Renascimento: A celebração do Homem O conceito de Renascimento vem da palavra italiana renascitá, pois se acreditava que o período anterior, a Idade Média, fora uma "espessa e longa noite gótica" imersa nas trevas e desprovida de cultura. Para os homens deste período, a "verdadeira" cultura encontrava‐se na Antigüidade, a qual foi banida e em seu lugar a Igreja estabeleceu o teocentrismo. O saber, portanto, encontrava‐se nas artes e nos escritos clássicos. A estética renascentista propôs claramente o retorno a alguns valores clássicos, como a arte mimética (a imitação da realidade com o objetivo de buscar a perfeição, segundo Aristóteles, forjando a idéia de respeitar o modelo adotado e dentro dele a busca da superação, com o auxílio da criatividade); a harmonia; e a sobriedade (contenção dos sentimentos). Uma possível exemplificação desta idéia está no estudo de proporção feito por Leonardo da Vinci para ilustrar uma cópia do tratado De Architectura, escrito por Vitrúvio em 40 a.C. A imagem de um homem, esboçado em movimento, a partir do desdobramento das pernas e braços em duplicidade, onde a extensão das pernas até a cabeça delimitam o tamanho do quadrado(um símbolo do mundo material e terrestre), enquanto a movimentação dos braços traçam um círculo(símbolo do órbita celeste, do Universo), podendo assim chegar a materialização de que o “homem é a perfeita medida de todas as coisas”. O exemplo do homem de Vitrúvio, nome pelo qual ficou conhecido o desenho realizado por Leonardo, não só representa uma releitura da cultura greco‐romana, mas também a apresentação de um novo olhar, mais centrado na experimentação, observação, análise e teorização do Universo, não como algo estático e imutável, oriundo do poder divino, mas de uma sensibilidade que se tornou a base do pensamento científico ao longo dos séculos. Central de Atendimento: (11) 2145‐7654 www.cursinhodapoli.org.br Homem de Vitrúvio O que se vê é a imagem de um homem de pé, esboçado em movimento, com pernas e braços mostrados simultaneamente em duas posições diferentes. O personagem, primeiro, está parado com os braços esticados em um ângulo de 90 graus com o corpo e as pernas fechadas. Ao mesmo tempo, ele dá um salto e afasta mais as pernas e levanta os braços. A extensão das pernas até a cabeça delimita o tamanho de um quadrado, um símbolo do mundo material e terrestre; enquanto a movimentação dos braços traça um círculo, símbolo da órbita celeste, do Universo. O desenho indica que o “homem é a perfeita medida de todas as coisas”. O homem de Vitrúvio, nome como ficou conhecido o trabalho de Leonardo da Vinci, não só carrega uma releitura da cultura greco‐romana, mas também apresenta um novo olhar, mais centrado na experimentação, observação, análise e teorização do Universo, que já não é visto como algo estático e imutável, sustentado em dogmas, mas sob uma ótica científica. As relações entre sábios e saberes durante a Idade Média se davam num modo Central de Atendimento: (11) 2145‐7654 www.cursinhodapoli.org.br diferenciado, pois a escrita sempre foi monopólio de um grupo restrito da sociedade: o clero. Além disso, o conhecimento era algo pertencente a Deus. Tal fato implicava na necessidade do domínio da palavra para exercer o ofício sacerdotal da religião cristã, a qual é sustentada pelos textos contidos na Bíblia, interditada aos fiéis, uma vez que a Igreja se entendia como única e exclusiva intermediária entre Deus e os homens. Mas, a partir da invenção da imprensa de tipos móveis por Gutenberg em 1450, o monopólio começou a ser rompido. Gutenberg iniciou seu trabalho de impressão justamente com a bíblia. A divulgação de idéias, da própria Igreja ou mesmo de outras instituições teve um significativo avanço. Tornava‐se muito mais fácil a elaboração de livros, numa gradativa substituição dos manuscritos realizados pelos copistas nos mosteiros e abadias. A transição do medievo para o mundo moderno não foi um processo homogêneo, sendo lenta e portadora de uma forte herança cultural. Esta herança teve vida longa em alguns pontos da Europa e em outros foi rapidamente enfraquecida. Apesar desta repulsa à Idade Média, é importante perceber que as transformações sofridas durante o Renascimento foram resultados de um processo de continuidade que perpassou o medievo e atingiu seu esplendor no momento seguinte, portanto, não se pode considerar a Renascença como uma ruptura total como propôs Jacob Burckhardt (1818‐97), mas a mudança de um largo processo de experimentação e aprimoramento. Uma das formas mais interessantes e ricas de se entender o Renascimento é olhar sua produção artística, hoje patrimônio inestimável da Humanidade. O acesso à maior parte desta produção, em sua época, era exclusividade de ricos mercadores, nobres e do alto clero. Quanto às camadas mais pobres (il popolo minuto: povo miúdo), tiveram acesso à produção que fora executada para os espaços públicos como estátuas e fontes nas praças , nas igrejas e nas confrarias de artesãos.De qualquer maneira, o imaginário greco‐ romano e os simbolos da tradição pagã passaram a ocupar espaços públicos e privados, a se tornar novamente visíveis, e a mudança cultural chegou até o povo. Central de Atendimento: (11) 2145‐7654 www.cursinhodapoli.org.br O Nascimento da Vênus Tomemos o exemplo de “O nascimento da Vênus”, obra do pintor florentino Sandro Botticelli (1445‐1510). O nome já identifica a temática do quadro: a representação do nascimento da deusa romana do Amor, Vênus (Afrodite para os gregos). A pintura foi encomendada por Lorenzo di Pierfrancesco, primo de Lorenzo de Médici, o Magnífico. Vênus ocupa a posição central do quadro, dividindo de forma harmoniosa o espaço da composição: à sua direita se encontra a personificação dos ventos. Os ventos sopram e formam as ondas e as espumas do mar, das quais nasce Vênus. Ela está em pé sobre uma concha e encobrindo‐se apenas com suas mãos e cabelos. À sua esquerda, vindo ao seu encontro, está a personificação de Flora, que lhe traz suas vestes. Mas apesar do apego à narrativa mitológica greco‐romana, o cristianismo também está presente. Botticelli era muito influenciado pelo pensamento neoplatônico, em particular pelo filósofo Marsílio Ficino, que incorporou o pensamento de Platão a partir de uma visão cristã. Em “O nascimento de Vênus”, Botticelli representou a concha como uma alusão ao batismo, o primeiro sacramento recebido. O batismo representa a inclusão na comunidade cristã e é um contra‐ponto ao paganismo e ao Pecado Original. O pudor de Vênus também pode estar associado ao neoplatonismo de Botticelli. No texto “O Banquete”, de Platão, aparecem duas descrições da Vênus: a Venus Central de Atendimento: (11) 2145‐7654 www.cursinhodapoli.org.br Vulgaris (Vênus Vulgar) representada nua e relacionada com o mundo material e a Venus Coelestis (Vênus Celestial), ligada à essência espiritual. Outro ponto importante a ser notado é a idéia da mimesis. A natureza é o modelo da arte e quem observa a posição dos ventos e a direção que eles sopram no quadro, por exemplo, nota claramente o movimento dos cabelos de Vênus e dos tecidos nas mãos de Flora. Tudo se move. E há uma predominância das linhas curvas sobre as linhas retas que delimitam o horizonte. A simplicidade é vitoriosa e o espírito se eleva com beleza e equilíbrio. Analisemos, agora, outro trabalho de Leonardo da Vinci. Não mais um desenho técnico, mas uma pintura. Trata‐se do quadro “A Última Ceia” , encomendada pelo duque de Milão, Ludovico Sforza, e pintada na parede do refeitório do convento dos dominicanos de Santa Maria delle Grazie, em Milão, entre 1495 e 1497. O quadro de Leonardo tornou‐se uma das imagens mais populares do mundo cristão. Vale dizer que ninguém representa tão bem o Homem Universal ( l’uomo universale) renascentista como da Vinci. Foi ele quem conseguiu aplicar perfeitamente na arte todo o conhecimento científico e técnico de seu tempo. Foi como pintor e engenheiro; um símbolo do uso de múltiplas potencialidades nos diferentes campos do conhecimento. A Última Ceia Central de Atendimento: (11) 2145‐7654 www.cursinhodapoli.org.br O quadro “A Última Ceia” mostra um momento da última refeição de Jesus Cristo com seus apóstolos, tema de vital importância no culto cristão. É na ceia final que se desenvolve o dogma da transubstanciação, realizado na transformação do pão em carne e do vinho em sangue. Ao longo de dois mil anos, a recriação simbólica desta cena converteu‐se no momento mais importante da liturgia cristã, a Eucaristia. Sendo uma cena muito presente no imaginário cristão, seja pelo texto bíblico ou por sua constante repetição na liturgia ao longo da trajetória do cristianismo, a última ceia teve inúmeras representações. O quadro de Leonardo da Vinci compõe a imagem como uma peça teatral: num grande e suntuoso salão, Cristo e seus apóstolos estão reunidos. Cristo ocupa o centro da mesa, típica de banquetes medievais. Dividem‐se, ao seu lado, dois grupos de seis apóstolos, apresentados de maneira simétrica em uma composição harmoniosa e equilibrada. O ponto central da imagem se encontra atrás da cabeça do próprio Cristo. A cabeça compõe uma circunferência junto com a moldura da janela imediatamente posterior e é o pólo irradiador das linhas de perspectiva da composição, um das principais contribuições estéticas do Renascimento. A atenção do Cristo está para o pão e o vinho, alimentos e metáforas de seu futuro destino: o sacrifício na cruz pela Humanidade. A posição de seus braços em relação à cabeça forma uma imagem triangular. Hipóteses para tal composição são inúmeras, destacando‐se entre elas, as de caráter esotérico e místico, uma vez que os estudos herméticos e de alquimia foram muito comuns à época de Leonardo. Não há como saber quais teriam sido as referências que guiaram a mão e a mente do pintor. Mesmo as referências presentes nos Evangelhos não oferecem muitos dados para uma resposta precisa. Esta dificuldade nos situa em um ponto importante sobre o entendimento de qualquer produção artística: as imagens não têm sentido sozinhas, existe um contexto e a recuperação deste contexto implica na compreensão ou na “atribuição” de um sentido mais preciso ou pelo menos mais plausível, a respeito de seus possíveis significados. Por mais que entre os séculos XIV e XVI tenha ocorrido uma intensa valorização da racionalidade, era algo muito distante e completamente diferente da nossa concepção de Razão. Naquele momento, a religiosidade ainda exercia um papel central nas Central de Atendimento: (11) 2145‐7654 www.cursinhodapoli.org.br diferentes formas de sociabilidade, e mesmo aquilo que pôde vir a ser chamado de “ciência” como, por exemplo, a Astrologia. O Renascimento trouxe uma série de inovações técnicas, sociais e culturais. Foi um momento de uma grande abertura intelectual, orientado por uma nova visão de mundo e uma nova mentalidade, mais dinâmica e rica de sentidos, que pudessem atender as necessidades daquele contexto. Mesmo assim, muitos dos pensamentos e da arte do período se afirmavam no confronto com a visão medieval. E a Igreja tratava de se defender dos avanços desta nova racionalidade. Às vezes, essa defesa era intransigente e sem piedade. Essa “reação” pode ser percebida na execução do médico Giordano Bruno em 1600 ou na condenação de Galileu Galilei em 1616, sentenciado a revogar em público suas doutrinas. Giordano Bruno Galileu Galilei Seriam necessários mais alguns séculos para que as conquistas do Renascimento superassem amplamente a visão dogmática do período anterior. A visão que chamamos de científica é filha do Iluminismo e seus filósofos que viveram no século XVIII e também de todo avanço do Cientificismo dos séculos XIX e XX. Ela começou a florescer na renascença, mas precisou de vários séculos para se tornar dominante. É provável que a ciência tenha conseguido o espaço que pleiteara no passado, favorecida pelo Central de Atendimento: (11) 2145‐7654 www.cursinhodapoli.org.br materialismo, pelo ateísmo e por uma relativa liberdade de pensar. Mas, por outro lado, os extremismos religiosos não param de se manifestar, seja no Ocidente ou no Oriente. Muitos dos dilemas que envolvem a fé e a razão e motivaram o homem renascentista continuam atuais. Elias Feitosa de Amorim Jr. ‐ professor de História do Cursinho da Poli e mestrando em História Medieval pela USP Texto publicado na Revista “Desvendando a História” Editora Escala Ano 2, nº08. Créditos das Imagens: “Homem de Vitrúvio” Leonardo da Vinci, s.d., Accademia di Belle Arti di Venezia, Veneza. “O Nascimento da Vênus” Sandro Botticelli, 1485, Galleria degli Ufizzi, Firenze. “A Última Ceia”, Leonardo da Vinci, 1495‐97, Convento de Santa Maria delle Grazie, Milão. “Giordano Bruno”, autor desconhecido, 1578, Universidade de Genf, Alemanha. “Galileu Galilei”, Ottavio Leoni, 1624, Musée du Louvre, Paris. Central de Atendimento: (11) 2145‐7654 www.cursinhodapoli.org.br