ROBERTA JOVCHELEVICH A CRÔNICA NO JORNAL: UMA LEITURA DE CAIO FERNANDO ABREU PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA PUC-SP SÃO PAULO 2005 1 ROBERTA JOVCHELEVICH A CRÔNICA NO JORNAL: UMA LEITURA DE CAIO FERNANDO ABREU Dissertação apresentada Examinadora da Pontifícia à Banca Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da Professora Doutora Cecilia Almeida Salles. PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA PUC-SP SÃO PAULO 2005 2 _____________________________________ Profª Drª Cecília Almeida Salles (orientadora) _____________________________________ _____________________________________ 3 Para Cacá e Dani 4 AGRADECIMENTOS Agradeço imensamente à PUC-SP, universidade na qual tive a oportunidade de trabalhar, entre novembro de 1997 e janeiro de 2005, e cursar a pós-graduação com bolsa de estudos integral. Personifico os meus agradecimentos ao reitor Antonio Carlos Ronca e equipe, especialmente aos assessores de comunicação Judi Cavalcanti (1994 – 1999) e Laurindo Lalo Leal Filho (2000 – 2004), que me apoiaram nessa empreitada acadêmica. Agradeço ao excelente corpo docente do Programa de Estudos PósGraduados em Comunicação e Semiótica e à generosidade das professoras doutoras Lúcia Nagib, que aceitou me orientar quando eu ainda pensava em pesquisar a linguagem do cinema, e Cecilia Almeida Salles, principalmente, que antes de me acolher como orientanda, me auxiliou a entender um projeto de pesquisa. Agradeço também à minha família, ponto de apoio e porto seguro. 5 RESUMO A CRÔNICA NO JORNAL: UMA LEITURA DE CAIO FERNANDO ABREU A pesquisa A crônica no jornal: uma leitura de Caio Fernando Abreu tem o objetivo de entender e esclarecer as possibilidades da crônica como gênero jornalístico e literário, através do estudo das crônicas do gaúcho Caio Fernando Abreu (1948 – 1996), publicadas nos jornais O Estado de S. Paulo e Zero Hora (Porto Alegre) e reunidas no livro Pequenas epifanias (ed. Sulina). A escolha do autor se deve ao estilo predominantemente literário, intimista e confessional que ele imprime aos seus textos – e que o colocam na mesma tradição estética de Clarice Lispector, cronista do Jornal do Brasil nos anos 70. Tal estilo contrasta sobremaneira com a linguagem jornalística, evidenciando a origem da crônica: o folhetim francês, gênero que inaugurou a relação entre mídia e ficção na América Latina. No Brasil, a crônica prosperou como gênero do jornalismo e da literatura, ambigüidade típica do hibridismo de gêneros que é fruto da tradição da ruptura latino-americana. Caracterizada, geralmente, por textos leves, humor e linguagem coloquial associados ao cotidiano, a crônica tem em Caio Fernando Abreu um autor singular, cujo olhar introspectivo ressalta a condição humana. Se por um lado, ele incorpora o cotidiano em suas narrativas, por outro desenvolve monólogos interiores repletos de sensações e sentimentos, bem distantes do humor e da leveza característicos do gênero. Ao nos debruçarmos sobre as suas crônicas, nosso objetivo foi o de captar as nuances do gênero e, ao mesmo tempo, perscrutar a função desempenhada pela crônica dentro do jornal, no que se refere à formação de público-leitor para o próprio veículo e, paralelamente, para a literatura. Para tanto, recorremos às teorias literárias, da comunicação e do jornalismo exploradas por autores como Antonio Candido, Walter Benjamin, Leyla Perrone-Moisés, Roman Jakobson, Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari. Palavras-chave: crônica, novo jornalismo, gênero híbrido, discurso literário, discurso jornalístico, intertextualidade. 6 ABSTRACT THE CHRONICLE IN THE NEWSPAPER: A READING OF CAIO FERNANDO ABREU The research The chronicle in the newspaper: a reading of Caio Fernando Abreu has the objective to understand and to clarify the possibilities of the chronicle as journalistic and literary sort, through the study of the chronicles of the brazilian Caio Fernando Abreu (1948 - 1996), published in the newspapers O Estado de S. Paulo and Zero Hora (Porto Alegre, RS), and congregated in the book Little epiphanys (Sulina). The choice of the author if must to the predominantly literary and confessional style that it prints to its texts – and that they place it in the same aesthetic tradition of Clarice Lispector, chronicler of the Jornal do Brasil in years 70. Such style contrasts excessively with the journalistic language, evidencing the origin of the chronicle: french feuilleton, sort that inaugurated the relation between media and fiction in Latin America. In Brazil, the chronicle prospered as sort of the journalism and literature, typical ambiguity of the hybridism of sorts that is fruit of the tradition of the Latin American rupture. Characterized, generally, for light texts, mood and coloquial language associates to the daily one, the chronicle have in Caio Fernando Abreu a singular author, whose introspective look standes out the condition human being. If on the other hand, it incorporates the daily one in its narratives, for another one develops inners monologues replete of sensations and feelings, very distants of the characteristic mood and the slightness of the sort. To the one in them to lean over on its chronicles, our objective was to catch variations of the sort and, at the same time, to inside investigate the function played for the chronicle inside the newspaper, in that if it relates to the formation of public-reader for the proper printed publication and, parallel, for literature. For in such a way, we appeal to the literary, communication and the journalism theories explored by authors as Antonio Candido, Walter Benjamin, Leyla Perrone-Moisés, Roman Jakobson, Muniz Sodré and Maria Helena Ferrari. Keywords: chronicle, new journalism, hybrid sort, literary speech, journalistic speech, textual connections. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................... 10 CAPÍTULO 1 – PANORAMA DA CRÔNICA 1.1 A crônica e seu habitat ............................................................................ 14 1.2 Gênero híbrido .......................................................................................... 16 1.3 A crônica e a reportagem ......................................................................... 18 1.4 O novo jornalismo ..................................................................................... 21 1.5 Pacto com o leitor .................................................................................. 24 1.6 Tradição da ruptura .............................................................................. 25 1.7 Gênero libertário ..................................................................................... 29 1.8 O importante e o urgente .................................................................... 32 1.9 Um gênero indefinido .............................................................................. 36 CAPÍTULO 2 – A CRÔNICA DE CAIO FERNANDO ABREU: DIÁLOGOS 2.1 Pequena biografia .................................................................................. 42 2.2 A crônica de Caio Fernando Abreu ........................................................ 43 2.3 Imaginário X real ................................................................................... 45 2.4 Retrato de uma época ....................................................................... 48 2.5 A presença de Clarice ....................................................................... 51 2.6 Diálogos ................................................................................................. 54 2.7 Temas ..................................................................................................... 59 2.8 Pequenas epifanias ............................................................................. 60 2.9 Procedimentos textuais ......................................................................... 63 8 CAPÍTULO 3 – TEXTURAS: ELEMENTOS DA CRÔNICA 3.1 Oralidade na escrita ................................................................................. 72 3.2 Tom intimista ............................................................................................. 74 3.3 A presença da cidade ............................................................................... 75 3.4 Relação com a ficção ................................................................................ 77 3.5 Autor: protagonista .....................................................................................78 3.6 Realidade com uma dose de poesia ..................................................... 82 CONCLUSÃO ............................................................................................... 87 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 89 Palestras assistidas ....................................................................................... 92 ANEXOS (CRÔNICAS) 1. Pequenas epifanias ......................................................................................93 2. As primeiras azaléias .................................................................................96 3. Pálpebras de neblina ................................................................................. 99 4. Última carta para além dos muros ............................................................. 102 5. Autógrafos, manias, medos e enfermarias .................................................105 9 “Transcrevendo, copiando, aprendo a contar uma vida, de mais na primeira pessoa, e tento compreender, desta maneira, a arte de romper o véu que são as palavras e de dispor as luzes que as palavras são.” José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia 10 INTRODUÇÃO Devo dizer que a crônica foi o que me atraiu para a leitura de jornais. No início dos anos 80, estava eu com 10 anos de idade e dois objetos, de repente, despertavam o meu interesse: o jornal e a máquina de escrever portátil de meu pai. O “Diário da Noite” era o periódico que circulava em casa, trazendo regularmente a crônica de Antônio Contente. Não lembro dos temas, nem exatamente o estilo, mas eram histórias curtas e interessantes, condição talvez suficiente para atrair a leitura de uma criança. Paralelamente, na escola, solicitavam a leitura da coleção “Para Gostar de Ler”, da editora Ática, que reunia crônicas dos mestres Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond de Andrade, além de Luís Fernando Veríssimo, Carlos Eduardo Novaes, José Carlos Oliveira e Lourenço Diaféria. Costumava selecionar alguns dos textos, geralmente em função do tamanho menor, para copiá-los na máquina de escrever. Foi assim, aliás, que aprendi a datilografar, naquela pequena máquina portátil laranja, que há tempos virou sucata. Já a coleção – quer dizer, parte dela, os volumes 1, 2, 3, 5 e 7, além do 6, que traz poesias de Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Mário Quintana e Vinícius de Moraes – permanece firme em minha estante. E foi com surpresa que (re) descobri, no início da pesquisa bibliográfica para essa dissertação, que o prefácio do volume 5 era o célebre texto de Antonio Candido, “A vida ao résdo-chão”, referência fundamental em qualquer trabalho sobre crônica. Sem saber, esse percurso doméstico, quase lúdico, por entre crônicas e teclas de datilografia, já apontava para o meu futuro profissional e acadêmico. No vestibular, em 1987, optei por Jornalismo, curso que fiz na Faculdade de 11 Comunicação Social Cásper Líbero, em São Paulo. Foi lá que, certo dia, uma amiga me mostrou um texto copiado, Pequenas epifanias (ver anexo 1), de Caio Fernando Abreu, escritor que eu via constantemente caminhando pelas ruas dos Jardins e cuja única referência literária que eu tinha até então era a peça Morangos mofados, inspirada na obra homônima do autor, que assisti em 1989. Na época, eu, leitora da Folha de S. Paulo, não sabia que ele escrevia crônicas para o Estadão. O tal texto teve um poder encantatório à primeira lida. Fiz uma cópia e a guardei para ter comigo e reler quando quisesse. Não queria me perder daquele texto, ele se tornou necessário na minha vida. Só me desvencilhei daquelas duas folhas de papel quando descobri a coletânea de crônicas do autor, em que a pequena epifania literária não só é a primeira do livro como dá nome ao mesmo. Encontrei o livro, aliás, quando me inscrevi como aluna especial no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUCSP, em 1998. Me matriculei na disciplina Poética da Mídia, ministrada pelo professor Fernando Segolin, e apresentei um seminário sobre o texto, na intenção de explicitar um exemplo de poética na mídia. O resultado foi o melhor possível para quem ainda estava em dúvida sobre a carreira acadêmica. E, como não poderia deixar de ser, acabou estimulando o desenvolvimento do tema nesta dissertação de mestrado. O nosso objetivo aqui, entre outros, foi o de verificar a função desempenhada pela crônica dentro do jornal, no que se refere à formação de público-leitor para o próprio veículo e, paralelamente, para a literatura. Nessa tarefa, nos concentramos nas crônicas de Caio Fernando Abreu publicadas em O Estado de S. Paulo e no Zero Hora e, posteriormente, reunidas no livro Pequenas epifanias. Procuramos encontrar os elementos comuns nos diversos textos para mostrar como é a crônica assim feita por esse escritor e, ao mesmo tempo, discutir esse gênero jornalístico/literário, tendo 12 como apoio uma ampla bibliografia sobre crônica, além de teorias da linguagem e da comunicação. A pesquisa está estruturada em três capítulos: 1. Panorama da crônica, que traz as origens desse gênero do jornalismo literário brasileiro, ressaltando sua condição híbrida e, conseqüentemente, a dificuldade de demarcá-lo numa definição precisa; 2. A crônica de Caio Fernando Abreu: diálogos, onde apontamos as referências do cronista, seus temas e procedimentos textuais que compõem o seu estilo; 3. Texturas – elementos da crônica, em que listamos os elementos que compõem a crônica (oralidade, cotidiano, relação com a ficção, autor como protagonista) e que costumam estar presentes em qualquer texto do gênero, ressaltando as peculiaridades de Caio F. Abreu. 13 CAPÍTULO 1 PANORAMA DA CRÔNICA 14 1.1 A crônica e seu habitat Na era da informação eletrônica, em que os meios de comunicação impressos se reformulam para não perder o interesse do público, reduzindo o espaço editorial e diminuindo o tamanho dos textos jornalísticos, o espaço da crônica parece não se abalar. Desde o século 19, este pequeno gênero literário de nossa imprensa nada contra a corrente e se perpetua na mídia impressa nacional. Mesmo sendo uma característica peculiar dos jornais – e da literatura – brasileiros, a crônica, especialmente a crônica literária que não é circunstancial, ou seja, não está vinculada aos fait-divers políticos, econômicos e esportivos, entre outros, que engrossam as notícias do dia-a-dia, parece até deslocada de seu habitat. Na sua particularidade literária, porém, ela não se intimida em fazer presença em meio às notícias do dia-a-dia. A sua natureza livre a desata de qualquer compromisso com a realidade, matéria-prima do jornalismo. Mas literatura e jornalismo estão intimamente ligados, ainda que suas intenções como discurso narrativo sejam distintas. Segundo Manuel Ángel Vázquez Medel, as relações entre jornalismo e literatura são múltiplas e extraordinariamente variadas. “As reflexões de Roman Jakobson sobre as funções internas da linguagem nos permitem apreciar que, no caso do discurso jornalístico, deve ser dominante a função referencial, por ser a que articula sua funcionalidade informativa e sua vontade de construir discursos baseados em fatos reais, que correspondam a acontecimentos extradiscursivos. No caso dos discursos literários, esteja ou não presente a função referencial, deve dominar a função poética ou estética, que reclama atenção sobre o próprio texto e por isso tem, por um lado, maior liberdade referencial e, pelo outro, maiores restrições expressivas (já que o plano da expressão se articula fortemente com aquele do conteúdo).” (2002, p. 23 e 24) 15 Para ilustrar melhor a presença do discurso literário dentro do jornal, escolhemos as crônicas do jornalista e escritor gaúcho Caio Fernando Abreu (1948-1996), que foi cronista do jornal O Estado de S. Paulo, entre abril de 1986 e dezembro de 1995 – excetuando o período de 1989 a 1992. O grande interesse sempre despertado pelos textos de Caio F. Abreu resultou na coletânea Pequenas epifanias, organizada por Gil França Veloso e publicada em 1996. O livro reúne crônicas escritas na primeira pessoa do singular, onde, num tom confessional, o narrador se despe ao leitor, revelando toda a perturbação de sua alma, ao mesmo tempo em que, com o olhar de cronista, relata suas impressões sobre metrópoles, viagens, encontros sociais etc. As histórias se localizam em São Paulo, principalmente na região nobre dos Jardins, onde o autor viveu por muitos anos. O amor é o tema recorrente, seja nas situações de desencontros, seja nas de buscas afetivas. Ao narrá-las, ele deixa transparecer sua fé em Deus e a descrença nos homens. De sua leitura, fica o gosto – porque bem temperado – da impossibilidade das relações humanas, do amor, da vida. E tudo isso, curiosamente, dentro do jornal. Essa permissividade do jornal em relação ao cronista faz da crônica um gênero jornalístico, já que, de antemão, está inserida no projeto editorial. Esta condição, entretanto, traz algumas dúvidas. Como a que aponta Flora Christina Bender: “Por pertencer ao jornalismo e à literatura, a crônica se caracteriza por uma ambigüidade que não aparece nos outros gêneros. Até onde vai o jornalista, onde começa o escritor?” (1993, p. 50) 16 1.2 Gênero híbrido Temos então um gênero de natureza híbrida, que pode ser, ao mesmo tempo, jornalismo e literatura – uma vez que o seu meio de difusão é o jornal, e o seu tom é literário, seja a sua abordagem ficção ou realidade. Sobre o hibridismo de gêneros, explica Haroldo de Campos: “O ‘hibridismo dos gêneros’, no contexto da revolução industrial que se inicia na Inglaterra na segunda metade do século 18, mas que atinge o seu auge, com o nascimento da grande indústria, na segunda metade do século 19, passa a se confundir também com o hibridismo dos media, e a se alimentar dele. A emergência da grande imprensa desempenha um papel fundamental nos rumos da literatura. A linguagem descontínua e alternativa, característica da conversação, vai encontrar na simultaneidade e no fragmentarismo do jornal seu desaguadouro natural.” (1979, p. 285) Num contexto em que a grande imprensa absorve e dá espaço à oralidade, vemos surgir na América Latina esse gênero lúbrico, que escapa a definições precisas e recupera a agilidade do jornal. Como cronista, Caio Fernando Abreu se insere na mesma árvore que gerou autores como Nelson Rodrigues e Pedro Nava, a da crônica intimista e excessiva, de caráter coloquial. Coloquialidade essa que faz da crônica um texto aparentemente descartável, banal, mas que quando recebe a devida atenção, revela a sua peculiaridade literária. Sobre essa qualidade da crônica, observa Antonio Candido: (a crônica) “...não tem pretensões a durar, uma vez que é filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa. Ela não foi feita originariamente para o livro, mas para essa publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha. Por se abrigar neste veículo transitório, o seu intuito não é o dos escritores que pensam em “ficar”, isto é, permanecer na lembrança e na admiração da posteridade; e a sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do 17 simples rés-do-chão. Por isso mesmo consegue quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um, e quando passa do jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que a sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava.” (1980, p. 6) Como gênero híbrido que é, a crônica age, permanentemente, entre o jornalismo e a literatura. Em seu aspecto literário esbarra no conto, que, como vemos, pode estar presente dentro do jornal. Alguns autores, como Sodré e Ferrari, especificam as diferenças entre o conto e a crônica: “Digamos que a crônica se detém mais em situações fortuitas e flagrantes do cotidiano; a condução narrativa é, quase sempre, de caráter impressionista, o narrador numa posição observadora ou reflexiva (é raro que se intrometa, por exemplo, em pensamentos de personagens). Aliás, a questão dos personagens talvez seja um traço distintivo entre conto e crônica: no primeiro, são autônomos (isto é: parecem ter vida própria), vivem conflitos que às vezes são passados ao leitor através de monólogos interiores, e a história gira em torno deles; na crônica, os personagens são acidentes na narrativa, compõem um painel, atuam como figurantes. O narrador observa suas atitudes exteriores e flagra seus comportamentos contraditórios, engraçados, mesquinhos ou, mesmo, trágicos. Há ainda crônicas sem personagens, em que se registram impressões de ambiência ou se discutem questões polêmicas (aqui, já estamos próximos do artigo). Não há propriamente um enredo, com princípio, meio e fim.” (1986, p. 87) No entanto, nos defrontamos, muitas vezes, com crônicas de escritores/jornalistas, que trazem monólogos interiores na primeira pessoa do singular, como os personagens autônomos presentes no conto, que, segundo Sodré e Ferrari, estabeleceriam as diferenças entre crônica e conto. Essa condição permeável da crônica revela uma realidade literária híbrida evidente, ou seja, a negação das fronteiras explícitas entre os gêneros, nas palavras de Emir Rodríguez Monegal: 18 “...os gêneros não desapareceram totalmente mas suas fronteiras continuam modificando-se, apagando-se até o indiscernível, produzindo obras que não correspondem a uma só categoria.” (1972, p. 142) É justamente esse o caso da crônica. A dificuldade em definí-la está no fato de que ela pode ser comentário político ou esportivo, crítica e, principalmente, ela pode ser ficção. Sua flexibilidade está diretamente relacionada à liberdade de criação desfrutada pelo cronista, o que de pronto o separa dos outros profissionais da redação. 1.3 A crônica e a reportagem Para Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari, a reportagem consiste em: “Uma narrativa – com personagens, ação dramática e descrições de ambiente – separada entretanto da literatura por seu compromisso com a objetividade informativa. Esse laço obrigatório com a informação objetiva vem dizer que, qualquer que seja o tipo de reportagem (interpretativa, especial etc.), impõe-se ao redator o ‘estilo direto puro’, isto é, a narração sem comentários, sem subjetivizações”. (1986, p.9) Com toda a dificuldade de se falar em “objetividade informativa” – segundo Martín-Barbero, a “pretensão de um discurso sem sujeito” (2004, p. 427) –, aparentemente a crônica seria o contrário de reportagem. Mas não é. São gêneros jornalísticos distintos, porém complementares. A crônica ocupa um lugar definido dentro do jornal e/ou revista de maneira que fique claro para o leitor que aquele é um espaço autoral, assinado, independentemente de trazer ficção ou comentários e impressões sobre fatos cotidianos. Já a reportagem é a forma padrão do jornalismo impresso, como mostram Sodré e Ferrari. “Narrativa, sabe-se, é todo e qualquer discurso capaz de evocar um mundo concebido como real, material e espiritual, situado em um espaço determinado. ... Mas a narrativa não é privilégio da arte ficcional. 19 Quando o jornal diário noticia um fato qualquer, como um atropelamento, já traz aí, em germe, uma narrativa. O desdobramento das clássicas perguntas a que a notícia pretende responder (quem, o quê, como, quando, onde, por quê) constituirá de pleno direito uma narrativa, não mais regida pelo imaginário, como na literatura de ficção, mas pela realidade factual do dia-a-dia, pelos pontos rítmicos do cotidiano que, discursivamente trabalhados, tornam-se reportagem. Esta é uma extensão da notícia e, por excelência, a forma-narrativa do veículo impresso (embora a entrevista, sobretudo o perfil, possa também, às vezes, assumir uma forma-narrativa). A reportagem constitui, assim, basicamente, um dos gêneros jornalísticos.” (1986, p. 11) Sendo um gênero jornalístico e também literário – por não existir fora do jornal, e mesmo quando vira livro seu conteúdo não é inédito, é resultado da compilação de textos feitos para jornal –, a crônica se contrapõe à reportagem porque não tem pressupostos informativos, enquanto que a reportagem está totalmente relacionada à difusão de uma informação, e por, teoricamente, prescindir de técnica. A reportagem, segundo Sodré e Ferrari, tem como principais características: a) predominância da forma narrativa b) humanização do relato c) texto de natureza impressionista d) objetividade dos fatos narrados (1986, p. 15) “Não se pode esquecer que o discurso de comunicação de massa está subordinado a seu objetivo primordial – a informação – e que, embora possa haver variedade nos enunciados, os dados referenciais ligados a fatos e pessoas assumem proeminência. Isso, tanto no que se refere à notícia como à reportagem. Só que, à notícia, cabe a função essencial de assinalar os acontecimentos, ou seja, tornar público um fato (que implica em algum gênero de ação), através de uma informação (onde se relata a ação em termos compreensíveis). ...Noticiar, portanto, seria o ato de anunciar determinado fato e, independente do número de 20 acontecimentos que possam ocorrer, só serão notícia aqueles que forem ‘anunciados’.” (1986, p. 17) Reportagem e crônica também podem se confundir. Isso acontece quando a reportagem se vale da condição de narrativa para se aproximar do leitor. “...a distinção crônica/reportagem nem sempre é muito nítida. Digamos que a reportagem precise de um fato real, não inventado, e do testemunho deste fato, ainda que isto seja um artifício do narrador. Explicando melhor: o narrador tem que parecer estar presente (mesmo que não esteja). Isso pode ser feito, tanto através do discurso em primeira pessoa, como sob uma narrativa onisciente que crie no leitor a impressão dessa presença.” (Sodré e Ferrari, 1986, p. 91) Sodré e Ferrari estabelecem diferenças, no entanto, entre a notícia propriamente dita e a reportagem que, por meio de recursos literários, se confunde com a crônica. “Consideremos a observação de Lipman: ‘As notícias costumam limitarse a descrever sinais, mais do que analisar seus significados’. Isso tem procedência em dois casos: na notícia que ‘anuncia’ o fato e na que o ‘enuncia’ – aqui estamos utilizando o termo em sentido específico, conotando-o significativamente em relação ao modo de articulação do discurso, que e-nuncia, ou seja, põe à mostra, ex-põe, ex-pressa, manifesta os fatos. Expliquemos: o anúncio de um fato é o simples divulgar dos acontecimentos e o registro sumário de suas circunstâncias – um relato de ações acabadas no tempo. Neste caso, o discurso mantém distanciamento em relação ao leitor; é absolutamente descritivo, documental – só há referências ao que pode ser visto ou constatado. O procedimento do discurso narrativo reconstitui as ações e as presentifica, como se estivessem ocorrendo. A aproximação com o leitor é maior, na medida em que se pode acompanhar o desenrolar dos acontecimentos quase como testemunha. Esse tipo de relato se apóia na ação e no detalhamento. Tenta reproduzir os fatos, realizando-os para o leitor. Esse tipo de discurso, narrativo, detalhado – e que sobretudo parece reger-se por leis próprias – está muito próximo do da 21 reportagem de ação, em que, à maneira de uma história de aventuras, os fatos se sucedem à vista do leitor.” (1986, ps. 18, 19 e 21) Voltando ao cronista, quando se ocupa do cotidiano, ele se pronuncia sobre os fatos, dá a sua visão sobre o acontecimento. Característica que pode ser encontrada em reportagens, que Sodré e Ferrari denominam de “notíciapronúncia”. “Mais que o anúncio ou o simples enunciar dos fatos, as notíciaspronúncia e denúncia informam sobre um tema, numa abstração que visa formar um conceito de natureza ideológica. O jornal incorpora, assim, o tom do jornalismo de revista, que fala ao leitor como se este já tivesse algum conhecimento do tema tratado: seja através do rádio, da TV, de jornais ou de livros. Portanto, conforme o teor da informação, as características dos discursos das notícias e o próprio encadeamento delas, são produzidos conhecimentos de dois tipos: a) o que traz familiaridade com um tema – e nesse caso o discurso é concreto e descritivo, apenas assinalando os acontecimentos; b) o que produz conceitos sobre um tema – com um discurso mais abstrato e analítico, oferecendo informação contextualizada (back-ground). ...O jornalismo tem-se encaminhado no sentido de informar sobre o tema, principalmente nos veículos (e aqui também se inclui a TV) que pretendem, mais que o registro dos fatos, uma pedagogia da notícia, com o objetivo de formar o leitor/espectador.” (1986, p. 32) O cronista, a seu modo, atenderia a essa intenção do veículo de comunicação de formar o leitor/espectador. Ainda que ele não seja necessariamente lido por todos os leitores do respectivo veículo, a sua “verve”, o seu estilo e a sua temática agradam ao board editorial. 1.4 O novo jornalismo O cronista pertence à elite jornalística, assim como os articulistas e os repórteres aos quais é permitido praticar o estilo próximo ao chamado novo jornalismo (new journalism). Gênero norte-americano imortalizado na década de 70 pelos jornalistas Norman Mailer, Tom Wolfe, Gay Talese e Truman 22 Capote, entre outros, o new journalism consiste no tratamento literário – e, acima de tudo, libertário – dos fatos jornalísticos, resultando na produção de obras literárias para além das reportagens, como A mulher do próximo (Talese) e A sangue frio (Capote). No Brasil, se aproximaram desse estilo jornalistas como Zuenir Ventura, Ruy Castro e Fernando Morais, entre outros. Sobre essa escola, escreveu Alberto Dines: “Nos meios intelectuais norte-americanos, fabricou-se nova escola: o ‘Novo Jornalismo’, tendo como expoentes máximos o repórter Tom Wolfe, Norman Mailer, conhecido escritor e panfletário, e Jimmy Breslin, repórter do New York Herald Tribune. O novo jornalismo preconizado é um velho estilo de escrever, adaptado ao que produzem aqueles intelectuais e seus companheiros, entre a crônica, a reportagem e o depoimento. Não é uma nova concepção para o jornal, nem nova linha de trabalho ou atitude profissional. É um gênero ao qual podem aderir apenas alguns grandes nomes, cujo peso na assinatura faz com que qualquer jornal ou revista dispute seus trabalhos, seja qual for o estilo em que escrevam.” (Dines, 1986, p. 89) A definição de Dines ao Novo Jornalismo como estilo “entre a crônica, a reportagem e o depoimento” é corroborada, por exemplo, na edição brasileira do livro The neighbor’s wife (1980), de Gay Talese, um dos papas do gênero. À tradução literal do título – A mulher do próximo (Companhia das Letras, 2002) – foi acrescentado o subtítulo Uma crônica da permissividade americana antes da era da Aids. Em comum, como afirma Dines, novo jornalismo e crônica têm o peso da autoria: pratica quem pode, não quem quer. E os executivos dos grandes jornais e revistas sabem bem qual texto assinado querem dentro do seu veículo. O que não tira o mérito de ambos os gêneros no enriquecimento literário dos periódicos em geral. Medel, inclusive, relaciona o “boom” do novo jornalismo e da crônica como uma resposta criativa da mídia para superar uma crise. 23 “As diversas crises dos anos 60, que deram lugar a formas do novo jornalismo não só nos Estados Unidos, como também em toda a América Latina e na Europa, são um excelente exemplo de como a ruptura de fronteiras (também neste âmbito) fecundou a criatividade informativa no âmbito do jornalismo (sobretudo em gêneros como o artigo de opinião, a crônica, a reportagem e a entrevista) de modo que permitiu um importante impulso às formas de escrita literária que adotam a retórica do jornalismo.” (Medel, 2002, ps. 20 e 21) Para o escritor gaúcho Moacyr Scliar – ele mesmo, a seu modo, cronista da Folha de S. Paulo –, esse coabitar do jornalismo com a literatura, preconizado tanto pelo novo jornalismo como pela crônica, pode ser bastante positivo. “... acho, sim, que a literatura pode ensinar algo ao jornalismo. Em primeiro lugar, a cuidar da forma, a escrever e a reescrever. Também ensina a privilegiar a imaginação – mas não demais: realidade é realidade, ficção é ficção. O novo jornalismo foi uma experiência interessante, mas exagerou muito. Há sim, uma fronteira entre jornalismo e ficção. Mas é uma fronteira permeável, que permite uma útil e amável convivência. No passado, grandes escritores foram grandes jornalistas: o caso de Machado de Assis, de Lima Barreto. Nada impede que esta tradição tenha continuidade.” (2002, p. 14) Ainda que crítico ao novo jornalismo como escola de reportagem, Alberto Dines reconhece a contribuição do gênero ao jornalismo contemporâneo, especificamente às reportagens feitas por correspondentes internacionais, que estando presentes de fato ao lado do acontecimento, tendem a intensificar o relato jornalístico. “Tornar-se-ão inúteis os correspondentes no exterior? A pergunta ficará respondida quando tratarmos da nova dimensão a ser acrescentada ao jornalismo contemporâneo: o depoimento pessoal. Aqui, o aporte do new journalism talvez seja válido e importante. A transcendência dos assuntos levou muito jornal e jornalista a adotar uma posição e um estilo puramente ensaísticos, de alta categoria, mas sem o calor do testemunho. A presença do jornalista ao lado do fato ou dentro dele não 24 acrescenta apenas veracidade, mas uma tremenda força narrativa.” (Dines, 1986, p. 93) 1.5 Pacto com o leitor A presença da crônica é denunciada, em meio às reportagens do dia-adia, pelo formato característico de artigo assinado e pelo tamanho demarcado cotidianamente na mesma página. Ou seja, o leitor é informado de que aquele espaço específico é um espaço de autor, que tanto pode escrever sobre o universo real quanto ficcional. Assim, é estabelecido de antemão um pacto estético com o leitor, como diz Manuel Angel Vázquez Medel: “... a retórica do discurso jornalístico (posto que todo dizer requer sua retórica, implícita ou explícita, formal ou informal) é, em muitos casos, essencialmente coincidente com a do discurso literário. Com efeito, se a ficção própria da literatura a exime das provas comprobatórias e se baseia mais em um pacto estético do que em um pacto ético de credibilidade (como acontece com o discurso jornalístico), podemos estar diante de ficções fantásticas (nas que o conteúdo funciona de modo muito distinto ao mundo em que habitualmente nos encontramos inseridos) ou diante de ficções realistas (nas que a retórica do discurso funciona, seguindo os velhos postulados da verossimilhança aristotélica como se se tratasse de um discurso factual.” (2002, p. 24) Para entender como se dá a convivência do texto literário com o texto jornalístico dentro do jornal, ou melhor, do imaginário com a realidade, é preciso entender os caminhos da literatura brasileira e dos meios de comunicação de massa, dos quais o jornal é parte integrante. Isso sem desconsiderarmos o fato de que muitos escritores latino-americanos – Gabriel García Marquez, Euclides da Cunha, Machado de Assis, José Marti, entre outros –, em algum momento de suas vidas, exerceram o ofício de jornalista, como lembra Saer: 25 “É difícil separar a mescla um pouco confusa de expressão e de informação que constitui a essência dos media, e isto fica claro quando se considera a questão do jornalismo. São muito poucos os autores da América Latina que nada tiveram a ver, de um modo ou de outro, com o jornalismo em algum momento de sua carreira. Estas relações nem sempre se limitaram a conceber o jornalismo como um trabalho adicional capaz de subministrar a segurança econômica indispensável para poder dedicar-se à literatura. ...No livro primeiro de Carlos Drummond de Andrade, Alguma poesia (1925- 1930), o ‘Poema do Jornal 1 ’, não só nos ensina a influência do jornalismo sobre a literatura, mas também permite comprovar que um poema pode ser ao mesmo tempo uma síntese de reflexão sobre o jornalismo e sobre a poesia.” (1972: p. 312) 1.6 Tradição da ruptura Não há como desvincular a literatura nacional do contexto da literatura latino-americana, marcada pelo conflito entre a tradição e a renovação. “Se o signo que melhor caracteriza as letras latino-americanas deste século é a tradição da ruptura, cabe-se observar que essa tradição também não é literalmente nova nas letras latino-americanas. Um sumário repasse no processo destas letras, a partir da Independência, permite perceber que assim como a vanguarda dos anos vinte se levanta contra o modernismo, o romantismo aparece na América Latina como uma reação contra o neoclassicismo e a herança escolástica hispano-portuguesa.” (Monegal, 1972, p. 136) Nesse ambiente de ruptura, em que a tradição – no caso, a européia – se renova, no Brasil, o folhetim – le feuilleton – virou crônica. 1 O fato ainda não acabou de acontecer E já a mão nervosa do repórter O transforma em notícia. O marido está matando a mulher. A mulher ensangüentada grita. Ladrões arrombam o cofre. A polícia dissolve o meeting A pena escreve. Vem da sala dos linotipos a doce música mecânica. 26 Apesar de estar associado a trechos de novelas e de romances, principalmente porque a Folha de S. Paulo, em mais de uma ocasião, publicou um suplemento literário com essa denominação, o conceito de folhetim a que estamos nos referindo aqui é bem distinto. Para evitar confusões, é importante esclarecer exatamente o que era o folhetim do qual a crônica se originou, como faz Marlyse Meyer no trecho que reproduzimos a seguir: “Já que o folhetinista é originário da França, e, o folhetim, novidade de Paris, há que ir ver o que o termo recobre lá na matriz. De início – começos do século 19 – le feuilleton designa um lugar preciso do jornal: o rez-de-chaussée – rés-do-chão, rodapé, geralmente da primeira página. Tem uma finalidade precisa: é um espaço vazio destinado ao entretenimento. E já se pode dizer que tudo o que haverá de constituir a matéria e o modo da crônica à brasileira já é, desde a origem, a vocação primeira desse espaço geográfico do jornal, deliberadamente frívolo, que é oferecido como chamariz aos leitores afugentados pela modorra cinza. Aquele espaço vale-tudo suscita todas as formas e modalidades de diversão escrita: nele se contam piadas, se fala de crimes e monstros, se propõem charadas, se oferecem receitas de cozinha ou de beleza; aberto às novidades, nele se criticam as últimas peças, os livros recém saídos, o esboço do Caderno B, em suma. E, numa época em que a ficção está na crista da onda, é o espaço onde se pode treinar a narrativa, onde se aceitam mestres ou noviços no gênero, curtas ou menos curtas – adota-se a moda inglesa de publicação em série se houver mais texto e menos coluna. Título geral desse pot-pourri de assuntos (Martins Pena falaria em sarrabulho lítero-jornalístico): Variétés, ou Mélanges, ou Feuilleton. Mas este último, repita-se, era antes um termo genérico, designando essencialmente o espaço na geografia do jornal e seu espírito. Com o tempo, o apelativo abrangente passa a se diferenciar, alguns conteúdos se rotinizam, e o espaço do folhetim oferece abrigo semanal a cada espécie: é o feuilleton dramatique (crítica de teatro), littéraire (resenha de livros), variétés, e ‘cosi via’. As mesmas rubricas com as mesmas funções e a mesma liberdade existem não só nos jornais diários, mas se estendem às revistas periódicas.” (1992, p. 96 e 97). Assim, originária do folhetim francês, a crônica alcançou prosperidade no jornalismo brasileiro, tornando-se efetivamente um gênero da imprensa 27 nacional, já a partir do século 19. “Não há cronista fora de jornal”, afirmou o escritor Carlos Heitor Cony, notório cronista em atividade no país, na palestra Crônica no jornalismo e na literatura, proferida no auditório do jornal Folha de S. Paulo, em 29 de outubro de 1998. A crônica, segundo Cony, é um gênero da imprensa brasileira, que apesar de ser centrado na primeira pessoa do singular, o que poderia denotar certo tom romântico, não floresceu como gênero romântico, mas sim como gênero da imprensa. Segundo José Marques de Melo, “...Se não existem, no jornalismo inglês, alemão ou norte-americano, ‘correspondentes precisos’ à chamada ‘crônica latina’, verifica-se o cultivo de formas de expressão jornalística que lhe são assemelhadas. É o caso dos gêneros jornalísticos que os ingleses rotulam como action stories e daquele que os norte-americanos chamam de features ou até mesmo de glosa alemã.” (2002, p. 141, 142) Ao definir a crônica praticada na imprensa brasileira e portuguesa, Marques de Melo ressalta a sua natureza híbrida. “...A crônica, na imprensa brasileira e portuguesa, é um gênero jornalístico opinativo, situado na fronteira entre a informação de atualidades e a narração literária, configurando-se como um relato poético do real.” (2002, p. 147) Um de nossos cronistas pioneiros foi Machado de Assis (1839-1908). Na crônica O folhetinista, ele discorre sobre a origem desse estilo que ainda não havia se instalado efetivamente nos jornais brasileiros: “Uma das plantas européias que dificilmente se têm aclimatado entre nós, é o folhetinista. Se é defeito de suas propriedades orgânicas, ou da incompatibilidade do clima, não o sei eu. Enuncio apenas a verdade. ... O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde vive a seu gosto, como em cama no inverno. De lá espalhou-se pelo mundo, ou 28 pelo menos por onde maiores proporções tomava o grande veículo de espírito moderno; falo do jornal. ... O folhetim, disse eu em outra parte, e debaixo de outro pseudônimo, o folhetim nasceu do jornal, o folhetinista por conseqüência do jornalista. Esta íntima afinidade é que desenha as saliências fisionômicas na moderna criação. ...Efeito estranho é este, assim produzido pela afinidade assinalada entre o jornalista e o folhetinista. Daquele cai sobre este a luz séria e vigorosa, a reflexão calma, a observação profunda. Pelo que toca ao devaneio, à leviandade, está tudo encarnado no folhetinista mesmo; o capital próprio. O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar de colibri na esfera vegetal; salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre todas as seivas perigosas. Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política.” (2003, p. 39 e 40) O crítico Antonio Candido tem uma interessante análise dessa variante literária nacional: “...ela não nasceu propriamente com o jornal, mas só quando este se tornou quotidiano, de tiragem relativamente grande e teor acessível, isto é, há uns cento e cinqüenta anos mais ou menos. No Brasil ela tem uma boa história, e até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu. Antes de ser crônica propriamente dita foi “folhetim”, ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia – políticas, sociais, artísticas, literárias. Assim eram os da secção ‘Ao correr da pena’, título significativo a cuja sombra José de Alencar escrevia semanalmente para o Correio Mercantil, de 1854 a 1855. Aos poucos o “folhetim” foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje.” (1980, ps. 6 e 7) Candido também fala da consolidação da crônica no Brasil: “Acho que foi no decênio de 1930 que a crônica moderna se definiu e consolidou no Brasil, como gênero bem nosso, cultivado por um número crescente de escritores e jornalistas, com os seus rotineiros e os seus mestres. Nos anos 30 se afirmaram Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, e apareceu aquele que de certo modo 29 seria o cronista, voltado de maneira praticamente exclusiva para este gênero: Rubem Braga.” (1980, ps. 8 e 9) 1.7 Gênero libertário A crônica pode ser uma narração histórica ou registro de fatos comuns; texto jornalístico redigido de forma livre e pessoal, e que tem como temas fatos ou idéias da atualidade, de teor artístico, político, esportivo etc., ou simplesmente relativos à vida cotidiana. Também pode ser um pequeno conto de enredo indeterminado, que encontra no jornal o seu principal meio de difusão. O fato é que, como a própria designação já diz e como já vimos anteriormente, não há conto sem história, enquanto a crônica pode dispensar uma história – e o acontecimento jornalístico – e se deter justamente nas impressões, opiniões, enfim, nas idiossincrasias do cronista, que, como um narrador, arma uma relação de desabafo – o monólogo interior de que falam Sodré e Ferrari – com o seu leitorouvinte-confidente. Nessa condição, o cronista se assemelha à figura do narrador descrita por Walter Benjamin. “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. No narrador, o cronista conservou-se, transformado e por assim dizer secularizado.” (1986, ps. 201 e 209) Talvez o cronista seja mesmo o narrador dos tempos modernos, ainda que a crônica se manifeste no jornal de forma concisa e relativamente discreta, incrustada em meio às notícias do cotidiano e, muitas vezes, no pé da página ou ao rés-do-chão, no dizer de Antonio Candido, como é o caso, por exemplo, da crônica diária de Carlos Heitor Cony na Folha de S. Paulo. 30 Por ser um gênero livre, a crônica não tem regras rígidas e, dessa forma, é uma porta para a literatura. Não é por acaso que cronistas consagrados da imprensa nacional se tornaram também famosos escritores. É o caso do próprio Cony e de Caio Fernando Abreu e também de Antonio Callado e Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, entre outros. É interessante observar que a pré-determinação do tamanho e sua conseqüente concisão, poderia aproximar a crônica de gêneros literários de forma fixa, como sonetos, distanciando-a dos contos; por outro lado, essas mesmas questões colocam a crônica em plenas regras e padrões jornalísticos. Essa relação com o conto é difícil também de se sustentar como elemento distintivo, porque, para alguns, essa fronteira é tênue. O conto Missa do Galo, de Machado de Assis, por exemplo, é uma crônica natalina na opinião de Carlos Heitor Cony, o que demonstra, como já vimos, a negação das fronteiras explícitas entre os gêneros, de acordo com Monegal (1972: p.142), como resultado de “um novo desenvolvimento da literatura presente”. No que se refere a conteúdo, desde sempre a crônica é um gênero livre. “Inconstante, descompromissada, libertária, a crônica é avessa a regras e incompatível com camisas-de-força.” (Amâncio, 1991: p. 11) O cronista em si, no entanto, não é exatamente um privilegiado entre os colegas de redação presos exclusivamente às regras editoriais. Porque para construir um texto de certa forma libertário e, principalmente literário, ao longo do processo de criação, o autor se coloca restrições expressivas, como afirma Medel. Pois como nos lembra Antonio Candido em relação ao romance – e a observação cabe aqui também, uma vez que a crônica também está no campo da ficção: 31 “...na vida tudo é praticamente possível; no romance é que a lógica da estrutura impõe limites mais apertados, resultando, paradoxalmente, que as personagens são menos livres, e que a narrativa é obrigada a ser mais coerente do que a vida.” (2002, p. 76) Ao prescindir da informação e da técnica jornalística, o cronista se livra das amarras do projeto editorial do veículo em que trabalha e do lead americano 2 e escreve sobre os mais variados assuntos no espaço para ele delimitado dentro do jornal. E, assim, faz valer a máxima de Machado de Assis, de que "a liberdade é a maior virtude que sempre se deve defender". Liberdade temática, diga-se. Essa possibilidade da literatura operar libertamente dentro de um meio de comunicação de massa se dá porque ela tem outra função, ainda que complementar ao jornalismo. Como diz Juan José Saer: “Enquanto os mass media são uma atividade que tem por fim transmitir a experiência que já passou, a literatura representa, ao contrário, uma avaliação perpétua do presente, uma busca contínua de um presente novo no qual a experiência renasça, para que em seu interior a literatura tenha lugar (até mesmo na conotação espacial da palavra).” (1972, p. 320 e 321) Não é por acaso, como já vimos anteriormente, que o exercício da crônica tenha atraído conceituados escritores, a começar por Machado de Assis. Parece que nessa atividade paralela – e necessária, como meio de sobrevivência –, seus autores acabam por morder a isca da literatura, produzindo textos breves e belíssimos, através de uma linguagem singular. 2 Ferramenta teórica sistematizada por Kipling, que define cinco perguntas básicas em relação ao fato (o que? quem? quando? onde? e por quê?). A partir dessa sistematização, o repórter vai esclarecendo o fato, formando uma “pirâmide invertida” em que o grosso da informação se concentra nos primeiros parágrafos e vai afinando ao longo da matéria. 32 “Em literatura, linguagem não é sinônimo de sistema geral da língua, mas antes sinônimo de fala de um determinado escritor ou de um determinado gênero.” (Monegal, 1972: p. 131) Retomo aqui a clássica frase “o meio é a mensagem”, do teórico canadense Marshall McLuhan, já que o escritor usa o espaço no jornal para fazer literatura, ou seja, passar a ‘mensagem literária’ – a ampla possibilidade da linguagem, para além da técnica jornalística. Em termos culturais, a crônica também contribuiu para “libertar” a literatura brasileira do rebuscamento estilístico, como nos lembra Antonio Candido. “Num país como o Brasil, onde se costumava identificar superioridade intelectual e literária com grandiloqüência e requinte gramatical, a crônica operou milagres de simplificação e naturalidade, que atingiram o ponto máximo nos nossos dias.” (1980, p.8) Complementa Candido: “... A crônica brasileira bem realizada participa de uma língua geral lírica, irônica, casual, ora precisa e ora vaga, amparada por um diálogo rápido e certeiro, ou por uma espécie de monólogo comunicativo.” (1980, p. 13) 1.8 O importante e o urgente Considerando a função essencialmente informativa do empreendimento jornalístico, os cronistas se assemelham a bravos heróis, que perpetuam seu estilo e resistem na grande imprensa. Principalmente se considerarmos que eles não levam em conta a agenda natural de pautas, que, teoricamente, apresenta interesse potencial para o leitor e que é a prerrogativa do trabalho jornalístico dentro de uma empresa. Segundo Dines, 33 “A busca incessante das circunstâncias motivadoras que envolvem tanto o jornalista como o leitor – que convivem no mesmo ambiente e sofrem as mesmas injunções – é o segredo do jornalista imaginoso. ‘O que está me interessando hoje e pode interessar boa parte dos leitores?’ – é uma das perguntas diárias que o jornalista faz a si próprio.” (Dines, 1986, p. 61) O fato do cronista não se colocar a mesma pergunta que o jornalista não significa que ele não esteja preocupado em cativar os leitores. Muito pelo contrário. Mas seus métodos são outros. No caso de Caio F. Abreu, vale dizer, ele próprio é o protagonista de suas crônicas, o que, por si só, já gera uma curiosidade por resultar num texto revelador, ainda que discreto, da vida do autor. E, se além disso, nos deparamos com um texto de grande qualidade literária, aí há motivos evidentes para se conquistar leitores, a despeito do tema abordado. Quanto mais nos debruçamos sobre a relação entre a cônica e o texto informativo, percebemos que ela é simbiótica. Como diz Juan José Saer: “...a literatura está na própria raiz dos media, desempenhando em relação a eles o papel de uma espécie de modelo e até de superego, na medida em que a literatura integra de forma preponderante aquilo que se conhece com o nome de alta cultura.” (Saer, 1979: págs. 316 e 317) Nesse contexto, em que a literatura é a matriz dos veículos de massa, a crônica surge como espaço de preservação do texto literário em nossa imprensa. Como uma necessidade da narrativa em meio aos textos de vida curta, presos aos acontecimentos de um dia, feitos de apuro técnico e jornalístico. Ou, como explica Medel, a necessidade de separar o que é importante do que é urgente. “As relações entre criação literária e exercício jornalístico têm sido problemáticas desde seus inícios. Parece que aquela, sem abandonar a 34 dimensão lúdica e fruitiva, deve encaminhar-se para o essencial humano, bem que encarnado nas inevitáveis coordenadas espaçotemporais que nos constituem. A atividade informativa, ao contrário, aponta mais para o efêmero, passageiro, circunstancial (e sabemos até que ponto a vertigem informativa devora a estabilidade e permanência dos acontecimentos). Simplificando muito, parece que a literatura se orienta para o importante e a informação jornalística para o urgente.” (Medel, 2002, p. 18) Para Juan José Saer, a literatura dá sempre um jeito de habitar o jornal, até porque o próprio jornalismo não deixa de ser um gênero literário, no sentido literal, ainda que desfalcado, pela própria condição, de requintes estéticos. “No grande universo dos media, a literatura desempenha o papel de subespécie; não somente parece estar em seu princípio e em seu fim, mas também escorre através de cada uma de suas fendas, manifesta-se em cada uma das tentativas que fazem os media para inserir-se na cultura. Portanto, a literatura parece irradiar sobre os mass media uma claridade que é ao mesmo tempo iluminação e coarctada, se levarmos em conta que uma das interrogações que o aparecimento dos media despertou foi a do destino da literatura, sendo que, na euforia dos media, se formulou mais de uma vez a hipótese – absurda – de que os media chegavam por fim para terminar com a literatura. Esta falsa hipótese de incompatibilidade, que bem mostra, de outra parte, o mal-estar que o exercício da literatura desperta na sociedade moderna, serve também para evidenciar a dependência dos media com relação à literatura em particular e à alta cultura em geral.” (1972: p. 317) Complementando o que dissemos a respeito do interesse que a crônica desperta no público leitor, Anatol Rosenfeld ressalta a característica ficcional e, muias vezes, alheia à realidade, como uma singularidade do gênero dentro do jornal. E, também, por ser, de certa maneira, uma forma exclusiva de informação. “Geralmente, quando nos referimos à literatura, pensamos no que tradicionalmente se costuma chamar “belas letras” ou “beletrística”. Trata-se, evidentemente, só de uma parcela da literatura. Na acepção 35 lata, literatura é tudo o que aparece fixado por meio de letras – obras científicas, reportagens, notícias, textos de propaganda, livros didáticos, receitas de cozinha etc. Dentro deste vasto campo das letras, as belas letras representam um setor restrito. Seu traço distintivo parece ser menos a beleza das letras do que seu caráter fictício ou imaginário.” (2002, ps. 11 e 12) O fato de ser um veículo de leitura individualizada – ninguém lê o mesmo jornal ao mesmo tempo –, como ressalta Dines, acentua uma peculiaridade do jornal em relação a outros veículos de comunicação de massa: a de apropriação intelectual do texto pelo leitor. “Apesar das grandes tiragens, o jornal é um produto dirigido a cada leitor em separado, conforme já vimos em capítulo anterior. Mesmo que cada exemplar seja lido em média por três leitores, cada um deles encontra algo muito seu e muito próprio. Quanto mais massificadas forem a sociedade e a informação, mais o ser humano procurará formas ‘exclusivas’ de informação, e os meios eletrônicos, pela própria natureza da recepção, são coletivos. O jornal consegue atender a cada leitor que o manuseia e, na medida que o satisfaz, torna-se sua ‘propriedade’. Um aumento no preço do exemplar acentuará ainda mais esta característica.” (1986, p.77) Ainda segundo Dines: “...A leitura por alguns minutos da primeira página, ou a concentração mais atenta por uma ou mais horas nas páginas seguintes, são escolhas que cada um pode fazer. O leitor governa a leitura do seu jornal; vale dizer, ele não está à sua mercê. Mas a amplitude que tem dos acontecimentos é a mesma. O seu fácil manejo e relativa perenidade permitem que seja guardado por momentos, horas ou dias.” (1986, p. 78) Haroldo de Campos recorre a McLuhan para explicar a proximidade entre a grande imprensa e a cultura oral, que, na interpretação de Walter Benjamin se transformou, na modernidade, na crônica: 36 “Marshall McLuhan tem procurado interpretar de maneira extremamente sugestiva esse conflito dos media. Para o teórico canadense, a grande imprensa, a partir sobretudo da invenção do telégrafo e de sua influência, sob a forma de mosaico de notícias, no estilo e na apresentação dos jornais, aproxima-se da cultura oral, que não é linear, mas sinestésica, táctil, simultânea, tribal.” (1979, p. 285) Levando-se em conta o aspecto coloquial-oral da crônica, pode-se dizer então que ela conserva a sensibilidade e as emoções perdidas. Walter Benjamin fala das histórias surpreendentes que o jornal, mesmo trazendo notícias dos quatro cantos do mundo, não é capaz de oferecer ao leitor. “...Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio. Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações.” (1986, p. 203) 1.9 Um gênero indefinido Assim, é um privilégio para os leitores que, no Brasil, tenha se conservado dentro do jornal diário espaço para uma narrativa pessoal, íntima, cotidiana, que consegue interagir com o leitor. No texto de apresentação que fez para a coletânea Cronistas do Estadão, Moacir Amâncio fala sobre a presença da crônica no jornal O Estado de S. Paulo, veículo oriundo do século 19. “O jornal sempre cultivou a tradição do cronista permanente, entre os quais foi Luís Martins um dos mais longevos: textos subscritos pelo nome completo ou pelas iniciais L.M. aparecem de 1940 até 1981, sempre no mesmo canto de página. Em 1986, com o lançamento do Caderno 2, retomou-se a receita dos cronistas em rodízio. O jornal abriu espaço para diversos autores, fixos ou esporádicos, mantendo 37 coerentemente intocada a disposição de acompanhar mudanças de tempos e costumes com modos de expressão contemporâneos. Dessa forma, autores do porte de Rubem Braga, Fernando Sabino e Rachel de Queiroz passaram a conviver com revelações como Caio Fernando Abreu ou talentos injustamente sem acesso a certas áreas da cultura brasileira como João Antônio.” (1991, p. 12) Nesse contexto, é interessante refletir sobre as crônicas de Caio Fernando Abreu. Uma delas, Pequenas epifanias, integra a coletânea Cronistas do Estadão (1991), organizada por Moacir Amâncio. “Uma esplêndida aula sobre o que é escrever bem. As lições estão nos textos selecionados entre os produzidos por dezenas de cronistas que, ao longo dos últimos cem anos, contribuíram para fazer deste jornal o mais importante do país”, explica texto não assinado na orelha do livro. Dessa afirmação podemos refletir sobre a função didática da crônica dentro de seu habitat, ao contribuir para a boa escrita, trazendo a literatura para o universo da técnica de reportagem e melhorando a qualidade do texto jornalístico. Vejamos o que diz Amâncio: “Preconceitos se abrandam e conceitos se ampliam quando se contempla a crônica aninhada em páginas de jornais, talvez seu habitat preferido. Essa contemplação oferece provas luminosas da existência de um espaço aberto para a criatividade, a emoção, o pensamento solto, a alegria e a amargura, o objetivo e o subjetivo. Esse espaço tanto pode conter meras anotações perecíveis no instante da leitura quanto peças literárias destinadas a transformar-se em referências essenciais da cultura do país. Vai-se do banal ao clássico.” (1991, p. 10) Segundo Antonio Candido: “A crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade 38 insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas – sobretudo porque quase sempre utiliza o humor.” (1980, p. 5) Exceção à regra, os textos de Caio F. Abreu não trazem humor; por outro lado, são vivos, o que talvez seja necessário para um estilo inerente às publicações periódicas. “A boa crônica se mantém matéria viva. Faz história, faz literatura, documenta e se torna arte.” (Amâncio, 1991, ps. 10, 11) Sobre o gênero crônica, Antonio Candido afirma: “Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição.” (1980, p. 5) Ao privilegiar as impressões e, principalmente, as emoções do seu narrador, a crônica literária resulta em textos atemporais e, portanto, duradouros, ao contrário da crônica esportiva ou política, por exemplo. Vejamos o que escreveu Benjamin sobre a perenidade da narrativa frente à fugacidade da informação. “A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver.” (1986, p. 204) 39 Como fica bastante claro nessa nossa discussão, definir a crônica não é tarefa das mais simples e talvez infrutífera. Como gênero híbrido e texto libertário, escapa a uma definição precisa. Por meio da análise de uma coletânea de crônicas, pretendemos conhecer melhor a crônica de Caio F. Abreu. Esse talvez seja o caminho mais sensato para chegar mais perto de uma definição do gênero, como afirma Cecilia Salles em relação às crônicas de Ignácio de Loyola Brandão. “Tente demarcar o campo de ação da crônica e imediatamente encontrará uma série de exceções. Somente algumas propriedades bastante gerais se sustentam para podermos nos satisfazer com uma possível definição: texto assinado, publicado em um espaço determinado no jornal com periodicidade definida. São bastante frustradas as tentativas de descobrir pontos em comum relativos àquilo que é abordado e os instrumentos de elaboração desses assuntos. As coletâneas oferecem a possibilidade de vislumbrarmos a crônica assim como é praticada por um determinado escritor.” (2004, p. 8) Para os próprios cronistas, é difícil definir o que fazem. Outro dia, Ferreira Gullar abriu sua coluna 3 dominical na Folha de S. Paulo com a seguinte frase: “Vou falar hoje de um assunto que talvez não seja assunto de crônica, mas, como já disse que ninguém sabe o que é crônica, vou falar assim mesmo.” (2005, p. E-12) Já Clarice Lispector chegou a convidar o leitor para refletir sobre o gênero. “Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado de espírito?” (1999, p. 112) 3 E o cronista endoidou..., caderno Ilustrada, 19/06/05. 40 E o assunto não tarda a retornar nos textos da escritora. Na crônica Viajando por mar (1ª parte), ela conta: “...um dia telefonei para Rubem Braga, o criador da crônica, e disse-lhe desesperada: ‘Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?’ Ele disse: ‘É impossível, na crônica, deixar de ser pessoal”. (1999, p. 349) 41 CAPÍTULO 2 A CRÔNICA DE CAIO FERNANDO ABREU: DIÁLOGOS 42 2.1 Pequena biografia Nascido em Santiago do Boqueirão (RS), em 12 de setembro de 1948, Caio Fernando Abreu trabalhou como jornalista em diversas redações (Veja, Manchete, Zero Hora, O Estado de S. Paulo, Folha da Manhã, entre outras) e também como tradutor, mas se destacou como escritor, principalmente de contos e de crônicas. Publicou Inventário do ir-remediável (contos, 1970), O limite branco (romance, 1971), O ovo apunhalado (contos, 1975), Pedras de Calcutá (contos, 1977), Morangos mofados (contos, 1982), Triângulo das águas (novelas, 1983), As frangas (novela infanto-juvenil, 1988), Os dragões não conhecem o paraíso (contos, 1988), A maldição do vale negro (peça teatral, 1988), Onde andará Dulce Veiga? (romance, 1990), Ovelhas negras (contos, 1995), Estranhos estrangeiros (contos, 1996) e Bien loin de Marienbad (novela, 1994, publicada na França). Teve vários livros traduzidos para diversas línguas. Recebeu os prêmios Fernando Chinaglia (1970), Status (1980), Jabuti (1984 e 1989) e APCA (1990). Morreu em 25 de fevereiro de 1996, aos 47 anos, em decorrência da Aids. Postumamente, foram publicados Pequenas epifanias (1996) – que reúne parte de suas crônicas escritas para o Estadão, no período entre abril de 1986 e dezembro de 1995 – e a coletânea Fragmentos – 8 histórias e um conto inédito (2002). Considerado cronista-revelação no final da década de 80 do século 20, Caio Fernando Abreu integra, como já vimos no capítulo anterior, a coletânea Cronistas do Estadão, de 1991. Está assim ao lado de mestres do gênero, como Rubem Braga, Fernando Sabino e Rachel de Queiroz, cujos textos são exemplos contundentes de crônica. 43 2.2 A crônica de Caio Fernando Abreu O caráter revelador da crônica de Caio F. Abreu se manifesta na medida exata em que traz à tona para o leitor miudezas do cotidiano que não interessam ao jornal como objeto jornalístico – já que não constituem a matéria-prima do jornalismo, a informação –, num formato em que o leitor é convertido em ouvinte e confidente de um narrador lírico distante. Walter Benjamin já disse que “quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia” (1986, p. 213). E, realmente, não há como não compartilhar um texto como Pequenas epifanias, do qual reproduzo um trecho: “Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mau me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas. Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração.” (Abreu, 1996, p. 13 e 14) Podemos ler essa crônica, que fala de um modo pouco definido de um relacionamento, como metáfora da sua função dentro do jornal e também da relação de cumplicidade que se estabelece entre o cronista e o leitor, em comparação à frieza e impessoalidade características das reportagens espalhadas pelo veículo. Vejamos: “Nunca mais sair daquele colo quente que é 44 ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você” – relação cronista/leitor –, “no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração” – as notícias em geral. Nesse sentido de auto-reflexão, também se evidencia o caráter poético da prosa de Caio F. Abreu. Leyla Perrone-Moisés lembra que Jakobson definiu a característica fundamental da mensagem poética: “... seu caráter intransitivo, sua inseparabilidade em termos de forma e conteúdo, a ênfase posta pela mensagem em si mesma, sua autodesignação, sua auto-referência, em suma, seu caráter autoreflexivo”. (1993, p. 43) Como um todo, a leitura das crônicas de Caio F. Abreu é instigante porque nos faz refletir sobre o próprio gênero. É um caso em que a forma se confunde com o conteúdo, resultando, muitas vezes, numa pequena “epifania” dentro do jornal. Além de dialogar com o leitor, ele também dialoga constantemente com seus pares e suas referências. Ainda na crônica Pequenas epifanias, por exemplo, há uma interlocução com Clarice Lispector, por meio da intertextualidade. Vejamos: “... Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector – Tentação 4 – na cabeça estonteada de encanto: ‘Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível.’ Cito de memória, não sei se correto.” (Abreu, 1996, p. 14) As crônicas de Caio F. Abreu se caracterizam pelo caráter poético e, como já foi dito, pela desconexão em relação aos fatos do noticiário. Nelas, o 4 In Felicidade Clandestina, p. 46. 45 autor salta de um assunto a outro, até porque isso lhe é permitido, e devaneia. É o caso, por exemplo, do texto No centro do furacão, em que o cronista se liberta de qualquer amarra para fazer juz ao capricho de usar determinada palavra. No caso, ‘voragem’, aquilo que sorve ou devora; turbilhão; qualquer abismo; tudo o que subverte ou consome. Por coincidência – ou referência –, o termo faz parte do repertório de Clarice Lispector 5 , de modo marcante. Escreve Caio: “Queria tanto poder usar a palavra voragem. Poder não, não quero poder nenhum, queria saber. Saber não, não quero saber nada, queria conseguir. Conseguir também não – sem esforço, é como eu queria. Queria sentir, tão dentro, tão fundo que quando ela, a palavra, viesse à tona, desviaria da razão e evitaria o intelecto para corromper o ar com seu som perverso. Aracional, abismal. Não me basta escrevê-la – que estou escrevendo agora e sou capaz de encher pilhas de papel repetindo voragem voragem voragem voragem voragem voragem voragem sete vezes ao infinito até perder o sentido e nada mais significar – não é dessa forma que eu a desejo.” (Abreu, 1996, p. 42) 2.3 Imaginário X real A leitura das crônicas de Caio Fernando Abreu reunidas no livro Pequenas epifanias revela a capacidade de concisão e o estilo de um escritor, jornalista de profissão, que passa ao largo da agenda dos vespertinos para se voltar para a literatura. E é importante ressaltar essa singularidade porque há cronistas que se baseiam nos fatos jornalísticos para escrever suas crônicas, como é o caso, por exemplo, de Moacyr Scliar no jornal Folha de S. Paulo. 46 O cronista em foco nesse estudo, no entanto, faz da crônica um espaço de exercício ficcional. Conceituado escritor de contos, a crônica definitivamente não é para ele apenas um rascunho, mas uma obra singular que pode vir a originar ou não um conto ou uma novela futuros, gêneros onde o estilo de escrita se assemelha. No primeiro capítulo do presente estudo, vimos a relação paradoxal que se estabelece no jornal impresso entre a crônica e o texto jornalístico, ainda que ambos possam ser considerados gêneros literários. É por isso que não é difícil distingüir na leitura de um jornal entre a reportagem e a crônica. Porque na última, o traço distintivo de que fala Rosenfeld – o caráter imaginário – se evidencia na realidade subjetiva do cronista, traduzida pela ficção. Enquanto ao repórter, cabe trazer a público a realidade objetiva que ele presenciou ou apurou sobre um determinado fato (ex: incêndio, queda de avião, corrupção nas esferas governamentais). Em outras palavras, de acordo com Sodré e Ferrari, a matéria do jornalismo é a realidade e a da literatura, a imaginação. “É preciso não perder de vista a diferença de projeto entre literatura e jornalismo: na primeira predomina o imaginário; no segundo, deve-se impor a realidade (histórica, atual) dos fatos narrados.” (1986, p.123) Mesmo uma crônica evidentemente autobiográfica, como, por exemplo, Primeira carta para além do muro – que traz à tona uma dolorosa experiência de internação hospitalar –, não se confunde em nenhum parágrafo com a narrativa jornalística. Porque é um estilo de texto que pressupõe subjetividade e, no caso, do autor em questão, o envolvimento do leitor. Vejamos um trecho: “Dói muito, mas eu não vou parar. A minha não-desistência é o que de melhor posso oferecer a você e a mim neste momento. Pois isso, saiba, isso 5 In A descoberta do mundo, 1999, p. 128 e 259. 47 que poderá me matar, eu sei, é a única coisa que poderá me salvar. Um dia entenderemos talvez.” (Abreu, 1996, p. 96) Sobre o texto ficcional, diz Anatol Rosenfeld: “Na obra de ficção, o raio da intenção detém-se nestes seres puramente intencionais, somente se referindo de um modo indireto – e isso nem em todos os casos – a qualquer tipo de realidade extraliterária. Já nas orações de outros escritos, por exemplo, de um historiador, químico, repórter etc., as objectualidades puramente intencionais não costumam ter por si só nenhum (ou pouco) “peso” ou “densidade”, uma vez que, na sua abstração ou esquematização maior ou menor, não tendem a conter em geral esquemas especialmente preparados de aspectos que solicitam o preenchimento concretizador.” (2002, p. 17) Esse preenchimento concretizador ao qual Rosenfeld se refere, o leitor de Caio F. Abreu experimenta por meio do tom naturalmente sugestivo do autor e também por meio do recurso explícito da elipse para compor um estilo. Cito um exemplo, também retirado da crônica Primeira carta para além do muro: “Disso que me aconteceu, lembro só de fragmentos tão descontínuos que. Que – não há nada depois desse que dos fragmentos – descontínuos.” (Abreu, 1996, p. 97) Clarice Lispector, forte influência de Caio F. Abreu, como veremos logo mais, também faz uso desse recurso, como, por exemplo, na metalingüística crônica Máquina escrevendo 6 , que começa assim: “Sinto que já cheguei quase à liberdade. A ponto de não precisar mais escrever. Se eu pudesse, deixava meu lugar nesta página em branco: cheio do 6 In A descoberta do mundo, p. 347. 48 maior silêncio. E cada um que olhasse o espaço em branco, o encheria com seus próprios desejos”. O uso de figuras de construção num texto já sinaliza ao leitor o terreno da crônica. Assim, podemos reconhecer na sintaxe um divisor de águas dentro do jornalismo. Enquanto o repórter deve abusar da clareza e prescindir dos recursos estilísticos, como metáforas e elipses, o cronista seduz nas entrelinhas, como afirma Flora Christina Bender: “O espaço em que acontece o fato analisado pelo cronista não fica no mundo real que nos rodeia. Mesmo quando há verdade inquestionável no que diz, as entrelinhas e as analogias é que interessam. A crônica é um gênero do disfarce e ajuda a agüentar com certa fantasia a vida e a realidade. Geralmente não é ficção pura, uma vez que a realidade está palpável nela, o coração de cada leitor está batendo forte, ao identificarse com as idéias do cronista.” (1993, p. 44) 2.4 Retrato de uma época As crônicas de Caio F. Abreu servem como parâmetro histórico do final da década de 80 e início dos anos 90. Sob o olhar e vivência do cronista estão tematizadas a decadência das metrópoles, a chegada do computador como ferramenta praticamente imprescindível do escritor e o difícil enfrentamento da Aids, num período ainda pré-coquetel anti-viral. Todos esses assuntos e outros mais são abordados por ele, de maneira intensa e subjetiva. No texto denominado Quase prefácio: um leve e duradouro amor, que fez para a coletânea Pequenas epifanias, Maria Adelaide Amaral afirma: “... Caio foi para o Caderno 2 e começou a escrever aquelas crônicas perturbadoras onde fixou todos nós, a época, o zeitgeist dos anos 80, o permanente e o passageiro, modas e eternidades”. (1996, p.9) 49 Vejamos um trecho da crônica Até que nem tão eletrônico assim, título que faz referência a um verso da canção Esotérico 7 , de Gilberto Gil (“até que nem tanto esotérico assim”): “Estou me sentindo o próprio Robocop. Pois não é que ganhei um microcomputador de presente? E desafiando o narrador alter ego de Onde andará Dulce Veiga?, que com certa arrogância ao mesmo tempo complexada e enfrentativa declara-se pré-informático, resolvi encarar a fera”. (Abreu, 1996, p. 114) Em Última carta para além dos muros (ver anexo 4), crônica de 1994 – no total, são três “cartas” seqüenciais, cujo muro, no título, é o do cemitério do Araçá, em São Paulo, que fica em frente ao Hospital Emílio Ribas, onde o autor esteve internado –, Caio F. Abreu resolve tornar pública a sua doença, a despeito do preconceito que ela suscitava – e, a bem da verdade, ainda suscita: “... Gosto sempre do mistério, mas gosto mais da verdade. E por achar que esta lhe é superior te escrevo agora assim, mais claramente. Não vejo nenhuma razão para esconder. Nem sinto culpa, vergonha ou medo. Voltei da Europa em junho me sentindo doente. Febres, suores, perda de peso, manchas na pele. Procurei um médico e, à revelia dele, fiz O Teste. Aquele. Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado: HIV positivo.” (Abreu, 1996, p. 102) Forte, direto, Caio F. Abreu se expõe ao leitor. Como já dissemos no Capítulo 1, não encontramos em suas crônicas muito humor, uma das principais características do gênero em questão. Seus textos são melancólicos, 7 In Um Banda Um, WEA, 1982 50 sugestivos e às vezes apresentam uma pitada de ironia, fazendo transparecer uma certa amargura interior, provocada pela constante sensação de impossibilidade: do amor, da vida. E esses temas e tom recorrentes o aproximam da prosa poética. Cito, como exemplo, a crônica Anotações insensatas. “Não muito confuso, assim confrontado com sua explícita incapacidade de lidar com. A palavra não vinha. Podia fazer mil coisas a seguir. Mas dentro de qualquer ação, dentes arreganhados, restaria aquela sua profunda incapacidade de lidar com. Um instante antes de bater outra, colocar uma velha Billie Holiday e sentar na máquina para escrever, ainda pensou: gosto tanto de você, baby.” (Abreu, 1996, p. 56) O tom íntimo e coloquial estabelecido com o leitor, uma das marcas de Caio F. Abreu, remete à concepção de narrador descrita por Walter Benjamin, na medida em que a crônica incorpora a oralidade que está presente no cotidiano. Assim, podemos ver o cronista como um herdeiro contemporâneo da figura do narrador. “...Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida.” (1986, p. 221) Um bom exemplo do que diz Benjamin está na crônica Anotações insensatas, em que Caio F. Abreu escreve: “Só que os escritores são seres muito cruéis, estão sempre matando a vida à procura de histórias. Você me ama pelo que me mata. E se apunhalo é porque é para você, para você que escrevo – e não entende nada.” (Abreu, 1996, p. 56) 51 2.5 A presença de Clarice O instigante em Caio F. Abreu é o despojamento em se entregar de corpo e alma a quem o lê. Talvez, um grande artifício do cronista na sedução dos leitores seja justamente o despudoramento do seu íntimo, a exposição intelectual e sentimental de sua personalidade. E o índice de leitura e a firme permanência da crônica no jornal indicam certamente que o leitor de crônica está em busca de confissões, de divertimento, de identificação sentimental em meio à massa cinzenta de letrinhas que compõe o noticiário cotidiano. Despojamento similar ao de Caio é também encontrado nas crônicas de Clarice Lispector, publicadas no Jornal do Brasil, no período de 1967 a 1973. Grande influência na obra de Caio F. Abreu, Lispector não negava certo desconforto naquela função: “Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica. E, além de ser neófita no assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma. Falei nisso com um amigo que me respondeu: mas escrever é um pouco vender a alma. É verdade. Mesmo quando não é por dinheiro, a gente se expõe muito. Embora uma amiga médica tenha discordado: argumentou que na sua profissão dá sua alma toda, e no entanto cobra dinheiro porque também precisa viver. Vendo, pois, para vocês com o maior prazer uma certa parte de minha alma – a parte de conversa de sábado.”(1999, p. 29) 52 Ao ser questionado 8 sobre a paixão pela literatura da escritora ucraniana, Caio F. Abreu respondeu: “Você sabe que me proibi de ler Clarice? Realmente ela me marcou muito, mas acho que existe muito mais influência de Drummond no sentido de uma visão de mundo assim desesperançada. Às vezes, acho que tenho mais influência de poesia do que prosa”. Numa outra entrevista, para o Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo, em dezembro de 1995, Caio F. Abreu reiterou a complicada relação com sua antecessora: “Seus livros me provocam a sensação de que tudo já foi escrito, de que nada há mais a dizer. Eu não suporto mais ler as ficções de Clarice. Claro que, às vezes, leio escondido de mim mesmo. Mas elas me perturbam muito”. Essa confissão angustiada do cronista acerca do peso de uma antecessora no seu processo criativo, sugere a força da influência dentro da tradição literária. Tal problemática foi teorizada pelo crítico norte-americano Harold Bloom no ensaio A angústia da influência (1973). Arthur Nestrovski, que traduziu o texto para o português, explica a expressão: “A angústia da influência é a sensação paralisadora que todo poeta tem do precursor; é a falência da imaginação quando o ‘Homem célebre’ de Machado de Assis se afasta do piano e confessa a si mesmo que sua inspiração era ‘apenas o eco de alguma peça alheia, que a memória repetia e ele supunha inventar.’” (1996, p. 110) No contexto latino-americano, entretanto, constatamos que os escritores incorporam as referências artísticas anteriores sem essa carga da influência angustiante e paralisadora. Assim, quem conhece as crônicas de Lispector as reconhecerá nas crônicas de Caio F. Abreu, pois ele as cita com freqüência, implícita e explicitamente, seja por meio do vocabulário, seja pela intertextualidade, como veremos mais adiante. 8 Entrevista reproduzida no site caio.itgo.com. 53 Ou seja, a influência aqui não tem “o peso negativo da falta de originalidade”, de que fala Cecília Salles. “Mário de Andrade acalma o amigo Carlos Drummond de Andrade, que se dizia angustiado diante da influência de Mário sobre ele. ‘Em última análise tudo é influência neste mundo. Cada individuo é fruto de alguma coisa’. E em seguida ele aponta um aspecto importante nessa discussão, que é a dificuldade de distinção entre essas ditas influências e a revelação do que somos: “muitas vezes um livro revela prá gente um lado nosso ainda desconhecido. Lado, tendência, processo de expressão, tudo. O livro não faz que apressar a apropriação do que é da gente”. (2005, inédito) E, ao se apropriar “do que é da gente”, surge um estilo singular. Como é o caso das crônicas de Caio F. Abreu. Se é nítido que ele e Clarice se assemelham no plano do conteúdo, ao travar uma relação íntima com o leitor e trazer à tona almas um tanto quanto atormentadas do ponto de vista existencial, ambos se diferem quanto à forma. No domínio da sintaxe, em que incorpora a linguagem do cotidiano, Caio F. Abreu trata de temas pesados de maneira suave, resultando ao nosso ver – e aqui sem nenhum juízo de valor – numa obra menos perturbadora que a de sua precursora. 2.6 Diálogos Outra presença assumida na literatura de Caio F. Abreu é a de Drummond, que se reflete no molde poético da prosa do cronista em questão. Sempre na primeira pessoa do singular, ela é sugestiva, insinuante, reveladora e dialoga com outros autores. Como resultado, percebemos a presença constante da intertextualidade que, segundo Perrone-Moisés só é possível num contexto de “abertura dialógica” por parte das obras dos autores citados. 54 “A primeira condição para a intertextualidade é que as obras se dêem como inacabadas, isto é, que elas permitam e solicitem um prosseguimento. Para Bakhtine, “inacabamento de princípio” e “abertura dialógica” são sinônimos. Com efeito, só pode haver diálogo se a primeira palavra se abrir e deixar lugar para uma outra palavra. ...A obra ‘acabada’ é a obra historicamente liquidada, aquela que não diz nada ao homem (ao escritor) de hoje, que não lhe permite dizer mais nada. A obra inacabada, pelo contrário, é a obra prospectiva que avança pelo presente e impele para o futuro.” (1993, p. 72 e 73) É preciso lembrar que são inúmeras as referências literárias (além de Lispector e Drummond, Hilda Hilst, Rubens Fonseca, Reinaldo Arenas, Susan Sontag, García Lorca), artísticas (Frida Kahlo, Camille Claudel), musicais (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Vinícius de Moraes), cinematográficas (Fellini), jornalísticas (Ignácio de Loyola Brandão, José Simão) e urbanas (São Paulo, Rio, Porto Alegre, Paris, Hamburgo), que compõem a literatura de Caio F. Abreu. Constantemente, ele trava diálogos com essas referências, sem jamais excluir o leitor. Para falar sobre o escritor cubano Reinaldo Arenas – Um uivo em memória de Reinaldo Arenas –, de quem se diz admirador, Caio F. Abreu recorre ao realismo mágico latino-americano: “Acordei ouvindo o ruído da máquina de escrever do escritório. Fui até o corredor, espiei. Em frente à janela, um homem moreno contemplava a tempestade enquanto escrevia. Parecia chorar. Estremeci, ele desapareceu. Tô pirando, pensei. E voltei a dormir”. (Abreu, 1996, p. 118) Caio F. Abreu também dialoga com outros companheiros de ofício, como Ignácio de Loyola Brandão em Reflexões de um fora-da-lei do Atrolho, para criticar a infra-estrutura, muitas vezes precária, da capital. 55 “E as embalagens? Há uma tampa de água mineral, que outro dia Ignácio de Loyola comentou aqui, capaz de estraçalhar dedos, unhas e cutículas. E as calçadas de São Paulo, também comentadas pelo mesmo Ignácio, um expert em atrolhos?” (Abreu, 1996, p.88) Esse diálogo muitas vezes se dá pela intertextualidade. A capacidade de Caio F. Abreu dialogar incessantemente com outros autores – se apropriando de palavras como voragem, por exemplo, que, como já vimos, pertence ao repertório de Lispector –, mas recriando-os, o coloca no meio deles. Segundo Perrone-Moisés: “A velha frase de La Bruyère: ‘Chegamos tarde e tudo já foi dito’ soará ela própria diferentemente. Tudo já foi dito (todas as palavras estão habitadas, dirá Bakhtine) mas tudo pode ser redito diferentemente. Assim como a própria frase de La Bruyère foi redita por Lautréamont: ‘Chegamos cedo, nada foi dito’. No seu significado e no seu significante, a paródia de Lautréamont é a exemplificação perfeita da prática da intertextualidade. Para o poeta nada está completamente dito, estamos sempre no amanhecer da linguagem e no despontar do sentido.” (1993, p. 63) Assim, encontramos também mitos, fábulas e histórias bíblicas no universo do cronista. Em Lição para pentear pensamentos matinais, ele escreve: “Pensamentos matinais, desgrenhados, são frágeis como cabelos finos demais que começam a cair. Você passa a mão, e ele já não está mais ali – o fio. No travesseiro sempre restam alguns, melhor não olhar para trás: vira-se estátua de cinza”. (Abreu, 1996, p. 81) Caio F. Abreu está se referindo ao episódio do Antigo Testamento em que uma mulher é transformada em estátua de sal, ao desobedecer a ordem 56 divina de não olhar para trás ao abandonar sua cidade junto com seus familiares. Para quebrar o tom, Caio “vezenquando”, como ele gosta de usar, surpreende o leitor com fábulas, como em O mistério do cavalo de Édipo, em que recria personagens da mitologia clássica num texto leve, quase uma brincadeira. “Édipo ia reagir quando chegou Perséfone: percebeu pelo excesso de perfume no ar. Sim, pensou, Perséfone tinha mesmo ficado meio tang demais depois de superada aquela horrível fase dark no Hades.” (Abreu, 1996, p. 33) A capacidade de fazer poesia em prosa – a la Drummond –, é visível na descrição de uma cena do cotidiano de um desencontro amoroso (As primeiras azaléias – ver anexo 2), que o escritor observa da janela de seu apartamento. Protagonizado por um casal de 20 e poucos anos em frente a uma loja de produtos para surf, na região dos Jardins, o quadro é observado pelo olhar aguçado do cronista que dialoga com a cidade e não deixa escapar um grupo de senhoras que surge de repente: “...São três e meia da tarde de domingo. Há uma garota chorando na calçada em frente ao meu apartamento. Faz frio. Um grupo de senhoras muito elegantes em suas peles e lãs sai do edifício ao lado. Mas não olham para o casal.” (Abreu, 1996, p. 57) Para falar da morte do poeta – de quem o verso “Mundo mundo vasto mundo/se eu me chamasse Raimundo/seria uma rima, não seria uma solução./Mundo mundo vasto mundo,/mais vasto é meu coração” 9 talvez resuma o espírito do cronista Caio F. Abreu, desesperançado por natureza – , 9 “Poema de sete faces.” In Andrade, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 2004. 57 escreve uma crônica em tom de fábula angelical (Carlos chega ao céu), com um olhar positivo sobre a morte, em que devaneia sobre os encontros ilustres – Cecília Meireles, Vinícius de Morais, Manuel Bandeira –, que Drummond terá no “céu”. “Carlos Drummond de Andrade desce e põe os pés no céu. ‘Não é que virei mesmo eterno?’ – comenta, olhando aquele nuvenzal todo. Então vê os três. Tanto tempo, pois é, tanto tempo, pensei que nem vinha mais. Cecília, você não mudou nada, e essa barriga, Poetinha? não toma jeito, curou a tosse, Bandeira?” (Abreu, 1996, p. 61) O diálogo com Clarice Lispector, quase que constante, reaparece na transformação do substantivo masculino “chinês” em adjetivo (61: verdade interior): “...Súbito, o céu escurece. ...Chinês você se concentra.” (Abreu, 1996, p. 63) Esse tipo de transformação gramatical, Lispector fez no conto Tentação 10 – citado por Caio F. Abreu na crônica Pequenas epifanias – ao “qualificar” um cão de cachorro: “...Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo. Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.” Aqui cabe a definição de intertextualidade, segundo Perrone-Moisés: 58 “‘Todo texto é absorção e transformação de uma multiplicidade de outros textos’, diz Kristeva, na esteira de Bakhtine. Entende-se por intertextualidade este trabalho constante de cada texto com relação aos outros, esse imenso e incessante diálogo entre obras que constitui a literatura. Cada obra surge como uma nova voz (ou um novo conjunto de vozes) que fará soar diferentemente as vozes anteriores, arrancandolhes novas entonações.”(p. 63) Talvez não seja exagero dizer que Caio F. Abreu é um escritor de alma atormentada e feminina. Tanto por sua identificação literária com Clarice Lispector, pela sua admiração a Hilda Hilst, mas também por seus temas, por saber descrever a mulher como faz em alguns contos (ex: Os sapatinhos vermelhos 11 ), ou por fazer de uma frase da escultora Camille Claudel 12 , uma crônica melancólica sobre a condição humana (Existe sempre alguma coisa ausente): “Que algo sempre nos falta – o que chamamos de Deus, o que chamamos de amor, saúde, dinheiro, esperança ou paz. Sentir sede, faz parte. E atormenta”. (Abreu, 1996, p. 90) 2.7 Temas A cidade como cenário das crônicas, seja aquela em que o autor vive – São Paulo –, seja a que habita quando escreve – Porto Alegre, Rio de Janeiro, Paris, Hamburgo, Londres – é constante. Ele apropria-se das cidades de diferentes maneiras. Como, por exemplo, na crônica As primeiras azaléias (ver anexo 2), que já mencionamos. 10 “Tentação.” In Lispector, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. In Fragmentos: 8 histórias e um conto inédito. Porto alegre, L&PM, 2002. 12 “Il y a toujours quelque chose d’absent qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta), frase impressa numa placa pendurada na casa em que a escultora viveu em Paris. 11 59 “... Não sei se por essa educação paulistana, meio londrina, onde a aparente frieza disfarça cumplicidade e respeito – ou mera indiferença, pode ser. Afinal que importância tem uma garota chorando e um rapaz de óculos às três e quarenta e cinco da tarde de um domingo?” (Abreu, 1996, p. 57) E também no texto Oito cidades alemãs e um Brasil, onde dá conta um pouco da cultura germânica ao ressaltar a rígida pontualidade do cotidiano local. “Não há tempo. Os trens jamais atrasam, implacáveis horários. Ser eficiente, milimétrico: 15 minutos para o banho, 20 para o breakfast, 10 para um telefonema, 20 para arrumar a mala, 10 para acertar as contas no hotel, mais 10 para chegar à estação com meia hora livre para o que chamo de ‘espaço de bobeira’.”. (Abreu, 1996, p. 108) Mas entre os diversos temas, prevalecem as dores da alma, enriquecidas por suas preferências intelectuais – como a música, que surge de antemão nas epígrafes em que recomenda que a leitura da crônica seja embalada por determinada canção; a literatura; e o cinema – e aprofundadas pelos desencontros amorosos e pela doença. Fazendo da solidão a espinha dorsal de sua narrativa, Caio F. Abreu transita pelos diversos aspectos da experiência humana – o amar, o adoecer, o viajar, o trabalhar, o habitar, o escrever, o sonhar, o conviver, o orar –, colocando no papel sentimentos “tão interiores que se escrevem ao mesmo tempo em que são sentidos, quase sem o que se chama de processo”, para citar Clarice 13 . E, assim, alça o leitor à condição de amigo e confidente. É por issso que crônicas de mais de uma década permanecem vivas, enquanto a sua “vizinha” notícia se torna no máximo um pedaço da história. 60 Pois, a despeito da qualidade literária do autor, estando no campo da ficção a crônica não passa pelas “mediações limitativas dos acontecimentos concretos”, de que fala Umberto Eco no ensaio A estrutura da consolação (2001, p.191). 2.8 Pequenas epifanias Publicada originalmente em 22 de abril de 1986, no “Caderno 2” do jornal O Estado de S. Paulo, Pequenas epifanias (ver anexo 1) é a nosso ver a crônica mais bem acabada de Caio F. Abreu. Nela, o autor mostra que sabe como poucos manejar as palavras produzindo um efeito encantatório que hipnotiza o leitor. Talvez, pelo tom sugestivo das palavras, tão bem escolhidas e colocadas, que parecem formar um mosaico epifânico. Roman Jakobson diz que a função mágica, encantatória, é sobretudo a conversão de uma “terceira pessoa” ausente ou inanimada – no caso, a outra pessoa – em destinatário de uma mensagem conativa. É nesse aspecto que se revela a qualidade poética do texto e também no enfoque da mensagem por ela própria – ao falar de pequenas epifanias, o texto se revela epifânico. Porque se fosse apenas mais um texto de amor, seria bonito. Mas também descartável. A poesia aqui presente nos toca de tal forma que o texto se torna necessário. “Era isso – aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.” (Abreu, 1996, p. 14). 13 Lispector, Clarice. Dois modos. In A descoberta do mundo. 61 A metáfora do desejo ganha aqui força de imagem. Imagem essa que é fruto da metaforização da metonímia presente na forma como o autor fala do seu objeto (a outra face). Fator intrínseco à linguagem poética, em que o enfraquecimento da relação signo-realidade, faz com que o próprio signo – o amor – fique em primeiro plano. Evidentemente, notamos também a presença no texto da função emotiva, que nas palavras de Jakobson: “...Visa a uma expressão direta da atitude de quem fala em relação àquilo de que está falando. Tende a suscitar a impressão de uma certa emoção, verdadeira ou simulada.” (1991, ps. 123 e 124) Para Leyla Perrone-Moisés, “a obra poética sempre foi a formalização de um conteúdo, que só existe e alcança o tipo de efeito que lhe é próprio naquela forma. E a repercussão de uma obra poética sobre a realidade é tanto mais eficaz, quanto mais esta for bem resolvida formalmente, quanto mais ela estiver bem cunhada numa forma que, como dizia Klee, ‘torna visível o real’”(1998, p. 88). Com certeza, somente no espaço delimitado pela crônica, Caio pôde dar o título de Pequenas epifanias para o texto que escreveu. Num espaço maior, essa característica poética – e metalingüística – perderia o efeito. Nessa crônica, ironicamente, o autor faz um desabafo ao leitor sobre uma história de amor que poderia ter acontecido, sem contar absolutamente nada sobre a outra face de quem ele fala, sobre o contexto temporal e físico em que aquelas duas pessoas se conheceram, ou seja, sem contar efetivamente muita coisa. Apesar disso, em nenhum momento o leitor sente que não é da confiança do autor, tamanho é o caráter intimista do texto. 62 Mesmo anunciando que vai falar de algo do passado que não aconteceu – "uma possibilidade de amor" –, Pequenas epifanias prende o leitor do começo ao fim. E o atrativo justamente é o fato de não ter acontecido, que gera no leitor uma curiosidade – por que será que não? Vale aqui um pensamento de Aristóteles, em sua teoria da representação poética: "Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; e, sim, o de representar o que podia acontecer, quer dizer, o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade." E, nessa crônica, mais do que nunca, Caio corporifica o que não aconteceu: “...E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face.” (Abreu, 1996, p. 15) De acordo com Jakobson, essa capacidade de conversão da mensagem em algo duradouro é uma propriedade inerente da poesia. “A capacidade de reiteração, imediata ou retardada, a reificação de uma mensagem poética e de seus constituintes, a conversão de uma mensagem em algo duradouro – tudo isto representa, de fato, uma propriedade inerente e efetiva da poesia.” (1991, p. 150) Também se nota no texto a presença da similaridade no uso constante de advérbios de modo (descuidadamente, rapidamente, inesperadamente) e de intensidade (suavemente), entre expressões vagas (possibilidade de amor, estar dentro daquilo era bom, dois ou três almoços, uns silêncios...), que ressaltam o tom poético e sugestivo da crônica. Jakobson explica: 63 “Em poesia, onde a similaridade se superpõe à contigüidade, toda metonímia é ligeiramente metafórica e toda metáfora tem um matiz metonímico.” (1991, p. 149) Por fim, Caio nos conta de um amigo seu que lhe falou sobre as pequenas epifanias. Ou seja, ele tenta nos seduzir por meio da mesma isca que o seduziu. Faz juz à afirmação de Leyla Perrone-Moisés, segundo a qual, os poetas são sedutores porque foram vítimas de uma sedução primeira. Sedução essa, exercida pela própria linguagem. 2.9 Procedimentos textuais A narrativa de Caio F. Abreu é repleta de elipses, como já foi mencionado – muitas vezes significando a interrupção do próprio pensamento –, sinestesia, dissimulação de gênero, gírias e neologismos, repetições enfáticas e polissíndetos. A presença do leitor é evidente, na maneira como escreve sempre se referindo a quem o lê, muitas vezes num tom epístolar, o que traz vivacidade ao texto. ELIPSE A omissão de um termo ou oração que fica subentendida nas entrelinhas, figura de construção denominada elipse, é um recurso estilístico recorrente de Caio F. Abreu. Em suas crônicas, há interrupções abruptas, que sugerem na escrita a descontinuidade do pensamento, como num trecho de Anotações insensatas: “...Não muito confuso, assim confrontado com sua explícita incapacidade de lidar com.” (Abreu, 1996, p.56) 64 Ao contar com o preenchimento e subentendimento do leitor, Caio F. Abreu estabelece uma relação de cumplicidade com quem o lê. Daí que a elipse é um procedimento impensável no texto jornalístico, como já vimos anteriormente na explicação de Anatol Rosenfeld sobre o texto ficcional. Freqüentes e explícitas no trabalho de Caio F. Abreu, elas surgem, entre outras, na crônica Lição para pentear pensamentos matinais: “...Não deveria sentir sono ao meio-dia, mas.” Neste contexto, explica em seguida: “...Pensamentos matinais são um abrupto mas com ponto final a seguir.” (Abreu, 1996, p. 81) De forma mais radical, vemos o recurso em Sugestões para atravessar agosto, em que o autor interrompe o texto, arrematando: “Mas para atravessar agosto, pensei agora, é preciso principalmente não se deter demais no tema. Mudar de assunto, digitar rápido o ponto final, sinto muito perdoe o mau jeito, assim, veja, bruto e seco:.” (Abreu, 1996 p. 159 e 160) SINESTESIA O tom sugestivo que permeia as crônicas de Caio F. Abreu se deve muitas vezes à fusão de impressões sensoriais, como na crônica Quando setembro vier (p. 28), em que ele usa as expressões “voz amorosa” e “voz quente”. Temos aí um exemplo da figura de linguagem conhecida como sinestesia, que transfere percepções da esfera de um sentido para a de outro, 65 resultando numa fusão de impressões sensoriais de grande poder sugestivo. Exemplifico: “Escrevi horas. Sem sentir, cheio de prazer. Quando pensava em parar, o telefone tocou. Então uma voz que eu não ouvia há muito tempo, tanto tempo que quase não a reconheci (mas como poderia esquecê-la?), uma voz amorosa falou meu nome, uma voz quente repetiu que sentia uma saudade enorme, uma falta insuportável, e que queria voltar, pediu, para irmos às ilhas gregas como tínhamos combinado naquela noite.” (Abreu, 1996, p. 29) DISSIMULAÇÃO DE GÊNERO Ainda nessa intenção de manter o tom sugestivo, Caio F. Abreu se refere ao ser amado de maneira ambígua. Provavelmente para não explicitar a sua homossexualidade, que, talvez, não fosse bem-recebida pelos leitores – principalmente de um jornal de linha mais conservadora como O Estado de S. Paulo –, ou simplesmente para não se expor. Assim, ele recorre a pronomes indefinidos (outra pessoa), pessoais (nós dois), ou de tratamento (você), sem especificar o gênero, como na crônica Por trás da vidraça. “...ainda que um de nós dois ou os dois tivéssemos realmente sonhado que um sonhava com o outro, também é pouco provável que falássemos sobre isso”. (Abreu, 1996, p. 69) Essa dissimulação de gênero, que aparece ainda em outras crônicas, não ocorre nos contos de Caio F. Abreu, onde a temática gay – ou queer – vem naturalmente à tona. Cabe aqui destacar que nos contos de Caio F. Abreu há mais humor do que nas crônicas e um humor característico que se expressa em um vocabulário próprio, como observa Ítalo Moriconi. 66 “Esse tipo de humor – humor bicha ou queer – com suas mascaradas dissociações de personalidade e travestimos fake, faz do texto um jogo vertiginoso de máscaras que se espelham. É próprio dessa modalidade de humor, a criação de códigos cômicos idiossincráticos, todo um vocabulário que Caio usava tanto nas cartas, como nas crônicas e ficções, inteiramente inventado por ele.” (Apud Denser, 2003, p. 121) GÍRIAS E NEOLOGISMOS A delicadeza que Caio F. Abreu imprime às suas crônicas, mesmo nas que tratam de temas densos, faz com que a eventual presença de gírias não soe vulgar. Pelo contrário, elas se tornam um recurso de estilo e não se confundem com a figura denominada Plebeísmo (uso de palavras e expressões vulgares, de termos de gíria), normalmente vetada na linguagem culta jornalística, por exemplo. Na crônica Uma história de fadas, por exemplo, o autor recorre a uma gíria do universo gay para se referir a algumas companhias: “O homem seguia sempre em frente. Meio de saia-justa, porque tinham dito para ele (uns amigos najas) que mesmo chegando ao País das Fadas elas podiam simplesmente não gostar dele.” (Abreu, 1996, p.72) O termo, por sinal, já havia sido apresentado ao leitor na crônica Deus é naja: “Naja ou não, Deus (ou o Diabo) guarde sua capacidade de rir descontroladamente de tudo. Eu às vezes, só às vezes, também consigo. Ultimamente, quase não.” (Abreu, 1996, p.25). Um neologismo, “atrolho”, aparece de vez em quando, como em Novas notícias de um jardim ao sul: 67 “Tem um narciso demoradíssimo que não sei se gorou, atrolhou ou estará ainda se preparando.” (Abreu, 1996, p. 143) Também usa mais de uma vez a expressão “vezenquando”, como na crônica Carta anônima (p. 78): “... Não tenho tido muito tempo ultimamente mas penso tanto em você que na hora de dormir vezenquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos.” (Abreu, 1996, p.80) REPETIÇÕES ENFÁTICAS No texto Por trás da vidraça, Caio F. Abreu experimenta e ousa, iniciando todos os parágrafos com a mesma frase: “Sonhei que você sonhava comigo...” (Abreu, 1996, p. 69). A crônica, assim, iniciada por versos, ganha um tom poético. Essa experimentação poética na prosa reaparece em Na terra do coração, em que começa todos os parágrafos – exceto o primeiro e o último – com as palavras “Meu coração” (Abreu, 1996, p. 75), fazendo delas o único elo de ligação entre os períodos. Encerra o texto concluindo: “meu coração teu”, comprovando a formulação experimental anunciada nas primeiras linhas. POLISSÍNDETO A repetição do conectivo coordenativo, figura de construção denominada Polissíndeto, é freqüente nos textos de Caio F. Abreu. No caso, com a intenção 68 de enfatizar sentimentos. Esse recurso estilístico aparece, entre outras, na crônica Aos deuses de tudo que existe: “Então eu agradeço, eu tenho medo e espanto e terror e ao mesmo tempo maravilhamento e outras coisas com e sem nome, mas agradeço”. (Abreu, 1996, p. 169) E também em O mergulho do príncipe bailarino, em que fala da morte do bailarino Rainer Viana, em 1995: “Como príncipe e artista, aquele queria sempre o mais belo. De tudo: pessoas e pedras e plantas e águas e estrelas e bichos”. (Abreu, 1996, p. 166) TOM EPÍSTOLAR Num tom de carta, dirigido a alguém, que ele denomina de “você”, o texto Carta anônima evidencia mais uma vez o estilo intimista de Caio F. Abreu, que revela sentimentos sem se expor, se dirigindo a uma terceira pessoa que pode ser o leitor ou alguém específico, por meio de uma prosa poética sedutora e ambígua. “Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito poder de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais.” (Abreu, 1996, p. 79) A proximidade que ele estabelece com o leitor, portanto, se dá pelo tratamento: 69 “Quando vocês estiverem lendo isto aqui, estarei viajando.” (Abreu, 1996, p. 155), avisa na crônica Paisagens em movimento. “... Amanhã à noite vou estar na Livraria Cultura, ali no Conjunto Nacional, Paulista com Augusta, coração de Sampa, autografando as minhas Ovelhas negras. ...Aparece lá”, convida em Autógrafos, manias, medos e enfermarias (Abreu, 1996, p. 152 – ver anexo 5). Em Deus é Naja, desabafa: “Porque também me acontece – como pode estar acontecendo a você que quem sabe me lê agora – de achar que tudo isso talvez não tenha a menor graça.” (Abreu, 1996, p. 25). Esse estilo solto e liberto de Caio F. Abreu o coloca no terreno da oralidade. Característica visível na informalidade com que se dirige ao leitor e que definitivamente afasta seus textos do jornalismo. Essa relação do cronista com a sintaxe coloquial é um dos temas do nosso próximo capítulo. 70 CAPÍTULO 3 TEXTURAS – ELEMENTOS DA CRÔNICA 71 Neste último capítulo, procuramos apresentar um apanhado das especificidades da crônica de Caio F. Abreu, em meio ao que é comum ao gênero. O intuito é o de revelar os ingredientes da crônica, pois, como já percebemos, é tarefa ingrata tentarmos encaixá-la numa única definição. 3.1 Oralidade na escrita Em artigo quinzenal na Folha de S. Paulo, o colunista Manuel da Costa Pinto 14 faz uma observação interessante ao comentar uma antologia de textos do escritor paraense Haroldo Maranhão: “Muitos estão a meio caminho entre o conto e a crônica, explorando aquele abismo, peculiar ao Brasil, que há entre as línguas escrita e falada.” (02/07/2005, p. E-2) De fato, tanto o conto quanto a crônica têm a possibilidade de trazer para a literatura a sintaxe coloquial, incorporando a linguagem oral, do dia-adia. No caso da crônica, essa característica, inclusive, seria um dos fatores do seu êxito como gênero do jornalismo literário brasileiro, de acordo com Antonio Candido. “O seu grande prestígio atual é um bom sintoma do processo de busca de oralidade na escrita, isto é, de quebra do artifício e aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo. E isto é humanização da melhor.” (1980, p. 8) Ao incorporar a oralidade na escrita, a crônica recupera a agilidade do jornal, enquanto veículo de comunicação de massa, sendo como que um instantâneo – colorido, no sentido de que traz emoções ao texto, em contraste com o grosso das reportagens – do cotidiano. 14 O sinistro e seus duplos, Folha de S. Paulo (Caderno Ilustrada) Ao mesmo tempo em que 72 ressalta, através da sintaxe e da liberdade temática, o seu distanciamento do jornal. Pois, como diz o escritor e cronista Luis Fernando Verissimo 15 : “Tem vezes em que sento ali, sem idéia nenhuma, e invento uma história. Isso a crônica tem de bom. Ela pode ser o que a gente quiser que ela seja. Pode ser até uma ficção, um conto, uma coisa meio experimental, um exercício de estilo. Pode ser um comentário político, sobre futebol. O que quiser e sempre continua sendo crônica”. (2005, p. 12) Verissimo, em sua declaração, reitera o que já vimos nos capítulos anteriores sobre a diversidade que a crônica propicia como gênero. Retomando a questão da oralidade, percebemos que no texto, esse tipo de opção facilita a relação com o leitor, abrindo canais de comunicação entre ele e o cronista por meio da palavra. Isso se dá, segundo Antonio Candido, porque a crônica: “... ensina a conviver intimamente com a palavra, fazendo que ela não se dissolva de todo ou depressa demais no contexto, mas ganhe relevo, permitindo que o leitor a sinta na força dos seus valores próprios.” (1980, p. 6) Obviamente que o cronista ao adotar a sintaxe oral-coloquial está pensando no seu receptor. Segundo Cecília Salles, essa relação comunicativa é intrínseca ao ato criativo. “Está inserido em todo processo criativo o desejo de ser lido, escutado, visto ou assistido. Essa relação é descrita de diferentes maneiras: complementação, cumplicidade, jogo, alvo de intenções, associação, soberania do receptor e possível mercado.” (2001, p. 48) 15 Entrevista para a Revista E, do Sesc-SP, edição de julho de 2005. 73 Esse impulso oral-coloquial está presente nas crônicas de Caio F. Abreu, num estilo composto por pormenores excessivos e repertório variado, como veremos adiante. 3.2 Tom intimista Nas crônicas apreciadas no presente estudo, predominam alguns temas, que muitas vezes se mesclam no mesmo texto. Vejamos: • A solidão • O amor • A Aids • As cidades • A morte • A literatura • A música • O prazer da jardinagem • A fé São temas que ressaltam o estilo intimista de Caio F. Abreu, resultando muitas vezes em sugestivas crônicas autobiográficas que, paradoxalmente, não revelam muito da vida do autor. É o caso de Ao momento presente: “...Escolha um fundo musical adequado – quem sabe, Mozart, se quiser uma ilusão de dignidade”. (Abreu, 1996, p. 45) E Agostos por dentro: 74 “Devo ter suspirado ou movido um pouco a cabeça para receber melhor no rosto a brisa com cheiro de algas, ou feito qualquer outro desses gestos típicos de quando se quer mudar de parágrafo por dentro, compreendem?” (Abreu, 1996, p. 161) 3.3 A presença da cidade A desilusão com a cidade de São Paulo (Reflexões de um fora-da-lei do Atrolho), com a política (Hamburgo, 11 de outubro de 1994; Delírios do puro ódio) e com a própria vida é um tema freqüente (Quando setembro vier). Nessas crônicas, Caio F. Abreu faz um lamento ao leitor, numa tentativa de compartilhar a sua decepção com tais assuntos, ressaltando o caráter intimista de suas crônicas. O seu lamento é real, verdadeiro, não é fictício. O que contribui para seu alcance receptivo, ainda que não sejam tão leves quanto o gênero costuma ser. Antonio Candido, inclusive, se refere à crônica como “peças leves”. “...Por serem leves e accessíveis talvez elas comuniquem mais do que um estudo intencional a visão humana do homem na sua vida de todo o dia.” (1980, p. 11) Por outro lado, na ficção de Caio F. abreu, acontece o mesmo entrelaçamento da cidade com a intimidade do autor. É uma tensão bem resolvida, como no conto Anotações sobre um amor urbano: “Pensei em você. Eram exatamente três da tarde quando pensei em você. Sei porque sacudi a cabeça como se você fosse uma tontura dentro dela e olhei o digital no meio da avenida. Corre, corre. O número do telefone dissolvendo-se em tinta na palma da mão suada. Ah, no fim destes dias crispados de início de primavera, entre os engarrafamentos de trânsito, as 75 pessoas enlouquecidas e a paranóia à solta pela cidade, no fim destes dias encontrar você que me sorri, que me abre os braços, que me abençoa e passa a mão na minha cara marcada, no que resta de cabelos na minha cabeça confusa, que me olha no olho e me permite mergulhar no fundo quente da curva do teu ombro.” (Abreu, 2005, p. 157) Pelo estilo de Caio F. Abreu como contista, percebemos que ele leva as questões da ficção para o jornal, já que no pequeno exemplo acima é possível identificar o estilo do cronista, bem como do jornal para a ficção – quando ressalta o encontro amoroso em meio aos engarrafamentos de trânsito (reais) e à paranóia da cidade (olhar jornalístico). Quer dizer, ele incorpora o cotidiano em suas narrativas. Em outra crônica urbana, Para ler ao som de Vinícius de Moraes, Caio F. Abreu recomenda, já no título, que o leitor ouça Vinícius para “encarar” a deterioração da cidade do Rio de Janeiro, da qual fala num texto extremamente atual. O curioso – e compreensível (Caio já sabia que estava com Aids) – é o uso de expressões do ambiente médico-hospitalar – tais como doença fatal, câncer, amigo em fase terminal – para se referir à situação sócio-econômica da capital fluminense. “Irremediável – eu sei que é uma palavra terrível, mas é a que me vem quando comparo aquele Rio a este de agora, e isso me dói tanto quanto uma doença fatal –irremediável irremediável repito sem vírgula sentindo saudade prévia do Rio como de um amigo em fase terminal. (Abreu, 1996, p. 112) Mais uma vez, ele traz a metáfora, figura do universo ficcional, para dentro do jornal, demonstrando ser um autor cujo texto é permeável, híbrido, assim como o próprio gênero em questão, como já vimos no primeiro capítulo desse estudo. 76 3.4 Relação com a ficção Conhecendo as crônicas de Caio Fernando Abreu, a leitura de seus contos se torna bastante familiar. A começar pelo estilo, mas também pelas referências e pelo uso que faz da linguagem. Talvez por ser seu último livro – que, ele, aliás, não teve tempo de concluir – Estranhos estrangeiros é onde se evidencia as referências presentes nas crônicas. Frida Kahlo, Camile Claudel e Claire Cayron, sua tradutora e amiga francesa, por exemplo, citadas em crônicas, aparecem também nos contos em epígrafes e dedicatórias. No que se refere à linguagem, mesmo em outro terreno, o qual o escritor também domina, as vírgulas desaparecem em alguns períodos, ao mesmo tempo em que reaparecem as elipses, confirmando o seu tom ousado e experimentador, como quando recomeça uma história a cada parágrafo. Ou quando faz poesia em prosa, caso de Bem longe de Marienbad, por sinal, dedicado, entre outros, a Claire Cayron: “E vou voltando atrás, rastros, eu atravesso a sala, pistas, eu vejo o tampo negro da mesa sob a janela, manchas, eu entro no escritório, sinais, eu me aproximo da mesa, indícios, eu vejo, a pasta roxa sobre a mesa, vestígios: eu sei que todas essas coisas estão dentro dela. O mapa, dentro da pasta roxa”. (Abreu, 2002, p. 34) Como contista, Caio F. Abreu se expõe mais ao trazer à tona a temática da homossexualidade. Talvez porque ele se resguarde na figura do narrador. E se nos contos como na crônica, a metrópole, a vida cosmopolita é o cenário, paradoxalmente, os personagens vivem enclausurados psicologicamente, na linha “entre quatro paredes”. O mundo deles é restrito, distanciado da cidade que habitam, são personagens claustrofóbicos. 77 3.5 Autor: protagonista Nas crônicas, o próprio autor é o protagonista. O cronista se expõe sem que isso signifique que ele seja sempre biográfico. Em Caio F. Abreu, o caráter testemunhal surge mais explicitamente a partir do momento em que ele assume publicamente através de uma crônica (Última carta para além dos muros) que é portador do vírus da Aids. As crônicas então se interiorizam ainda mais e, quando o tema é inevitável, se tornam crônicas da morte anunciada, para citar Garcia Márquez. 16 No cerne da experiência, Caio F. Abreu volta a falar de anjos ao registrar os amigos, conhecidos, artistas e personalidades do meio artístico que faleceram, vítimas da grave enfermidade, como em Segunda carta para além dos muros: “Tantos, meu Deus, os que se foram. Acordo com a voz safada de Cazuza repetindo em minha orelha fria: ‘Quem tem um sonho não dança, meu amor’.” (Abreu, 1996, p. 100). Na referida crônica, o afeto (dos outros) se materializa na expressão “desnecessidade amorosa de evidenciar amor” (Abreu, 1996, p. 99), quando ele se refere aos amigos que ainda não foram lhe visitar no hospital. Consciente de seu limite em relação ao pesado tema e talvez receoso de afugentar o leitor, abre a crônica O ciclo seco ataca outra vez avisando: “O ciclo seco voltou. Desta vez nem tão seco assim, já que acompanhado por febres, suores abundantes, terror generalizado e, se não generalizado, tão particularizado que num segundo parágrafo não restariam leitores.” (Abreu, 1996, p. 137). 16 García Márquez, Gabriel. Crônica de uma morte anunciada. Record. Rio de Janeiro: 1981. 78 Cabe aqui uma consideração de Umberto Eco a respeito do romance popular, tirada do ensaio A estrutura da consolação, ainda que o nosso foco não seja o romance, mas a crônica, um gênero também popular. “... Do ponto de vista dos princípios morais dos leitores, atingiram-se os limites. Um passo a mais seria intolerável.” (2001, p. 199) Nesse contexto, a metáfora se torna uma ferramenta importante para Caio F. Abreu poder escrever sobre o que sente sem provocar o afastamento do receptor. Assim, ele usa a expressão “enfermarias afetivas” na crônica Autógrafos, manias, medos e enfermarias (ver anexo 5), para designar o improvável encontro de pessoas do seu círculo afetivo (familiares, amigos, amantes, vizinhos, dentista, analista, leitores), que uma noite de autógrafos propicia: “Lançamento mistura enfermarias afetivas que de outra forma não se misturariam jamais – imagine reunir numa noite mãe, tias, psicanalista, colegas de trabalho, dentista, antigos professores, amantes ex ou não, vizinhos de apartamento, amigos de infância desaparecidos há 30 anos etc. O liqüidificador emocional é intensíssimo.” (Abreu, 1996, p. 153) A crônica acima é um exemplo da especificidade do estilo de Caio F. Abreu, que o distingüe entre os colegas. É a presença recorrente em seus textos do alinhamento de elementos díspares, em tom poético que vai num crescendo, compondo uma lista díspar, cujo intuito é armazenar um repertório variado para adquirir sentido. Vejamos outro trecho, no qual sublinho tais elementos: 79 “... Em noite de autógrafos, emoções à parte, quem menos se diverte é o próprio escritor. Além dos turbilhões íntimos, precisa maquinar dedicatórias estonteantes, ser simpaticíssimo e lutar contra o impulso de sair correndo e gritando ‘me tira daqui!’” (Abreu, 1996, p. 153). Mesmo quando não faz a crônica sobre a doença que o acomete, transfere o tema para as coisas do dia-a-dia, principalmente para o jardim da casa dos pais (SOS para um jardim no inverno; Aos Deuses de tudo que existe), influenciando inevitavelmente o seu repertório, mas sem perder a leveza característica do gênero e a fina ironia, a despeito do tom melancólico, como na crônica Até que nem tão eletrônico assim: “... Estava na cidade e trouxera este AST (a semelhança com AZT será mera coincidência, suponho, ou haverá micros positivos?) 486SX/33, mais uma impressora, Canon BJ-200, siglas e números misteriosíssimos até hoje. Medo: adiei a instalação, viajei, voltei, fugi, neguei.” (Abreu, 1996, p. 114, 115). Admite, no entanto, que os sintomas gerados pelo vírus (Delírios do puro ódio), como uma tosse crônica que escreve com “t” maiúsculo, são inevitáveis até na própria temática, caso da crônica Para uma companheira inseparável: “A Tosse, eu a chamo, assim mesmo, com maiúsculas merecidas, pois já dura uns quatro meses e não tem nada, absolutamente nada que a cure. ...Prometo ser forte. Prometo mesmo? Não garanto, a verdade é que nas últimas semanas não tenho conseguido. Vejam só, por exemplo, o assunto que arrumei para a crônica de hoje.” (Abreu, 1996, ps. 163 e 164). A fina ironia, entretanto, desaparece aqui e ali, quando o fantasma da Aids ressurge com força, como na crônica O desejo mergulha na luz, arrepiante 80 texto sobre a morte de um amigo, em que termina citando o poeta João Cabral de Mello Neto: “Sei que não haverá postais, mas outra vez desejo boa viagem a Desiderio Fernando Fernandes Severino, com seu sonoro nome de Espanha no centro, Itália no início e morte e vida no fim. Fim? Ora...” (Abreu, 1996, p. 148 e 149). A dor física que o domina é elaborada literariamente na descrição do martírio vivido pela pintora mexicana Frida Kahlo, que sempre suportou graves problemas de sáude, na crônica Frida Kahlo, o martírio da beleza: “Seguro sua mão imaginária no escuro do quarto e sei que seja qual for a dimensão da minha própria dor, não será jamais maior que a dela. Por isso mesmo, eu o suportarei. Como ela, em sua homenagem, Frida.” (Abreu, 1996, p. 176). Caio F. Abreu também aproveita o espaço assinado para, em 1987, sete anos antes de contrair o vírus, se manifestar politicamente, a favor dos homossexuais e contra o preconceito que os cerca, acirrado pelo surgimento da Aids. É o caso da crônica A mais justa das saias, da qual reproduzo um trecho: “Heteros ou homos a médio prazo iremos todos enlouquecer, se passarmos a ver no outro uma possibilidade de morte. Tem muita gente contaminada pela mais grave manifestação do vírus – a Aids psicológica. Do corpo, você sabe, tomados certos cuidados, o vírus pode ser mantido a distância. E da mente?” (Abreu, 1996, p. 49) 81 3.6 Realidade com uma dose de poesia Ao protagonizar a sua própria história de portador de uma doença, Caio F. Abreu vai revelando ao leitor aspectos de seu dia-a-dia deixando de lado o tom testemunhal para dar um tom poético à própria realidade. A pitada poética é uma propriedade da crônica moderna, da qual Caio F. Abreu foi um aplicado praticante. Para Antonio Candido, o tempero poético demonstra o alcance estético deste “produto sui generis do jornalismo literário brasileiro”. “Creio que a fórmula moderna, onde entra um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma.” (1980, p. 7) O lirismo nas crônicas de Caio F. Abreu se acentua quando ele se depara – e se deixa seduzir – com o jardim da casa materna em Porto Alegre, cidade em que volta a viver em função dos cuidados exigidos pela enfermidade. Assim, o leitor é informado, de forma suave, leve, da nova realidade do cronista. Em Breves memórias de um jardineiro cruel, ele confessa: “Cá entre nós, estou ficando tão sabido nessas artes que ando pensando em substituir o crédito 'escritor e jornalista' por ‘escritor e jardineiro’. Parece chiquérrimo, não?” (Abreu, 1996, p. 122). Caio F. Abreu também comete – e reconhece bem-humorado – uma “heresia” jornalística ao encerrar e justificar a primeira frase de uma crônica (SOS para um jardim no inverno) com ponto de exclamação: 82 “Socorro, o inverno está assassinando o jardim! O susto é tanto que até ponto de exclamação usei.” (Abreu, 1996, p. 150). O medo da morte é mascarado na desilusão com a vida, ou metaforizado através das flores, como em A morte dos girassóis: “...depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu? Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.” (Abreu, 1996, p. 136). O sentimento da morte à espreita é de arrepiar e sensibilizar o leitor, como em Agostos por dentro: “Desde então, tenho uns agostos por dentro, umas febres. Uma tristeza que nada nem ninguém conserta. É assim que se começa a partir?” (Abreu, 1996, p. 162). O peso real da doença é amenizado pela vida de um escritor que viaja, participa de palestras e discute a própria literatura, ainda que às vezes de forma um pouco amarga, ressaltando a sua visão pessimista de mundo. Em Primeira carta para além do muro, por exemplo, desabafa: “É com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é mais apenas uma maneira literária de dizer que escrever significa mexer com funduras – como Clarice, feito Pessoa.” (Abreu, 1996, p. 96) Paradoxalmente, é com otimismo que Caio F. Abreu conta ao leitor sobre o reconhecimento da produção literária brasileira no exterior (Oito 83 cidades alemãs e um Brasil) – e, especialmente, da sua –, por meio de suas viagens à Europa como escritor consagrado (Um uivo em memória de Reinaldo Arenas), e traduzido (A fúria dos jovens e a paz dos velhos), e de sua atividade como tradutor 17 (O desejo mergulha na luz). A reflexão sobre a literatura ganha mais espaço quando ele fala sobre morar em Porto Alegre (A cidade dos entretons). Faz referências a Drummond, Érico Veríssimo e até ao singular cronista da Folha de S. Paulo, José Simão, num texto de 1995, que permanece novo: “...Também é machista demais, e isso eu não suporto. Minha vingança involuntária e terrível é que, literalmente traduzido para o inglês, Porto Alegre vira Gay port. Rárárá, como diria o Zé Simão” (Abreu, 1996, p. 130). Ao abordar a sua turnê literária pela Alemanha, em Oito cidades alemãs e um Brasil, traz ao conhecimento do leitor o interesse que os alemães têm pelo Brasil: “E ser escritor brasileiro em outro país é uma saia-justa que exige muita compenetração. Afinal, ele não é apenas ele mesmo, mas a encarnação de toda a literatura e do próprio Brasil. Que, acreditem, os alemães amam e querem compreender.” (Abreu, 1996, p. 109) O computador é outro aspecto do cotidiano do cronista que o faz refletir sobre o próprio ofício, como em Até que nem tão eletrônico assim: “Até que ponto o método de executar a escrita modifica a ‘alma’ da escrita? Cartas para a redação” (Abreu, 1996, p. 115). 17 Assim vivemos agora. Susan Sontag. Companhia das Letras; trad. Caio Fernando Abreu. 84 Na romântica crônica A fúria dos jovens e a paz dos velhos, narra a visita a uma tradutora francesa de autores latino-americanos, que mora em uma cabana na região de Perigord: “O crepúsculo lentíssimo de abril desce atrás dos vidros, ouvimos Chico Buarque e espiamos as corças que às vezes saem do bosque, sempre nessa hora, para chegar perto da casa. Como se confiassem em nós, humanos medonhos. Pode ser tão doce a França, sabia?” (Abreu, 1996, p.93). A música, em Caio F. Abreu, não é apenas fonte de inspiração e referência. É um ingrediente sensorial de algumas de suas crônicas e também dos contos, que ele recomenda para transmitir sensações ao leitor. Na novela Pela noite, por exemplo, ele sugere a música Years of solitude, de Astor Piazzolla e Gerry Mulligan, como “trilha sonora”. Na crônica Pálpebras de neblina (ver anexo 3), que já no nome cita a canção de Caetano – Giulietta Masina – sugerida para a leitura, faz um, digamos, cross media (e isso em 1987), ao juntar no mesmo texto música e cinema – a italiana Giulietta Masina foi mulher e principal atriz de Federico Fellini (1920-1991), e na referida música é homenageada pelo papel de prostituta que interpretou no filme As noites de Cabíria (1957) – para descrever a impressão de dor que lhe causou a visão de uma prostituta chorando, encostada na porta de um bar da rua Augusta: “...Era uma dor sujinha como lençol usado por um mês, sem lavar, pobrinha como buraco na sola do sapato. Furo na meia, dente cariado. Dor sem glamour, de gente habitando aquela camada casca grossa da vida. Sem o recurso dessas benditas levezas nossas de cada dia – uma dúzia de rosas, uma música de Caetano, uma caixa de figos. (Abreu, 1996, p. 67)”. 85 A mesma crônica termina com uma frase saída de outra bela canção de Caetano, Cajuína 18 , citada pelo próprio compositor na canção Giulietta Masina: “...a que será que se destina? (Abreu, 1996, p. 68)”. Curiosamente, a fé em Deus – e nos orixás da umbanda –, às vezes simbolizado na figura de um anjo redentor (Se um brasileiro num dia de dezembro; Aos Deuses de tudo que existe), surge nas crônicas como contraponto a um escritor naturalmente cético. É o que vemos em As nuvens, como já dizia Baudelaire: “De repente observei: certa nuvem não se mexia. Apenas uma. Parada, branca, enorme, eu olhei desconfiado. E tinha uma forma inconfundível, qualquer criança veria. Desviei os olhos, falei sem parar, as outras nuvens continuavam a esfiapar-se. Aquela, não. Então, com muito cuidado eu disse: ‘Déa olha lá aquela nuvem.’ Ela olhou. E disse: ‘Meu Deus, é um anjo.’” (Abreu, 1996, p. 124) Nos exemplos citados, procuramos captar o universo das crônicas de Caio F. Abreu, cronista que, ao elaborar literariamente os aspectos do cotidiano, talvez o principal signo da crônica, acaba por traduzir a própria vida. De caráter altamente poético, suas crônicas o inserem na tradição do jornalismo literário brasileiro. 18 Giulietta Masina (Caetano Veloso): Caetano, 1987; Cajuína (Caetano Veloso): Cinema Transcendental. 86 CONCLUSÃO A pesquisa aqui desenvolvida leva-nos a conclusões que nos aproximam do gênero, mas não o definem. E essa já seria a primeira descoberta: não é possível definir a crônica, já que o gênero escapa a claras delimitações. Essa característica peculiar desse gênero ambíguo por natureza, nascido nos jornais e amadurecido nos livros, não deve ser vista, entretanto, como uma excentricidade típica dos trópicos, só por ser a crônica fruto da tradição da ruptura latino-americana. Recorro aqui a Jesús Martín-Barbero, um dos teóricos da comunicação empenhado em recusar rótulos “pejorativos” ao modo de ser latino-americano. “ ... a América Latina não deve ser vista como lugar onde se conservam práticas de comunicação diferentes (ou seja, exóticas), mas sim como um lugar em que pensamos diferentemente as transformações que atravessam as práticas e as técnicas de comunicação.” (2004, p. 27) Nesse sentido, devemos ver a crônica como uma marca original da imprensa brasileira, ou melhor, no dizer de Antonio Candido, como “produto sui generis do jornalismo literário Brasileiro”. Produto este que se renova a cada dia, com o surgimento de novos praticantes, sendo um espaço orgânico dos veículos impressos e até eletrônicos – atualmente, há cronistas em atividade no rádio e na TV, como é o caso do jornalista Rodolfo Konder na rádio Cultura e do cineasta Arnaldo Jabor na rádio CBN e na TV Globo. Leveza, crítica, humor ou fina ironia, flagrantes do cotidiano. Esses são elementos-chave da crônica, que não são suficientes, entretanto, para fazer o estilo de um cronista. Tendo que chamar a atenção para o próprio texto, em meio à sucessão de notícias do dia-a-dia, o cronista recorre a inevitáveis artimanhas – literárias 87 ou jornalísticas, já que estamos falando de um gênero híbrido – para demarcar o espaço assinado que ocupa. No caso de Caio Fernando Abreu, o seu ardil, digamos, é a cumplicidade que estabelece com o leitor por meio, principalmente, do tom intimista. Ao mesmo tempo, o estilo poético predominante alardeia a sua singularidade dentro do jornal. O resultado, ao nosso ver, é que a leitura de suas crônicas provoca a sensação de que encontramos um velho conhecido, especialmente disposto a nos distrair da solidão inerente à leitura. 88 BIBLIOGRAFIA ABREU, Caio Fernando. Pequenas epifanias. Porto Alegre, Sulina, 1996. ____________________Fragmentos: 8 histórias e um conto inédito. Porto Alegre, L&PM, 2002. ____________________Estranhos estrangeiros e Pela noite. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. ____________________Caio 3D: O essencial da década de 1970. Rio de Janeiro, Agir, 2005. AMÂNCIO, Moacir. Cronistas do Estadão. São Paulo, O Estado de S. Paulo, 1991. AMARAL, Maria Adelaide. “Quase prefácio – um leve e duradouro amor”, em ABREU, Caio Fernando. Pequenas epifanias. Porto Alegre, Sulina, 1996. ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro, Record, 2004. ASSIS, Machado de. Melhores crônicas. São Paulo, Global, 2003. BENDER, Flora Christina e LAURITO, Ilka. Crônica – história, teoria e prática. 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Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer – eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal – não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos. Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mau me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas. 19 O Estado de S. Paulo, 22/04/86. 93 Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector – Tentação – na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece. De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou – descuidado, também – em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia. Era isso – aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria. Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso 94 tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome. 95 ANEXO 2 As primeiras azaléias 20 Caio Fernando Abreu Sentado à escrivaninha, de frente para a janela, estou vendo uma cena. Dia cinza. Atrás do vidro da janela, estou vendo uma cena. Há um casal parado na calçada em frente. São muito jovens. Ele deve ter no máximo 25 anos, ela pouco menos. Estão bem vestidos, devem pertencer a alguma boa família dos Jardins. Não expio nada. Estou apenas sentado aqui, onde costumo sentar para escrever. A cena acontece no meu campo de visão, só poderia evitá-la saindo daqui. Mas quero ver. Sobem devagar a ladeira. De repente param na frente da lojinha de surf. Ele encosta no muro. Usa óculos, tem as mãos nos bolsos. Ela fica andando pela calçada em frente à casinha azul, sob o letreiro “Waimea”, com arabescos que tanto podem lembrar ondas quanto gaivotas. Começo a prestar atenção no momento em que percebo: a garota está chorando. Ela chora e fala e gesticula muito enquanto chora. São três e meia da tarde de domingo. Há uma garota chorando na calçada em frente ao meu apartamento. Faz frio. Um grupo de senhoras muito elegantes em suas peles e lãs sai do edifício ao lado. Mas não olham para o casal. Não sei se por essa educação paulistana, meio londrina, onde a aparente frieza disfarça cumplicidade e respeito – ou mera indiferença, pode ser. Afinal que importância tem uma garota chorando e um rapaz de óculos às três e quarenta e cinco da tarde de um domingo? O rapaz agora caminha até um carro estacionado no meio-fio. Está de costas para mim. Tira as mãos do bolso. A garota tira o casaco – um casaco de jeans, forrado de pêlo de carneiro. Chega mais perto dele. Às vezes, ele ergue 20 O Estado de S. Paulo, 13/05/87. 96 o rosto para o céu cinza. Há muita dor no rosto que ela ergue para o céu cinza. Ela tem o cabelo liso, comprido, castanho-claro, uma mecha mais loura do lado esquerdo. Ele tem o cabelo preto, bem curto. Ela chega mais perto dele. Ele tira os óculos, começa a limpar as lentes na barra do suéter. Às vezes ficam parados. Quando ficam parados assim enquadrados pela moldura da minha janela, parecem uma fotografia. À esquerda esse edifício construído de perfil, com a pequena alameda que leva do portão de ferro até a portaria, muitas árvores e uma meia dúzia de azaléias bordôs (das primeiras desta temporada). À esquerda, a lojinha de surf, toda azul, com um grafite ao lado da porta: o rosto que Alex Vallauri tinha. No centro, o carro onde está encostado o rapaz vestido em tons de cinza e a garota vestida em tons de azul. Quase quatro da tarde, só há cor nas azaléias e na fachada da lojinha de artigos de surf. Ela ronda em volta dele, falando sem parar, chegando cada vez mais perto. Eu acendo um cigarro. Ela o abraça. Ele não se move, nem descruza os braços. Ele não se move enquanto ela o abraça cada vez mais forte. Ela começa a beijá-lo. Ele não recusa, apenas vira delicadamente o rosto para o lado onde a rua desce. Assim, ela só consegue beijá-lo no pescoço e na face. Na boca, não. Ela só pára de beijá-lo para afastar os cabelos do rosto e, de vez em quando, olhar o céu cinza. Agora, ela afasta o rosto e fica abraçada nele. Da minha janela posso ver os braços dela cruzados às costas dele. Ele voltou a colocar as mãos nos bolsos. De repente, ela o toma pelo braço e começa a puxá-lo para cima, para onde a ladeira sobe. Ele caminha olhando para o chão. Ela joga o casaco nas costas, afasta os cabelos, levanta o rosto. Parece decidida. Eles começam a subir a ladeira. Até sumirem do quadrado da janela. Certamente, da minha vida também. São quatro horas e cinco minutos. Não acontece mais cena alguma do lado de fora da minha janela. Talvez tome mais um café, fume outro cigarro, 97 qualquer coisa assim. Foi exatamente há um ano, na lua cheia de maio. Depois, nunca mais. Por onde você tem andado, baby? 98 ANEXO 3 Pálpebras de neblina 21 Caio Fernando Abreu Fim de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindo muito triste. Você pode dizer que isso tem sido freqüente demais, até mesmo um pouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muito triste? Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos de catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? e trabalho, amor, moradia? o que vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai acontecer acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus dará. Essas coisas meio piegas, meio burras, eu vinha pensando naquele dia. Resolvi andar. Andar e olhar. Sem pensar, só olhar: caras, fachadas, vitrinas, automóveis, nuvens, anjos bandidos, fadas piradas, descargas de monóxido de carbono. Da praça Roosevelt, fui subindo pela Augusta, enquanto lembrava uns versos de Cecília Meireles, dos Cânticos: “Não digas: ‘Eu sofro’. Que é que dentro de ti és tu?/ Que foi que te ensinaram/ que era sofrer?” Mas não conseguia parar. Surdo a qualquer zen-budismo, o coração doía sintonizado com o espinho. Melodrama: nem amor, nem trabalho, nem família, quem sabe nem moradia – coração achando feio o não-ter. Abandono de fera ferida, bolero radical. Última das criaturas, surto de lucidez impiedosa da Big Loira de Dorothy Parker. Disfarçado, comecei a chorar. Troquei os óculos de lentes claras pelos negros ray-ban – filme. Resplandecente de infelicidade, eu subia a Rua Augusta no fim de tarde do dia tão idiota que parecia não acabar nunca. Ah! como eu precisava tanto que alguém me salvasse do pecado de querer abrir o gás. Foi então que a vi. 21 O Estado de S. Paulo, 18/11/87. 99 Estava encostada na porta de um bar. Um bar brega – aqueles da Augusta-cidade, não Augusta-Jardins. Uma prostituta, isso era o mais visível nela. Cabelo malpintado, cara muito maquiada, minissaia, decote fundo. Explícita, nada sutil, puro lugar-comum patético. Em pé, de costas para o bar, encostada na porta, ela olhava a rua. Na mão direita tinha um cigarro; na esquerda, um copo de cerveja. E chorava, ela chorava. Sem escândalo, sem gemidos nem soluços, a prostituta na frente do bar chorava devagar, de verdade. A tinta da cara escorria com as lágrimas. Meio palhaça, chorava olhando a rua. Vez em quando, dava uma tragada no cigarro, um gole na cerveja. E continuava a chorar – exposta, imoral, escandalosa – sem se importar que a vissem sofrendo. Eu vi. Ela não me viu. Não via ninguém, acho. Tão voltada para sua própria dor que estava, também, meio cega. Via para dentro: charco, arame farpado, grades. Ninguém parou. Eu, também, não. Não era um espetáculo imperdível, não era uma dor reluzente de néon, não estava enquadrada ou decupada. Era uma dor sujinha como lençol usado por um mês, sem lavar, pobrinha como buraco na sola do sapato. Furo na meia, dente cariado. Dor sem glamour, de gente habitando aquela camada casca grossa da vida. Sem o recurso dessas benditas levezas nossas de cada dia – uma dúzia de rosas, uma música de Caetano, uma caixa de figos. Comecei a emergir. Comparada à dor dela, que rídicula a minha, de brasileiro-médio-privilegiado. Fui caminhando, mais leve. Mas só quando cheguei à Paulista compreendi um pouco mais. Aquela prostituta chorando, além de eu mesmo, era também o Brasil. Brasil 87: explorado, humilhado, pobre, escroto, vulgar, maltratado, abandonado, sem um tostão, cheio de dívidas, solidão, doença e medo. Cerveja e cigarro na porta do boteco vagabundo: carnaval, futebol. E lágrimas. Quem consola aquela prostituta? Quem me consola? Quem consola você, que me lê agora e talvez sinta coisas semelhantes? Quem consola este país tristíssimo? 100 Vim pra casa humilde. Depois, um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar dele faria com que eu esquecesse de mim. E fez. Quando gemeu “dói tanto”, contei da moça vadia sozinha chorando, bebendo e fumando (como num bolero). E quando ele perguntou “porquê?”, compreendi ainda mais. Falei: “Porque é daí que nascem as canções”. E senti um amor imenso. Por tudo, sem pedir nada de volta. Não-ter pode ser bonito, descobri. Mas pergunto inseguro, assustado: a que será que se destina? 101 ANEXO 4 Última carta para além dos muros 22 Caio Fernando Abreu Porto Alegre – Imagino que você tenha achado as duas cartas anteriores obscuras, enigmáticas como aquelas dos almanaques de antigamente. Gosto sempre do mistério, mas gosto mais da verdade. E por achar que esta lhe é superior te escrevo agora assim, mais claramente. Não vejo nenhuma razão para esconder. Nem sinto culpa, vergonha ou medo. Voltei da Europa em junho me sentindo doente. Febres, suores, perda de peso, manchas na pele. Procurei um médico e, à revelia dele, fiz O Teste. Aquele. Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado: HIV positivo. O médico viajara para Yokohama, Japão. O teste na mão, fiquei três dias bem natural, comunicando à família, aos amigos. Na terceira noite, amigos em casa, me sentindo seguro – enlouqueci. Não sei detalhes. Por autoproteção, talvez, não lembro. Fui levado para o Pronto Socorro do Hospital Emílio Ribas com a suspeita de um tumor no cérebro. No dia seguinte, acordei de um sono drogado num leito da enfermaria de infectologia, com minha irmã entrando no quarto. Depois, foram 27 dias habitados por sustos e anjos – médicos, enfermeiras, amigos, família, sem falar nos próprios – e uma corrente tão forte de amor e energia que amor e energia brotaram de dentro de mim até tornarem-se uma coisa só. O de dentro e o de fora unidos em pura fé. 22 O Estado de S. Paulo, 18/09/94. 102 A vida me dava pena, e eu não sabia que o corpo (“meu irmão burro”, dizia São Francisco de Assis) podia ser tão frágil e sentir tanta dor. Certas manhãs chorei, olhando através da janela os muros brancos do cemitério no outro lado da rua. Mas à noite, quando os néons acendiam, de certo ângulo a Dr. Arnaldo parecia o Boulevard Voltaire, em Paris, onde vive um anjo sufista que vela por mim. Tudo parecia em ordem, então. Sem rancor nem revolta, só aquela imensa pena de Coisa Vida dentro e fora das janelas, bela e fugaz feito as borboletas que duram só um dia depois do casulo. Pois há um casulo rompendo-se lento, casca seca abandonada. Após, o vôo de Ícaro perseguindo Apolo. E a queda? Aceito todo dia. Conto para você porque não sei ser senão pessoal, impudico, e sendo assim preciso te dizer: mudei, embora continue o mesmo. Sei que você compreende . Sei também que, para os outros, esse vírus de science fiction só dá em gente maldita. Para esses, lembra Cazuza: “Vamos pedir piedade, senhor, piedade pra essa gente careta e covarde”. Mas para você, revelo humilde: o que importa é a Senhora Dona Vida, coberta de ouro e prata e sangue e musgo do Tempo e creme chantilly às vezes e confetes de algum carnaval, descobrindo pouco a pouco seu rosto horrendo e deslumbrante. Precisamos suportar. E beijá-la na boca. De alguma forma absurda, nunca estive tão bem. Armado com as armas de Jorge. Os muros continuam brancos, mas agora são de um sobrado colonial espanhol que me faz pensar em García Lorca; o portão pode ser aberto a qualquer hora para entrar ou sair; há uma palmeira, rosas cor-de-rosa no jardim. Chama-se Menino Deus este lugar cantado por Caetano, e eu sempre soube que era aqui o porto. Nunca se sabe até que ponto seguro, mas – para lembrar Ana C., que me deteve à beira da janela – como não se pode ancorar um navio no espaço, ancora-se neste porto. Alegre ou não: ave Lya Luft, ave Iberê, Quintana e Luciano Alabarse, chê. 103 Vejo Dercy Gonçalvez, na Hebe, assisto A falecida de Gabriel Villela no Teatro São Pedro; Maria Padilha conta histórias inéditas de Vicente Pereira; divido sushis com a bivariana Yolanda Cardoso; rezo por Cuba; ouço Bola de Nieve; gargalho com Déa Martins; desenho a quatro mãos com Laurinha; leio Zuenir Ventura para entender o Rio; uso a estrela do PT no peito (Who Knows?); abro o I Ching ao acaso: Shêng, a Ascensão; não perco Éramos Seis e agradeço, agradeço, agradeço. A vida grita. E a luta, continua. 104 ANEXO 5 Autógrafos, manias, medos e enfermarias 23 Caio Fernando Abreu Tem gente que não faz mesmo. Rubem Fonseca, por exemplo, que eu saiba nunca sentou em livraria para autografar. E não dá entrevistas nem se deixa fotografar. Lembro de certa tarde em Erlangen, interior da Alemanha, pleno verão de 1993, durante a Interlit, encontro internacional de escritores, em que se deixou filmar pela TV. Mas de longe, e sem dizer palavra. Caminhava no parque ao lado de sua tradutora Karin von Schweder-Schreiner, uma das mulheres mais bonitas que conheço. Rubem acha, com razão, que a cara do escritor e o que ele tem a dizer fora do livro não interessam. Interessa o livro, está tudo lá. Dalton Trevisan também é assim, Greta Garbo perde. Já Lygia Fagundes Telles autografa, sim, mas passa o dia da noite de autógrafos nervosíssima, com uma fantasia obsessiva: ficar sentada sozinha ao fundo de uma livraria deserta, sem que apareça ninguém. Sempre aparece, claro: no caso de Lygia, multidões. Mas no próximo lançamento, a fantasia volta. Moacyr Scliar simplesmente esquece o nome da pessoa para quem vai autografar, algumas muito íntimas. Isso é freqüente com escritores, daí a moda de, na hora em que o livro é vendido, colocar um papelzinho dentro com o nome do leitor. Mas muitos, por distração ou por se acharem inesquecíveis, jogam fora o tal papelzinho. Constrangimentos indizíveis – como responder com um seco não a sorridente pergunta “e então, não lembra de mim?” Clarice Lispector apenas assinava seu nome. Nada de “para fulano, com simpatia”, coisas assim. E não dizia nada. Quando lançou o seu injustamente 23 O Estado de S. Paulo, 23/07/95. 105 esquecido Tanto Faz num fliperama da Rua Augusta, Reinaldo Moraes mandou fazer um carimbo com seu nome. Erico Verissimo autografava, mas dizia sentir-se constrangido como “um camelô de si mesmo”. Há autores que, de nervosos e emocionados, bebem demais no lançamento. Outros chegam atrasados. Outros (já aconteceu) vão, mas o livro não fica pronto. Nenhum, que eu saiba, deu uma de João Gilberto (o cantor, não o escritor Noll) e simplesmente não apareceu no show. A verdade é que noite (ou tarde, ou manhã, madrugada talvez não) de autógrafos é chata. Que graça tem ficar às vezes horas numa fila, estender um livro e receber de volta um “para fulano, cordialmente”? Claro que, se passarem décadas e o escritor ganhar o Nobel, vai ter valido a pena. Claro que os netos ou bisnetos de Machado de Assis (ele os teve?) devem achar ótimo ter herdado autógrafos valiosíssimos. Mas em geral não tem graça. Ou tem pelos reencontros, pelo coquetel, pelo auê, não pela coisa em si. Que em vernissage a gente olha os quadros, em pré-estréia teatral ou cinematográfica a gente vê a peça, o filme. Livro não, livro a gente lê depois, em casa. E as vezes nem gosta. Para o escritor autografante, a coisa é confusa. Lançamento mistura enfermarias afetivas que de outra forma não se misturariam jamais – imagine reunir numa noite mãe, tias, psicanalista, colegas de trabalho, dentista, antigos professores, amantes ex ou não, vizinhos de apartamento, amigos de infância desaparecidos há 30 anos etc. O liqüidificador emocional é intensíssimo. E há a solidão indivisível: em noite de autógrafos, emoções à parte, quem menos se diverte é o próprio escritor. Além dos turbilhões íntimos, precisa maquinar dedicatórias estonteantes, ser simpaticíssimo e lutar contra o impulso de sair correndo e gritando “me tira daqui!” Tudo isso para dizer – et voilá! que amanhã à noite vou estar na Livraria Cultura, ali no Conjunto Nacional, Paulista com Augusta, coração de Sampa, autografando as minhas Ovelhas Negras. Será certamente menos chato que 106 de costume, não por mim, sempre feliz de voltar a Sampa e rever os melhores amigos do mundo, mas porque vai ter também Cida Moreira cantando divinamente como só ela. Aparece lá. Tenho medo, pânico, como Lygia, da Livraria deserta e eu perdido feito pastor no meio de um rebanho de ovelhas desgarradas...