ROBERTA JOVCHELEVICH
A CRÔNICA NO JORNAL:
UMA LEITURA DE
CAIO FERNANDO ABREU
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM
COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
PUC-SP
SÃO PAULO
2005
1
ROBERTA JOVCHELEVICH
A CRÔNICA NO JORNAL:
UMA LEITURA DE
CAIO FERNANDO ABREU
Dissertação
apresentada
Examinadora
da
Pontifícia
à
Banca
Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE
em
Comunicação
e
Semiótica,
sob
a
orientação da Professora Doutora Cecilia
Almeida Salles.
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM
COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
PUC-SP
SÃO PAULO
2005
2
_____________________________________
Profª Drª Cecília Almeida Salles (orientadora)
_____________________________________
_____________________________________
3
Para Cacá
e Dani
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço imensamente à PUC-SP, universidade na qual tive a
oportunidade de trabalhar, entre novembro de 1997 e janeiro de 2005, e cursar
a pós-graduação com bolsa de estudos integral. Personifico os meus
agradecimentos ao reitor Antonio Carlos Ronca e equipe, especialmente aos
assessores de comunicação Judi Cavalcanti (1994 – 1999) e Laurindo Lalo
Leal Filho (2000 – 2004), que me apoiaram nessa empreitada acadêmica.
Agradeço ao excelente corpo docente do Programa de Estudos PósGraduados em Comunicação e Semiótica e à generosidade das professoras
doutoras Lúcia Nagib, que aceitou me orientar quando eu ainda pensava em
pesquisar a linguagem do cinema, e Cecilia Almeida Salles, principalmente,
que antes de me acolher como orientanda, me auxiliou a entender um projeto
de pesquisa.
Agradeço também à minha família, ponto de apoio e porto seguro.
5
RESUMO
A CRÔNICA NO JORNAL:
UMA LEITURA DE CAIO FERNANDO ABREU
A pesquisa A crônica no jornal: uma leitura de Caio Fernando Abreu tem o
objetivo de entender e esclarecer as possibilidades da crônica como gênero
jornalístico e literário, através do estudo das crônicas do gaúcho Caio Fernando
Abreu (1948 – 1996), publicadas nos jornais O Estado de S. Paulo e Zero Hora
(Porto Alegre) e reunidas no livro Pequenas epifanias (ed. Sulina). A escolha
do autor se deve ao estilo predominantemente literário, intimista e confessional
que ele imprime aos seus textos – e que o colocam na mesma tradição estética
de Clarice Lispector, cronista do Jornal do Brasil nos anos 70. Tal estilo
contrasta sobremaneira com a linguagem jornalística, evidenciando a origem
da crônica: o folhetim francês, gênero que inaugurou a relação entre mídia e
ficção na América Latina. No Brasil, a crônica prosperou como gênero do
jornalismo e da literatura, ambigüidade típica do hibridismo de gêneros que é
fruto da tradição da ruptura latino-americana. Caracterizada, geralmente, por
textos leves, humor e linguagem coloquial associados ao cotidiano, a crônica
tem em Caio Fernando Abreu um autor singular, cujo olhar introspectivo
ressalta a condição humana. Se por um lado, ele incorpora o cotidiano em suas
narrativas, por outro desenvolve monólogos interiores repletos de sensações e
sentimentos, bem distantes do humor e da leveza característicos do gênero. Ao
nos debruçarmos sobre as suas crônicas, nosso objetivo foi o de captar as
nuances do gênero e, ao mesmo tempo, perscrutar a função desempenhada
pela crônica dentro do jornal, no que se refere à formação de público-leitor para
o próprio veículo e, paralelamente, para a literatura. Para tanto, recorremos às
teorias literárias, da comunicação e do jornalismo exploradas por autores como
Antonio Candido, Walter Benjamin, Leyla Perrone-Moisés, Roman Jakobson,
Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari.
Palavras-chave: crônica, novo jornalismo, gênero híbrido, discurso literário,
discurso jornalístico, intertextualidade.
6
ABSTRACT
THE CHRONICLE IN THE NEWSPAPER:
A READING OF CAIO FERNANDO ABREU
The research The chronicle in the newspaper: a reading of Caio
Fernando Abreu has the objective to understand and to clarify the possibilities
of the chronicle as journalistic and literary sort, through the study of the
chronicles of the brazilian Caio Fernando Abreu (1948 - 1996), published in the
newspapers O Estado de S. Paulo and Zero Hora (Porto Alegre, RS), and
congregated in the book Little epiphanys (Sulina). The choice of the author if
must to the predominantly literary and confessional style that it prints to its texts
– and that they place it in the same aesthetic tradition of Clarice Lispector,
chronicler of the Jornal do Brasil in years 70. Such style contrasts excessively
with the journalistic language, evidencing the origin of the chronicle: french
feuilleton, sort that inaugurated the relation between media and fiction in Latin
America. In Brazil, the chronicle prospered as sort of the journalism and
literature, typical ambiguity of the hybridism of sorts that is fruit of the tradition of
the Latin American rupture. Characterized, generally, for light texts, mood and
coloquial language associates to the daily one, the chronicle have in Caio
Fernando Abreu a singular author, whose introspective look standes out the
condition human being. If on the other hand, it incorporates the daily one in its
narratives, for another one develops inners monologues replete of sensations
and feelings, very distants of the characteristic mood and the slightness of the
sort. To the one in them to lean over on its chronicles, our objective was to
catch variations of the sort and, at the same time, to inside investigate the
function played for the chronicle inside the newspaper, in that if it relates to the
formation of public-reader for the proper printed publication and, parallel, for
literature. For in such a way, we appeal to the literary, communication and the
journalism theories explored by authors as Antonio Candido, Walter Benjamin,
Leyla Perrone-Moisés, Roman Jakobson, Muniz Sodré and Maria Helena
Ferrari.
Keywords: chronicle, new journalism, hybrid sort, literary speech, journalistic
speech, textual connections.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................... 10
CAPÍTULO 1 – PANORAMA DA CRÔNICA
1.1 A crônica e seu habitat ............................................................................ 14
1.2 Gênero híbrido .......................................................................................... 16
1.3 A crônica e a reportagem ......................................................................... 18
1.4 O novo jornalismo ..................................................................................... 21
1.5 Pacto com o leitor .................................................................................. 24
1.6 Tradição da ruptura .............................................................................. 25
1.7 Gênero libertário ..................................................................................... 29
1.8 O importante e o urgente .................................................................... 32
1.9 Um gênero indefinido .............................................................................. 36
CAPÍTULO 2 –
A CRÔNICA DE CAIO FERNANDO ABREU: DIÁLOGOS
2.1 Pequena biografia .................................................................................. 42
2.2 A crônica de Caio Fernando Abreu ........................................................ 43
2.3 Imaginário X real ................................................................................... 45
2.4 Retrato de uma época ....................................................................... 48
2.5 A presença de Clarice ....................................................................... 51
2.6 Diálogos ................................................................................................. 54
2.7 Temas ..................................................................................................... 59
2.8 Pequenas epifanias ............................................................................. 60
2.9 Procedimentos textuais ......................................................................... 63
8
CAPÍTULO 3 – TEXTURAS: ELEMENTOS DA CRÔNICA
3.1 Oralidade na escrita ................................................................................. 72
3.2 Tom intimista ............................................................................................. 74
3.3 A presença da cidade ............................................................................... 75
3.4 Relação com a ficção ................................................................................ 77
3.5 Autor: protagonista .....................................................................................78
3.6 Realidade com uma dose de poesia ..................................................... 82
CONCLUSÃO ............................................................................................... 87
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 89
Palestras assistidas ....................................................................................... 92
ANEXOS (CRÔNICAS)
1. Pequenas epifanias ......................................................................................93
2. As primeiras azaléias .................................................................................96
3. Pálpebras de neblina ................................................................................. 99
4. Última carta para além dos muros ............................................................. 102
5. Autógrafos, manias, medos e enfermarias .................................................105
9
“Transcrevendo, copiando, aprendo a contar uma vida,
de mais na primeira pessoa, e tento compreender,
desta maneira, a arte de romper o véu que são as palavras
e de dispor as luzes que as palavras são.”
José Saramago,
Manual de Pintura e Caligrafia
10
INTRODUÇÃO
Devo dizer que a crônica foi o que me atraiu para a leitura de jornais. No
início dos anos 80, estava eu com 10 anos de idade e dois objetos, de repente,
despertavam o meu interesse: o jornal e a máquina de escrever portátil de meu
pai.
O “Diário da Noite” era o periódico que circulava em casa, trazendo
regularmente a crônica de Antônio Contente. Não lembro dos temas, nem
exatamente o estilo, mas eram histórias curtas e interessantes, condição talvez
suficiente para atrair a leitura de uma criança.
Paralelamente, na escola, solicitavam a leitura da coleção “Para Gostar
de Ler”, da editora Ática, que reunia crônicas dos mestres Rubem Braga,
Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond de Andrade,
além de Luís Fernando Veríssimo, Carlos Eduardo Novaes, José Carlos
Oliveira e Lourenço Diaféria.
Costumava selecionar alguns dos textos, geralmente em função do
tamanho menor, para copiá-los na máquina de escrever. Foi assim, aliás, que
aprendi a datilografar, naquela pequena máquina portátil laranja, que há
tempos virou sucata.
Já a coleção – quer dizer, parte dela, os volumes 1, 2, 3, 5 e 7, além do
6, que traz poesias de Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Mário Quintana e
Vinícius de Moraes – permanece firme em minha estante. E foi com surpresa
que (re) descobri, no início da pesquisa bibliográfica para essa dissertação, que
o prefácio do volume 5 era o célebre texto de Antonio Candido, “A vida ao résdo-chão”, referência fundamental em qualquer trabalho sobre crônica.
Sem saber, esse percurso doméstico, quase lúdico, por entre crônicas e
teclas de datilografia, já apontava para o meu futuro profissional e acadêmico.
No vestibular, em 1987, optei por Jornalismo, curso que fiz na Faculdade de
11
Comunicação Social Cásper Líbero, em São Paulo. Foi lá que, certo dia, uma
amiga me mostrou um texto copiado, Pequenas epifanias (ver anexo 1), de
Caio Fernando Abreu, escritor que eu via constantemente caminhando pelas
ruas dos Jardins e cuja única referência literária que eu tinha até então era a
peça Morangos mofados, inspirada na obra homônima do autor, que assisti em
1989. Na época, eu, leitora da Folha de S. Paulo, não sabia que ele escrevia
crônicas para o Estadão.
O tal texto teve um poder encantatório à primeira lida. Fiz uma cópia e a
guardei para ter comigo e reler quando quisesse. Não queria me perder
daquele texto, ele se tornou necessário na minha vida. Só me desvencilhei
daquelas duas folhas de papel quando descobri a coletânea de crônicas do
autor, em que a pequena epifania literária não só é a primeira do livro como dá
nome ao mesmo.
Encontrei o livro, aliás, quando me inscrevi como aluna especial no
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUCSP, em 1998. Me matriculei na disciplina Poética da Mídia, ministrada pelo
professor Fernando Segolin, e apresentei um seminário sobre o texto, na
intenção de explicitar um exemplo de poética na mídia.
O resultado foi o melhor possível para quem ainda estava em dúvida
sobre a carreira acadêmica. E, como não poderia deixar de ser, acabou
estimulando o desenvolvimento do tema nesta dissertação de mestrado.
O nosso objetivo aqui, entre outros, foi o de verificar a função
desempenhada pela crônica dentro do jornal, no que se refere à formação de
público-leitor para o próprio veículo e, paralelamente, para a literatura.
Nessa tarefa, nos concentramos nas crônicas de Caio Fernando Abreu
publicadas em O Estado de S. Paulo e no Zero Hora e, posteriormente,
reunidas no livro Pequenas epifanias. Procuramos encontrar os elementos
comuns nos diversos textos para mostrar como é a crônica assim feita por esse
escritor e, ao mesmo tempo, discutir esse gênero jornalístico/literário, tendo
12
como apoio uma ampla bibliografia sobre crônica, além de teorias da
linguagem e da comunicação.
A pesquisa está estruturada em três capítulos:
1. Panorama da crônica, que traz as origens desse gênero do jornalismo
literário brasileiro, ressaltando sua condição híbrida e, conseqüentemente, a
dificuldade de demarcá-lo numa definição precisa;
2. A crônica de Caio Fernando Abreu: diálogos, onde apontamos as
referências do cronista, seus temas e procedimentos textuais que compõem
o seu estilo;
3. Texturas – elementos da crônica, em que listamos os elementos que
compõem a crônica (oralidade, cotidiano, relação com a ficção, autor como
protagonista) e que costumam estar presentes em qualquer texto do
gênero, ressaltando as peculiaridades de Caio F. Abreu.
13
CAPÍTULO 1
PANORAMA DA CRÔNICA
14
1.1
A crônica e seu habitat
Na era da informação eletrônica, em que os meios de comunicação
impressos se reformulam para não perder o interesse do público, reduzindo o
espaço editorial e diminuindo o tamanho dos textos jornalísticos, o espaço da
crônica parece não se abalar. Desde o século 19, este pequeno gênero literário
de nossa imprensa nada contra a corrente e se perpetua na mídia impressa
nacional.
Mesmo sendo uma característica peculiar dos jornais – e da literatura –
brasileiros, a crônica, especialmente a crônica literária que não é circunstancial,
ou seja, não está vinculada aos fait-divers políticos, econômicos e esportivos,
entre outros, que engrossam as notícias do dia-a-dia, parece até deslocada de
seu habitat.
Na sua particularidade literária, porém, ela não se intimida em fazer
presença em meio às notícias do dia-a-dia. A sua natureza livre a desata de
qualquer compromisso com a realidade, matéria-prima do jornalismo.
Mas literatura e jornalismo estão intimamente ligados, ainda que suas
intenções como discurso narrativo sejam distintas. Segundo Manuel Ángel
Vázquez Medel, as relações entre jornalismo e literatura são múltiplas e
extraordinariamente variadas.
“As reflexões de Roman Jakobson sobre as funções internas da
linguagem nos permitem apreciar que, no caso do discurso jornalístico,
deve ser dominante a função referencial, por ser a que articula sua
funcionalidade informativa e sua vontade de construir discursos
baseados em fatos reais, que correspondam a acontecimentos
extradiscursivos. No caso dos discursos literários, esteja ou não
presente a função referencial, deve dominar a função poética ou
estética, que reclama atenção sobre o próprio texto e por isso tem, por
um lado, maior liberdade referencial e, pelo outro, maiores restrições
expressivas (já que o plano da expressão se articula fortemente com
aquele do conteúdo).” (2002, p. 23 e 24)
15
Para ilustrar melhor a presença do discurso literário dentro do jornal,
escolhemos as crônicas do jornalista e escritor gaúcho Caio Fernando Abreu
(1948-1996), que foi cronista do jornal O Estado de S. Paulo, entre abril de
1986 e dezembro de 1995 – excetuando o período de 1989 a 1992.
O grande interesse sempre despertado pelos textos de Caio F. Abreu
resultou na coletânea Pequenas epifanias, organizada por Gil França Veloso e
publicada em 1996. O livro reúne crônicas escritas na primeira pessoa do
singular, onde, num tom confessional, o narrador se despe ao leitor, revelando
toda a perturbação de sua alma, ao mesmo tempo em que, com o olhar de
cronista, relata suas impressões sobre metrópoles, viagens, encontros sociais
etc.
As histórias se localizam em São Paulo, principalmente na região nobre
dos Jardins, onde o autor viveu por muitos anos. O amor é o tema recorrente,
seja nas situações de desencontros, seja nas de buscas afetivas. Ao narrá-las,
ele deixa transparecer sua fé em Deus e a descrença nos homens. De sua
leitura, fica o gosto – porque bem temperado – da impossibilidade das relações
humanas, do amor, da vida. E tudo isso, curiosamente, dentro do jornal.
Essa permissividade do jornal em relação ao cronista faz da crônica um
gênero jornalístico, já que, de antemão, está inserida no projeto editorial. Esta
condição, entretanto, traz algumas dúvidas. Como a que aponta Flora Christina
Bender:
“Por pertencer ao jornalismo e à literatura, a crônica se caracteriza por
uma ambigüidade que não aparece nos outros gêneros. Até onde vai o
jornalista, onde começa o escritor?” (1993, p. 50)
16
1.2 Gênero híbrido
Temos então um gênero de natureza híbrida, que pode ser, ao mesmo
tempo, jornalismo e literatura – uma vez que o seu meio de difusão é o jornal, e
o seu tom é literário, seja a sua abordagem ficção ou realidade.
Sobre o hibridismo de gêneros, explica Haroldo de Campos:
“O ‘hibridismo dos gêneros’, no contexto da revolução industrial que se
inicia na Inglaterra na segunda metade do século 18, mas que atinge o
seu auge, com o nascimento da grande indústria, na segunda metade do
século 19, passa a se confundir também com o hibridismo dos media, e
a se alimentar dele. A emergência da grande imprensa desempenha um
papel fundamental nos rumos da literatura. A linguagem descontínua e
alternativa, característica da conversação, vai encontrar na
simultaneidade e no fragmentarismo do jornal seu desaguadouro
natural.” (1979, p. 285)
Num contexto em que a grande imprensa absorve e dá espaço à
oralidade, vemos surgir na América Latina esse gênero lúbrico, que escapa a
definições precisas e recupera a agilidade do jornal.
Como cronista, Caio Fernando Abreu se insere na mesma árvore que
gerou autores como Nelson Rodrigues e Pedro Nava, a da crônica intimista e
excessiva, de caráter coloquial. Coloquialidade essa que faz da crônica um
texto aparentemente descartável, banal, mas que quando recebe a devida
atenção, revela a sua peculiaridade literária. Sobre essa qualidade da crônica,
observa Antonio Candido:
(a crônica) “...não tem pretensões a durar, uma vez que é filha do jornal
e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa. Ela não foi feita
originariamente para o livro, mas para essa publicação efêmera que se
compra num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de
sapatos ou forrar o chão da cozinha. Por se abrigar neste veículo
transitório, o seu intuito não é o dos escritores que pensam em “ficar”,
isto é, permanecer na lembrança e na admiração da posteridade; e a
sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do
17
simples rés-do-chão. Por isso mesmo consegue quase sem querer
transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um, e
quando passa do jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que a
sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava.” (1980, p.
6)
Como gênero híbrido que é, a crônica age, permanentemente, entre o
jornalismo e a literatura. Em seu aspecto literário esbarra no conto, que, como
vemos, pode estar presente dentro do jornal. Alguns autores, como Sodré e
Ferrari, especificam as diferenças entre o conto e a crônica:
“Digamos que a crônica se detém mais em situações fortuitas e
flagrantes do cotidiano; a condução narrativa é, quase sempre, de
caráter impressionista, o narrador numa posição observadora ou
reflexiva (é raro que se intrometa, por exemplo, em pensamentos de
personagens). Aliás, a questão dos personagens talvez seja um traço
distintivo entre conto e crônica: no primeiro, são autônomos (isto é:
parecem ter vida própria), vivem conflitos que às vezes são passados ao
leitor através de monólogos interiores, e a história gira em torno deles;
na crônica, os personagens são acidentes na narrativa, compõem um
painel, atuam como figurantes. O narrador observa suas atitudes
exteriores e flagra seus comportamentos contraditórios, engraçados,
mesquinhos ou, mesmo, trágicos. Há ainda crônicas sem personagens,
em que se registram impressões de ambiência ou se discutem questões
polêmicas (aqui, já estamos próximos do artigo). Não há propriamente
um enredo, com princípio, meio e fim.” (1986, p. 87)
No entanto, nos defrontamos, muitas vezes, com crônicas de
escritores/jornalistas, que trazem monólogos interiores na primeira pessoa do
singular, como os personagens autônomos presentes no conto, que, segundo
Sodré e Ferrari, estabeleceriam as diferenças entre crônica e conto.
Essa condição permeável da crônica revela uma realidade literária
híbrida evidente, ou seja, a negação das fronteiras explícitas entre os gêneros,
nas palavras de Emir Rodríguez Monegal:
18
“...os gêneros não desapareceram totalmente mas suas fronteiras
continuam modificando-se, apagando-se até o indiscernível, produzindo
obras que não correspondem a uma só categoria.” (1972, p. 142)
É justamente esse o caso da crônica. A dificuldade em definí-la está no
fato de que ela pode ser comentário político ou esportivo, crítica e,
principalmente, ela pode ser ficção. Sua flexibilidade está diretamente
relacionada à liberdade de criação desfrutada pelo cronista, o que de pronto o
separa dos outros profissionais da redação.
1.3 A crônica e a reportagem
Para Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari, a reportagem consiste em:
“Uma narrativa – com personagens, ação dramática e descrições de
ambiente – separada entretanto da literatura por seu compromisso com
a objetividade informativa. Esse laço obrigatório com a informação
objetiva vem dizer que, qualquer que seja o tipo de reportagem
(interpretativa, especial etc.), impõe-se ao redator o ‘estilo direto puro’,
isto é, a narração sem comentários, sem subjetivizações”. (1986, p.9)
Com toda a dificuldade de se falar em “objetividade informativa” –
segundo Martín-Barbero, a “pretensão de um discurso sem sujeito” (2004, p.
427) –, aparentemente a crônica seria o contrário de reportagem. Mas não é.
São gêneros jornalísticos distintos, porém complementares. A crônica ocupa
um lugar definido dentro do jornal e/ou revista de maneira que fique claro para
o leitor que aquele é um espaço autoral, assinado, independentemente de
trazer ficção ou comentários e impressões sobre fatos cotidianos. Já a
reportagem é a forma padrão do jornalismo impresso, como mostram Sodré e
Ferrari.
“Narrativa, sabe-se, é todo e qualquer discurso capaz de evocar um
mundo concebido como real, material e espiritual, situado em um espaço
determinado. ... Mas a narrativa não é privilégio da arte ficcional.
19
Quando o jornal diário noticia um fato qualquer, como um atropelamento,
já traz aí, em germe, uma narrativa. O desdobramento das clássicas
perguntas a que a notícia pretende responder (quem, o quê, como,
quando, onde, por quê) constituirá de pleno direito uma narrativa, não
mais regida pelo imaginário, como na literatura de ficção, mas pela
realidade factual do dia-a-dia, pelos pontos rítmicos do cotidiano que,
discursivamente trabalhados, tornam-se reportagem. Esta é uma
extensão da notícia e, por excelência, a forma-narrativa do veículo
impresso (embora a entrevista, sobretudo o perfil, possa também, às
vezes, assumir uma forma-narrativa). A reportagem constitui, assim,
basicamente, um dos gêneros jornalísticos.” (1986, p. 11)
Sendo um gênero jornalístico e também literário – por não existir fora do
jornal, e mesmo quando vira livro seu conteúdo não é inédito, é resultado da
compilação de textos feitos para jornal –, a crônica se contrapõe à reportagem
porque não tem pressupostos informativos, enquanto que a reportagem está
totalmente relacionada à difusão de uma informação, e por, teoricamente,
prescindir de técnica.
A reportagem, segundo Sodré e Ferrari, tem como principais
características:
a) predominância da forma narrativa
b) humanização do relato
c) texto de natureza impressionista
d) objetividade dos fatos narrados (1986, p. 15)
“Não se pode esquecer que o discurso de comunicação de massa está
subordinado a seu objetivo primordial – a informação – e que, embora
possa haver variedade nos enunciados, os dados referenciais ligados a
fatos e pessoas assumem proeminência. Isso, tanto no que se refere à
notícia como à reportagem. Só que, à notícia, cabe a função essencial
de assinalar os acontecimentos, ou seja, tornar público um fato (que
implica em algum gênero de ação), através de uma informação (onde se
relata a ação em termos compreensíveis). ...Noticiar, portanto, seria o
ato de anunciar determinado fato e, independente do número de
20
acontecimentos que possam ocorrer, só serão notícia aqueles que forem
‘anunciados’.” (1986, p. 17)
Reportagem e crônica também podem se confundir. Isso acontece
quando a reportagem se vale da condição de narrativa para se aproximar do
leitor.
“...a distinção crônica/reportagem nem sempre é muito nítida. Digamos
que a reportagem precise de um fato real, não inventado, e do
testemunho deste fato, ainda que isto seja um artifício do narrador.
Explicando melhor: o narrador tem que parecer estar presente (mesmo
que não esteja). Isso pode ser feito, tanto através do discurso em
primeira pessoa, como sob uma narrativa onisciente que crie no leitor a
impressão dessa presença.” (Sodré e Ferrari, 1986, p. 91)
Sodré e Ferrari estabelecem diferenças, no entanto, entre a notícia
propriamente dita e a reportagem que, por meio de recursos literários, se
confunde com a crônica.
“Consideremos a observação de Lipman: ‘As notícias costumam limitarse a descrever sinais, mais do que analisar seus significados’. Isso tem
procedência em dois casos: na notícia que ‘anuncia’ o fato e na que o
‘enuncia’ – aqui estamos utilizando o termo em sentido específico,
conotando-o significativamente em relação ao modo de articulação do
discurso, que e-nuncia, ou seja, põe à mostra, ex-põe, ex-pressa,
manifesta os fatos. Expliquemos: o anúncio de um fato é o simples
divulgar dos acontecimentos e o registro sumário de suas circunstâncias
– um relato de ações acabadas no tempo. Neste caso, o discurso
mantém distanciamento em relação ao leitor; é absolutamente descritivo,
documental – só há referências ao que pode ser visto ou constatado. O
procedimento do discurso narrativo reconstitui as ações e as
presentifica, como se estivessem ocorrendo. A aproximação com o leitor
é maior, na medida em que se pode acompanhar o desenrolar dos
acontecimentos quase como testemunha. Esse tipo de relato se apóia
na ação e no detalhamento. Tenta reproduzir os fatos, realizando-os
para o leitor. Esse tipo de discurso, narrativo, detalhado – e que
sobretudo parece reger-se por leis próprias – está muito próximo do da
21
reportagem de ação, em que, à maneira de uma história de aventuras,
os fatos se sucedem à vista do leitor.” (1986, ps. 18, 19 e 21)
Voltando ao cronista, quando se ocupa do cotidiano, ele se pronuncia
sobre os fatos, dá a sua visão sobre o acontecimento. Característica que pode
ser encontrada em reportagens, que Sodré e Ferrari denominam de “notíciapronúncia”.
“Mais que o anúncio ou o simples enunciar dos fatos, as notíciaspronúncia e denúncia informam sobre um tema, numa abstração que
visa formar um conceito de natureza ideológica. O jornal incorpora,
assim, o tom do jornalismo de revista, que fala ao leitor como se este já
tivesse algum conhecimento do tema tratado: seja através do rádio, da
TV, de jornais ou de livros. Portanto, conforme o teor da informação, as
características dos discursos das notícias e o próprio encadeamento
delas, são produzidos conhecimentos de dois tipos: a) o que traz
familiaridade com um tema – e nesse caso o discurso é concreto e
descritivo, apenas assinalando os acontecimentos; b) o que produz
conceitos sobre um tema – com um discurso mais abstrato e analítico,
oferecendo informação contextualizada (back-ground). ...O jornalismo
tem-se encaminhado no sentido de informar sobre o tema,
principalmente nos veículos (e aqui também se inclui a TV) que
pretendem, mais que o registro dos fatos, uma pedagogia da notícia,
com o objetivo de formar o leitor/espectador.” (1986, p. 32)
O cronista, a seu modo, atenderia a essa intenção do veículo de
comunicação de formar o leitor/espectador. Ainda que ele não seja
necessariamente lido por todos os leitores do respectivo veículo, a sua “verve”,
o seu estilo e a sua temática agradam ao board editorial.
1.4 O novo jornalismo
O cronista pertence à elite jornalística, assim como os articulistas e os
repórteres aos quais é permitido praticar o estilo próximo ao chamado novo
jornalismo (new journalism). Gênero norte-americano imortalizado na década
de 70 pelos jornalistas Norman Mailer, Tom Wolfe, Gay Talese e Truman
22
Capote, entre outros, o new journalism consiste no tratamento literário – e,
acima de tudo, libertário – dos fatos jornalísticos, resultando na produção de
obras literárias para além das reportagens, como A mulher do próximo (Talese)
e A sangue frio (Capote). No Brasil, se aproximaram desse estilo jornalistas
como Zuenir Ventura, Ruy Castro e Fernando Morais, entre outros.
Sobre essa escola, escreveu Alberto Dines:
“Nos meios intelectuais norte-americanos, fabricou-se nova escola: o
‘Novo Jornalismo’, tendo como expoentes máximos o repórter Tom
Wolfe, Norman Mailer, conhecido escritor e panfletário, e Jimmy Breslin,
repórter do New York Herald Tribune. O novo jornalismo preconizado é
um velho estilo de escrever, adaptado ao que produzem aqueles
intelectuais e seus companheiros, entre a crônica, a reportagem e o
depoimento. Não é uma nova concepção para o jornal, nem nova linha
de trabalho ou atitude profissional. É um gênero ao qual podem aderir
apenas alguns grandes nomes, cujo peso na assinatura faz com que
qualquer jornal ou revista dispute seus trabalhos, seja qual for o estilo
em que escrevam.” (Dines, 1986, p. 89)
A definição de Dines ao Novo Jornalismo como estilo “entre a crônica, a
reportagem e o depoimento” é corroborada, por exemplo, na edição brasileira
do livro The neighbor’s wife (1980), de Gay Talese, um dos papas do gênero. À
tradução literal do título – A mulher do próximo (Companhia das Letras, 2002) –
foi acrescentado o subtítulo Uma crônica da permissividade americana antes
da era da Aids.
Em comum, como afirma Dines, novo jornalismo e crônica têm o peso
da autoria: pratica quem pode, não quem quer. E os executivos dos grandes
jornais e revistas sabem bem qual texto assinado querem dentro do seu
veículo. O que não tira o mérito de ambos os gêneros no enriquecimento
literário dos periódicos em geral.
Medel, inclusive, relaciona o “boom” do novo jornalismo e da crônica
como uma resposta criativa da mídia para superar uma crise.
23
“As diversas crises dos anos 60, que deram lugar a formas do novo
jornalismo não só nos Estados Unidos, como também em toda a
América Latina e na Europa, são um excelente exemplo de como a
ruptura de fronteiras (também neste âmbito) fecundou a criatividade
informativa no âmbito do jornalismo (sobretudo em gêneros como o
artigo de opinião, a crônica, a reportagem e a entrevista) de modo que
permitiu um importante impulso às formas de escrita literária que adotam
a retórica do jornalismo.” (Medel, 2002, ps. 20 e 21)
Para o escritor gaúcho Moacyr Scliar – ele mesmo, a seu modo, cronista
da Folha de S. Paulo –, esse coabitar do jornalismo com a literatura,
preconizado tanto pelo novo jornalismo como pela crônica, pode ser bastante
positivo.
“... acho, sim, que a literatura pode ensinar algo ao jornalismo. Em
primeiro lugar, a cuidar da forma, a escrever e a reescrever. Também
ensina a privilegiar a imaginação – mas não demais: realidade é
realidade, ficção é ficção. O novo jornalismo foi uma experiência
interessante, mas exagerou muito. Há sim, uma fronteira entre
jornalismo e ficção. Mas é uma fronteira permeável, que permite uma útil
e amável convivência. No passado, grandes escritores foram grandes
jornalistas: o caso de Machado de Assis, de Lima Barreto. Nada impede
que esta tradição tenha continuidade.” (2002, p. 14)
Ainda que crítico ao novo jornalismo como escola de reportagem,
Alberto
Dines
reconhece
a
contribuição
do
gênero
ao
jornalismo
contemporâneo, especificamente às reportagens feitas por correspondentes
internacionais, que estando presentes de fato ao lado do acontecimento,
tendem a intensificar o relato jornalístico.
“Tornar-se-ão inúteis os correspondentes no exterior? A pergunta ficará
respondida quando tratarmos da nova dimensão a ser acrescentada ao
jornalismo contemporâneo: o depoimento pessoal. Aqui, o aporte do new
journalism talvez seja válido e importante. A transcendência dos
assuntos levou muito jornal e jornalista a adotar uma posição e um estilo
puramente ensaísticos, de alta categoria, mas sem o calor do
testemunho. A presença do jornalista ao lado do fato ou dentro dele não
24
acrescenta apenas veracidade, mas uma tremenda força narrativa.”
(Dines, 1986, p. 93)
1.5 Pacto com o leitor
A presença da crônica é denunciada, em meio às reportagens do dia-adia, pelo formato característico de artigo assinado e pelo tamanho demarcado
cotidianamente na mesma página. Ou seja, o leitor é informado de que aquele
espaço específico é um espaço de autor, que tanto pode escrever sobre o
universo real quanto ficcional. Assim, é estabelecido de antemão um pacto
estético com o leitor, como diz Manuel Angel Vázquez Medel:
“... a retórica do discurso jornalístico (posto que todo dizer requer sua
retórica, implícita ou explícita, formal ou informal) é, em muitos casos,
essencialmente coincidente com a do discurso literário. Com efeito, se a
ficção própria da literatura a exime das provas comprobatórias e se
baseia mais em um pacto estético do que em um pacto ético de
credibilidade (como acontece com o discurso jornalístico), podemos
estar diante de ficções fantásticas (nas que o conteúdo funciona de
modo muito distinto ao mundo em que habitualmente nos encontramos
inseridos) ou diante de ficções realistas (nas que a retórica do discurso
funciona, seguindo os velhos postulados da verossimilhança aristotélica
como se se tratasse de um discurso factual.” (2002, p. 24)
Para entender como se dá a convivência do texto literário com o texto
jornalístico dentro do jornal, ou melhor, do imaginário com a realidade, é
preciso entender os caminhos da literatura brasileira e dos meios de
comunicação de massa, dos quais o jornal é parte integrante. Isso sem
desconsiderarmos o fato de que muitos escritores latino-americanos – Gabriel
García Marquez, Euclides da Cunha, Machado de Assis, José Marti, entre
outros –, em algum momento de suas vidas, exerceram o ofício de jornalista,
como lembra Saer:
25
“É difícil separar a mescla um pouco confusa de expressão e de
informação que constitui a essência dos media, e isto fica claro quando
se considera a questão do jornalismo. São muito poucos os autores da
América Latina que nada tiveram a ver, de um modo ou de outro, com o
jornalismo em algum momento de sua carreira. Estas relações nem
sempre se limitaram a conceber o jornalismo como um trabalho adicional
capaz de subministrar a segurança econômica indispensável para poder
dedicar-se à literatura. ...No livro primeiro de Carlos Drummond de
Andrade, Alguma poesia (1925- 1930), o ‘Poema do Jornal 1 ’, não só nos
ensina a influência do jornalismo sobre a literatura, mas também permite
comprovar que um poema pode ser ao mesmo tempo uma síntese de
reflexão sobre o jornalismo e sobre a poesia.” (1972: p. 312)
1.6 Tradição da ruptura
Não há como desvincular a literatura nacional do contexto da literatura
latino-americana, marcada pelo conflito entre a tradição e a renovação.
“Se o signo que melhor caracteriza as letras latino-americanas deste
século é a tradição da ruptura, cabe-se observar que essa tradição
também não é literalmente nova nas letras latino-americanas. Um
sumário repasse no processo destas letras, a partir da Independência,
permite perceber que assim como a vanguarda dos anos vinte se
levanta contra o modernismo, o romantismo aparece na América Latina
como uma reação contra o neoclassicismo e a herança escolástica
hispano-portuguesa.” (Monegal, 1972, p. 136)
Nesse ambiente de ruptura, em que a tradição – no caso, a européia –
se renova, no Brasil, o folhetim – le feuilleton – virou crônica.
1
O fato ainda não acabou de acontecer
E já a mão nervosa do repórter
O transforma em notícia.
O marido está matando a mulher.
A mulher ensangüentada grita.
Ladrões arrombam o cofre.
A polícia dissolve o meeting
A pena escreve.
Vem da sala dos linotipos a doce música mecânica.
26
Apesar de estar associado a trechos de novelas e de romances,
principalmente porque a Folha de S. Paulo, em mais de uma ocasião, publicou
um suplemento literário com essa denominação, o conceito de folhetim a que
estamos nos referindo aqui é bem distinto. Para evitar confusões, é importante
esclarecer exatamente o que era o folhetim do qual a crônica se originou, como
faz Marlyse Meyer no trecho que reproduzimos a seguir:
“Já que o folhetinista é originário da França, e, o folhetim, novidade de
Paris, há que ir ver o que o termo recobre lá na matriz. De início –
começos do século 19 – le feuilleton designa um lugar preciso do jornal:
o rez-de-chaussée – rés-do-chão, rodapé, geralmente da primeira
página. Tem uma finalidade precisa: é um espaço vazio destinado ao
entretenimento. E já se pode dizer que tudo o que haverá de constituir a
matéria e o modo da crônica à brasileira já é, desde a origem, a vocação
primeira desse espaço geográfico do jornal, deliberadamente frívolo, que
é oferecido como chamariz aos leitores afugentados pela modorra cinza.
Aquele espaço vale-tudo suscita todas as formas e modalidades de
diversão escrita: nele se contam piadas, se fala de crimes e monstros,
se propõem charadas, se oferecem receitas de cozinha ou de beleza;
aberto às novidades, nele se criticam as últimas peças, os livros recém
saídos, o esboço do Caderno B, em suma. E, numa época em que a
ficção está na crista da onda, é o espaço onde se pode treinar a
narrativa, onde se aceitam mestres ou noviços no gênero, curtas ou
menos curtas – adota-se a moda inglesa de publicação em série se
houver mais texto e menos coluna. Título geral desse pot-pourri de
assuntos (Martins Pena falaria em sarrabulho lítero-jornalístico):
Variétés, ou Mélanges, ou Feuilleton. Mas este último, repita-se, era
antes um termo genérico, designando essencialmente o espaço na
geografia do jornal e seu espírito. Com o tempo, o apelativo abrangente
passa a se diferenciar, alguns conteúdos se rotinizam, e o espaço do
folhetim oferece abrigo semanal a cada espécie: é o feuilleton
dramatique (crítica de teatro), littéraire (resenha de livros), variétés, e
‘cosi via’. As mesmas rubricas com as mesmas funções e a mesma
liberdade existem não só nos jornais diários, mas se estendem às
revistas periódicas.” (1992, p. 96 e 97).
Assim, originária do folhetim francês, a crônica alcançou prosperidade
no jornalismo brasileiro, tornando-se efetivamente um gênero da imprensa
27
nacional, já a partir do século 19. “Não há cronista fora de jornal”, afirmou o
escritor Carlos Heitor Cony, notório cronista em atividade no país, na palestra
Crônica no jornalismo e na literatura, proferida no auditório do jornal Folha de
S. Paulo, em 29 de outubro de 1998.
A crônica, segundo Cony, é um gênero da imprensa brasileira, que
apesar de ser centrado na primeira pessoa do singular, o que poderia denotar
certo tom romântico, não floresceu como gênero romântico, mas sim como
gênero da imprensa.
Segundo José Marques de Melo,
“...Se não existem, no jornalismo inglês, alemão ou norte-americano,
‘correspondentes precisos’ à chamada ‘crônica latina’, verifica-se o
cultivo de formas de expressão jornalística que lhe são assemelhadas. É
o caso dos gêneros jornalísticos que os ingleses rotulam como action
stories e daquele que os norte-americanos chamam de features ou até
mesmo de glosa alemã.” (2002, p. 141, 142)
Ao definir a crônica praticada na imprensa brasileira e portuguesa,
Marques de Melo ressalta a sua natureza híbrida.
“...A crônica, na imprensa brasileira e portuguesa, é um gênero
jornalístico opinativo, situado na fronteira entre a informação de
atualidades e a narração literária, configurando-se como um relato
poético do real.” (2002, p. 147)
Um de nossos cronistas pioneiros foi Machado de Assis (1839-1908). Na
crônica O folhetinista, ele discorre sobre a origem desse estilo que ainda não
havia se instalado efetivamente nos jornais brasileiros:
“Uma das plantas européias que dificilmente se têm aclimatado entre
nós, é o folhetinista. Se é defeito de suas propriedades orgânicas, ou da
incompatibilidade do clima, não o sei eu. Enuncio apenas a verdade. ...
O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde vive a seu
gosto, como em cama no inverno. De lá espalhou-se pelo mundo, ou
28
pelo menos por onde maiores proporções tomava o grande veículo de
espírito moderno; falo do jornal. ... O folhetim, disse eu em outra parte, e
debaixo de outro pseudônimo, o folhetim nasceu do jornal, o folhetinista
por conseqüência do jornalista. Esta íntima afinidade é que desenha as
saliências fisionômicas na moderna criação. ...Efeito estranho é este,
assim produzido pela afinidade assinalada entre o jornalista e o
folhetinista. Daquele cai sobre este a luz séria e vigorosa, a reflexão
calma, a observação profunda. Pelo que toca ao devaneio, à leviandade,
está tudo encarnado no folhetinista mesmo; o capital próprio. O
folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar de colibri na esfera vegetal;
salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os
caules suculentos, sobre todas as seivas perigosas. Todo o mundo lhe
pertence; até mesmo a política.” (2003, p. 39 e 40)
O crítico Antonio Candido tem uma interessante análise dessa variante
literária nacional:
“...ela não nasceu propriamente com o jornal, mas só quando este se
tornou quotidiano, de tiragem relativamente grande e teor acessível, isto
é, há uns cento e cinqüenta anos mais ou menos. No Brasil ela tem uma
boa história, e até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero
brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade
com que aqui se desenvolveu. Antes de ser crônica propriamente dita foi
“folhetim”, ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia –
políticas, sociais, artísticas, literárias. Assim eram os da secção ‘Ao
correr da pena’, título significativo a cuja sombra José de Alencar
escrevia semanalmente para o Correio Mercantil, de 1854 a 1855. Aos
poucos o “folhetim” foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar
de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois,
entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar
ao que é hoje.” (1980, ps. 6 e 7)
Candido também fala da consolidação da crônica no Brasil:
“Acho que foi no decênio de 1930 que a crônica moderna se definiu e
consolidou no Brasil, como gênero bem nosso, cultivado por um número
crescente de escritores e jornalistas, com os seus rotineiros e os seus
mestres. Nos anos 30 se afirmaram Mário de Andrade, Manuel Bandeira,
Carlos Drummond de Andrade, e apareceu aquele que de certo modo
29
seria o cronista, voltado de maneira praticamente exclusiva para este
gênero: Rubem Braga.” (1980, ps. 8 e 9)
1.7 Gênero libertário
A crônica pode ser uma narração histórica ou registro de fatos comuns;
texto jornalístico redigido de forma livre e pessoal, e que tem como temas fatos
ou idéias da atualidade, de teor artístico, político, esportivo etc., ou
simplesmente relativos à vida cotidiana.
Também pode ser um pequeno conto de enredo indeterminado, que
encontra no jornal o seu principal meio de difusão. O fato é que, como a própria
designação já diz e como já vimos anteriormente, não há conto sem história,
enquanto a crônica pode dispensar uma história – e o acontecimento
jornalístico – e se deter justamente nas impressões, opiniões, enfim, nas
idiossincrasias do cronista, que, como um narrador, arma uma relação de
desabafo – o monólogo interior de que falam Sodré e Ferrari – com o seu leitorouvinte-confidente.
Nessa condição, o cronista se assemelha à figura do narrador descrita
por Walter Benjamin.
“O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria
experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à
experiência dos seus ouvintes. No narrador, o cronista conservou-se,
transformado e por assim dizer secularizado.” (1986, ps. 201 e 209)
Talvez o cronista seja mesmo o narrador dos tempos modernos, ainda
que a crônica se manifeste no jornal de forma concisa e relativamente discreta,
incrustada em meio às notícias do cotidiano e, muitas vezes, no pé da página
ou ao rés-do-chão, no dizer de Antonio Candido, como é o caso, por exemplo,
da crônica diária de Carlos Heitor Cony na Folha de S. Paulo.
30
Por ser um gênero livre, a crônica não tem regras rígidas e, dessa forma,
é uma porta para a literatura. Não é por acaso que cronistas consagrados da
imprensa nacional se tornaram também famosos escritores. É o caso do
próprio Cony e de Caio Fernando Abreu e também de Antonio Callado e Otto
Lara Resende, Fernando Sabino, Clarice Lispector e Carlos Drummond de
Andrade, entre outros.
É interessante observar que a pré-determinação do tamanho e sua
conseqüente concisão, poderia aproximar a crônica de gêneros literários de
forma fixa, como sonetos, distanciando-a dos contos; por outro lado, essas
mesmas questões colocam a crônica em plenas regras e padrões jornalísticos.
Essa relação com o conto é difícil também de se sustentar como elemento
distintivo, porque, para alguns, essa fronteira é tênue.
O conto Missa do Galo, de Machado de Assis, por exemplo, é uma
crônica natalina na opinião de Carlos Heitor Cony, o que demonstra, como já
vimos, a negação das fronteiras explícitas entre os gêneros, de acordo com
Monegal (1972: p.142), como resultado de “um novo desenvolvimento da
literatura presente”.
No que se refere a conteúdo, desde sempre a crônica é um gênero livre.
“Inconstante, descompromissada, libertária, a crônica é avessa a regras
e incompatível com camisas-de-força.” (Amâncio, 1991: p. 11)
O cronista em si, no entanto, não é exatamente um privilegiado entre os
colegas de redação presos exclusivamente às regras editoriais. Porque para
construir um texto de certa forma libertário e, principalmente literário, ao longo
do processo de criação, o autor se coloca restrições expressivas, como afirma
Medel. Pois como nos lembra Antonio Candido em relação ao romance – e a
observação cabe aqui também, uma vez que a crônica também está no campo
da ficção:
31
“...na vida tudo é praticamente possível; no romance é que a lógica da
estrutura impõe limites mais apertados, resultando, paradoxalmente, que
as personagens são menos livres, e que a narrativa é obrigada a ser
mais coerente do que a vida.” (2002, p. 76)
Ao prescindir da informação e da técnica jornalística, o cronista se livra
das amarras do projeto editorial do veículo em que trabalha e do lead
americano 2 e escreve sobre os mais variados assuntos no espaço para ele
delimitado dentro do jornal. E, assim, faz valer a máxima de Machado de Assis,
de que "a liberdade é a maior virtude que sempre se deve defender". Liberdade
temática, diga-se.
Essa possibilidade da literatura operar libertamente dentro de um meio
de comunicação de massa se dá porque ela tem outra função, ainda que
complementar ao jornalismo. Como diz Juan José Saer:
“Enquanto os mass media são uma atividade que tem por fim transmitir a
experiência que já passou, a literatura representa, ao contrário, uma
avaliação perpétua do presente, uma busca contínua de um presente
novo no qual a experiência renasça, para que em seu interior a literatura
tenha lugar (até mesmo na conotação espacial da palavra).” (1972, p.
320 e 321)
Não é por acaso, como já vimos anteriormente, que o exercício da
crônica tenha atraído conceituados escritores, a começar por Machado de
Assis. Parece que nessa atividade paralela – e necessária, como meio de
sobrevivência –, seus autores acabam por morder a isca da literatura,
produzindo textos breves e belíssimos, através de uma linguagem singular.
2
Ferramenta teórica sistematizada por Kipling, que define cinco perguntas básicas em relação ao fato (o
que? quem? quando? onde? e por quê?). A partir dessa sistematização, o repórter vai esclarecendo o fato,
formando uma “pirâmide invertida” em que o grosso da informação se concentra nos primeiros
parágrafos e vai afinando ao longo da matéria.
32
“Em literatura, linguagem não é sinônimo de sistema geral da língua,
mas antes sinônimo de fala de um determinado escritor ou de um
determinado gênero.” (Monegal, 1972: p. 131)
Retomo aqui a clássica frase “o meio é a mensagem”, do teórico
canadense Marshall McLuhan, já que o escritor usa o espaço no jornal para
fazer literatura, ou seja, passar a ‘mensagem literária’ – a ampla possibilidade
da linguagem, para além da técnica jornalística.
Em termos culturais, a crônica também contribuiu para “libertar” a
literatura brasileira do rebuscamento estilístico, como nos lembra Antonio
Candido.
“Num país como o Brasil, onde se costumava identificar superioridade
intelectual e literária com grandiloqüência e requinte gramatical, a
crônica operou milagres de simplificação e naturalidade, que atingiram o
ponto máximo nos nossos dias.” (1980, p.8)
Complementa Candido:
“... A crônica brasileira bem realizada participa de uma língua geral lírica,
irônica, casual, ora precisa e ora vaga, amparada por um diálogo rápido
e certeiro, ou por uma espécie de monólogo comunicativo.” (1980, p. 13)
1.8 O importante e o urgente
Considerando a função essencialmente informativa do empreendimento
jornalístico, os cronistas se assemelham a bravos heróis, que perpetuam seu
estilo e resistem na grande imprensa. Principalmente se considerarmos que
eles não levam em conta a agenda natural de pautas, que, teoricamente,
apresenta interesse potencial para o leitor e que é a prerrogativa do trabalho
jornalístico dentro de uma empresa.
Segundo Dines,
33
“A busca incessante das circunstâncias motivadoras que envolvem tanto
o jornalista como o leitor – que convivem no mesmo ambiente e sofrem
as mesmas injunções – é o segredo do jornalista imaginoso. ‘O que está
me interessando hoje e pode interessar boa parte dos leitores?’ – é uma
das perguntas diárias que o jornalista faz a si próprio.” (Dines, 1986, p.
61)
O fato do cronista não se colocar a mesma pergunta que o jornalista não
significa que ele não esteja preocupado em cativar os leitores. Muito pelo
contrário. Mas seus métodos são outros.
No caso de Caio F. Abreu, vale dizer, ele próprio é o protagonista de
suas crônicas, o que, por si só, já gera uma curiosidade por resultar num texto
revelador, ainda que discreto, da vida do autor. E, se além disso, nos
deparamos com um texto de grande qualidade literária, aí há motivos evidentes
para se conquistar leitores, a despeito do tema abordado.
Quanto mais nos debruçamos sobre a relação entre a cônica e o texto
informativo, percebemos que ela é simbiótica. Como diz Juan José Saer:
“...a literatura está na própria raiz dos media, desempenhando em
relação a eles o papel de uma espécie de modelo e até de superego, na
medida em que a literatura integra de forma preponderante aquilo que se
conhece com o nome de alta cultura.” (Saer, 1979: págs. 316 e 317)
Nesse contexto, em que a literatura é a matriz dos veículos de massa, a
crônica surge como espaço de preservação do texto literário em nossa
imprensa. Como uma necessidade da narrativa em meio aos textos de vida
curta, presos aos acontecimentos de um dia, feitos de apuro técnico e
jornalístico. Ou, como explica Medel, a necessidade de separar o que é
importante do que é urgente.
“As relações entre criação literária e exercício jornalístico têm sido
problemáticas desde seus inícios. Parece que aquela, sem abandonar a
34
dimensão lúdica e fruitiva, deve encaminhar-se para o essencial
humano, bem que encarnado nas inevitáveis coordenadas espaçotemporais que nos constituem. A atividade informativa, ao contrário,
aponta mais para o efêmero, passageiro, circunstancial (e sabemos até
que ponto a vertigem informativa devora a estabilidade e permanência
dos acontecimentos). Simplificando muito, parece que a literatura se
orienta para o importante e a informação jornalística para o urgente.”
(Medel, 2002, p. 18)
Para Juan José Saer, a literatura dá sempre um jeito de habitar o jornal,
até porque o próprio jornalismo não deixa de ser um gênero literário, no sentido
literal, ainda que desfalcado, pela própria condição, de requintes estéticos.
“No grande universo dos media, a literatura desempenha o papel de
subespécie; não somente parece estar em seu princípio e em seu fim,
mas também escorre através de cada uma de suas fendas, manifesta-se
em cada uma das tentativas que fazem os media para inserir-se na
cultura. Portanto, a literatura parece irradiar sobre os mass media uma
claridade que é ao mesmo tempo iluminação e coarctada, se levarmos
em conta que uma das interrogações que o aparecimento dos media
despertou foi a do destino da literatura, sendo que, na euforia dos media,
se formulou mais de uma vez a hipótese – absurda – de que os media
chegavam por fim para terminar com a literatura. Esta falsa hipótese de
incompatibilidade, que bem mostra, de outra parte, o mal-estar que o
exercício da literatura desperta na sociedade moderna, serve também
para evidenciar a dependência dos media com relação à literatura em
particular e à alta cultura em geral.” (1972: p. 317)
Complementando o que dissemos a respeito do interesse que a crônica
desperta no público leitor, Anatol Rosenfeld ressalta a característica ficcional e,
muias vezes, alheia à realidade, como uma singularidade do gênero dentro do
jornal. E, também, por ser, de certa maneira, uma forma exclusiva de
informação.
“Geralmente, quando nos referimos à literatura, pensamos no que
tradicionalmente se costuma chamar “belas letras” ou “beletrística”.
Trata-se, evidentemente, só de uma parcela da literatura. Na acepção
35
lata, literatura é tudo o que aparece fixado por meio de letras – obras
científicas, reportagens, notícias, textos de propaganda, livros didáticos,
receitas de cozinha etc. Dentro deste vasto campo das letras, as belas
letras representam um setor restrito. Seu traço distintivo parece ser
menos a beleza das letras do que seu caráter fictício ou imaginário.”
(2002, ps. 11 e 12)
O fato de ser um veículo de leitura individualizada – ninguém lê o
mesmo jornal ao mesmo tempo –, como ressalta Dines, acentua uma
peculiaridade do jornal em relação a outros veículos de comunicação de
massa: a de apropriação intelectual do texto pelo leitor.
“Apesar das grandes tiragens, o jornal é um produto dirigido a cada leitor
em separado, conforme já vimos em capítulo anterior. Mesmo que cada
exemplar seja lido em média por três leitores, cada um deles encontra
algo muito seu e muito próprio. Quanto mais massificadas forem a
sociedade e a informação, mais o ser humano procurará formas
‘exclusivas’ de informação, e os meios eletrônicos, pela própria natureza
da recepção, são coletivos. O jornal consegue atender a cada leitor que
o manuseia e, na medida que o satisfaz, torna-se sua ‘propriedade’. Um
aumento no preço do exemplar acentuará ainda mais esta
característica.” (1986, p.77)
Ainda segundo Dines:
“...A leitura por alguns minutos da primeira página, ou a concentração
mais atenta por uma ou mais horas nas páginas seguintes, são escolhas
que cada um pode fazer. O leitor governa a leitura do seu jornal; vale
dizer, ele não está à sua mercê. Mas a amplitude que tem dos
acontecimentos é a mesma. O seu fácil manejo e relativa perenidade
permitem que seja guardado por momentos, horas ou dias.” (1986, p.
78)
Haroldo de Campos recorre a McLuhan para explicar a proximidade
entre a grande imprensa e a cultura oral, que, na interpretação de Walter
Benjamin se transformou, na modernidade, na crônica:
36
“Marshall McLuhan tem procurado interpretar de maneira extremamente
sugestiva esse conflito dos media. Para o teórico canadense, a grande
imprensa, a partir sobretudo da invenção do telégrafo e de sua
influência, sob a forma de mosaico de notícias, no estilo e na
apresentação dos jornais, aproxima-se da cultura oral, que não é linear,
mas sinestésica, táctil, simultânea, tribal.” (1979, p. 285)
Levando-se em conta o aspecto coloquial-oral da crônica, pode-se dizer
então que ela conserva a sensibilidade e as emoções perdidas. Walter
Benjamin fala das histórias surpreendentes que o jornal, mesmo trazendo
notícias dos quatro cantos do mundo, não é capaz de oferecer ao leitor.
“...Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é
decisivamente responsável por esse declínio. Cada manhã recebemos
notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias
surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados
de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a
serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade
da arte narrativa está em evitar explicações.” (1986, p. 203)
1.9 Um gênero indefinido
Assim, é um privilégio para os leitores que, no Brasil, tenha se
conservado dentro do jornal diário espaço para uma narrativa pessoal, íntima,
cotidiana, que consegue interagir com o leitor. No texto de apresentação que
fez para a coletânea Cronistas do Estadão, Moacir Amâncio fala sobre a
presença da crônica no jornal O Estado de S. Paulo, veículo oriundo do século
19.
“O jornal sempre cultivou a tradição do cronista permanente, entre os
quais foi Luís Martins um dos mais longevos: textos subscritos pelo
nome completo ou pelas iniciais L.M. aparecem de 1940 até 1981,
sempre no mesmo canto de página. Em 1986, com o lançamento do
Caderno 2, retomou-se a receita dos cronistas em rodízio. O jornal abriu
espaço para diversos autores, fixos ou esporádicos, mantendo
37
coerentemente intocada a disposição de acompanhar mudanças de
tempos e costumes com modos de expressão contemporâneos. Dessa
forma, autores do porte de Rubem Braga, Fernando Sabino e Rachel de
Queiroz passaram a conviver com revelações como Caio Fernando
Abreu ou talentos injustamente sem acesso a certas áreas da cultura
brasileira como João Antônio.” (1991, p. 12)
Nesse contexto, é interessante refletir sobre as crônicas de Caio
Fernando Abreu. Uma delas, Pequenas epifanias, integra a coletânea
Cronistas do Estadão (1991), organizada por Moacir Amâncio. “Uma
esplêndida aula sobre o que é escrever bem. As lições estão nos textos
selecionados entre os produzidos por dezenas de cronistas que, ao longo dos
últimos cem anos, contribuíram para fazer deste jornal o mais importante do
país”, explica texto não assinado na orelha do livro.
Dessa afirmação podemos refletir sobre a função didática da crônica
dentro de seu habitat, ao contribuir para a boa escrita, trazendo a literatura
para o universo da técnica de reportagem e melhorando a qualidade do texto
jornalístico.
Vejamos o que diz Amâncio:
“Preconceitos se abrandam e conceitos se ampliam quando se
contempla a crônica aninhada em páginas de jornais, talvez seu habitat
preferido. Essa contemplação oferece provas luminosas da existência de
um espaço aberto para a criatividade, a emoção, o pensamento solto, a
alegria e a amargura, o objetivo e o subjetivo. Esse espaço tanto pode
conter meras anotações perecíveis no instante da leitura quanto peças
literárias destinadas a transformar-se em referências essenciais da
cultura do país. Vai-se do banal ao clássico.” (1991, p. 10)
Segundo Antonio Candido:
“A crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a
dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário
excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo
e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade
38
insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas
mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas – sobretudo
porque quase sempre utiliza o humor.” (1980, p. 5)
Exceção à regra, os textos de Caio F. Abreu não trazem humor; por
outro lado, são vivos, o que talvez seja necessário para um estilo inerente às
publicações periódicas.
“A boa crônica se mantém matéria viva. Faz história, faz literatura,
documenta e se torna arte.” (Amâncio, 1991, ps. 10, 11)
Sobre o gênero crônica, Antonio Candido afirma:
“Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de
coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à
sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma
linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. Na sua
despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como
compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa
profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de
repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à
perfeição.” (1980, p. 5)
Ao privilegiar as impressões e, principalmente, as emoções do seu
narrador, a crônica literária resulta em textos atemporais e, portanto,
duradouros, ao contrário da crônica esportiva ou política, por exemplo.
Vejamos o que escreveu Benjamin sobre a perenidade da narrativa frente à
fugacidade da informação.
“A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive
nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de
tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se
entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é
capaz de se desenvolver.” (1986, p. 204)
39
Como fica bastante claro nessa nossa discussão, definir a crônica não é
tarefa das mais simples e talvez infrutífera. Como gênero híbrido e texto
libertário, escapa a uma definição precisa.
Por meio da análise de uma coletânea de crônicas, pretendemos
conhecer melhor a crônica de Caio F. Abreu. Esse talvez seja o caminho mais
sensato para chegar mais perto de uma definição do gênero, como afirma
Cecilia Salles em relação às crônicas de Ignácio de Loyola Brandão.
“Tente demarcar o campo de ação da crônica e imediatamente
encontrará uma série de exceções. Somente algumas propriedades
bastante gerais se sustentam para podermos nos satisfazer com uma
possível definição: texto assinado, publicado em um espaço determinado
no jornal com periodicidade definida. São bastante frustradas as
tentativas de descobrir pontos em comum relativos àquilo que é
abordado e os instrumentos de elaboração desses assuntos. As
coletâneas oferecem a possibilidade de vislumbrarmos a crônica assim
como é praticada por um determinado escritor.” (2004, p. 8)
Para os próprios cronistas, é difícil definir o que fazem. Outro dia,
Ferreira Gullar abriu sua coluna 3 dominical na Folha de S. Paulo com a
seguinte frase:
“Vou falar hoje de um assunto que talvez não seja assunto de crônica,
mas, como já disse que ninguém sabe o que é crônica, vou falar assim
mesmo.” (2005, p. E-12)
Já Clarice Lispector chegou a convidar o leitor para refletir sobre o
gênero.
“Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado de
espírito?” (1999, p. 112)
3
E o cronista endoidou..., caderno Ilustrada, 19/06/05.
40
E o assunto não tarda a retornar nos textos da escritora. Na crônica
Viajando por mar (1ª parte), ela conta:
“...um dia telefonei para Rubem Braga, o criador da crônica, e disse-lhe
desesperada: ‘Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se
tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?’ Ele disse: ‘É
impossível, na crônica, deixar de ser pessoal”. (1999, p. 349)
41
CAPÍTULO 2
A CRÔNICA DE
CAIO FERNANDO ABREU:
DIÁLOGOS
42
2.1 Pequena biografia
Nascido em Santiago do Boqueirão (RS), em 12 de setembro de 1948,
Caio Fernando Abreu trabalhou como jornalista em diversas redações (Veja,
Manchete, Zero Hora, O Estado de S. Paulo, Folha da Manhã, entre outras) e
também como tradutor, mas se destacou como escritor, principalmente de
contos e de crônicas.
Publicou Inventário do ir-remediável (contos, 1970), O limite branco
(romance, 1971), O ovo apunhalado (contos, 1975), Pedras de Calcutá (contos,
1977), Morangos mofados (contos, 1982), Triângulo das águas (novelas, 1983),
As frangas (novela infanto-juvenil, 1988), Os dragões não conhecem o paraíso
(contos, 1988), A maldição do vale negro (peça teatral, 1988), Onde andará
Dulce Veiga? (romance, 1990), Ovelhas negras (contos, 1995), Estranhos
estrangeiros (contos, 1996) e Bien loin de Marienbad (novela, 1994, publicada
na França). Teve vários livros traduzidos para diversas línguas.
Recebeu os prêmios Fernando Chinaglia (1970), Status (1980), Jabuti
(1984 e 1989) e APCA (1990).
Morreu em 25 de fevereiro de 1996, aos 47 anos, em decorrência da
Aids. Postumamente, foram publicados Pequenas epifanias (1996) – que reúne
parte de suas crônicas escritas para o Estadão, no período entre abril de 1986
e dezembro de 1995 – e a coletânea Fragmentos – 8 histórias e um conto
inédito (2002).
Considerado cronista-revelação no final da década de 80 do século 20,
Caio Fernando Abreu integra, como já vimos no capítulo anterior, a coletânea
Cronistas do Estadão, de 1991. Está assim ao lado de mestres do gênero,
como Rubem Braga, Fernando Sabino e Rachel de Queiroz, cujos textos são
exemplos contundentes de crônica.
43
2.2 A crônica de Caio Fernando Abreu
O caráter revelador da crônica de Caio F. Abreu se manifesta na medida
exata em que traz à tona para o leitor miudezas do cotidiano que não
interessam ao jornal como objeto jornalístico – já que não constituem a
matéria-prima do jornalismo, a informação –, num formato em que o leitor é
convertido em ouvinte e confidente de um narrador lírico distante. Walter
Benjamin já disse que “quem escuta uma história está em companhia do
narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia” (1986, p. 213).
E, realmente, não há como não compartilhar um texto como Pequenas
epifanias, do qual reproduzo um trecho:
“Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E
de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses
pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de
mau me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo
magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me
reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas: ah você não
come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando
esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas. Nunca mais sair
do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair
daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem
uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia
atravancando o coração.” (Abreu, 1996, p. 13 e 14)
Podemos ler essa crônica, que fala de um modo pouco definido de um
relacionamento, como metáfora da sua função dentro do jornal e também da
relação de cumplicidade que se estabelece entre o cronista e o leitor, em
comparação à frieza e impessoalidade características das reportagens
espalhadas pelo veículo. Vejamos: “Nunca mais sair daquele colo quente que é
44
ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você” –
relação cronista/leitor –, “no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada
dia atravancando o coração” – as notícias em geral.
Nesse sentido de auto-reflexão, também se evidencia o caráter poético
da prosa de Caio F. Abreu. Leyla Perrone-Moisés lembra que Jakobson definiu
a característica fundamental da mensagem poética:
“... seu caráter intransitivo, sua inseparabilidade em termos de forma e
conteúdo, a ênfase posta pela mensagem em si mesma, sua
autodesignação, sua auto-referência, em suma, seu caráter autoreflexivo”. (1993, p. 43)
Como um todo, a leitura das crônicas de Caio F. Abreu é instigante
porque nos faz refletir sobre o próprio gênero. É um caso em que a forma se
confunde com o conteúdo, resultando, muitas vezes, numa pequena “epifania”
dentro do jornal.
Além de dialogar com o leitor, ele também dialoga constantemente com
seus pares e suas referências. Ainda na crônica Pequenas epifanias, por
exemplo, há uma interlocução com Clarice Lispector, por meio da
intertextualidade. Vejamos:
“... Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice
Lispector – Tentação 4 – na cabeça estonteada de encanto: ‘Mas ambos
estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua
infância impossível.’ Cito de memória, não sei se correto.” (Abreu, 1996, p. 14)
As crônicas de Caio F. Abreu se caracterizam pelo caráter poético e,
como já foi dito, pela desconexão em relação aos fatos do noticiário. Nelas, o
4
In Felicidade Clandestina, p. 46.
45
autor salta de um assunto a outro, até porque isso lhe é permitido, e devaneia.
É o caso, por exemplo, do texto No centro do furacão, em que o cronista
se liberta de qualquer amarra para fazer juz ao capricho de usar determinada
palavra. No caso, ‘voragem’, aquilo que sorve ou devora; turbilhão; qualquer
abismo; tudo o que subverte ou consome. Por coincidência – ou referência –, o
termo faz parte do repertório de Clarice Lispector 5 , de modo marcante. Escreve
Caio:
“Queria tanto poder usar a palavra voragem. Poder não, não quero
poder nenhum, queria saber. Saber não, não quero saber nada, queria
conseguir. Conseguir também não – sem esforço, é como eu queria. Queria
sentir, tão dentro, tão fundo que quando ela, a palavra, viesse à tona, desviaria
da razão e evitaria o intelecto para corromper o ar com seu som perverso. Aracional, abismal. Não me basta escrevê-la – que estou escrevendo agora e
sou capaz de encher pilhas de papel repetindo voragem voragem voragem
voragem voragem voragem voragem sete vezes ao infinito até perder o sentido
e nada mais significar – não é dessa forma que eu a desejo.” (Abreu, 1996, p.
42)
2.3 Imaginário X real
A leitura das crônicas de Caio Fernando Abreu reunidas no livro
Pequenas epifanias revela a capacidade de concisão e o estilo de um escritor,
jornalista de profissão, que passa ao largo da agenda dos vespertinos para se
voltar para a literatura. E é importante ressaltar essa singularidade porque há
cronistas que se baseiam nos fatos jornalísticos para escrever suas crônicas,
como é o caso, por exemplo, de Moacyr Scliar no jornal Folha de S. Paulo.
46
O cronista em foco nesse estudo, no entanto, faz da crônica um espaço
de exercício ficcional. Conceituado escritor de contos, a crônica definitivamente
não é para ele apenas um rascunho, mas uma obra singular que pode vir a
originar ou não um conto ou uma novela futuros, gêneros onde o estilo de
escrita se assemelha.
No primeiro capítulo do presente estudo, vimos a relação paradoxal que
se estabelece no jornal impresso entre a crônica e o texto jornalístico, ainda
que ambos possam ser considerados gêneros literários.
É por isso que não é difícil distingüir na leitura de um jornal entre a
reportagem e a crônica. Porque na última, o traço distintivo de que fala
Rosenfeld – o caráter imaginário – se evidencia na realidade subjetiva do
cronista, traduzida pela ficção. Enquanto ao repórter, cabe trazer a público a
realidade objetiva que ele presenciou ou apurou sobre um determinado fato
(ex: incêndio, queda de avião, corrupção nas esferas governamentais). Em
outras palavras, de acordo com Sodré e Ferrari, a matéria do jornalismo é a
realidade e a da literatura, a imaginação.
“É preciso não perder de vista a diferença de projeto entre literatura e
jornalismo: na primeira predomina o imaginário; no segundo, deve-se
impor a realidade (histórica, atual) dos fatos narrados.” (1986, p.123)
Mesmo uma crônica evidentemente autobiográfica, como, por exemplo,
Primeira carta para além do muro – que traz à tona uma dolorosa experiência
de internação hospitalar –, não se confunde em nenhum parágrafo com a
narrativa jornalística. Porque é um estilo de texto que pressupõe subjetividade
e, no caso, do autor em questão, o envolvimento do leitor. Vejamos um trecho:
“Dói muito, mas eu não vou parar. A minha não-desistência é o que de
melhor posso oferecer a você e a mim neste momento. Pois isso, saiba, isso
5
In A descoberta do mundo, 1999, p. 128 e 259.
47
que poderá me matar, eu sei, é a única coisa que poderá me salvar. Um dia
entenderemos talvez.” (Abreu, 1996, p. 96)
Sobre o texto ficcional, diz Anatol Rosenfeld:
“Na obra de ficção, o raio da intenção detém-se nestes seres puramente
intencionais, somente se referindo de um modo indireto – e isso nem em
todos os casos – a qualquer tipo de realidade extraliterária. Já nas
orações de outros escritos, por exemplo, de um historiador, químico,
repórter etc., as objectualidades puramente intencionais não costumam
ter por si só nenhum (ou pouco) “peso” ou “densidade”, uma vez que, na
sua abstração ou esquematização maior ou menor, não tendem a conter
em geral esquemas especialmente preparados de aspectos que
solicitam o preenchimento concretizador.” (2002, p. 17)
Esse preenchimento concretizador ao qual Rosenfeld se refere, o leitor
de Caio F. Abreu experimenta por meio do tom naturalmente sugestivo do autor
e também por meio do recurso explícito da elipse para compor um estilo. Cito
um exemplo, também retirado da crônica Primeira carta para além do muro:
“Disso que me aconteceu, lembro só de fragmentos tão descontínuos
que. Que – não há nada depois desse que dos fragmentos – descontínuos.”
(Abreu, 1996, p. 97)
Clarice Lispector, forte influência de Caio F. Abreu, como veremos logo
mais, também faz uso desse recurso, como, por exemplo, na metalingüística
crônica Máquina escrevendo 6 , que começa assim:
“Sinto que já cheguei quase à liberdade. A ponto de não precisar mais
escrever. Se eu pudesse, deixava meu lugar nesta página em branco: cheio do
6
In A descoberta do mundo, p. 347.
48
maior silêncio. E cada um que olhasse o espaço em branco, o encheria com
seus próprios desejos”.
O uso de figuras de construção num texto já sinaliza ao leitor o terreno
da crônica. Assim, podemos reconhecer na sintaxe um divisor de águas dentro
do jornalismo. Enquanto o repórter deve abusar da clareza e prescindir dos
recursos estilísticos, como metáforas e elipses, o cronista seduz nas
entrelinhas, como afirma Flora Christina Bender:
“O espaço em que acontece o fato analisado pelo cronista não fica no
mundo real que nos rodeia. Mesmo quando há verdade inquestionável
no que diz, as entrelinhas e as analogias é que interessam. A crônica é
um gênero do disfarce e ajuda a agüentar com certa fantasia a vida e a
realidade. Geralmente não é ficção pura, uma vez que a realidade está
palpável nela, o coração de cada leitor está batendo forte, ao identificarse com as idéias do cronista.” (1993, p. 44)
2.4 Retrato de uma época
As crônicas de Caio F. Abreu servem como parâmetro histórico do final
da década de 80 e início dos anos 90. Sob o olhar e vivência do cronista estão
tematizadas a decadência das metrópoles, a chegada do computador como
ferramenta praticamente imprescindível do escritor e o difícil enfrentamento da
Aids, num período ainda pré-coquetel anti-viral. Todos esses assuntos e outros
mais são abordados por ele, de maneira intensa e subjetiva.
No texto denominado Quase prefácio: um leve e duradouro amor, que
fez para a coletânea Pequenas epifanias, Maria Adelaide Amaral afirma:
“... Caio foi para o Caderno 2 e começou a escrever aquelas crônicas
perturbadoras onde fixou todos nós, a época, o zeitgeist dos anos 80, o
permanente e o passageiro, modas e eternidades”. (1996, p.9)
49
Vejamos um trecho da crônica Até que nem tão eletrônico assim, título
que faz referência a um verso da canção Esotérico 7 , de Gilberto Gil (“até que
nem tanto esotérico assim”):
“Estou me sentindo o próprio Robocop. Pois não é que ganhei um
microcomputador de presente? E desafiando o narrador alter ego de Onde
andará Dulce Veiga?, que com certa arrogância ao mesmo tempo complexada
e enfrentativa declara-se pré-informático, resolvi encarar a fera”. (Abreu, 1996,
p. 114)
Em Última carta para além dos muros (ver anexo 4), crônica de 1994 –
no total, são três “cartas” seqüenciais, cujo muro, no título, é o do cemitério do
Araçá, em São Paulo, que fica em frente ao Hospital Emílio Ribas, onde o autor
esteve internado –, Caio F. Abreu resolve tornar pública a sua doença, a
despeito do preconceito que ela suscitava – e, a bem da verdade, ainda
suscita:
“... Gosto sempre do mistério, mas gosto mais da verdade. E por achar
que esta lhe é superior te escrevo agora assim, mais claramente. Não vejo
nenhuma razão para esconder. Nem sinto culpa, vergonha ou medo. Voltei da
Europa em junho me sentindo doente. Febres, suores, perda de peso,
manchas na pele. Procurei um médico e, à revelia dele, fiz O Teste. Aquele.
Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado: HIV positivo.” (Abreu,
1996, p. 102)
Forte, direto, Caio F. Abreu se expõe ao leitor. Como já dissemos no
Capítulo 1, não encontramos em suas crônicas muito humor, uma das
principais características do gênero em questão. Seus textos são melancólicos,
7
In Um Banda Um, WEA, 1982
50
sugestivos e às vezes apresentam uma pitada de ironia, fazendo transparecer
uma certa amargura interior, provocada pela constante sensação de
impossibilidade: do amor, da vida. E esses temas e tom recorrentes o
aproximam da prosa poética. Cito, como exemplo, a crônica Anotações
insensatas.
“Não muito confuso, assim confrontado com sua explícita incapacidade
de lidar com. A palavra não vinha. Podia fazer mil coisas a seguir. Mas dentro
de qualquer ação, dentes arreganhados, restaria aquela sua profunda
incapacidade de lidar com. Um instante antes de bater outra, colocar uma velha
Billie Holiday e sentar na máquina para escrever, ainda pensou: gosto tanto de
você, baby.” (Abreu, 1996, p. 56)
O tom íntimo e coloquial estabelecido com o leitor, uma das marcas de
Caio F. Abreu, remete à concepção de narrador descrita por Walter Benjamin,
na medida em que a crônica incorpora a oralidade que está presente no
cotidiano. Assim, podemos ver o cronista como um herdeiro contemporâneo da
figura do narrador.
“...Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O
narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração
consumir completamente a mecha de sua vida.” (1986, p. 221)
Um bom exemplo do que diz Benjamin está na crônica Anotações
insensatas, em que Caio F. Abreu escreve:
“Só que os escritores são seres muito cruéis, estão sempre matando a
vida à procura de histórias. Você me ama pelo que me mata. E se apunhalo é
porque é para você, para você que escrevo – e não entende nada.” (Abreu,
1996, p. 56)
51
2.5 A presença de Clarice
O instigante em Caio F. Abreu é o despojamento em se entregar de
corpo e alma a quem o lê. Talvez, um grande artifício do cronista na sedução
dos leitores seja justamente o despudoramento do seu íntimo, a exposição
intelectual e sentimental de sua personalidade. E o índice de leitura e a firme
permanência da crônica no jornal indicam certamente que o leitor de crônica
está em busca de confissões, de divertimento, de identificação sentimental em
meio à massa cinzenta de letrinhas que compõe o noticiário cotidiano.
Despojamento similar ao de Caio é também encontrado nas crônicas de
Clarice Lispector, publicadas no Jornal do Brasil, no período de 1967 a 1973.
Grande influência na obra de Caio F. Abreu, Lispector não negava certo
desconforto naquela função:
“Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que
não se pode chamar propriamente de crônica. E, além de ser neófita no
assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinheiro. Já
trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico
automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse
vendendo minha alma. Falei nisso com um amigo que me respondeu: mas
escrever é um pouco vender a alma. É verdade. Mesmo quando não é por
dinheiro, a gente se expõe muito. Embora uma amiga médica tenha
discordado: argumentou que na sua profissão dá sua alma toda, e no entanto
cobra dinheiro porque também precisa viver. Vendo, pois, para vocês com o
maior prazer uma certa parte de minha alma – a parte de conversa de
sábado.”(1999, p. 29)
52
Ao ser questionado 8 sobre a paixão pela literatura da escritora
ucraniana, Caio F. Abreu respondeu: “Você sabe que me proibi de ler Clarice?
Realmente ela me marcou muito, mas acho que existe muito mais influência de
Drummond no sentido de uma visão de mundo assim desesperançada. Às
vezes, acho que tenho mais influência de poesia do que prosa”.
Numa outra entrevista, para o Caderno 2 do jornal O Estado de S.
Paulo, em dezembro de 1995, Caio F. Abreu reiterou a complicada relação com
sua antecessora: “Seus livros me provocam a sensação de que tudo já foi
escrito, de que nada há mais a dizer. Eu não suporto mais ler as ficções de
Clarice. Claro que, às vezes, leio escondido de mim mesmo. Mas elas me
perturbam muito”.
Essa confissão angustiada do cronista acerca do peso de uma
antecessora no seu processo criativo, sugere a força da influência dentro da
tradição literária. Tal problemática foi teorizada pelo crítico norte-americano
Harold Bloom no ensaio A angústia da influência (1973). Arthur Nestrovski, que
traduziu o texto para o português, explica a expressão:
“A angústia da influência é a sensação paralisadora que todo poeta tem
do precursor; é a falência da imaginação quando o ‘Homem célebre’ de
Machado de Assis se afasta do piano e confessa a si mesmo que sua
inspiração era ‘apenas o eco de alguma peça alheia, que a memória
repetia e ele supunha inventar.’” (1996, p. 110)
No contexto latino-americano, entretanto, constatamos que os escritores
incorporam as referências artísticas anteriores sem essa carga da influência
angustiante e paralisadora. Assim, quem conhece as crônicas de Lispector as
reconhecerá nas crônicas de Caio F. Abreu, pois ele as cita com freqüência,
implícita e explicitamente, seja por meio do vocabulário, seja pela
intertextualidade, como veremos mais adiante.
8
Entrevista reproduzida no site caio.itgo.com.
53
Ou seja, a influência aqui não tem “o peso negativo da falta de
originalidade”, de que fala Cecília Salles.
“Mário de Andrade acalma o amigo Carlos Drummond de Andrade, que
se dizia angustiado diante da influência de Mário sobre ele. ‘Em última
análise tudo é influência neste mundo. Cada individuo é fruto de alguma
coisa’. E em seguida ele aponta um aspecto importante nessa
discussão, que é a dificuldade de distinção entre essas ditas influências
e a revelação do que somos: “muitas vezes um livro revela prá gente um
lado nosso ainda desconhecido. Lado, tendência, processo de
expressão, tudo. O livro não faz que apressar a apropriação do que é da
gente”. (2005, inédito)
E, ao se apropriar “do que é da gente”, surge um estilo singular. Como é
o caso das crônicas de Caio F. Abreu. Se é nítido que ele e Clarice se
assemelham no plano do conteúdo, ao travar uma relação íntima com o leitor e
trazer à tona almas um tanto quanto atormentadas do ponto de vista
existencial, ambos se diferem quanto à forma.
No domínio da sintaxe, em que incorpora a linguagem do cotidiano, Caio
F. Abreu trata de temas pesados de maneira suave, resultando ao nosso ver –
e aqui sem nenhum juízo de valor – numa obra menos perturbadora que a de
sua precursora.
2.6 Diálogos
Outra presença assumida na literatura de Caio F. Abreu é a de
Drummond, que se reflete no molde poético da prosa do cronista em questão.
Sempre na primeira pessoa do singular, ela é sugestiva, insinuante, reveladora
e dialoga com outros autores. Como resultado, percebemos a presença
constante da intertextualidade que, segundo Perrone-Moisés só é possível num
contexto de “abertura dialógica” por parte das obras dos autores citados.
54
“A primeira condição para a intertextualidade é que as obras se dêem
como inacabadas, isto é, que elas permitam e solicitem um
prosseguimento. Para Bakhtine, “inacabamento de princípio” e “abertura
dialógica” são sinônimos. Com efeito, só pode haver diálogo se a
primeira palavra se abrir e deixar lugar para uma outra palavra. ...A obra
‘acabada’ é a obra historicamente liquidada, aquela que não diz nada ao
homem (ao escritor) de hoje, que não lhe permite dizer mais nada. A
obra inacabada, pelo contrário, é a obra prospectiva que avança pelo
presente e impele para o futuro.” (1993, p. 72 e 73)
É preciso lembrar que são inúmeras as referências literárias (além de
Lispector e Drummond, Hilda Hilst, Rubens Fonseca, Reinaldo Arenas, Susan
Sontag, García Lorca), artísticas (Frida Kahlo, Camille Claudel), musicais
(Caetano Veloso, Gilberto Gil, Vinícius de Moraes), cinematográficas (Fellini),
jornalísticas (Ignácio de Loyola Brandão, José Simão) e urbanas (São Paulo,
Rio, Porto Alegre, Paris, Hamburgo), que compõem a literatura de Caio F.
Abreu.
Constantemente, ele trava diálogos com essas referências, sem jamais
excluir o leitor. Para falar sobre o escritor cubano Reinaldo Arenas – Um uivo
em memória de Reinaldo Arenas –, de quem se diz admirador, Caio F. Abreu
recorre ao realismo mágico latino-americano:
“Acordei ouvindo o ruído da máquina de escrever do escritório. Fui até o
corredor, espiei. Em frente à janela, um homem moreno contemplava a
tempestade enquanto escrevia. Parecia chorar. Estremeci, ele desapareceu. Tô
pirando, pensei. E voltei a dormir”. (Abreu, 1996, p. 118)
Caio F. Abreu também dialoga com outros companheiros de ofício, como
Ignácio de Loyola Brandão em Reflexões de um fora-da-lei do Atrolho, para
criticar a infra-estrutura, muitas vezes precária, da capital.
55
“E as embalagens? Há uma tampa de água mineral, que outro dia
Ignácio de Loyola comentou aqui, capaz de estraçalhar dedos, unhas e
cutículas. E as calçadas de São Paulo, também comentadas pelo mesmo
Ignácio, um expert em atrolhos?” (Abreu, 1996, p.88)
Esse diálogo muitas vezes se dá pela intertextualidade. A capacidade de
Caio F. Abreu dialogar incessantemente com outros autores – se apropriando
de palavras como voragem, por exemplo, que, como já vimos, pertence ao
repertório de Lispector –, mas recriando-os, o coloca no meio deles.
Segundo Perrone-Moisés:
“A velha frase de La Bruyère: ‘Chegamos tarde e tudo já foi dito’ soará
ela própria diferentemente. Tudo já foi dito (todas as palavras estão
habitadas, dirá Bakhtine) mas tudo pode ser redito diferentemente.
Assim como a própria frase de La Bruyère foi redita por Lautréamont:
‘Chegamos cedo, nada foi dito’. No seu significado e no seu significante,
a paródia de Lautréamont é a exemplificação perfeita da prática da
intertextualidade. Para o poeta nada está completamente dito, estamos
sempre no amanhecer da linguagem e no despontar do sentido.” (1993,
p. 63)
Assim, encontramos também mitos, fábulas e histórias bíblicas no
universo do cronista. Em Lição para pentear pensamentos matinais, ele
escreve:
“Pensamentos matinais, desgrenhados, são frágeis como cabelos finos
demais que começam a cair. Você passa a mão, e ele já não está mais ali – o
fio. No travesseiro sempre restam alguns, melhor não olhar para trás: vira-se
estátua de cinza”. (Abreu, 1996, p. 81)
Caio F. Abreu está se referindo ao episódio do Antigo Testamento em
que uma mulher é transformada em estátua de sal, ao desobedecer a ordem
56
divina de não olhar para trás ao abandonar sua cidade junto com seus
familiares.
Para quebrar o tom, Caio “vezenquando”, como ele gosta de usar,
surpreende o leitor com fábulas, como em O mistério do cavalo de Édipo, em
que recria personagens da mitologia clássica num texto leve, quase uma
brincadeira.
“Édipo ia reagir quando chegou Perséfone: percebeu pelo excesso de
perfume no ar. Sim, pensou, Perséfone tinha mesmo ficado meio tang demais
depois de superada aquela horrível fase dark no Hades.” (Abreu, 1996, p. 33)
A capacidade de fazer poesia em prosa – a la Drummond –, é visível na
descrição de uma cena do cotidiano de um desencontro amoroso (As primeiras
azaléias – ver anexo 2), que o escritor observa da janela de seu apartamento.
Protagonizado por um casal de 20 e poucos anos em frente a uma loja de
produtos para surf, na região dos Jardins, o quadro é observado pelo olhar
aguçado do cronista que dialoga com a cidade e não deixa escapar um grupo
de senhoras que surge de repente:
“...São três e meia da tarde de domingo. Há uma garota chorando na
calçada em frente ao meu apartamento. Faz frio. Um grupo de senhoras muito
elegantes em suas peles e lãs sai do edifício ao lado. Mas não olham para o
casal.” (Abreu, 1996, p. 57)
Para falar da morte do poeta – de quem o verso “Mundo mundo vasto
mundo/se eu me chamasse Raimundo/seria uma rima, não seria uma
solução./Mundo mundo vasto mundo,/mais vasto é meu coração” 9 talvez
resuma o espírito do cronista Caio F. Abreu, desesperançado por natureza – ,
9
“Poema de sete faces.” In Andrade, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro: Record,
2004.
57
escreve uma crônica em tom de fábula angelical (Carlos chega ao céu), com
um olhar positivo sobre a morte, em que devaneia sobre os encontros ilustres –
Cecília Meireles, Vinícius de Morais, Manuel Bandeira –, que Drummond terá
no “céu”.
“Carlos Drummond de Andrade desce e põe os pés no céu. ‘Não é que
virei mesmo eterno?’ – comenta, olhando aquele nuvenzal todo. Então vê os
três. Tanto tempo, pois é, tanto tempo, pensei que nem vinha mais. Cecília,
você não mudou nada, e essa barriga, Poetinha? não toma jeito, curou a tosse,
Bandeira?” (Abreu, 1996, p. 61)
O diálogo com Clarice Lispector, quase que constante, reaparece na
transformação do substantivo masculino “chinês” em adjetivo (61: verdade
interior):
“...Súbito, o céu escurece. ...Chinês você se concentra.” (Abreu, 1996, p.
63)
Esse tipo de transformação gramatical, Lispector fez no conto
Tentação 10 – citado por Caio F. Abreu na crônica Pequenas epifanias – ao
“qualificar” um cão de cachorro:
“...Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um
basset ruivo. Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu
comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.”
Aqui cabe a definição de intertextualidade, segundo Perrone-Moisés:
58
“‘Todo texto é absorção e transformação de uma multiplicidade de outros
textos’, diz Kristeva, na esteira de Bakhtine. Entende-se por
intertextualidade este trabalho constante de cada texto com relação aos
outros, esse imenso e incessante diálogo entre obras que constitui a
literatura. Cada obra surge como uma nova voz (ou um novo conjunto de
vozes) que fará soar diferentemente as vozes anteriores, arrancandolhes novas entonações.”(p. 63)
Talvez não seja exagero dizer que Caio F. Abreu é um escritor de alma
atormentada e feminina. Tanto por sua identificação literária com Clarice
Lispector, pela sua admiração a Hilda Hilst, mas também por seus temas, por
saber descrever a mulher como faz em alguns contos (ex: Os sapatinhos
vermelhos 11 ), ou por fazer de uma frase da escultora Camille Claudel 12 , uma
crônica melancólica sobre a condição humana (Existe sempre alguma coisa
ausente):
“Que algo sempre nos falta – o que chamamos de Deus, o que
chamamos de amor, saúde, dinheiro, esperança ou paz. Sentir sede, faz parte.
E atormenta”. (Abreu, 1996, p. 90)
2.7 Temas
A cidade como cenário das crônicas, seja aquela em que o autor vive –
São Paulo –, seja a que habita quando escreve – Porto Alegre, Rio de Janeiro,
Paris, Hamburgo, Londres – é constante. Ele apropria-se das cidades de
diferentes maneiras. Como, por exemplo, na crônica As primeiras azaléias (ver
anexo 2), que já mencionamos.
10
“Tentação.” In Lispector, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
In Fragmentos: 8 histórias e um conto inédito. Porto alegre, L&PM, 2002.
12
“Il y a toujours quelque chose d’absent qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que
me atormenta), frase impressa numa placa pendurada na casa em que a escultora viveu em Paris.
11
59
“... Não sei se por essa educação paulistana, meio londrina, onde a
aparente frieza disfarça cumplicidade e respeito – ou mera indiferença, pode
ser. Afinal que importância tem uma garota chorando e um rapaz de óculos às
três e quarenta e cinco da tarde de um domingo?” (Abreu, 1996, p. 57)
E também no texto Oito cidades alemãs e um Brasil, onde dá conta um
pouco da cultura germânica ao ressaltar a rígida pontualidade do cotidiano
local.
“Não há tempo. Os trens jamais atrasam, implacáveis horários. Ser
eficiente, milimétrico: 15 minutos para o banho, 20 para o breakfast, 10 para
um telefonema, 20 para arrumar a mala, 10 para acertar as contas no hotel,
mais 10 para chegar à estação com meia hora livre para o que chamo de
‘espaço de bobeira’.”. (Abreu, 1996, p. 108)
Mas entre os diversos temas, prevalecem as dores da alma,
enriquecidas por suas preferências intelectuais – como a música, que surge de
antemão nas epígrafes em que recomenda que a leitura da crônica seja
embalada por determinada canção; a literatura; e o cinema – e aprofundadas
pelos desencontros amorosos e pela doença.
Fazendo da solidão a espinha dorsal de sua narrativa, Caio F. Abreu
transita pelos diversos aspectos da experiência humana – o amar, o adoecer, o
viajar, o trabalhar, o habitar, o escrever, o sonhar, o conviver, o orar –,
colocando no papel sentimentos “tão interiores que se escrevem ao mesmo
tempo em que são sentidos, quase sem o que se chama de processo”, para
citar Clarice 13 . E, assim, alça o leitor à condição de amigo e confidente.
É por issso que crônicas de mais de uma década permanecem vivas,
enquanto a sua “vizinha” notícia se torna no máximo um pedaço da história.
60
Pois, a despeito da qualidade literária do autor, estando no campo da ficção a
crônica não passa pelas “mediações limitativas dos acontecimentos concretos”,
de que fala Umberto Eco no ensaio A estrutura da consolação (2001, p.191).
2.8 Pequenas epifanias
Publicada originalmente em 22 de abril de 1986, no “Caderno 2” do
jornal O Estado de S. Paulo, Pequenas epifanias (ver anexo 1) é a nosso ver a
crônica mais bem acabada de Caio F. Abreu.
Nela, o autor mostra que sabe como poucos manejar as palavras
produzindo um efeito encantatório que hipnotiza o leitor. Talvez, pelo tom
sugestivo das palavras, tão bem escolhidas e colocadas, que parecem formar
um mosaico epifânico. Roman Jakobson diz que a função mágica,
encantatória, é sobretudo a conversão de uma “terceira pessoa” ausente ou
inanimada – no caso, a outra pessoa – em destinatário de uma mensagem
conativa. É nesse aspecto que se revela a qualidade poética do texto e
também no enfoque da mensagem por ela própria – ao falar de pequenas
epifanias, o texto se revela epifânico. Porque se fosse apenas mais um texto de
amor, seria bonito. Mas também descartável. A poesia aqui presente nos toca
de tal forma que o texto se torna necessário.
“Era isso – aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha,
olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a
olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a
poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que
tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à
noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das
janelas, vendo o que ninguém veria.” (Abreu, 1996, p. 14).
13
Lispector, Clarice. Dois modos. In A descoberta do mundo.
61
A metáfora do desejo ganha aqui força de imagem. Imagem essa que é
fruto da metaforização da metonímia presente na forma como o autor fala do
seu objeto (a outra face). Fator intrínseco à linguagem poética, em que o
enfraquecimento da relação signo-realidade, faz com que o próprio signo – o
amor – fique em primeiro plano.
Evidentemente, notamos também a presença no texto da função
emotiva, que nas palavras de Jakobson:
“...Visa a uma expressão direta da atitude de quem fala em relação
àquilo de que está falando. Tende a suscitar a impressão de uma certa
emoção, verdadeira ou simulada.” (1991, ps. 123 e 124)
Para Leyla Perrone-Moisés,
“a obra poética sempre foi a formalização de um conteúdo, que só existe
e alcança o tipo de efeito que lhe é próprio naquela forma. E a
repercussão de uma obra poética sobre a realidade é tanto mais eficaz,
quanto mais esta for bem resolvida formalmente, quanto mais ela estiver
bem cunhada numa forma que, como dizia Klee, ‘torna visível o
real’”(1998, p. 88).
Com certeza, somente no espaço delimitado pela crônica, Caio pôde dar
o título de Pequenas epifanias para o texto que escreveu. Num espaço maior,
essa característica poética – e metalingüística – perderia o efeito.
Nessa crônica, ironicamente, o autor faz um desabafo ao leitor sobre
uma história de amor que poderia ter acontecido, sem contar absolutamente
nada sobre a outra face de quem ele fala, sobre o contexto temporal e físico
em que aquelas duas pessoas se conheceram, ou seja, sem contar
efetivamente muita coisa. Apesar disso, em nenhum momento o leitor sente
que não é da confiança do autor, tamanho é o caráter intimista do texto.
62
Mesmo anunciando que vai falar de algo do passado que não aconteceu
– "uma possibilidade de amor" –, Pequenas epifanias prende o leitor do
começo ao fim. E o atrativo justamente é o fato de não ter acontecido, que gera
no leitor uma curiosidade – por que será que não?
Vale
aqui
um
pensamento
de
Aristóteles,
em
sua
teoria
da
representação poética: "Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; e, sim, o
de representar o que podia acontecer, quer dizer, o que é possível segundo a
verossimilhança e a necessidade."
E, nessa crônica, mais do que nunca, Caio corporifica o que não
aconteceu:
“...E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar
também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face.” (Abreu,
1996, p. 15)
De acordo com Jakobson, essa capacidade de conversão da mensagem
em algo duradouro é uma propriedade inerente da poesia.
“A capacidade de reiteração, imediata ou retardada, a reificação de uma
mensagem poética e de seus constituintes, a conversão de uma
mensagem em algo duradouro – tudo isto representa, de fato, uma
propriedade inerente e efetiva da poesia.” (1991, p. 150)
Também se nota no texto a presença da similaridade no uso constante
de advérbios de modo (descuidadamente, rapidamente, inesperadamente) e de
intensidade (suavemente), entre expressões vagas (possibilidade de amor,
estar dentro daquilo era bom, dois ou três almoços, uns silêncios...), que
ressaltam o tom poético e sugestivo da crônica.
Jakobson explica:
63
“Em poesia, onde a similaridade se superpõe à contigüidade, toda
metonímia é ligeiramente metafórica e toda metáfora tem um matiz
metonímico.” (1991, p. 149)
Por fim, Caio nos conta de um amigo seu que lhe falou sobre as
pequenas epifanias. Ou seja, ele tenta nos seduzir por meio da mesma isca
que o seduziu. Faz juz à afirmação de Leyla Perrone-Moisés, segundo a qual,
os poetas são sedutores porque foram vítimas de uma sedução primeira.
Sedução essa, exercida pela própria linguagem.
2.9 Procedimentos textuais
A narrativa de Caio F. Abreu é repleta de elipses, como já foi
mencionado – muitas vezes significando a interrupção do próprio pensamento
–, sinestesia, dissimulação de gênero, gírias e neologismos, repetições
enfáticas e polissíndetos. A presença do leitor é evidente, na maneira como
escreve sempre se referindo a quem o lê, muitas vezes num tom epístolar, o
que traz vivacidade ao texto.
ELIPSE
A omissão de um termo ou oração que fica subentendida nas
entrelinhas, figura de construção denominada elipse, é um recurso estilístico
recorrente de Caio F. Abreu. Em suas crônicas, há interrupções abruptas, que
sugerem na escrita a descontinuidade do pensamento, como num trecho de
Anotações insensatas:
“...Não muito confuso, assim confrontado com sua explícita incapacidade
de lidar com.” (Abreu, 1996, p.56)
64
Ao contar com o preenchimento e subentendimento do leitor, Caio F.
Abreu estabelece uma relação de cumplicidade com quem o lê. Daí que a
elipse é um procedimento impensável no texto jornalístico, como já vimos
anteriormente na explicação de Anatol Rosenfeld sobre o texto ficcional.
Freqüentes e explícitas no trabalho de Caio F. Abreu, elas surgem, entre
outras, na crônica Lição para pentear pensamentos matinais:
“...Não deveria sentir sono ao meio-dia, mas.”
Neste contexto, explica em seguida:
“...Pensamentos matinais são um abrupto mas com ponto final a seguir.”
(Abreu, 1996, p. 81)
De forma mais radical, vemos o recurso em Sugestões para atravessar
agosto, em que o autor interrompe o texto, arrematando:
“Mas para atravessar agosto, pensei agora, é preciso principalmente não
se deter demais no tema. Mudar de assunto, digitar rápido o ponto final, sinto
muito perdoe o mau jeito, assim, veja, bruto e seco:.” (Abreu, 1996 p. 159 e
160)
SINESTESIA
O tom sugestivo que permeia as crônicas de Caio F. Abreu se deve
muitas vezes à fusão de impressões sensoriais, como na crônica Quando
setembro vier (p. 28), em que ele usa as expressões “voz amorosa” e “voz
quente”. Temos aí um exemplo da figura de linguagem conhecida como
sinestesia, que transfere percepções da esfera de um sentido para a de outro,
65
resultando numa fusão de impressões sensoriais de grande poder sugestivo.
Exemplifico:
“Escrevi horas. Sem sentir, cheio de prazer. Quando pensava em parar,
o telefone tocou. Então uma voz que eu não ouvia há muito tempo, tanto tempo
que quase não a reconheci (mas como poderia esquecê-la?), uma voz
amorosa falou meu nome, uma voz quente repetiu que sentia uma saudade
enorme, uma falta insuportável, e que queria voltar, pediu, para irmos às ilhas
gregas como tínhamos combinado naquela noite.” (Abreu, 1996, p. 29)
DISSIMULAÇÃO DE GÊNERO
Ainda nessa intenção de manter o tom sugestivo, Caio F. Abreu se
refere ao ser amado de maneira ambígua. Provavelmente para não explicitar a
sua homossexualidade, que, talvez, não fosse bem-recebida pelos leitores –
principalmente de um jornal de linha mais conservadora como O Estado de S.
Paulo –, ou simplesmente para não se expor. Assim, ele recorre a pronomes
indefinidos (outra pessoa), pessoais (nós dois), ou de tratamento (você), sem
especificar o gênero, como na crônica Por trás da vidraça.
“...ainda que um de nós dois ou os dois tivéssemos realmente sonhado
que um sonhava com o outro, também é pouco provável que falássemos sobre
isso”. (Abreu, 1996, p. 69)
Essa dissimulação de gênero, que aparece ainda em outras crônicas,
não ocorre nos contos de Caio F. Abreu, onde a temática gay – ou queer – vem
naturalmente à tona. Cabe aqui destacar que nos contos de Caio F. Abreu há
mais humor do que nas crônicas e um humor característico que se expressa
em um vocabulário próprio, como observa Ítalo Moriconi.
66
“Esse tipo de humor – humor bicha ou queer – com suas mascaradas
dissociações de personalidade e travestimos fake, faz do texto um jogo
vertiginoso de máscaras que se espelham. É próprio dessa modalidade
de humor, a criação de códigos cômicos idiossincráticos, todo um
vocabulário que Caio usava tanto nas cartas, como nas crônicas e
ficções, inteiramente inventado por ele.” (Apud Denser, 2003, p. 121)
GÍRIAS E NEOLOGISMOS
A delicadeza que Caio F. Abreu imprime às suas crônicas, mesmo nas
que tratam de temas densos, faz com que a eventual presença de gírias não
soe vulgar. Pelo contrário, elas se tornam um recurso de estilo e não se
confundem com a figura denominada Plebeísmo (uso de palavras e expressões
vulgares, de termos de gíria), normalmente vetada na linguagem culta
jornalística, por exemplo.
Na crônica Uma história de fadas, por exemplo, o autor recorre a uma
gíria do universo gay para se referir a algumas companhias:
“O homem seguia sempre em frente. Meio de saia-justa, porque tinham
dito para ele (uns amigos najas) que mesmo chegando ao País das Fadas elas
podiam simplesmente não gostar dele.” (Abreu, 1996, p.72)
O termo, por sinal, já havia sido apresentado ao leitor na crônica Deus é
naja:
“Naja ou não, Deus (ou o Diabo) guarde sua capacidade de rir
descontroladamente de tudo. Eu às vezes, só às vezes, também consigo.
Ultimamente, quase não.” (Abreu, 1996, p.25).
Um neologismo, “atrolho”, aparece de vez em quando, como em Novas
notícias de um jardim ao sul:
67
“Tem um narciso demoradíssimo que não sei se gorou, atrolhou ou
estará ainda se preparando.” (Abreu, 1996, p. 143)
Também usa mais de uma vez a expressão “vezenquando”, como na
crônica Carta anônima (p. 78):
“... Não tenho tido muito tempo ultimamente mas penso tanto em você
que na hora de dormir vezenquando até sorrio e fico passando a ponta do meu
dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme
com os anjos.” (Abreu, 1996, p.80)
REPETIÇÕES ENFÁTICAS
No texto Por trás da vidraça, Caio F. Abreu experimenta e ousa,
iniciando todos os parágrafos com a mesma frase:
“Sonhei que você sonhava comigo...” (Abreu, 1996, p. 69).
A crônica, assim, iniciada por versos, ganha um tom poético. Essa
experimentação poética na prosa reaparece em Na terra do coração, em que
começa todos os parágrafos – exceto o primeiro e o último – com as palavras
“Meu coração” (Abreu, 1996, p. 75), fazendo delas o único elo de ligação entre
os períodos. Encerra o texto concluindo: “meu coração teu”, comprovando a
formulação experimental anunciada nas primeiras linhas.
POLISSÍNDETO
A repetição do conectivo coordenativo, figura de construção denominada
Polissíndeto, é freqüente nos textos de Caio F. Abreu. No caso, com a intenção
68
de enfatizar sentimentos. Esse recurso estilístico aparece, entre outras, na
crônica Aos deuses de tudo que existe:
“Então eu agradeço, eu tenho medo e espanto e terror e ao mesmo
tempo maravilhamento e outras coisas com e sem nome, mas agradeço”.
(Abreu, 1996, p. 169)
E também em O mergulho do príncipe bailarino, em que fala da morte do
bailarino Rainer Viana, em 1995:
“Como príncipe e artista, aquele queria sempre o mais belo. De tudo:
pessoas e pedras e plantas e águas e estrelas e bichos”. (Abreu, 1996, p. 166)
TOM EPÍSTOLAR
Num tom de carta, dirigido a alguém, que ele denomina de “você”, o
texto Carta anônima evidencia mais uma vez o estilo intimista de Caio F.
Abreu, que revela sentimentos sem se expor, se dirigindo a uma terceira
pessoa que pode ser o leitor ou alguém específico, por meio de uma prosa
poética sedutora e ambígua.
“Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta meu
pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você.
Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio
encabulados, a gente tem muito poder de parecer ridículos melosos piegas
bregas românticos pueris banais.” (Abreu, 1996, p. 79)
A proximidade que ele estabelece com o leitor, portanto, se dá pelo
tratamento:
69
“Quando vocês estiverem lendo isto aqui, estarei viajando.” (Abreu,
1996, p. 155), avisa na crônica Paisagens em movimento.
“... Amanhã à noite vou estar na Livraria Cultura, ali no Conjunto
Nacional, Paulista com Augusta, coração de Sampa, autografando as minhas
Ovelhas negras. ...Aparece lá”, convida em Autógrafos, manias, medos e
enfermarias (Abreu, 1996, p. 152 – ver anexo 5).
Em Deus é Naja, desabafa:
“Porque também me acontece – como pode estar acontecendo a você
que quem sabe me lê agora – de achar que tudo isso talvez não tenha a menor
graça.” (Abreu, 1996, p. 25).
Esse estilo solto e liberto de Caio F. Abreu o coloca no terreno da
oralidade. Característica visível na informalidade com que se dirige ao leitor e
que definitivamente afasta seus textos do jornalismo.
Essa relação do cronista com a sintaxe coloquial é um dos temas do
nosso próximo capítulo.
70
CAPÍTULO 3
TEXTURAS – ELEMENTOS DA CRÔNICA
71
Neste último capítulo, procuramos apresentar um apanhado das
especificidades da crônica de Caio F. Abreu, em meio ao que é comum ao
gênero. O intuito é o de revelar os ingredientes da crônica, pois, como já
percebemos, é tarefa ingrata tentarmos encaixá-la numa única definição.
3.1 Oralidade na escrita
Em artigo quinzenal na Folha de S. Paulo, o colunista Manuel da Costa
Pinto 14 faz uma observação interessante ao comentar uma antologia de textos
do escritor paraense Haroldo Maranhão:
“Muitos estão a meio caminho entre o conto e a crônica, explorando
aquele abismo, peculiar ao Brasil, que há entre as línguas escrita e
falada.” (02/07/2005, p. E-2)
De fato, tanto o conto quanto a crônica têm a possibilidade de trazer
para a literatura a sintaxe coloquial, incorporando a linguagem oral, do dia-adia. No caso da crônica, essa característica, inclusive, seria um dos fatores do
seu êxito como gênero do jornalismo literário brasileiro, de acordo com Antonio
Candido.
“O seu grande prestígio atual é um bom sintoma do processo de busca
de oralidade na escrita, isto é, de quebra do artifício e aproximação com
o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo. E isto é
humanização da melhor.” (1980, p. 8)
Ao incorporar a oralidade na escrita, a crônica recupera a agilidade do
jornal, enquanto veículo de comunicação de massa, sendo como que um
instantâneo – colorido, no sentido de que traz emoções ao texto, em contraste
com o grosso das reportagens – do cotidiano.
14
O sinistro e seus duplos, Folha de S. Paulo (Caderno Ilustrada)
Ao mesmo tempo em que
72
ressalta, através da sintaxe e da liberdade temática, o seu distanciamento do
jornal. Pois, como diz o escritor e cronista Luis Fernando Verissimo 15 :
“Tem vezes em que sento ali, sem idéia nenhuma, e invento uma
história. Isso a crônica tem de bom. Ela pode ser o que a gente quiser
que ela seja. Pode ser até uma ficção, um conto, uma coisa meio
experimental, um exercício de estilo. Pode ser um comentário político,
sobre futebol. O que quiser e sempre continua sendo crônica”. (2005, p.
12)
Verissimo, em sua declaração, reitera o que já vimos nos capítulos
anteriores sobre a diversidade que a crônica propicia como gênero.
Retomando a questão da oralidade, percebemos que no texto, esse tipo
de opção facilita a relação com o leitor, abrindo canais de comunicação entre
ele e o cronista por meio da palavra. Isso se dá, segundo Antonio Candido,
porque a crônica:
“... ensina a conviver intimamente com a palavra, fazendo que ela não se
dissolva de todo ou depressa demais no contexto, mas ganhe relevo,
permitindo que o leitor a sinta na força dos seus valores próprios.” (1980,
p. 6)
Obviamente que o cronista ao adotar a sintaxe oral-coloquial está
pensando no seu receptor. Segundo Cecília Salles, essa relação comunicativa
é intrínseca ao ato criativo.
“Está inserido em todo processo criativo o desejo de ser lido, escutado,
visto ou assistido. Essa relação é descrita de diferentes maneiras:
complementação, cumplicidade, jogo, alvo de intenções, associação,
soberania do receptor e possível mercado.” (2001, p. 48)
15
Entrevista para a Revista E, do Sesc-SP, edição de julho de 2005.
73
Esse impulso oral-coloquial está presente nas crônicas de Caio F.
Abreu, num estilo composto por pormenores excessivos e repertório variado,
como veremos adiante.
3.2 Tom intimista
Nas crônicas apreciadas no presente estudo, predominam alguns temas,
que muitas vezes se mesclam no mesmo texto. Vejamos:
•
A solidão
•
O amor
•
A Aids
•
As cidades
•
A morte
•
A literatura
•
A música
•
O prazer da jardinagem
•
A fé
São temas que ressaltam o estilo intimista de Caio F. Abreu, resultando
muitas vezes em sugestivas crônicas autobiográficas que, paradoxalmente,
não revelam muito da vida do autor. É o caso de Ao momento presente:
“...Escolha um fundo musical adequado – quem sabe, Mozart, se quiser
uma ilusão de dignidade”. (Abreu, 1996, p. 45)
E Agostos por dentro:
74
“Devo ter suspirado ou movido um pouco a cabeça para receber melhor
no rosto a brisa com cheiro de algas, ou feito qualquer outro desses gestos
típicos de quando se quer mudar de parágrafo por dentro, compreendem?”
(Abreu, 1996, p. 161)
3.3 A presença da cidade
A desilusão com a cidade de São Paulo (Reflexões de um fora-da-lei do
Atrolho), com a política (Hamburgo, 11 de outubro de 1994; Delírios do puro
ódio) e com a própria vida é um tema freqüente (Quando setembro vier).
Nessas crônicas, Caio F. Abreu faz um lamento ao leitor, numa tentativa de
compartilhar a sua decepção com tais assuntos, ressaltando o caráter intimista
de suas crônicas. O seu lamento é real, verdadeiro, não é fictício. O que
contribui para seu alcance receptivo, ainda que não sejam tão leves quanto o
gênero costuma ser. Antonio Candido, inclusive, se refere à crônica como
“peças leves”.
“...Por serem leves e accessíveis talvez elas comuniquem mais do que
um estudo intencional a visão humana do homem na sua vida de todo o
dia.” (1980, p. 11)
Por outro lado, na ficção de Caio F. abreu, acontece o mesmo
entrelaçamento da cidade com a intimidade do autor. É uma tensão bem
resolvida, como no conto Anotações sobre um amor urbano:
“Pensei em você. Eram exatamente três da tarde quando pensei em
você. Sei porque sacudi a cabeça como se você fosse uma tontura dentro dela
e olhei o digital no meio da avenida. Corre, corre. O número do telefone
dissolvendo-se em tinta na palma da mão suada. Ah, no fim destes dias
crispados de início de primavera, entre os engarrafamentos de trânsito, as
75
pessoas enlouquecidas e a paranóia à solta pela cidade, no fim destes dias
encontrar você que me sorri, que me abre os braços, que me abençoa e passa
a mão na minha cara marcada, no que resta de cabelos na minha cabeça
confusa, que me olha no olho e me permite mergulhar no fundo quente da
curva do teu ombro.” (Abreu, 2005, p. 157)
Pelo estilo de Caio F. Abreu como contista, percebemos que ele leva as
questões da ficção para o jornal, já que no pequeno exemplo acima é possível
identificar o estilo do cronista, bem como do jornal para a ficção – quando
ressalta o encontro amoroso em meio aos engarrafamentos de trânsito (reais) e
à paranóia da cidade (olhar jornalístico). Quer dizer, ele incorpora o cotidiano
em suas narrativas.
Em outra crônica urbana, Para ler ao som de Vinícius de Moraes, Caio
F. Abreu recomenda, já no título, que o leitor ouça Vinícius para “encarar” a
deterioração da cidade do Rio de Janeiro, da qual fala num texto extremamente
atual. O curioso – e compreensível (Caio já sabia que estava com Aids) – é o
uso de expressões do ambiente médico-hospitalar – tais como doença fatal,
câncer, amigo em fase terminal – para se referir à situação sócio-econômica da
capital fluminense.
“Irremediável – eu sei que é uma palavra terrível, mas é a que me vem
quando comparo aquele Rio a este de agora, e isso me dói tanto quanto uma
doença fatal –irremediável irremediável repito sem vírgula sentindo saudade
prévia do Rio como de um amigo em fase terminal. (Abreu, 1996, p. 112)
Mais uma vez, ele traz a metáfora, figura do universo ficcional, para
dentro do jornal, demonstrando ser um autor cujo texto é permeável, híbrido,
assim como o próprio gênero em questão, como já vimos no primeiro capítulo
desse estudo.
76
3.4 Relação com a ficção
Conhecendo as crônicas de Caio Fernando Abreu, a leitura de seus
contos se torna bastante familiar. A começar pelo estilo, mas também pelas
referências e pelo uso que faz da linguagem.
Talvez por ser seu último livro – que, ele, aliás, não teve tempo de
concluir – Estranhos estrangeiros é onde se evidencia as referências presentes
nas crônicas. Frida Kahlo, Camile Claudel e Claire Cayron, sua tradutora e
amiga francesa, por exemplo, citadas em crônicas, aparecem também nos
contos em epígrafes e dedicatórias.
No que se refere à linguagem, mesmo em outro terreno, o qual o escritor
também domina, as vírgulas desaparecem em alguns períodos, ao mesmo
tempo em que reaparecem as elipses, confirmando o seu tom ousado e
experimentador, como quando recomeça uma história a cada parágrafo. Ou
quando faz poesia em prosa, caso de Bem longe de Marienbad, por sinal,
dedicado, entre outros, a Claire Cayron:
“E vou voltando atrás, rastros, eu atravesso a sala, pistas, eu vejo o
tampo negro da mesa sob a janela, manchas, eu entro no escritório, sinais, eu
me aproximo da mesa, indícios, eu vejo, a pasta roxa sobre a mesa, vestígios:
eu sei que todas essas coisas estão dentro dela. O mapa, dentro da pasta
roxa”. (Abreu, 2002, p. 34)
Como contista, Caio F. Abreu se expõe mais ao trazer à tona a temática
da homossexualidade. Talvez porque ele se resguarde na figura do narrador.
E se nos contos como na crônica, a metrópole, a vida cosmopolita é o
cenário,
paradoxalmente,
os
personagens
vivem
enclausurados
psicologicamente, na linha “entre quatro paredes”. O mundo deles é restrito,
distanciado da cidade que habitam, são personagens claustrofóbicos.
77
3.5 Autor: protagonista
Nas crônicas, o próprio autor é o protagonista. O cronista se expõe sem
que isso signifique que ele seja sempre biográfico. Em Caio F. Abreu, o caráter
testemunhal surge mais explicitamente a partir do momento em que ele
assume publicamente através de uma crônica (Última carta para além dos
muros) que é portador do vírus da Aids.
As crônicas então se interiorizam ainda mais e, quando o tema é
inevitável, se tornam crônicas da morte anunciada, para citar Garcia
Márquez. 16 No cerne da experiência, Caio F. Abreu volta a falar de anjos ao
registrar os amigos, conhecidos, artistas e personalidades do meio artístico que
faleceram, vítimas da grave enfermidade, como em Segunda carta para além
dos muros:
“Tantos, meu Deus, os que se foram. Acordo com a voz safada de
Cazuza repetindo em minha orelha fria: ‘Quem tem um sonho não dança, meu
amor’.” (Abreu, 1996, p. 100).
Na referida crônica, o afeto (dos outros) se materializa na expressão
“desnecessidade amorosa de evidenciar amor” (Abreu, 1996, p. 99), quando
ele se refere aos amigos que ainda não foram lhe visitar no hospital.
Consciente de seu limite em relação ao pesado tema e talvez receoso
de afugentar o leitor, abre a crônica O ciclo seco ataca outra vez avisando:
“O ciclo seco voltou. Desta vez nem tão seco assim, já que
acompanhado por febres, suores abundantes, terror generalizado e, se não
generalizado, tão particularizado que num segundo parágrafo não restariam
leitores.” (Abreu, 1996, p. 137).
16
García Márquez, Gabriel. Crônica de uma morte anunciada. Record. Rio de Janeiro: 1981.
78
Cabe aqui uma consideração de Umberto Eco a respeito do romance
popular, tirada do ensaio A estrutura da consolação, ainda que o nosso foco
não seja o romance, mas a crônica, um gênero também popular.
“... Do ponto de vista dos princípios morais dos leitores, atingiram-se os
limites. Um passo a mais seria intolerável.” (2001, p. 199)
Nesse contexto, a metáfora se torna uma ferramenta importante para
Caio F. Abreu poder escrever sobre o que sente sem provocar o afastamento
do receptor.
Assim, ele usa a expressão “enfermarias afetivas” na crônica Autógrafos,
manias, medos e enfermarias (ver anexo 5), para designar o improvável
encontro de pessoas do seu círculo afetivo (familiares, amigos, amantes,
vizinhos, dentista, analista, leitores), que uma noite de autógrafos propicia:
“Lançamento mistura enfermarias afetivas que de outra forma não se
misturariam jamais – imagine reunir numa noite mãe, tias, psicanalista, colegas
de trabalho, dentista, antigos professores, amantes ex ou não, vizinhos de
apartamento, amigos de infância desaparecidos há 30 anos etc. O liqüidificador
emocional é intensíssimo.” (Abreu, 1996, p. 153)
A crônica acima é um exemplo da especificidade do estilo de Caio F.
Abreu, que o distingüe entre os colegas. É a presença recorrente em seus
textos do alinhamento de elementos díspares, em tom poético que vai num
crescendo, compondo uma lista díspar, cujo intuito é armazenar um repertório
variado para adquirir sentido. Vejamos outro trecho, no qual sublinho tais
elementos:
79
“... Em noite de autógrafos, emoções à parte, quem menos se diverte é o
próprio escritor. Além dos turbilhões íntimos, precisa maquinar dedicatórias
estonteantes, ser simpaticíssimo e lutar contra o impulso de sair correndo e
gritando ‘me tira daqui!’” (Abreu, 1996, p. 153).
Mesmo quando não faz a crônica sobre a doença que o acomete,
transfere o tema para as coisas do dia-a-dia, principalmente para o jardim da
casa dos pais (SOS para um jardim no inverno; Aos Deuses de tudo que
existe), influenciando inevitavelmente o seu repertório, mas sem perder a
leveza característica do gênero e a fina ironia, a despeito do tom melancólico,
como na crônica Até que nem tão eletrônico assim:
“... Estava na cidade e trouxera este AST (a semelhança com AZT será
mera coincidência, suponho, ou haverá micros positivos?) 486SX/33, mais uma
impressora, Canon BJ-200, siglas e números misteriosíssimos até hoje. Medo:
adiei a instalação, viajei, voltei, fugi, neguei.” (Abreu, 1996, p. 114, 115).
Admite, no entanto, que os sintomas gerados pelo vírus (Delírios do puro
ódio), como uma tosse crônica que escreve com “t” maiúsculo, são inevitáveis
até na própria temática, caso da crônica Para uma companheira inseparável:
“A Tosse, eu a chamo, assim mesmo, com maiúsculas merecidas, pois
já dura uns quatro meses e não tem nada, absolutamente nada que a cure.
...Prometo ser forte. Prometo mesmo? Não garanto, a verdade é que nas
últimas semanas não tenho conseguido. Vejam só, por exemplo, o assunto que
arrumei para a crônica de hoje.” (Abreu, 1996, ps. 163 e 164).
A fina ironia, entretanto, desaparece aqui e ali, quando o fantasma da
Aids ressurge com força, como na crônica O desejo mergulha na luz, arrepiante
80
texto sobre a morte de um amigo, em que termina citando o poeta João Cabral
de Mello Neto:
“Sei que não haverá postais, mas outra vez desejo boa viagem a
Desiderio Fernando Fernandes Severino, com seu sonoro nome de Espanha
no centro, Itália no início e morte e vida no fim. Fim? Ora...” (Abreu, 1996, p.
148 e 149).
A dor física que o domina é elaborada literariamente na descrição do
martírio vivido pela pintora mexicana Frida Kahlo, que sempre suportou graves
problemas de sáude, na crônica Frida Kahlo, o martírio da beleza:
“Seguro sua mão imaginária no escuro do quarto e sei que seja qual for
a dimensão da minha própria dor, não será jamais maior que a dela. Por isso
mesmo, eu o suportarei. Como ela, em sua homenagem, Frida.” (Abreu, 1996,
p. 176).
Caio F. Abreu também aproveita o espaço assinado para, em 1987, sete
anos antes de contrair o vírus, se manifestar politicamente, a favor dos
homossexuais e contra o preconceito que os cerca, acirrado pelo surgimento
da Aids. É o caso da crônica A mais justa das saias, da qual reproduzo um
trecho:
“Heteros ou homos a médio prazo iremos todos enlouquecer, se
passarmos a ver no outro uma possibilidade de morte. Tem muita gente
contaminada pela mais grave manifestação do vírus – a Aids psicológica. Do
corpo, você sabe, tomados certos cuidados, o vírus pode ser mantido a
distância. E da mente?” (Abreu, 1996, p. 49)
81
3.6 Realidade com uma dose de poesia
Ao protagonizar a sua própria história de portador de uma doença, Caio
F. Abreu vai revelando ao leitor aspectos de seu dia-a-dia deixando de lado o
tom testemunhal para dar um tom poético à própria realidade.
A pitada poética é uma propriedade da crônica moderna, da qual Caio F.
Abreu foi um aplicado praticante. Para Antonio Candido, o tempero poético
demonstra o alcance estético deste “produto sui generis do jornalismo literário
brasileiro”.
“Creio que a fórmula moderna, onde entra um fato miúdo e um toque
humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o
amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma.”
(1980, p. 7)
O lirismo nas crônicas de Caio F. Abreu se acentua quando ele se
depara – e se deixa seduzir – com o jardim da casa materna em Porto Alegre,
cidade em que volta a viver em função dos cuidados exigidos pela
enfermidade. Assim, o leitor é informado, de forma suave, leve, da nova
realidade do cronista. Em Breves memórias de um jardineiro cruel, ele
confessa:
“Cá entre nós, estou ficando tão sabido nessas artes que ando
pensando em substituir o crédito 'escritor e jornalista' por ‘escritor e jardineiro’.
Parece chiquérrimo, não?” (Abreu, 1996, p. 122).
Caio F. Abreu também comete – e reconhece bem-humorado – uma
“heresia” jornalística ao encerrar e justificar a primeira frase de uma crônica
(SOS para um jardim no inverno) com ponto de exclamação:
82
“Socorro, o inverno está assassinando o jardim! O susto é tanto que até
ponto de exclamação usei.” (Abreu, 1996, p. 150).
O medo da morte é mascarado na desilusão com a vida, ou
metaforizado através das flores, como em A morte dos girassóis:
“...depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas
é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo,
compreendeu? Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que
escrevo.” (Abreu, 1996, p. 136).
O sentimento da morte à espreita é de arrepiar e sensibilizar o leitor,
como em Agostos por dentro:
“Desde então, tenho uns agostos por dentro, umas febres. Uma tristeza
que nada nem ninguém conserta. É assim que se começa a partir?” (Abreu,
1996, p. 162).
O peso real da doença é amenizado pela vida de um escritor que viaja,
participa de palestras e discute a própria literatura, ainda que às vezes de
forma um pouco amarga, ressaltando a sua visão pessimista de mundo. Em
Primeira carta para além do muro, por exemplo, desabafa:
“É com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é mais apenas
uma maneira literária de dizer que escrever significa mexer com funduras –
como Clarice, feito Pessoa.” (Abreu, 1996, p. 96)
Paradoxalmente, é com otimismo que Caio F. Abreu conta ao leitor
sobre o reconhecimento da produção literária brasileira no exterior (Oito
83
cidades alemãs e um Brasil) – e, especialmente, da sua –, por meio de suas
viagens à Europa como escritor consagrado (Um uivo em memória de Reinaldo
Arenas), e traduzido (A fúria dos jovens e a paz dos velhos), e de sua atividade
como tradutor 17 (O desejo mergulha na luz).
A reflexão sobre a literatura ganha mais espaço quando ele fala sobre
morar em Porto Alegre (A cidade dos entretons). Faz referências a Drummond,
Érico Veríssimo e até ao singular cronista da Folha de S. Paulo, José Simão,
num texto de 1995, que permanece novo:
“...Também é machista demais, e isso eu não suporto. Minha vingança
involuntária e terrível é que, literalmente traduzido para o inglês, Porto Alegre
vira Gay port. Rárárá, como diria o Zé Simão” (Abreu, 1996, p. 130).
Ao abordar a sua turnê literária pela Alemanha, em Oito cidades alemãs
e um Brasil, traz ao conhecimento do leitor o interesse que os alemães têm
pelo Brasil:
“E ser escritor brasileiro em outro país é uma saia-justa que exige muita
compenetração. Afinal, ele não é apenas ele mesmo, mas a encarnação de
toda a literatura e do próprio Brasil. Que, acreditem, os alemães amam e
querem compreender.” (Abreu, 1996, p. 109)
O computador é outro aspecto do cotidiano do cronista que o faz refletir
sobre o próprio ofício, como em Até que nem tão eletrônico assim:
“Até que ponto o método de executar a escrita modifica a ‘alma’ da
escrita? Cartas para a redação” (Abreu, 1996, p. 115).
17
Assim vivemos agora. Susan Sontag. Companhia das Letras; trad. Caio Fernando Abreu.
84
Na romântica crônica A fúria dos jovens e a paz dos velhos, narra a
visita a uma tradutora francesa de autores latino-americanos, que mora em
uma cabana na região de Perigord:
“O crepúsculo lentíssimo de abril desce atrás dos vidros, ouvimos Chico
Buarque e espiamos as corças que às vezes saem do bosque, sempre nessa
hora, para chegar perto da casa. Como se confiassem em nós, humanos
medonhos. Pode ser tão doce a França, sabia?” (Abreu, 1996, p.93).
A música, em Caio F. Abreu, não é apenas fonte de inspiração e
referência. É um ingrediente sensorial de algumas de suas crônicas e também
dos contos, que ele recomenda para transmitir sensações ao leitor. Na novela
Pela noite, por exemplo, ele sugere a música Years of solitude, de Astor
Piazzolla e Gerry Mulligan, como “trilha sonora”.
Na crônica Pálpebras de neblina (ver anexo 3), que já no nome cita a
canção de Caetano – Giulietta Masina – sugerida para a leitura, faz um,
digamos, cross media (e isso em 1987), ao juntar no mesmo texto música e
cinema – a italiana Giulietta Masina foi mulher e principal atriz de Federico
Fellini (1920-1991), e na referida música é homenageada pelo papel de
prostituta que interpretou no filme As noites de Cabíria (1957) – para descrever
a impressão de dor que lhe causou a visão de uma prostituta chorando,
encostada na porta de um bar da rua Augusta:
“...Era uma dor sujinha como lençol usado por um mês, sem lavar,
pobrinha como buraco na sola do sapato. Furo na meia, dente cariado. Dor
sem glamour, de gente habitando aquela camada casca grossa da vida. Sem o
recurso dessas benditas levezas nossas de cada dia – uma dúzia de rosas,
uma música de Caetano, uma caixa de figos. (Abreu, 1996, p. 67)”.
85
A mesma crônica termina com uma frase saída de outra bela canção de
Caetano, Cajuína 18 , citada pelo próprio compositor na canção Giulietta Masina:
“...a que será que se destina? (Abreu, 1996, p. 68)”.
Curiosamente, a fé em Deus – e nos orixás da umbanda –, às vezes
simbolizado na figura de um anjo redentor (Se um brasileiro num dia de
dezembro; Aos Deuses de tudo que existe), surge nas crônicas como
contraponto a um escritor naturalmente cético. É o que vemos em As nuvens,
como já dizia Baudelaire:
“De repente observei: certa nuvem não se mexia. Apenas uma. Parada,
branca, enorme, eu olhei desconfiado. E tinha uma forma inconfundível,
qualquer criança veria. Desviei os olhos, falei sem parar, as outras nuvens
continuavam a esfiapar-se. Aquela, não. Então, com muito cuidado eu disse:
‘Déa olha lá aquela nuvem.’ Ela olhou. E disse: ‘Meu Deus, é um anjo.’” (Abreu,
1996, p. 124)
Nos exemplos citados, procuramos captar o universo das crônicas de
Caio F. Abreu, cronista que, ao elaborar literariamente os aspectos do
cotidiano, talvez o principal signo da crônica, acaba por traduzir a própria vida.
De caráter altamente poético, suas crônicas o inserem na tradição do
jornalismo literário brasileiro.
18
Giulietta Masina (Caetano Veloso): Caetano, 1987; Cajuína (Caetano Veloso): Cinema
Transcendental.
86
CONCLUSÃO
A pesquisa aqui desenvolvida leva-nos a conclusões que nos aproximam
do gênero, mas não o definem. E essa já seria a primeira descoberta: não é
possível definir a crônica, já que o gênero escapa a claras delimitações.
Essa característica peculiar desse gênero ambíguo por natureza,
nascido nos jornais e amadurecido nos livros, não deve ser vista, entretanto,
como uma excentricidade típica dos trópicos, só por ser a crônica fruto da
tradição da ruptura latino-americana.
Recorro aqui a Jesús Martín-Barbero, um dos teóricos da comunicação
empenhado em recusar rótulos “pejorativos” ao modo de ser latino-americano.
“ ... a América Latina não deve ser vista como lugar onde se conservam
práticas de comunicação diferentes (ou seja, exóticas), mas sim como
um lugar em que pensamos diferentemente as transformações que
atravessam as práticas e as técnicas de comunicação.” (2004, p. 27)
Nesse sentido, devemos ver a crônica como uma marca original da
imprensa brasileira, ou melhor, no dizer de Antonio Candido, como “produto sui
generis do jornalismo literário Brasileiro”.
Produto este que se renova a cada dia, com o surgimento de novos
praticantes, sendo um espaço orgânico dos veículos impressos e até
eletrônicos – atualmente, há cronistas em atividade no rádio e na TV, como é o
caso do jornalista Rodolfo Konder na rádio Cultura e do cineasta Arnaldo Jabor
na rádio CBN e na TV Globo.
Leveza, crítica, humor ou fina ironia, flagrantes do cotidiano. Esses são
elementos-chave da crônica, que não são suficientes, entretanto, para fazer o
estilo de um cronista.
Tendo que chamar a atenção para o próprio texto, em meio à sucessão
de notícias do dia-a-dia, o cronista recorre a inevitáveis artimanhas – literárias
87
ou jornalísticas, já que estamos falando de um gênero híbrido – para demarcar
o espaço assinado que ocupa.
No caso de Caio Fernando Abreu, o seu ardil, digamos, é a
cumplicidade que estabelece com o leitor por meio, principalmente, do tom
intimista. Ao mesmo tempo, o estilo poético predominante alardeia a sua
singularidade dentro do jornal.
O resultado, ao nosso ver, é que a leitura de suas crônicas provoca a
sensação de que encontramos um velho conhecido, especialmente disposto a
nos distrair da solidão inerente à leitura.
88
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91
PALESTRAS ASSISTIDAS
•
CONY, Carlos Heitor. Crônica no jornalismo e na literatura. Palestra proferida
em São Paulo (auditório da Folha de S. Paulo), no dia 29 de outubro de 1998.
•
Mesa-redonda sobre crônica, dentro do I Simpósio Internacional Eça &
Machado, promovido pelos Programas de Pós-Graduação em Literatura e
Crítica Literária da PUC-SP e em Teoria Literária da Unicamp, de 15 a 17 de
setembro de 2003, na PUC-SP.
92
ANEXO 1
Pequenas epifanias 19
Caio Fernando Abreu
Há alguns dias, Deus – ou isso que chamamos assim, tão
descuidadamente, de Deus –, enviou-me certo presente ambíguo: uma
possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e
alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.
Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou
não ir, querer ou não querer – eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era
bom. Não me entenda mal – não aconteceu qualquer intimidade dessas que
você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três
almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo
descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente
cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho
ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons
rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.
Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E
de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses
pedacinhos desconexos se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de
mau me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo
magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me
reconheciam
como
outra
pessoa,
e
suavemente
faziam
perguntas,
investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah
você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos,
vagas promessas.
19
O Estado de S. Paulo, 22/04/86.
93
Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas.
Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que
também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto
de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho
obsessivo do conto de Clarice Lispector – Tentação – na cabeça estonteada de
encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza
aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se
correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da
tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os
dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada
acontece.
De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar
convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não
ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso,
sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só
compreendi dias depois, quando um amigo me falou – descuidado, também –
em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias
encravadas no dia-a-dia.
Era isso – aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha,
olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a
olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a
poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que
tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à
noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das
janelas, vendo o que ninguém veria.
Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus
colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto
tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça,
agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso
94
tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que
reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então.
E quase paro de sentir fome.
95
ANEXO 2
As primeiras azaléias 20
Caio Fernando Abreu
Sentado à escrivaninha, de frente para a janela, estou vendo uma cena.
Dia cinza. Atrás do vidro da janela, estou vendo uma cena. Há um casal parado
na calçada em frente. São muito jovens. Ele deve ter no máximo 25 anos, ela
pouco menos. Estão bem vestidos, devem pertencer a alguma boa família dos
Jardins. Não expio nada. Estou apenas sentado aqui, onde costumo sentar
para escrever. A cena acontece no meu campo de visão, só poderia evitá-la
saindo daqui. Mas quero ver.
Sobem devagar a ladeira. De repente param na frente da lojinha de surf.
Ele encosta no muro. Usa óculos, tem as mãos nos bolsos. Ela fica andando
pela calçada em frente à casinha azul, sob o letreiro “Waimea”, com arabescos
que tanto podem lembrar ondas quanto gaivotas. Começo a prestar atenção no
momento em que percebo: a garota está chorando. Ela chora e fala e gesticula
muito enquanto chora.
São três e meia da tarde de domingo. Há uma garota chorando na
calçada em frente ao meu apartamento. Faz frio. Um grupo de senhoras muito
elegantes em suas peles e lãs sai do edifício ao lado. Mas não olham para o
casal. Não sei se por essa educação paulistana, meio londrina, onde a
aparente frieza disfarça cumplicidade e respeito – ou mera indiferença, pode
ser. Afinal que importância tem uma garota chorando e um rapaz de óculos às
três e quarenta e cinco da tarde de um domingo?
O rapaz agora caminha até um carro estacionado no meio-fio. Está de
costas para mim. Tira as mãos do bolso. A garota tira o casaco – um casaco de
jeans, forrado de pêlo de carneiro. Chega mais perto dele. Às vezes, ele ergue
20
O Estado de S. Paulo, 13/05/87.
96
o rosto para o céu cinza. Há muita dor no rosto que ela ergue para o céu cinza.
Ela tem o cabelo liso, comprido, castanho-claro, uma mecha mais loura do lado
esquerdo. Ele tem o cabelo preto, bem curto. Ela chega mais perto dele. Ele
tira os óculos, começa a limpar as lentes na barra do suéter.
Às vezes ficam parados. Quando ficam parados assim enquadrados pela
moldura da minha janela, parecem uma fotografia. À esquerda esse edifício
construído de perfil, com a pequena alameda que leva do portão de ferro até a
portaria, muitas árvores e uma meia dúzia de azaléias bordôs (das primeiras
desta temporada). À esquerda, a lojinha de surf, toda azul, com um grafite ao
lado da porta: o rosto que Alex Vallauri tinha. No centro, o carro onde está
encostado o rapaz vestido em tons de cinza e a garota vestida em tons de azul.
Quase quatro da tarde, só há cor nas azaléias e na fachada da lojinha de
artigos de surf.
Ela ronda em volta dele, falando sem parar, chegando cada vez mais
perto. Eu acendo um cigarro. Ela o abraça. Ele não se move, nem descruza os
braços. Ele não se move enquanto ela o abraça cada vez mais forte. Ela
começa a beijá-lo. Ele não recusa, apenas vira delicadamente o rosto para o
lado onde a rua desce. Assim, ela só consegue beijá-lo no pescoço e na face.
Na boca, não. Ela só pára de beijá-lo para afastar os cabelos do rosto e, de vez
em quando, olhar o céu cinza.
Agora, ela afasta o rosto e fica abraçada nele. Da minha janela posso
ver os braços dela cruzados às costas dele. Ele voltou a colocar as mãos nos
bolsos. De repente, ela o toma pelo braço e começa a puxá-lo para cima, para
onde a ladeira sobe. Ele caminha olhando para o chão. Ela joga o casaco nas
costas, afasta os cabelos, levanta o rosto. Parece decidida. Eles começam a
subir a ladeira. Até sumirem do quadrado da janela. Certamente, da minha vida
também.
São quatro horas e cinco minutos. Não acontece mais cena alguma do
lado de fora da minha janela. Talvez tome mais um café, fume outro cigarro,
97
qualquer coisa assim. Foi exatamente há um ano, na lua cheia de maio.
Depois, nunca mais. Por onde você tem andado, baby?
98
ANEXO 3
Pálpebras de neblina 21
Caio Fernando Abreu
Fim de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindo muito
triste. Você pode dizer que isso tem sido freqüente demais, até mesmo um
pouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muito
triste? Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos de
catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? e trabalho, amor, moradia? o
que vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai
acontecer acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus
dará. Essas coisas meio piegas, meio burras, eu vinha pensando naquele dia.
Resolvi andar.
Andar e olhar. Sem pensar, só olhar: caras, fachadas, vitrinas,
automóveis, nuvens, anjos bandidos, fadas piradas, descargas de monóxido de
carbono. Da praça Roosevelt, fui subindo pela Augusta, enquanto lembrava
uns versos de Cecília Meireles, dos Cânticos: “Não digas: ‘Eu sofro’. Que é que
dentro de ti és tu?/ Que foi que te ensinaram/ que era sofrer?” Mas não
conseguia parar. Surdo a qualquer zen-budismo, o coração doía sintonizado
com o espinho. Melodrama: nem amor, nem trabalho, nem família, quem sabe
nem moradia – coração achando feio o não-ter. Abandono de fera ferida, bolero
radical. Última das criaturas, surto de lucidez impiedosa da Big Loira de
Dorothy Parker. Disfarçado, comecei a chorar. Troquei os óculos de lentes
claras pelos negros ray-ban – filme. Resplandecente de infelicidade, eu subia a
Rua Augusta no fim de tarde do dia tão idiota que parecia não acabar nunca.
Ah! como eu precisava tanto que alguém me salvasse do pecado de querer
abrir o gás. Foi então que a vi.
21
O Estado de S. Paulo, 18/11/87.
99
Estava encostada na porta de um bar. Um bar brega – aqueles da
Augusta-cidade, não Augusta-Jardins. Uma prostituta, isso era o mais visível
nela. Cabelo malpintado, cara muito maquiada, minissaia, decote fundo.
Explícita, nada sutil, puro lugar-comum patético. Em pé, de costas para o bar,
encostada na porta, ela olhava a rua. Na mão direita tinha um cigarro; na
esquerda, um copo de cerveja. E chorava, ela chorava. Sem escândalo, sem
gemidos nem soluços, a prostituta na frente do bar chorava devagar, de
verdade. A tinta da cara escorria com as lágrimas. Meio palhaça, chorava
olhando a rua. Vez em quando, dava uma tragada no cigarro, um gole na
cerveja. E continuava a chorar – exposta, imoral, escandalosa – sem se
importar que a vissem sofrendo.
Eu vi. Ela não me viu. Não via ninguém, acho. Tão voltada para sua
própria dor que estava, também, meio cega. Via para dentro: charco, arame
farpado, grades. Ninguém parou. Eu, também, não. Não era um espetáculo
imperdível, não era uma dor reluzente de néon, não estava enquadrada ou
decupada. Era uma dor sujinha como lençol usado por um mês, sem lavar,
pobrinha como buraco na sola do sapato. Furo na meia, dente cariado. Dor
sem glamour, de gente habitando aquela camada casca grossa da vida. Sem o
recurso dessas benditas levezas nossas de cada dia – uma dúzia de rosas,
uma música de Caetano, uma caixa de figos.
Comecei a emergir. Comparada à dor dela, que rídicula a minha, de
brasileiro-médio-privilegiado. Fui caminhando, mais leve. Mas só quando
cheguei à Paulista compreendi um pouco mais. Aquela prostituta chorando,
além de eu mesmo, era também o Brasil. Brasil 87: explorado, humilhado,
pobre, escroto, vulgar, maltratado, abandonado, sem um tostão, cheio de
dívidas, solidão, doença e medo. Cerveja e cigarro na porta do boteco
vagabundo: carnaval, futebol. E lágrimas. Quem consola aquela prostituta?
Quem me consola? Quem consola você, que me lê agora e talvez sinta coisas
semelhantes? Quem consola este país tristíssimo?
100
Vim pra casa humilde. Depois, um amigo me chamou para ajudá-lo a
cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar
dele faria com que eu esquecesse de mim. E fez. Quando gemeu “dói tanto”,
contei da moça vadia sozinha chorando, bebendo e fumando (como num
bolero). E quando ele perguntou “porquê?”, compreendi ainda mais. Falei:
“Porque é daí que nascem as canções”. E senti um amor imenso. Por tudo,
sem pedir nada de volta. Não-ter pode ser bonito, descobri. Mas pergunto
inseguro, assustado: a que será que se destina?
101
ANEXO 4
Última carta para além dos muros 22
Caio Fernando Abreu
Porto Alegre – Imagino que você tenha achado as duas cartas anteriores
obscuras, enigmáticas como aquelas dos almanaques de antigamente. Gosto
sempre do mistério, mas gosto mais da verdade. E por achar que esta lhe é
superior te escrevo agora assim, mais claramente. Não vejo nenhuma razão
para esconder. Nem sinto culpa, vergonha ou medo.
Voltei da Europa em junho me sentindo doente. Febres, suores, perda
de peso, manchas na pele. Procurei um médico e, à revelia dele, fiz O Teste.
Aquele. Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado: HIV positivo.
O médico viajara para Yokohama, Japão. O teste na mão, fiquei três dias bem
natural, comunicando à família, aos amigos. Na terceira noite, amigos em casa,
me sentindo seguro – enlouqueci. Não sei detalhes. Por autoproteção, talvez,
não lembro. Fui levado para o Pronto Socorro do Hospital Emílio Ribas com a
suspeita de um tumor no cérebro. No dia seguinte, acordei de um sono
drogado num leito da enfermaria de infectologia, com minha irmã entrando no
quarto. Depois, foram 27 dias habitados por sustos e anjos – médicos,
enfermeiras, amigos, família, sem falar nos próprios – e uma corrente tão forte
de amor e energia que amor e energia brotaram de dentro de mim até
tornarem-se uma coisa só. O de dentro e o de fora unidos em pura fé.
22
O Estado de S. Paulo, 18/09/94.
102
A vida me dava pena, e eu não sabia que o corpo (“meu irmão burro”,
dizia São Francisco de Assis) podia ser tão frágil e sentir tanta dor. Certas
manhãs chorei, olhando através da janela os muros brancos do cemitério no
outro lado da rua. Mas à noite, quando os néons acendiam, de certo ângulo a
Dr. Arnaldo parecia o Boulevard Voltaire, em Paris, onde vive um anjo sufista
que vela por mim. Tudo parecia em ordem, então. Sem rancor nem revolta, só
aquela imensa pena de Coisa Vida dentro e fora das janelas, bela e fugaz feito
as borboletas que duram só um dia depois do casulo. Pois há um casulo
rompendo-se lento, casca seca abandonada. Após, o vôo de Ícaro perseguindo
Apolo. E a queda?
Aceito todo dia. Conto para você porque não sei ser senão pessoal,
impudico, e sendo assim preciso te dizer: mudei, embora continue o mesmo.
Sei que você compreende .
Sei também que, para os outros, esse vírus de science fiction só dá em
gente maldita. Para esses, lembra Cazuza: “Vamos pedir piedade, senhor,
piedade pra essa gente careta e covarde”. Mas para você, revelo humilde: o
que importa é a Senhora Dona Vida, coberta de ouro e prata e sangue e musgo
do Tempo e creme chantilly às vezes e confetes de algum carnaval,
descobrindo pouco a pouco seu rosto horrendo e deslumbrante. Precisamos
suportar. E beijá-la na boca. De alguma forma absurda, nunca estive tão bem.
Armado com as armas de Jorge. Os muros continuam brancos, mas agora são
de um sobrado colonial espanhol que me faz pensar em García Lorca; o portão
pode ser aberto a qualquer hora para entrar ou sair; há uma palmeira, rosas
cor-de-rosa no jardim. Chama-se Menino Deus este lugar cantado por Caetano,
e eu sempre soube que era aqui o porto. Nunca se sabe até que ponto seguro,
mas – para lembrar Ana C., que me deteve à beira da janela – como não se
pode ancorar um navio no espaço, ancora-se neste porto. Alegre ou não: ave
Lya Luft, ave Iberê, Quintana e Luciano Alabarse, chê.
103
Vejo Dercy Gonçalvez, na Hebe, assisto A falecida de Gabriel Villela no
Teatro São Pedro; Maria Padilha conta histórias inéditas de Vicente Pereira;
divido sushis com a bivariana Yolanda Cardoso; rezo por Cuba; ouço Bola de
Nieve; gargalho com Déa Martins; desenho a quatro mãos com Laurinha; leio
Zuenir Ventura para entender o Rio; uso a estrela do PT no peito (Who
Knows?); abro o I Ching ao acaso: Shêng, a Ascensão; não perco Éramos Seis
e agradeço, agradeço, agradeço.
A vida grita. E a luta, continua.
104
ANEXO 5
Autógrafos, manias, medos e enfermarias 23
Caio Fernando Abreu
Tem gente que não faz mesmo. Rubem Fonseca, por exemplo, que eu
saiba nunca sentou em livraria para autografar. E não dá entrevistas nem se
deixa fotografar. Lembro de certa tarde em Erlangen, interior da Alemanha,
pleno verão de 1993, durante a Interlit, encontro internacional de escritores, em
que se deixou filmar pela TV. Mas de longe, e sem dizer palavra. Caminhava
no parque ao lado de sua tradutora Karin von Schweder-Schreiner, uma das
mulheres mais bonitas que conheço. Rubem acha, com razão, que a cara do
escritor e o que ele tem a dizer fora do livro não interessam. Interessa o livro,
está tudo lá.
Dalton Trevisan também é assim, Greta Garbo perde. Já Lygia
Fagundes Telles autografa, sim, mas passa o dia da noite de autógrafos
nervosíssima, com uma fantasia obsessiva: ficar sentada sozinha ao fundo de
uma livraria deserta, sem que apareça ninguém. Sempre aparece, claro: no
caso de Lygia, multidões. Mas no próximo lançamento, a fantasia volta. Moacyr
Scliar simplesmente esquece o nome da pessoa para quem vai autografar,
algumas muito íntimas. Isso é freqüente com escritores, daí a moda de, na hora
em que o livro é vendido, colocar um papelzinho dentro com o nome do leitor.
Mas muitos, por distração ou por se acharem inesquecíveis, jogam fora o tal
papelzinho. Constrangimentos indizíveis – como responder com um seco não a
sorridente pergunta “e então, não lembra de mim?”
Clarice Lispector apenas assinava seu nome. Nada de “para fulano, com
simpatia”, coisas assim. E não dizia nada. Quando lançou o seu injustamente
23
O Estado de S. Paulo, 23/07/95.
105
esquecido Tanto Faz num fliperama da Rua Augusta, Reinaldo Moraes mandou
fazer um carimbo com seu nome. Erico Verissimo autografava, mas dizia
sentir-se constrangido como “um camelô de si mesmo”. Há autores que, de
nervosos e emocionados, bebem demais no lançamento. Outros chegam
atrasados. Outros (já aconteceu) vão, mas o livro não fica pronto. Nenhum, que
eu saiba, deu uma de João Gilberto (o cantor, não o escritor Noll) e
simplesmente não apareceu no show.
A verdade é que noite (ou tarde, ou manhã, madrugada talvez não) de
autógrafos é chata. Que graça tem ficar às vezes horas numa fila, estender um
livro e receber de volta um “para fulano, cordialmente”? Claro que, se
passarem décadas e o escritor ganhar o Nobel, vai ter valido a pena. Claro que
os netos ou bisnetos de Machado de Assis (ele os teve?) devem achar ótimo
ter herdado autógrafos valiosíssimos. Mas em geral não tem graça. Ou tem
pelos reencontros, pelo coquetel, pelo auê, não pela coisa em si. Que em
vernissage a gente olha os quadros, em pré-estréia teatral ou cinematográfica
a gente vê a peça, o filme. Livro não, livro a gente lê depois, em casa. E as
vezes nem gosta.
Para o escritor autografante, a coisa é confusa. Lançamento mistura
enfermarias afetivas que de outra forma não se misturariam jamais – imagine
reunir numa noite mãe, tias, psicanalista, colegas de trabalho, dentista, antigos
professores, amantes ex ou não, vizinhos de apartamento, amigos de infância
desaparecidos há 30 anos etc. O liqüidificador emocional é intensíssimo. E há
a solidão indivisível: em noite de autógrafos, emoções à parte, quem menos se
diverte é o próprio escritor. Além dos turbilhões íntimos, precisa maquinar
dedicatórias estonteantes, ser simpaticíssimo e lutar contra o impulso de sair
correndo e gritando “me tira daqui!”
Tudo isso para dizer – et voilá! que amanhã à noite vou estar na Livraria
Cultura, ali no Conjunto Nacional, Paulista com Augusta, coração de Sampa,
autografando as minhas Ovelhas Negras. Será certamente menos chato que
106
de costume, não por mim, sempre feliz de voltar a Sampa e rever os melhores
amigos do mundo, mas porque vai ter também Cida Moreira cantando
divinamente como só ela. Aparece lá. Tenho medo, pânico, como Lygia, da
Livraria deserta e eu perdido feito pastor no meio de um rebanho de ovelhas
desgarradas...
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A crônica no jornal: uma leitura de Caio Fernando