi acha que talvez nem neve mais nos próximos anos. Todos já estão sentados à mesa, menos Philipp. — Traga os pratos — pede a mãe. — Quando o bebê vai chegar? — pergunta Philipp. — No fim de maio. Após uma pequena pausa, a mãe acrescenta: — Se tudo correr bem. 14