1
Ensino de ortografia: Concepção e prática docente
Renata Felix Cavalcanti1
Silvania Maria Araújo da Silva2
Kátia Leal Reis de Melo3
Resumo
O presente estudo procurou compreender as relações discurso e prática
docente no que se refere ao ensino de ortografia. Partindo do pressuposto que
a ortografia é um conteúdo específico e pode ser trabalhado de forma
sistemática e reflexiva, não se resumindo apenas aos processos de
memorização, uma vez que, pesquisas atuais mostram que sua aprendizagem
pode ocorrer de forma reflexiva. É nosso interesse entender até que ponto as
professoras têm se apropriado desse discurso e como ele vem sendo abordado
em sala de aula. A partir das entrevistas e observações percebemos que a
ortografia não está sendo tratada como objeto de conhecimento, por não a
entenderem como conteúdo específico e desconhecerem sua organização.
Palavras-chaves: ortografia – ensino-aprendizagem – concepções
Ortography teaching: Conception and teaching approaches.
ABSTRACT: This present study tried to understand the teachers approaches in the field
of orthography teaching. Assuming that the orthography is a specific subject and it can
be worked in a systematic and reflexive way, but not being summarizing only to the
memorization ways, once that current researches show that their learning can be
developed in a reflexive way. Our aim is to understand the extent to which teachers are
bound with this speech and how they have been using it in classrooms. From the
interviews and observations done we realized that the orthography hasn’t been
developed as an object of knowledge , because some don’t recognize and understand it
as a specific subject and ignore its organization.
1
Concluinte do curso de Pedagogia – Centro de Educação – UFPE.
[email protected]
2
Concluinte do curso de Pedagogia – Centro de Educação – UFPE.
[email protected]
3
Professora do Departamento Métodos e Técnicas de Ensino – Centro de Educação – UFPE.
[email protected]
2
Introdução
O interesse para pesquisarmos o referido tema, em nosso trabalho de
conclusão de curso, surgiu de observações realizadas em escolas públicas, no
âmbito das disciplinas de Pesquisa e Prática Pedagógica (PPP) - componente
curricular obrigatório do curso de Pedagogia da UFPE. Através dessa
experiência, tivemos contato com a prática de professores das séries iniciais do
Ensino Fundamental I. Nosso interesse é decorrente também de inquietações
advindas das nossas memórias escolares, quando a ortografia nos foi ensinada
apenas através de memorização, e a aprendizagem implicava em decorar
regras e exceções.
Percebemos que nas aulas de Língua Portuguesa, a ortografia recebe
tratamento secundário com relação aos demais eixos, como: a oralidade, a
leitura e a produção de textos. Verificamos que o ensino das convenções
ortográficas se dá de forma assistemática e mecânica não possibilitando ao
aluno refletir sobre a língua escrita. A aprendizagem ocorre pela memorização
das regras e exceções e/ou da escrita das palavras, e não por meio de uma
aprendizagem sistemática, pautada na compreensão. De acordo com Morais
(2003, p.73), “mesmo que a norma ortográfica seja uma convenção social,
aprender ortografia não é um processo passivo no qual há o armazenamento
na memória de formas corretas”.
Cotidianamente a sociedade e a escola cobram das pessoas obediência
às normas da língua escrita culta. Entretanto, a exigência da escrita
ortograficamente correta nem sempre é acompanhada de esclarecimentos
sobre os motivos que justifiquem o uso da língua segundo esses padrões. Ela é
ensinada de forma descontextualizada, sem que o aluno reflita e faça
inferências sobre o que está sendo internalizado. Morais (2003) afirma que a
ortografia é tratada mais como tema de verificação que como ensino
sistemático. Dessa forma, não é vista como conteúdo a ser planejado e
ensinado sistematicamente, e sim como instrumento de verificação para o
professor saber se o aluno escreve de forma correta.
Tais constatações levam ao seguinte questionamento: até que ponto as
práticas vivenciadas nas salas de aula têm favorecido um ensino sistemático e
reflexivo da ortografia? Teberosky e Colomer (2003, p.78) defendem que “o
3
professor tem a responsabilidade de organizar atividades nas quais se
descobre um jogo de participação ativo, rico em relações sociais”. Essa tarefa
não é simples, devido ao processo histórico que envolve o ensinoaprendizagem das normas ortográficas, mas é um conteúdo como os demais e
precisa ser ensinado de forma reflexiva e sistemática. Inclusive os Parâmetros
Curriculares Nacionais para Língua Portuguesa o propõe. A definição de metas
e a criação de estratégias por parte do professor permitirão ao aluno agir como
sujeito no processo de construção do conhecimento.
Diante de tais afirmações, a questão central emerge: qual a relação entre
as concepções do professor e sua prática no que se refere à seleção e
tratamento dos conteúdos ortográficos? Para isso, levantamos a hipótese de
que, mesmo complexo, o ensino de ortografia depende de como o professor a
concebe, ou seja, ele parte de sua visão do que seja ortografia, de como ela
funciona e de como se dá sua aprendizagem. Se ele acredita que ocorre pela
memorização, sua proposta pedagógica terá como base essa prática. Por esta
razão nosso objetivo geral é compreender as relações entre as concepções dos
professores e sua prática no que se refere ao ensino de ortografia, mais
especificamente, conhecer as concepções dos professores sobre o ensino de
ortografia, analisar as relações discurso/prática e identificar como são
selecionados e trabalhados os conteúdos ortográficos.
Nessa perspectiva, o presente estudo busca contribuir com as
discussões e reflexões sobre o ensino de ortografia, abrindo espaço para que
se possa pensar em formas dinâmicas e eficazes de ensino e na participação
do aluno enquanto sujeito ativo da própria aprendizagem e não apenas um
memorizador de regras e exceções.
Ortografia como objeto de conhecimento
Comumente as pessoas são cobradas, dentro e fora do âmbito escolar,
a obedecerem às normas ortográficas. Estas normas acabam servindo também
como instrumento de discriminação e exclusão social, pois aqueles que não as
seguem são vistos como “ignorantes” e “sem educação”. Entretanto, ao mesmo
tempo em que se exige o uso dessas normas, a maior parte das pessoas
4
desconhece a ortografia enquanto objeto de conhecimento específico, que se
constitui em um dos eixos da língua escrita, e ainda acreditam que a mesma é
desnecessária. Tal visão defende que a existência da mesma serve apenas
para complicar as atividades de escrita. Isto reflete o conceito equivocado e o
desconhecimento que se tem da funcionalidade e organização da ortografia.
Considerando a morfologia da palavra ortografia tem-se o significado de
escrita correta, ou seja, a ortografia é o estudo da escrita correta. Segundo
Morais (2003), ortografia é uma convenção social, cuja finalidade é auxiliar a
comunicação escrita. É através da ortografia que são estabelecidos parâmetros
para a escrita das palavras, pois de outra forma seria impossível compreender
ou se fazer compreender pela escrita, se cada um escrevesse conforme sua
época, cultura ou herança sócio-cultural. Assim a comunicação escrita se
tornaria muito difícil e complexa para o leitor, pois ainda conforme Morais
(2003, pág.19), “na hora de escrever se não houvesse ortografia cada um
registraria seu modo de falar. E os leitores de suas mensagens sofreriam
muito, tendo que “decifrar” a intenção do autor”.
Fica evidente que, ao contrário do que comumente se pensa, a
ortografia é de grande relevância para a comunicação social, visto que surgiu
devido a uma necessidade real da sociedade em se fazer compreender através
da escrita. Logo, como defende Morais (2003), a ortografia também não é algo
sem sentido e que nasceu por acaso, visto que ela possui como funcionalidade
a unificação na linguagem escrita das diferentes formas de falar de uma
mesma língua, cabendo a escola assumir o seu ensino.
Uma outra idéia que se tem de ortografia diz respeito às inúmeras
regras, que se pensa só serviriam para decorar. Contudo, a ortografia é algo
que vai além das regras e exceções, e mesmo as regras que realmente fazem
parte da ortografia não implicam, necessariamente, apenas em memorização.
Pois, como veremos mais adiante, há casos em que é preciso memorizar, mas
também existem casos que permitem a criação de situações que levem o aluno
a refletir e construir os princípios geradores da escrita das palavras uma vez
que a ortografia está organizada em torno das regularidades e irregularidades.
As regularidades fazem parte dos aspectos ortográficos que podem e
devem ser refletidos e compreendidos. A partir das regularidades:
5
... Podemos prever a forma correta sem nunca ter visto a
palavra antes. Inferimos a forma correta porque um há
“principio gerativo”, uma regra que se aplica a várias (ou
todas) as palavras da língua nas quais aparece a dificuldade
em questão. É por exemplo, o que ocorre com o emprego de R
ou RR em palavras como “honra” e “cachorro”. (MORAIS,
2003, p.28).
Além das relações existentes entre os sons e as letras há três tipos
diferentes de regularidades: diretas, contextuais e morfológico-gramaticais.
As regularidades denominadas “diretas” são aquelas, nas quais cada
som é representado por apenas uma letra não havendo competição entre letras
diferentes, como é o caso do P, B, V, T, D e F como, por exemplo: em palavras
como “Vaca”, “Toca” ou “Dona” que só podem ser representadas por essas
letras. Nas regularidades contextuais, a relação letra-som é relativa, visto que é
o contexto no qual o som aparece dentro da palavra que vai determinar a letra
ou o dígrafo a ser usado. Nesses casos é possível escrever uma palavra
ortograficamente correta sem que se faça necessário a memorização. Dentre
os diversos casos de regularidades contextuais estão o uso do G ou GU em
palavras como “gato” e “guitarra”, o uso do C ou QU, representando o som do
/k/, em palavras como “capítulo” e “quilômetro”. E por fim, temos as
regularidades morfológico-gramaticais, nestas a compreensão das regras
fazem com que os indivíduos grafem as palavras de forma segura, ao perceber
que existe algo constante na grafia de palavras semelhantes como no caso dos
adjetivos que indicam os lugares onde as pessoas nasceram. Exemplos de
regularidades morfológico-gramaticais podem ser vistos nas grafias das
palavras “chatice”, “burrice”, “partisse” e ”fugisse”.
Quanto as irregularidades, não há como compreendê-las, pois não
existem regras que as determinem e, em sendo assim, a memorização é o
caminho para escrever as palavras de forma correta.
Esse caso é o mais difícil para a aprendizagem da língua
escrita. Aqui, não há qualquer princípio fônico que possa guiar
quem escreve na opção entre as letras concorrentes. Nesses
casos, a única maneira de descobrir a letra que representa
dado som numa palavra na língua escrita é guardando-as na
memória. Nada mais lógico pode ser feito, em termos da
representação dos fatos fonéticos da língua. (LEMLE, 1991,
p.23).
6
Ao conhecer a organização, explicitada acima, pode-se perceber que em
ortografia há muito mais casos a serem compreendidos do que a serem
decorados, por isso ortografia pode e deve ser um conteúdo tão funcional e
significativo quanto a própria leitura e produção de texto.
Assim como as leis constitucionais, que também são convenções sociais
e sofrem mudanças, as normas ortográficas também estão sujeitas à
modificações que podem ocorrer com o passar dos tempos. Basta
observarmos a escrita de textos antigos para que se percebam as mudanças
que a escrita das palavras sofreram. A partir de 2008, a ortografia sofrerá mais
modificações, fazendo com que algumas palavras tenham sua escrita alterada.
Isso se deve a decisão de unificar a ortografia dos países que fazem parte da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
Ensino e aprendizagem da ortografia
Quando se apropria do sistema alfabético, a criança percebe que é
possível escrever o que se fala, porém se depara com outra situação: não
poder escrever as palavras da mesma forma que as oraliza. Nesse momento o
professor tem papel fundamental na introdução desses conceitos. É preciso
que o conteúdo de ortografia seja trabalhado de forma sistemática desde as
séries iniciais a partir do momento em que o aluno se apropria do sistema
alfabético. O contato com a ortografia deve promover a reflexão desde cedo
sobre os casos de regularidades e irregularidades do português como também
sobre a importância da escrita ortograficamente correta para garantir a
compreensão de textos escritos.
Para Melo e Rego (1998) na maioria das vezes o professor em sua
prática pedagógica utiliza a ortografia como objeto de verificação e não como
conteúdo que pode e deve ser trabalhado sistematicamente, recorrendo então
a práticas tradicionais de ensino com o uso de ditados, cópias exaustivas ou
exercícios de treino ortográfico, comuns nos livros didáticos e realizados de
forma mecânica, tendo como objetivo verificar se o aluno escreveu “certo” ou
7
“errado” as palavras. A escolha dessas atividades favorece apenas a
memorização de grafias corretas em detrimento de momentos de reflexão
sobre a língua escrita.
Nessas atividades, a criança não é solicitada a pensar o
porquê de a grafia correta ser diferente da grafia que ela tinha
escolhido para escrever as palavras. E o pior é que na maioria
das vezes a criança tem uma hipótese lógica para escrever
diferentemente da forma convencional. Dessa forma seria
necessário refletir sobre tal hipótese. (LEAL e ROAZZI, 2005,
p.100).
A aprendizagem da ortografia não pode se restringir às cópias e
repetições, sem que haja espaço para que o aluno faça questionamentos
como: por que se escreve essa palavra de tal forma e não de outra? Por que
usamos essas letras e não outras? Por que não podemos escrever da forma
que falamos?
Essas e outras questões que povoam a cabeça dos alunos nos
momentos de aprendizagem servem de instrumento para o professor e
possibilitam ao aluno levantar hipóteses sobre o que está aprendendo, atuando
como sujeito ativo na construção do conhecimento. Para Silva e Morais (2005,
p.61) “a escola tem papel essencial no que refere a ensinar os alunos a
“escrever certo”...”. Por isso deve-se buscar um ensino sistemático para que os
alunos se apropriem das normas, possibilitando aos mesmos a oportunidade
de escrever corretamente a partir da compreensão da ortografia. Dessa forma,
escrever corretamente deixa de ser um ato de repetição e passa a ser um
momento de reflexão sobre a língua, sobre o que se está escrevendo,
Morais (2005) aponta que, o ensino da ortografia não evolui porque as
escolas continuam sem definir metas para o ensino. Os professores estão mais
preocupados em verificar a escrita de seus alunos que ensinar de forma
sistemática e reflexiva. A proposta de ensino oferecida não possibilita ao aluno
a construção da compreensão das regras, por acreditar que a ortografia se
aprende exclusivamente memorizando, deixando de lado o trabalho de
compreensão e reflexão. Segundo Guimarães e Roazzi (2005, p.74) “A escola
precisa provocar nos sujeitos uma reflexão sobre a língua... Enfim a escola
8
pode ser vista como um lugar de reflexão e conscientização, onde o aluno
precisa aprender a falar e pensar sobre a sua língua”.
Para a efetivação de um ensino sistemático da ortografia o professor
precisa está atento e valer-se da organização da norma para planejar o ensino
e selecionar atividades adequadas a cada caso, sejam de regularidades ou
irregularidades. Por não considerá-la, muitos docentes sentem dificuldades de
sistematizar os conteúdos ortográficos e, por isso, suas práticas ocorrem de
forma descontextualizada sem ajudar o aluno a aprender compreendendo. É
necessário reconhecer a ortografia como um objeto de conhecimento a ser
explorado pelo professor e pelo aprendiz. Conforme Morais (2003, p.19), “a
norma ortográfica de nossa língua contém tanto aspectos regulares, isto é, que
são determinados por certas regras e podem ser aprendidos pela
compreensão, como irregularidades, que temos que memorizar”. Portanto, o
ensino das normas ortográficas não precisa e não pode se restringir ao ato de
memorização. Há casos que é preciso memorizar, mas na maior parte se
podem criar situações que levem os alunos a refletir sobre a escrita das
palavras. Como nos mostra Morais.
A “disputa” entre o R e o RR é bom exemplo do que estamos
agora tratando. Em função do contexto em que aparece a
relação letra-som, poderemos sempre gerar grafias corretas
sem precisar memorizar. Para o som do “R forte”, usamos o R
tanto no início da palavra (por exemplo, “risada”), como no
começo das sílabas precedidas de consoante (por exemplo,
“genro”) ou no final de sílabas (“porta”). Quando o mesmo som
de “R forte” aparece entre vogais, sabemos que temos que
usar RR (como em “carro” e “serrote”). E quando queremos
registrar outro som do R, que alguns chamam “brando” (é que
certas crianças chamam tremido), usamos um só R como em
“careca” e “braço”. (2003, p.30)
Segundo Melo (2005) para uma sistematização do ensino da ortografia o
professor precisa ter claro o que o aluno pode compreender e o que ele deve
memorizar. Precisa saber que conhecimento informal seus alunos têm sobre a
norma, quais as fontes de dificuldades deles para, a partir disso, organizar o
ensino. Ou seja, elaborar seqüências didáticas que ajudem o aluno a superar
suas dificuldades em ortografia, atividades que permitam ao aluno fazer
inferências sobre o que está sendo aprendido, possibilitando-os a descoberta e
9
construção do princípio gerativo. Tal princípio possibilita ao aluno escrever até
palavras desconhecidas ou pouco comuns. Além disso, o professor deve lançar
desafios que levem os alunos a discutir e refletir sobre a língua escrita,
ajudando-os a levantar hipóteses sobre o que é “certo” ou “errado” quando se
escreve, criando situações de cooperação e interação entre os alunos
realizando atividades em grupo ou duplas. Nesses momentos o professor deve
assumir seu papel de mediador na construção do conhecimento ortográfico.
É preciso que se perceba a busca consciente que a criança
realiza ao tentar atingir a escrita ortográfica, e que pensar
sobre ortografia faz com que ela adote estratégias gerativas,
que resolvem o problema de opção ortográfica não apenas
para umas palavras, mas para um conjunto de palavras com
características similares. (LEAL E ROAZZI, 2005, p.119).
Quanto às irregularidades, podemos tomar como exemplo o emprego do
S, X, e C, que em alguns casos tem a mesma pauta sonora, como em “cidade”,
“sinal” e “auxílio”. Isto torna necessária a memorização da escrita dessas
palavras, pois para elas não existem regras. Cabe ao professor desenvolver
estratégias que ajudem as crianças a memorizar palavras significativas para
elas, levando-os a entender que existem casos que não podem ser
compreendidos, para os quais não existem regras. Assim, é preciso promover o
contato dos alunos com ferramentas e instrumentos de consultas, que
possibilitem a verificação de grafias corretas, como é caso do dicionário.
Morais, Leite e Silva (2005), defendem que o dicionário deve estar à disposição
dos alunos em sala de aula desde a educação infantil, para que elas possam
se aproximar e se familiarizar paulatinamente com esse tipo de material escrito
favorecendo a compreensão de sua função social.
Portanto, o professor precisa ter bem definido o que pode ser
compreendido e o que precisa ser decorado dentro da convenção ortográfica,
distinguir o que é regular e irregular.
No trabalho com a ortografia na sala de aula, há uma preocupação dos
professores em evitar os erros dos alunos, como se estes não fizessem parte
da construção do conhecimento, não percebendo assim que o “erro” pode
significar oportunidade de discutir e refletir sobre a norma. Na maioria das
vezes não ocorre nenhuma discussão sobre os possíveis erros ou acertos dos
10
alunos. A isto, Morais (2003) prefere não denominar de ensino, visto que não
se cria nenhuma estratégia de reflexão que auxilie os alunos a avançarem, e
não se tem preocupação em entender a lógica usada ao escrever determinada
palavra.
Os erros revelam as dificuldades e as soluções criadas pelos
alunos para escrever palavras com cujas grafias não estão
familiarizados e podem funcionar como pistas para
intervenções didáticas diferenciadas que levem os alunos a
refletir sobre as convenções ortográficas. (REGO, 2005, p. 31)
Outro ponto que merece destaque é o fato de que existe uma lógica na
escrita “errada” das crianças. Elas demonstram tanto aquilo que não sabem
quanto o que já sabem sobre a norma ortográfica. Por isso, “É de fundamental
importância que o professor saiba diagnosticar e avaliar as falhas de escrita
cometidas por seus alunos, aproveitando-as como evidência do patamar de
saber já atingido e do ainda por atingir”. (LEMLE, 1991 p.42). Logo, os erros
são pistas para o professor planejar e ajudar os alunos a superar suas
dificuldades. A partir desse diagnóstico, eles podem desenvolver atividades
que os ajudem a superar dificuldades com autonomia. O aluno precisa de ajuda
para inferir sobre o sentido das normas ortográficas. É preciso respeitar o
tempo de cada aluno no processo de construção do conhecimento e para isso,
o professor deve conhecer a turma com que trabalha, escolhendo o melhor
momento para introduzir determinados conceitos.
O confronto do “certo” com o “errado” é fundamental, pois a partir dele o
professor pode definir estratégias usando o erro como objeto de estudo e
discussão e ajustando as atividades às necessidades dos alunos. De acordo
com o PCN (2000 pág. 84) “a aprendizagem da ortografia não é um processo
passivo: trata-se de uma construção individual, para a qual a intervenção
pedagógica tem muito a contribuir”. Diante disso, cabe aos professores avaliar
suas práticas e mudar o seu olhar com relação à aprendizagem da ortografia,
promovendo um ensino sistemático com a participação ativa dos alunos. Do
contrário, continuarão contribuindo com o descaso dado a esse conteúdo e
com
situações
corretamente.
de
discriminação
contra
aqueles
que
não
escrevem
11
Metodologia
Nossa pesquisa foi realizada a partir de uma abordagem qualitativa por
proporcionar uma interpretação contextualizada da realidade observada, e
ainda porque a mesma se caracteriza pela busca por compreensão. De acordo
com Chizzotti, (1998, p.79), “a pesquisa qualitativa dedica-se à análise dos
significados que os indivíduos dão às suas ações, à compreensão do sentido
dos atos e decisões dos atores sociais... a abordagem qualitativa parte do
fundamento de que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito...”.
A nossa pesquisa foi ancorada na tipologia descritiva, visto que busca
estabelecer relações entre as variáveis, pretendendo também identificar a
natureza que permeia essa relação. A pesquisa descritiva se caracteriza pelo
seu objetivo principal: “a descrição dos fatos tal qual eles se encontram e
também descobrir e observar os fenômenos, procurando descrevê-los,
classificá-los, analisá-los e interpretá-los, sem que o pesquisador faça qualquer
transferência”. Leão (2006, p.32).
Para atingir os objetivos propostos por esse trabalho, realizamos
entrevistas semi-estruturadas e observações de aulas cujo conteúdo
trabalhado foi ortografia, o que está descrito adiante. A escolha por estes
procedimentos foi feita por acreditarmos que os mesmos são instrumentos para
compreendermos o que os professores têm pensado sobre o conteúdo de
ortografia e todo o processo de ensino-aprendizagem que o envolve, bem
como, conhecer de que instrumentos o professor se utiliza para o ensino, se há
planejamento, se existe um momento reservado para explorar o conteúdo,
entre outras questões que nos ajudariam a alcançar os objetivos desta
pesquisa. Para Ludker e André (1986), as observações e descrições
desenvolvidas nas pesquisas de caráter qualitativo devem priorizar os
propósitos específicos do estudo em questão, mesmo que o observador inicie
sua coleta numa perspectiva de totalidade.
Iniciamos a nossa pesquisa a partir do estudo bibliográfico a respeito da
ortografia enquanto conteúdo e a organização da mesma, além disso, se fez
necessário o estudo sobre os discursos atuais acerca do processo de ensinoaprendizagem envolvendo este conteúdo.
12
Descrição dos procedimentos metodológicos adotados
Entrevistas
Foram entrevistadas seis professoras da rede municipal de ensino do
Recife, atuantes nas séries iniciais do Ensino Fundamental, sendo quatro
professoras do 2º ano do 2º ciclo e, duas do 1º ano do 2º ciclo. Dentre as
entrevistadas cinco tinham mais de quinze anos de magistério e apenas uma
estava atuando a pelo menos três anos.
Todas as docentes responderam a uma entrevista semi-estruturada com
quatorze questões, que envolviam situações de conhecimentos sobre o
conteúdo ortografia, quanto ao ensino e procedimentos metodológicos. No
momento da entrevista, as professoras respondiam aos questionamentos
previamente elaborados, porém com flexibilidade para fazer outras colocações
que achassem pertinentes para esclarecimento e compreensão.
O roteiro da entrevista tinha o objetivo de identificar as concepções das
entrevistadas sobre o conteúdo, bem como que conhecimentos as mesmas
possuíam sobre a organização da norma. As demais questões trataram de
conhecimentos mais específicos, a fim de possibilitar uma abordagem mais
detalhada das entrevistadas em relação aos procedimentos metodológicos,
tratamento do conteúdo, processo de ensino-aprendizagem e avaliação.
Dentre as perguntas, foram apresentadas questões que faziam as
entrevistadas se colocarem sobre o planejamento e as metas a serem
alcançadas, como também sobre a escolha dos recursos didáticos utilizados
nas aulas. Estas questões tiveram como objetivo identificar as prioridades no
momento de organizar o ensino do conteúdo de ortografia.
As entrevistas foram realizadas individualmente com as professoras que
ensinavam nas escolas, sendo gravadas e transcritas na íntegra. A partir da
transcrição das entrevistas foram geradas tabelas de categorias para
interpretação e análise dos dados.
13
Observações
A fim de conhecermos as práticas docentes em sala de aula, realizamos
a observação de duas aulas, cujo conteúdo trabalhado foi ortografia. Tais
observações tinham por finalidade a coleta de dados que nos possibilitassem
identificar as relações estabelecidas entre as práticas e os discursos docentes.
O critério de escolha das professoras se deu a partir das respostas
dadas na entrevista. Escolhemos aquelas professoras que afirmaram planejar o
ensino de ortografia e ter dias específicos na semana para trabalhar o
conteúdo, pois só assim conseguiríamos alcançar nosso foco.
O objetivo da observação foi entender a relação discurso prática das
docentes, assim como, acompanhar a dinâmica da aula e do processo de
ensino-aprendizagem
da
norma
ortográfica.
A
observação
possibilitou
identificar se as práticas realizadas pelas docentes estavam condizentes com
as concepções expostas nas entrevistas.
Fizemos duas observações, uma com cada professora, ambas em
turmas do segundo ano do segundo ciclo. Cada observação teve a duração de
uma aula, acontecendo uma no primeiro turno e a outra no segundo,
totalizando cinco horas. Utilizamos como instrumento de coleta de dados o
registro escrito, no qual descrevemos a ação dos sujeitos e as atividades
realizadas, assim como o registro das falas dos professores e alunos, coletado
através da gravação da aula.
A idéia inicial era observar uma seqüência didática, em que o conteúdo
de ortografia fosse trabalhado, possibilitando o acompanhamento e uma
análise mais consistente do processo de ensino-aprendizagem. Porém não foi
possível, pois as escolas estavam em processo de eleição para gestor, e as
professoras escolhidas para as observações estavam participando dos
debates. Todo esse processo dificultou as observações, restando apenas uma
única aula a ser observada.
Após a coleta dos dados, realizamos a transcrição do material gravado.
A análise dos dados coletados nas entrevistas e observações foi orientada
pelas bases teóricas que estruturaram nosso referencial teórico e estão
descritas adiante.
14
Dados analisados
Relação discurso / prática.
Sobre a relevância do conteúdo.
Nas entrevistas as docentes colocaram que consideram o estudo das
normas ortográficas como algo importante, devido à necessidade dos alunos
escreverem corretamente. “Ele tem que aprender a escrever corretamente”. “É
pela necessidade mesmo”. “O estudo da ortografia vai orientar pra que ele não
cometa tantos erros”. “Por que é super importante a pessoa escrever correto”.
“A escrita e a ortografia... é prioridade numa turma de quarta série”.
Mas, mesmo diante do posicionamento das professoras ao afirmarem
que a ortografia é importante, reconhecendo que a mesma possui um papel
social, a maioria afirmou não trabalhar a mesma como um conteúdo específico,
pois não determinam dias para o seu ensino, nem o planejam. Contrapondo-se
a Morais.
Deixar de ensinar ortografia também me parece uma opção
ingênua, com sérias implicações sociais e políticas... Penso
que, ao negligenciar sua tarefa de ensinar ortografia, a escola
contribui para a manutenção das diferenças sociais, já que
ajuda a preservar a distinção entre bons e maus usuários da
língua escrita. (2003, p. 24).
Sendo assim, a ortografia não é ensinada de forma sistemática e
reflexiva, impossibilitando que o aluno se aproprie das convenções ortográficas
a partir de sua compreensão e entendimento de como a mesma está
organizada, não se detendo apenas a memorização da escrita das palavras.
Algumas docentes afirmaram trabalhar o conteúdo ortográfico todas as
vezes que surge uma palavra que os alunos não conhecem, seja em qual for a
disciplina, como fica evidente nestas falas de duas professoras, quando
questionadas sobre a freqüência com que ensinam ortografia: “Geralmente,
todos os dias, né? Mesmo assim, que eu não faça diretamente uma atividade
de ortografia, mas eu trabalho. Eu tô trabalhando ciências, então aparece uma
palavra e vejo que eles estão errando muito, então eu aproveito, e mais na
15
frente eu trabalho aquele erro.”, “Eu trabalho todos os dias... hoje é aula de
Ciências aí eu vou ter o momento, as palavras que eles não conheciam que
foram ditas hoje”. Vimos também, através das observações, que nestes
momentos o trabalho com ortografia tem se reduzido a um recurso de correção
da escrita errada, “Eu faço um trabalho assim de correção, começo o ditado,
faço com ele a escrita da palavra... eu mostro pra ele onde está errado... leia
comigo e mostre onde foi que errou...”.
Afirmações como estas evidenciam que o trabalho com ortografia tem se
caracterizado pela falta de sistematização e sequenciação do ensino, pois se
espera que os alunos apresentem erros na grafia das palavras, para então,
trabalhar ortografia, porém se resumindo, muitas vezes, a verificação da escrita
realizada pelo aluno. Há correção, mas não há reflexão sobre o que está sendo
corrigido. Deste modo, deixa-se de dar ao conteúdo ortográfico a devida
importância que ele tem, uma vez que se tratar de uma convenção necessária
para compreender e ser compreendido na comunicação escrita. Estudiosos
afirmam ser relevante que a escola proporcione as crianças momentos para
suas próprias descobertas, entretanto, é preciso sistematizá-las e fazer com
que as crianças pensem sobre o que escrevem. Contudo, através das
observações vimos que “... as palavras são ditadas, corrigidas e não há
nenhuma discussão sobre por que as palavras são escritas de um modo e não
de outro”. (SILVA E MORAIS, 2005, p. 65).
As professoras demonstraram confundir o conteúdo de ortografia com
outros eixos da Língua Portuguesa, como: gramática e apropriação do sistema
de escrita alfabética, bem como respondeu uma docente quando perguntada
sobre o que ensinar em ortografia, “de início eu ensino os padrões silábicos, eu
começo com eles”. Em uma das aulas observadas a professora iniciou as
atividades com um jogo que trabalhava a construção de palavras a partir das
sílabas, o que em nossa opinião é um excelente recurso para trabalhar
ortografia, porém no decorrer da mesma a professora pediu que os alunos
dissessem o feminino, o masculino e o plural de palavras ditas por elas,
analisassem frases para dizer o sujeito e o adjetivo e conjugassem verbos,
“lembra que vocês viram verbo a semana toda? Heim? Em português? Vamos
lá. Você conjugue o verbo falar no presente do indicativo. Falar. Todo mundo
16
ouvindo, prestem atenção”. “Desde o momento que eu trabalho uma leitura a
gente tá trabalhando ortografia”
A prática apresentada pelas duas docentes durante as observações,
evidencia que as mesmas entendem ortografia como língua portuguesa no
geral. Essa concepção também pôde ser percebida nas entrevistas das demais
professoras. Sendo assim, foi possível entendermos que as docentes
consideram a ortografia como um elemento importante, contudo, em sua
maioria, não desenvolvem um trabalho onde o ensino de ortografia seja
sistemático, no qual a mesma seja adotada como conteúdo específico.
Sobre a aprendizagem ortográfica na perspectiva docente.
Acreditamos numa perspectiva de ensino da ortografia na qual a escola
assuma seu papel como responsável por criar situações didáticas que favoreça
aos alunos momentos de reflexão na aprendizagem da língua escrita, partindo
da compreensão de suas normas e funcionalidade, conforme coloca Silva e
Morais, (p. 62, 2005) “a escola deve ensinar ortografia, mas tratando-a como
um objeto de reflexão”. Contudo, para que isso seja possível é necessário que
o professor tenha conhecimento à cerca de como pode se dar a aprendizagem
das normas ortográficas, tendo claro o que se propõe ensinar em ortografia e
de como a mesma está organizada.
Um dos aspectos que se confirmou em nossa pesquisa é que as
professoras apesar de terem afirmado que o conteúdo de ortografia pode ser
refletido, pois quando questionadas se na aprendizagem da ortografia há
momentos para reflexão, todas responderam positivamente, como podemos
verificar na fala de uma das docentes, “com certeza, com certeza”, “há reflexão,
todo ensino tem reflexão, se não fica só na memorização”. Porém durante as
aulas que observamos não ocorreu qualquer espaço para que os alunos
refletissem,
discutissem
ou
construíssem
hipóteses
sobre
a
escrita
ortograficamente correta das palavras. Assim, se observa que não há uma
relação entre o discurso e a prática.
No momento das observações pudemos analisar como as professoras
se comportam diante dos erros na escrita dos alunos, vimos que quando os
17
mesmos erravam a professora chamava-o para corrigir. Está correção era feita
sem reflexão, em nenhum momento se perguntou por que o aluno escreveu de
tal forma. Não havia qualquer intenção de compreender o porquê do aluno ter
errado na escrita daquela palavra, qual foi o raciocínio usado por ele, qual a
lógica para tal escrita. Pois, conforme coloca Leal e Roazzi (2005), é preciso
que o professor procure entender que raciocínio, que tática o aluno utilizou
para escrever determinada palavra convencionalmente errada.
Ainda de acordo com Rego (2005), o professor precisar trabalhar a partir
das hipóteses construídas pelos alunos na hora da escrita “errada” das
palavras, esse momento o ajudará a perceber a situação do aluno com relação
ao conteúdo de ortografia, favorecendo ao docente organizar o ensino a partir
dos erros mais recorrentes. Como ressaltar os autores.
Nesta perspectiva, o erro muda completamente de significado.
Os erros de grafia e suas formas de análise tornam-se
ferramentas privilegiadas que o professor tem à disposição
para compreender e conhecer não apenas as estratégias com
que a criança enfrenta os diferentes tipos de tarefas de
escrita... O erro deixa de ser visto como algo que precisa ser
rapidamente superado e passa a ser visto pelo professor como
uma fonte importante de conhecimento dos processos de
aquisição da língua escrita. (LEAL E ROAZZI, 2005, p. 100).
A correção coletiva da atividade proposta por uma das professoras
observadas não favorecia espaço para discussão. A correção se resumia a
escrita correta da palavra que o aluno inicialmente escreveu errado. “isso aqui
é o quê? MATOU, MA? aqui tem MA?... conserte. PATOU foi ótimo. Aqui é “É”
ou “E”? “E” (aluna). Soletre aqui a palavra zoológico. Z-o-o-l-o-g-i-c-o (aluna).
Qual a sílaba que tem acento? Zoo-LÓ-gi-co (a professora cantando a palavra).
Ló (aluna)”.
“Compreensão”. Antes de P e B se escreve? “M” (aluna).
Compreensão com “S” e dois “E”. Observe a escrita, “com-pre-en-são”. “Co-ração”, não é “co-ra-çao”, é com “Ç” e “ÃO”. Aqui, a palavra é “estava”? “Estava”,
não é “tava”.
Com a segunda professora até que houve uma proposta de discussão,
porém a mesma ocorreu em torno das perguntas que a professora fez com
relação ao texto, questões referentes a interpretação e não a ortografia. Nas
18
duas aulas observadas percebemos a ausência de reflexão, discussão e
construção da consciência sobre as normas ortográficas.
As professoras demonstram ignorar que na aprendizagem da ortografia
é necessário tomar como ponto de partida a forma como a mesma está
organizada, Conforme coloca uma das professoras, “em casos de regras eles
(os alunos) memorizam”. Esta afirmação revela o desconhecimento em torno
da organização e do processo de aprendizagem da ortografia, se contrapondo
a Morais (2003), pois o mesmo afirma que na organização da ortografia
existem casos que realmente precisam ser memorizados, as irregularidades,
pois não existem regras para os mesmos. Para isso cabe a nós memorizar
aquelas palavras mais freqüentes do nosso vocabulário e quando isso não for
possível utilizar os materiais de consulta como o dicionário. Mas, no caso das
regularidades pode-se criar momentos de reflexão e sistematização para
aprendizagem dos mesmos. Nesse caso os alunos podem e devem ser
levados a refletir e compreender o que será internalizado.
Sobre o planejamento e a organização do ensino.
Nas entrevistas apenas as duas professoras selecionadas para
observação afirmaram ter dias específicos para ensinar ortografia, entretanto,
estas demonstraram não ter clareza a respeito do que ensinar no conteúdo de
ortografia. Pois, durante as observações verificamos que o conteúdo foi
trabalhado de forma descontextualizada, sem sistematização, não havia
relação entre as atividades propostas.
Grande parte das professoras entrevistadas relatou que ensinam
ortografia quando trabalham com produção textual, a partir do texto. No entanto
durante as observações verificamos que o trabalho com ortografia a partir da
produção textual dos alunos limita-se a verificação dos erros ortográficos dos
mesmos. Como podemos perceber na fala de uma das docentes, “Vamos fazer
a correção, vai ser assim, se você achar que a palavra tá certa você coloca um
“C”, se estiver errada coloca um “E”, pra depois a gente vê quantas acertou, aí
vai escrever comigo. Atenção, não escreve nem apaga as palavras, ok?”.
Sendo assim, o trabalho com ortografia na sala de aula se restringe a
estas atividades, e a consulta aos dicionários, quando os mesmos servem
19
apenas para verificar o significado das palavras não conhecidas pelos alunos.
Estas atividades não favoreceram nenhum momento de reflexão. Contrapondose a Silva e Morais (2005, p.67), ao afirmarem que em ortografia “é necessário
construirmos situações em que os estudantes sejam solicitados a pensar, a
refletir, discutir e a explicitar o que sabem sobre a ortografia de sua língua. E,
com isso, tomar consciência das regularidades da norma ortográfica”.
Percebemos nas entrevistas que a produção textual a qual as professoras se
referem muitas vezes é o ditado, citado por todas as docentes como uma
atividade eficaz para aprendizagem da ortografia.
Todas as docentes colocaram em suas falas que têm feito pesquisas
para coletar um material mais rico, para trabalhar o conteúdo ortográfico, não
se limitando apenas ao livro didático. Observamos que as professoras utilizam
materiais interessantes e diversificados como: textos e jogos, o que é
importante para tornar as aulas dinâmicas e participativas. Entretanto, mesmo
se utilizando de diversos suportes didáticos para tornar as aulas mais atrativas
para os alunos, acreditamos que ainda falta uma proposta de sistematização e
definição de metas para ensinar o conteúdo de ortografia. “Saber aonde se
deseja chegar, quer em ortografia quer em outros domínios do conhecimento,
parece-nos um principio fundamental para organização de qualquer processo
de ensino”. (MORAIS, 2005, p. 46).
Acreditamos que essa situação pode ocorrer devido as docentes não
terem passado por uma formação que possibilitasse uma compreensão de que
é possível trabalhar o conteúdo de ortografia de forma sistemática e reflexiva.
O momento delas como alunas na aprendizagem desse conteúdo também
pode ter influenciado na forma como as docentes realizam esse trabalho, pois
elas podem ter internalizado a proposta de aprendizagem das normas
ortográficas como estas lhes foram ensinadas.
Outro ponto relevante pode ser a falta de formação continuada
abordando o ensino do conteúdo de ortografia para as séries iniciais. Como
pudemos perceber com as professoras entrevistadas, cinco delas afirmaram ter
mais de quinze anos de magistério. Isso pode ser uma dos motivos que tenha
favorecido o trabalho assistemático com ortografia.
20
Sobre a avaliação da aprendizagem ortográfica.
Um ponto a ser ressaltado diz respeito ao processo avaliativo. No que se
refere a este aspecto as professoras entrevistadas afirmaram fazer a avaliação
da aprendizagem ortográfica de seus alunos a partir da produção textual e da
reescrita dos textos. Contudo, percebemos que o ato que ocorre nesses
momentos tem sido apenas o de verificar se a forma como a palavra foi escrita
pelo aluno está certa ou errada, não se avalia o que em ortografia o aluno já
sabe, para então estabelecer metas considerando o que ele ainda precisa
aprender, como por exemplo: que regularidades ele já compreende? Qual não
compreende? Quais irregularidades ele já conhece e memorizou? Assim como
em Morais (2005, p. 59), ”defendemos que para superar o velho ensino de
ortografia limitado à verificação do que os alunos já sabem, é necessário
mapear o que eles já aprenderam e o que ainda precisam ser ajudados a
internalizar de nossa norma”.
Foi possível perceber também que no momento de avaliar a
aprendizagem ortográfica dos alunos, são considerados muito mais os erros
em detrimento dos acertos, ou seja, só se fala sobre as normas ortográficas
que regem a escrita de determinada palavra se esta for desobedecida pela
maioria dos alunos. Mesmo assim, isso ocorre de forma solta, o erro acaba
apenas sendo detectado, porém não desencadeia momentos de discussão e
reflexão acerca da grafia da palavra utilizada pelos mesmos.
Desta forma, as docentes afirmaram nas entrevistas, que esperam os
erros ortográficos ocorrerem para só então, ensinar sobre a escrita das
palavras. Isto pode ser evidenciado na fala de uma das professoras: “... faço
ditado na sala, aí eu peço pra que eles troquem o material. Aí então, um vai
corrigir o erro do outro, né? Aí, eu coloco no quadro, aí um vai corrigir o erro do
outro”. Essa visão confirma a idéia de autores mencionados em nosso
referencial teórico de que há professores que dão mais ênfase a verificação da
escrita ortograficamente correta que ao ensino da mesma de maneira
sistemática e reflexiva. Isto demonstra que avaliação em ortografia na sala de
aula tem sido desenvolvida mais numa perspectiva de verificação que de
diagnóstico do desenvolvimento do processo de aprendizagem dos alunos.
Estas perspectivas evidenciam que a avaliação da aprendizagem ortográfica
21
não acontece para saber que conhecimentos o aluno já construiu sobre a
norma, mas tem servido apenas como instrumento de verificação da escrita e
cobrança para saber se o aluno sabe ou não escrever corretamente.
Considerações finais
Esse estudo teve como principal objetivo compreender as relações entre
as concepções dos professores e sua prática relativa ao ensino das normas
ortográficas. No processo de construção do mesmo foram realizados estudos
bibliográficos sobre a ortografia no que se refere a sua organização, ensino e
aprendizagem, entrevistas com seis docentes que atuam em turmas de
primeiro e segundo ano do segundo ciclo, em escolas da rede municipal do
Recife, das quais foram selecionadas duas para as observações. As
observações aconteceram em aulas que o conteúdo trabalhado foi ortografia,
uma aula com cada docente. No intuito de atender aos objetivos propostos
procedemos à análise dos dados com base no nosso estudo bibliográfico.
Nossa hipótese de que, mesmo complexo o ensino da ortografia
depende de como o professor a tem compreendido, se confirmou à medida que
as entrevistas e observações revelaram que o desconhecimento das docentes
sobre a organização das normas ortográficas, bem como a ausência de sua
compreensão de que a ortografia é um conteúdo especifico, se refletiu em suas
práticas.
Portanto, nos propomos entender até que ponto os materiais e estudos
atuais que trazem uma proposta construtivista de ensino-aprendizagem das
normas ortográfica, a partir da sistematização, reflexão e compreensão do
conteúdo enquanto objeto de conhecimento, já estão sendo apropriados pelos
professores e como estas concepções permeiam suas práticas. Pois, durante a
coleta de dados quando as docentes falaram sobre suas concepções a respeito
do ensino-aprendizagem da norma, as mesmas em alguns momentos
demonstraram ter noção da importância de se trabalhar ortografia, porém em
outros momentos demonstram não ter uma concepção bem estabelecida por
desconhecerem alguns aspectos fundamentais como a própria organização da
norma ortográfica.
22
Acreditamos que é fundamental no momento de ensinar ortografia, que o
docente tenha bem definido o porquê e como trabalhar as convenções
ortográficas. Como observa Morais (2003, p.23) “Assim como não se espera
que um indivíduo descubra sozinho as leis de trânsito - outro tipo de convenção
social -, não há por que esperar que nossos alunos descubram sozinhos a
escrita correta das palavras.” Logo, não podemos aceitar que a aprendizagem
das normas ortográficas se dê de forma espontaneísta, sem propor ao
educando uma aprendizagem sistemática, que possibilite reflexão, sendo o
mesmo solicitado a pensar sobre a língua escrita, atuando como sujeito na
construção do conhecimento.
Deste modo, o objetivo maior do nosso trabalho não foi constatar se as
docentes que participaram desta pesquisa estão certas ou erradas em sua
prática no momento de trabalhar o conteúdo de ortografia, até mesmo por
acreditarmos que o universo investigado foi muito resumido diante da ampla
rede municipal de ensino da cidade do Recife, sendo assim, consideramos
necessário a realização de novas pesquisas que contemplem uma quantidade
maior de sujeitos em suas práticas docentes, para um diagnóstico mais amplo
sobre os processos de ensino-aprendizagem da norma ortografia.
Diante do exposto, este trabalho nos trouxe novos horizontes para
realização de outras pesquisas. No intuito de contribuir com a discussão do
cenário atual e provocar mudanças efetivas no ensino da ortografia, para isso
acreditamos ser de extrema relevância responder algumas questões. O que
falta para que os professores das séries iniciais trabalhem ortografia como a
mesma é proposta pelos estudiosos da área? Será que o problema está na
formação inicial ou na falta de formação continuada? Será a falta de materiais
atualizados que permitam ao docente um estudo mais direcionado que
favoreça outro posicionamento como relação ao conteúdo? Seria o livro
didático que não tem ajudado o professor como deveria? Ou seria uma
concepção construída ao longo de uma história como educando, quando o
conteúdo lhe foi ensinado a partir da memorização e repetição apenas?
Vale ressaltar que, como mencionado em nosso referencial teórico, a
ortografia é uma convenção social que surgiu devido a uma necessidade da
sociedade de melhorar a comunicação escrita. Desta forma, a ortografia tem
uma função social, pois auxilia os indivíduos no entendimento do que foi
23
escrito, não permitindo que as particularidades da língua oral de cada região,
por exemplo, seja transferida para a linguagem escrita, pois a ortografia
estabelece parâmetros no momento que o sujeito está escrevendo. Não
acreditamos que seria fácil se cada um escrevesse tal qual fala como defende
o texto abaixo, porque muito do que se escreve deixaria de ser compreendido,
ou no mínimo precisaria de muita paciência, esforço e bom senso do leitor para
compreender o que se quis dizer ao escrever.
Pois é. U purtuguêis é muito fáciu di aprender, purqui é uma
língua qui a genti iscrevi ixatamenti cumu si fala. Num é cumu
inglêis qui dá até vontadi di ri quandu a genti discobri cumu é
qui si iscrevi algumas palavras. Im purtuguêis não. É só
prestátenção. U alemão pur exemplu. Qué coisa mais doida?
Num bate nada cum nada. Até nu espanhol qui é parecidu, si
iscrevi muito difenrenti. Qui bom qui a minha língua é u
purtuguêis. Quem soubé fala sabi iscrevê. (JÔ SOARES).
Referências bibliográficas
BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
CHIZZOTTI, Antônio. Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. São Paulo:
Cortez, 1998.
GUIMARÃES, Gilda & ROAZZI, Antônio. A importância do significado na
aquisição da escrita ortográfica. In: MORAIS, A. G. (org). O Aprendizado da
Ortografia. Belo Horizonte: Autêntica. 2005.
LEAL, Telma Ferraz & ROAZZI, Antônio. A Criança Pensa... e Aprende
Ortografia. In: MORAIS, A. G. (org). O Aprendizado da Ortografia. Belo
Horizonte: Autêntica. 2005.
LEÃO, Lourdes Meireles. Metodologia da pesquisa aplicada às ciências
naturais. Recife: Ed. Da UFRPE, 2006.
LEMLE, Miriam. Guia Teórico do Alfabetizador. São Paulo: Ática, 1991.
LÜDKE, M. & ANDRE, M.E.D.A. Pesquisa em Educação: abordagem
qualitativa. São Paulo: EPU, 1986.
24
MELO, Kátia Leal Reis de. Refletindo sobre ortografia na sala de aula. In:
SILVA, A.; MORAIS, A. G.; MELO, K. L. R. (org). Ortografia na sala de aula.
Belo Horizonte: Autêntica. 2005.
MELO, Kátia Leal Reis de & REGO, Lúcia Lins Browne. Inovando o ensino da
ortografia na sala de aula. In: Cadernos de Pesquisa. Fundação Carlos
Chagas, Nº. 105. São Paulo: Cortez, 1998.
MORAIS, A. G. Ortografia: ensinar e aprender. São Paulo: Ática, 2003.
_______. Ortografia: Este Peculiar Objeto de Conhecimento. In: MORAIS, A. G.
(org.). O Aprendizado da Ortografia. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica. 2005.
MORAIS, Artur Gomes de; LEITE, Kátia Maria Barreto da Silva & SILVA,
Alexsandro da. Dicionário: prazer em conhecê-lo. In: SILVA, A.; MORAIS. G.;
MELO, K. L. R. (org). Ortografia na sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica.
2005.
REGO, Lúcia Lins Browne, O aprendizado da norma ortográfica. In: SILVA, A.;
MORAIS. G.; MELO, K. L. R. (org). Ortografia na sala de aula. Belo Horizonte:
Autêntica. 2005.
SILVA, Alexsandro da & MORAIS, Artur Gomes de. Ensinando ortografia na
escola. In: SILVA, A.; MORAIS. G.; MELO, K. L. R. (org). Ortografia na sala de
aula. Belo Horizonte: Autêntica. 2005.
SOARES, JÔ. Português é fácil de aprender por que é uma língua que se
escreve exatamente como se fala. In: MESQUITA, R. M. Gramática da Língua
Portuguesa. Barra Funda: Saraiva, 1998.
TEBEROSKY, A. e COLOMER, T. Aprender a ler e escrever: uma proposta
construtivista. Porto Alegre: Artmed, 2003.
Download

1 Ensino de ortografia: Concepção e prática docente Renata Felix