TRAÇOS DA HISTÓRIA DO OESTE DE SANTA CATARINA
ALOisIO RUSCHEINSKi"
RESUMO
O presente artigo trata de elencar alguns traços
históricos dos primórdios da ocupação do espaço geográfico do
Oeste de Santa Catarina. Aponta para a forma diluída com que
se apresentava a presença do homem, até que por uma decisão
histórica o governo federal intensificasse as concessões de
terras em grandes extensões e a expansão da fronteira agrícola
pressionasse do lado sul. Tudo isso remete à intervenção do
Estado, seja na concessão ou na atribuição de títulos de
propriedade. O artigo ainda tenta apresentar uma amostragem da
formação de centros de colonização, alude a um conjunto de
conflitos advindos do processo de ocupação, assim como
delineia o relacionamento daquele empreendimento com o
mercado, com a acumulação do capital comercial. Finalmente
discorre sobre duas lutas sociais recentes a propósito da
sobrevivência a partir da posse da terra.
1 -INTRODUÇÃO
o texto a seguir é parcela do resultado de uma extensa pesquisa
realizada no Oeste de Santa Catarina a propósito da luta pela terra. Tomei
em consideração para a elaboração deste texto fontes as mais diversas,
desde entrevistas, jornais, até os poucos livros que porventura traçaram
pequenas referências à história daquela região. Convém que se diga: tal
pesquisa realizou-se ainda na década de 1980, e desde então muitos novos
fatos vieram à luz, inclusive outros estudos mais brilhantes do que o
Presente podem estar disponíveis aos leitores ávidos da manutenção da
IYIemóriahistórica.
Diga-se de passagem que, por ocasião do levantamento de dados
SObre a história da Região Oeste de Santa Catarina, fiquei tomado de
~ombro com a dificuldade de coletar dados fidedignos, a ausência de dados
-borados. Isso tendo em vista que naquele momento parecia uma tragédia
éjue a memória de uma vasta história, por sinal rica, estivesse destinada ao
~--
Sociólogo, Professor do Dep. de Educação e Ciências do Comportamento - FURG.
':
, Rio Grande,
8: 159 - 178, 1996.
159
desaparecimento
Por essa razão são louváveis as iniciativas no intuito de
assegurar às futuras gerações as condições de rever e reter a memória das
lutas sociais de um passado recente e sem o qual não seriam o que hoje
representam.
Os agentes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, muito
ativos nessa região do estado de Santa Catarina, ao dedicar-se de corpo e
alma à luta social, realizam uma tarefa inestimável, até pelo fato de dedicar
parte desse precioso tempo à elaboração de boletins e jornais relatando a
trajetória do seu cotidiano 1
A Região Oeste de Santa Catarina (SC) é denominada Região
Extremo Oeste pelos políticos e na divisão regional do IBGE é denominada
Região Colonial do Oeste catarinense, compreendendo
34 rnunicípios,
enquanto pelos mapas do INCRA compreende 36 municípios. Na descrição
histórica da Região Oeste, através do processo de ocupação, destacam-se
os seguintes momentos fins do século XIX, o início da ocupação, pelo
caboclo, a atuação do Estado, as modificações da década de 30, o
crescimento na época de 1940 a 1960 e a situação de algumas lutas sociais
mais recentes.
2 _ TRAÇOS
HISTÓRICOS
PRÉVIOS À COLONIZAÇÃO
A história da ocupação terntorial do Oeste de SC após a
diluída e esporádica de tribos indígenas, antecede ao Início do s. ..JIO
com esparsos acontecimentos
histórico-políticos.
A definição dos limites
geográficos remete ao final do século XVIII, quando da delimitação das
fronteiras entre Argentina e Brasil, se bem que a constituição do Estado do
Paraná seja posterior à instalação da província de Santa Catanna. Ao que
tudo indica, o estabelecimento das fronteiras coincidiu com a declaração dos
limites entre os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
A disputa pela posse da terra entre índios e exploradores vindoS
do norte, via Palmas (PR), do sul (RS) e do leste (SC), permanece intensa
1 Por insistência
de alguns colegas de trabalho, cuja preocupação volta-se para a
recuperação de toda literatura e dados sobre a história e os processos sociais, decidi oferecer
ao público, embora muito restrito, esta versão do texto que antes constitui um relatório de pesquisa. Todavia, como não tenho pretensões neste momento de aprofundar a pesquisa, pOIS
tenho outras em andamento. às quais tenho dado prioridade, tomei a decisão por causa dessa
insistência
de tomar público este relatório.
Agradeço aos colegas que recentemente
público est~
rcla
relatório. aos militantes do MST que contribuiram com as entrevistas e com o acesso pa
ao seu arquivo. às pessoas que ofereceram seus prêstimos, como na visita aos lugares fU~damentais da cena histórica. à Comissão Pastoral da Terra, enfim menciono a FAPESP pe o
financiamento
do projeto de pesquisa
incentivaram-me
a tornar
até as primeiras décadas do presente século, em grandes extensões e
inclusive com lutas armadas. Isto é, entre as primeiras atividades produtivas
do "homem branco" podemos citar a dos madeireiros, que escoavam o
produto principalmente por via fluvial e via férrea, os criadores de gado, com
exploração extensiva dos campos naturais em parcela da região, os
criadores de porcos, que traziam manadas na época de maturação do
pinhão, por certo encontrado em abundância. Após, merecem destaque os
especuladores de terras provenientes de São Paulo e do Paraná."
Vestígios desses grandes especuladores se fazem presentes ainda
hoje em conflitos fundiários, como no caso da Fazenda Burro Branco. Em
1906 o governo do estado do Paraná fez a doação da área; parte foi
colonizada e outra entrou em litígio familiar alguns anos depois. Como também
é o caso da localidade de Baronesa de Limeira, no município de Chapecó, cuja
proprietária, do mesmo nome, residia em São Paulo e colonizava grandes
extensões na região oeste catarinense. Foi a mesma que loteou as terras
índígenas da Sede Trentin, que também foi cenário de mobilizações na virada
das décadas 70/80, passando por um processo de regularização fundiária de
suas terras, restituindo parcela à população original.
O primeiro contingente de colonizadores foi o setor populacional
denominado "caboclo", o mais significativo antes das firmas colonizadoras
com ocupação efetiva de todo o território. O caboclo atingiu o interior,
principalmente utilizando como acesso os rios ou algumas estradas
precárias. No mais das vezes esse contingente vivia de pequenas roças,
caça, extração da erva-mate, criação de gado para os latifundiários. O
elemento caboclo vem a ser marginalizado ou retira-se com a migração
movida pelas colonizadoras. Os campos de Chapecó e adjacências foram
explorados de forma extensiva por fazendeiros desde a metade. do século
XIX. Criavam gado nos campos nativos ou porcos tratados com o pinhão da
araucária, abundante na região.
Uma estrada atravessava a região desde longa data, ligando os
campos do Rio Grande com os de Palmas (PR), passando por Passo
Borman (às margens do rio Uruguai), Chapecó e Xanxerê. Tal estrada
conduzia principalmente o escoamento da produção, como a madeira, os
rebanhos de gado e de suínos. A atuação de órgãos do Estado, c rmo
fiscalização, impostos, mediação e educação pública permanece quase
totalmente ausente até a criação do primeiro município, cuja sede é a cidade
de Chapecó.
•
2 Algumas
fontes bibliográficas foram utilizadas ao longo do texto, mas não espeCificadas: ENCICLOPÉDIA
dos municípios brasileiros. Rio de Janeiro. IBGE. 1959, vol. 32; váartigos com referências esparsas sobre a história da região e publicados no jornal Diário
Manhã, da cidade de Chapecó; informações esparsas coletadas em publicações do Incra,
Prefeitura de Chapecó, secretariado diocesano de Pastoral, CPT, MST e entrevistas informais.
:8
ao longo dos anos.
'os. Rio
BIBLOS.
160
Rio Grande.
8' 159 - 178. 1996
Grande.
8: 159 _ 178, 1996.
161
A ocupação extensiva da região central do estado de Santa
Catarina, com influência sobre a região Oeste, representada pela extração
da madeira, erva-mate, criação de gado e lavouras de subsistência, foi
atingida pela construção
da ferrovia São Paulo-Rio Grande do Sul.
Principalmente o vale do Rio do Peixe foi tumultuado pela construção da
estrada de ferro, por mais incipiente que se apresentasse a ocupação por
pecuaristas e posseiros. O trecho catarinense foi iniciado em 1908. A
construtora responsável por tal obra histórica denominava-se
Sindicato
Farquhar, cuja recompensa pela realização das obras, em tempos de
magros cofres públicos, foi o equivalente a nada menos que quinze
quilômetros de terra de cada lado da ferrovia. Isso sem levar em conta
qualquer posse anterior, afirmando-se
na força dos decretos públicos
federais de 1889 e 1890. A apropriação das terras pelo respectivo sindicato
desalojou muitos posseiros já ali instalados. Inclusive veio a atingir
trabalhadores
introduzidos
para as obras da ferrovia,
que foram
abandonados ali após o término dos trabalhos de construção da ferrovia.
A região considerada primordialmente no presente estudo situa-se a
oeste da estrada de ferro, cuja construção deu origem ao movimento social
camponês denominado "Contestado", como tem sido estudado por cientistas
de diversas áreas do conhecimento. Os acontecimentos em torno da ferrovia e
da concessão de terras geraram um episódio ou uma tragédia compreendida
por diversos autores pela sua face de guerra santa. Essa luta social,
empreendida pelo contingente populacional do contestado (1912-1916), tinha
por base uma ideologia utópica - a construção de uma nação, de uma terra
liberta movida por princípios religiosos. Tais fatos, ocorridos no território da
área contestada, empurram parte da população na direção oeste. Esse
contingente populacional põe em prática uma colonização espontânea,
conformando uma presença do que se denomina caboclo. Aliás, toda a região
Oeste de Santa Catarina atual era uma região contestada no início do século,
sendo disputada pelos estados de Santa Catarina e do Paraná, por mais que
as respectivas divisas tivessem sido definidas anteriormente. A razão dessa
disputa por parte do Paraná provém do fato já citado, era uma reivindicação de
colonizadores e pecuaristas que provinham daquele estado e que não
possuíam referência com o litoral catarinense.
3 - A PRESENÇA DO ESTADO NACIONAL
A preocupação
principal do governo federal resume-se
na
segurança territorial, pois foi uma área envolta em longa disputa com a
Argentina. Em função disso ocorreu a instalação da colônia militar e111
Chapecó e de um posto de controle em Barracão, em meados do séculO
BIBLOS,
162
Rio Grande,
8: 159 _178,1996·
passado. As terras da região Oeste de Santa Catarina e Paraná, embora de
posse pelo Brasil, eram contestadas pela Argentina, até a assinatura do
acordo de 1895. A solução desse conflito foi mediada pelo presidente
Cleveland dos EUA. Posteriormente surge a cidade de Clevelândia (PR),
como forma de afirmar a permanência da memória daquele acordo histórico.
Após a solução do conflito com a Argentina, urge que o Brasil proteja aquela
região, levando á abertura de vias de comunicação,
destacamentos
militares, povoados e colonizações.
Após tal acordo entre países vizinhos, permanecem as pretensões
em face de uma possibilidade de disputa dessas terras entre Santa Catarina
e Paraná, sendo denominadas terras contestadas, como citado acima. Por
ocasião do término do conflito do contestado, por meio da presença visível
do exército nas imediações, refaz-se o acordo para a determinação dos
limites entre os dois estados. A localidade de Barracão (PR), na divisa com a
Argentina, Paraná e Santa Catarina, surge exatamente a partir de um
acampamento fronteiriço instalado para garantir o território. Na divisa com o
Rio Grande do Sul, ao longo do rio Uruguai, surgem no início do século
vários núcleos colonizadores promovidos por gaúchos.
A presença do Estado junto à frente pioneira visualiza-se na
criação de distritos nos povoados. Juridicamente a região Oeste dependeu
de Palmas até 1916, inclusive a Igreja Católica manteve a mesma
configuração organizacional até meados da década de 50. Isto se deve em
grande parte à fragilidade do governo estadual e à ausência de vias de
comunicação com o litoral, onde se situa a capital. O acerto dos limites
estaduais finalmente define-se sob a presidência de Venceslau Brás. Em
1917 é instalada
a primeira
sede municipal
em Passo Borman,
posteriormente transferida para Chapecó, sendo o primeiro superintendente
municipal o Cel. Manoel dos Santos Marinho. Há praticamente
uma
coincidência de datas entre o término da guerra do Contestado, o derradeiro
estabelecimento
das divisas estaduais e a instalação da administração
pública municipal em Chapecó.
A ocupação pelos caboclos, com agricultura de subsistência, não
resultou em colonização efetiva. Isso por sua forma de produção e por
serem em número insuficiente: quando as terras se cansavam ou tornava-se
difícil o cultivo por causa da macega (mato), seguiam mais adiante. Não se
empenhavam
pela propriedade
da terra, até por desconhecerem
a
legislação, encontrarem-se distantes das instâncias judiciais, sendo assim
freqüentemente tocados pelos pecuaristas.
.
Outras formas de ocupação extensiva são a criação de gado,
sU.InOS e a madeira. A criação de gado ocorre nos campos naturais,
pnncipalmente na altura da estrada de Palmas a Passo Borman (às margens
do Rio Uruguai, divisa sul do estado). A extração da madeira é efetuada por
BIBLOS, Rio Grande,
8: 159 - 178, 1996.
163
particulares ou companhias, numa ação predatória, espoliadora e seletiva, e
não constitui propriamente uma tentativa de produção a partir da terra ou
ocupação territorial. As principais madeiras visadas eram a erva-mate, para
extrair o chá da folhas, e o pinheiro, transportado pelas balsas dos rios ou
pelas picadas mato afora. O rebanho suíno tem sua importância devido à
engorda da manada via safra do pinhão e também pelo sistema dos
safristas, mais típico na altura da divisa do estado de Santa Catarina com o
Paraná". Essas formas de ocupação territorial podem ser consideradas
como um processo de colonização espontâneo, mas durante o qual se
leiloam terras para companhias, quer promovessem colonização quer não, e
para latifundiários. O processos efetivo de colonização e desenvolvimento
sócio-econômico teve seu incremento maior a partir da década de 30.
Outro traço histórico, ocorrido na região na terceira década deste
século, é a passagem da histórica ou lendária Coluna Prestes, referenciando
a conexão com o cenário nacional. A coluna Prestes atravessou a região
Oeste de Santa Catarina no início de sua trajetória pelos quadrantes do
território brasileiro e efetivou tal façanha próximo à divisa com a Argentina,
onde posteriormente se situam os municípios de Mondaí, Iporã do Oeste,
Descanso, São Miguel do Oeste, Cedro e Dionísio Cerqueira. Em 13 de abril
de 1926, quando o contingente agregado pela Coluna Prestes" decide
atravessar o Rio Uruguai, proveniente do planalto rio-grandense, passando
do Rio Grande do Sul para Santa Catarina, já encontrava em Porto Feliz
uma pequena colonização formada por alemães. Ali existiam canoas, lancha
a motor e balsa, que foram meios muito importantes no auxílio da coluna na
travessia do rio. O povoado formado pela recente colonização não ofereceu
resistência às tropas e entregou suprimentos e equipamentos requisitados
para 1000 a 1500 homens.
A coluna atravessa todo o Oeste de Santa Catarina em plena
selva, com muita dificuldade, apesar da caça e do pinhão, a principal fruta
encontrada. Demora-se alguns meses numa área próxima à divisa entre
Paraná e Santa Catarina, em função de combates
e negociações
3 Os safristas
eram aqueles empreendedores
que mandavam derrubar grande
quantidade
de mato, plantavam milho, na época da maturação do produto reuniam uma
manada e quando findava o milho como alimento recolhiam os porcos para a venda. No ano
seguinte repetiam o processo. Essa forma vingou sobretudo nos municípios ao longo da divisa
com o Paraná.
4 Cf. Macaulay,
Neill. A Coluna Prestes. São Paulo: Ed. Difel, 2. ed., sld, p. 78-87.
Existem várias outras referências sobre a trajetória da referida marcha nacionalista pelo
território brasileiro. Os dados sobre a coluna prestes estão aqui porque através deles se
visualiza a situação em que se encontrava a região naquele momento histórico. A passagem
da coluna ocorre numa época em que o estado está preocupado com a segurança territonal.
Estão iniciando as primeiras colonizações do oeste, evidentemente, sem contar a mais antiga,
que é da região de Chapecó.
estratégicas frente às forças militares sediadas em Barracão e Foz do
Iguaçu. Nesse período as tropas da coluna são alimentadas em parte com
carne de gado extensivamente
criado perto de Campo Erê (SC) e
adJacências, Em memória da pretendida permanência prolongada da coluna
nesses confins, mais tarde dá-se a um vilarejo a denominação de Descanso.
por ocasião do estabelecimento dos limites estaduais, abre-se uma via de
comunicação sobre a linha da divisa Santa Catarina e Paraná. A coluna
toma tal rumo entre Barracão e Campo Erê e dali segue em direção norte,
adentrando o estado do Paraná.
4 - O PROCESSO DE OCUPAÇÃO EFETIVA
Principalmente
a partir da década de 1930, contingentes
populacionais vindos do Rio Grande do Sul pressionam a ocupação mais
efetiva daquele território catarinense. Aliás, a economia do Rio Grande do
Sul influencia profundamente essa fase da colonização do Oeste. Com isso
traça-se uma referência de que do lado norte não houve uma afluência
populacional capaz de proporcionar a colonização efetiva. As raízes da
economia do minifúndio provêm fundamentalmente
por influência riograndense, ou melhor, de algumas regiões minifundistas desse estado, cujo
excedente de mão-de-obra pressiona a migração para a busca de novas
terras, reproduzindo
um sistema
específico
de subsistência
e de
relacionamento com o mercado.
O processo de desenvolvimento das atividades econômicas ligadas
à pequena exploração agrícola contém no seu bojo a necessidade da
incorporação de novas terras para continuar a sua reprodução. Resulta desse
processo de transformação econômica um intenso movimento migratório no
sentido de forçar a expansão da fronteira aqrlcola". É assim que a partir da
década de 1930 a abertura da fronteira agrícola avança sobre o Oeste de
Santa Catarina. Transplanta-se uma atividade agrícola desenvolvida na base
da policultura agrícola e da pequena produção de caráter mercantil.
O empenho pela posse da terra pode se configurar e se
concretizar como uma luta pela propriedade privada da terra, garantindo que
ocupante não seja expulso com o aparecimento de um proprietário
Jurídico, ou pela apropriação privada dos meios de produção fundamental
para a reprodução da agricultura em pequena produção mercantil. As
Condições históricas de reprodução da agricultura são dadas mediante a
frente de expansão que encontra terras disponíveis para incorporar ao
?
-----------------~-----------(
.
5 Cf. REGO, Rubens M. L. Terra de violência.
Il'limeo), 1979, p. 42s.
BIBLOS, Rio Grande,
164
BIBLOS.
Rio Grande,
6: 159 _176,1996·
São Paulo, USP, lese de meslrado
6: 159 _ 176, 1996.
165
mercado. Convém lembrar a presença de famílias de numerosos membros,
com justificava ideológica persistente e diversificada.
O contingente de população deslocado provém de ocupações mais
antigas, onde, por razões diversas e conjugadas, as condições de sua
reprodução são disputadas por um contingente que impossibilita (ou diminui)
a garantia das condições de produção de sua subsistência. As condições de
produção, em meio às colonizações de imigrantes europeus no sul do país,
forjam migrantes em potencial.
As firmas colonizadoras jogam um papel fundamental no processo
em análise. Fundadas na Lei de Terras, auferem por vias diversas a
concessão de lotear grandes extensões de áreas a serem loteadas ou
exploradas, um privilégio concedido pelo Estado às empresas para que
explorem recursos naturais. A venda de terras loteadas representa um
processo de acumulação de capital, pois o excedente produzido, seja nos
locais de origem, seja na terra adquirida, vai parar nas mãos do
empreendimento colonizador. O caráter mercantil da terra via colonização
dirigida por empresas particulares se revela no fato de o agricultor já iniciar
com dívidas ou pagar para poder produzir. Então se põe a produzir para
recuperar o excedente empenhado ou pagar a renda social da terra. Além
disso, freqüentemente as firmas reservam para si o direito de explorar a
madeira de lei com determinada espessura existente sobre a área de terra
vendida. Assim os poucos investimentos das firmas colonizadoras retornam
de dupla forma, através da comercialização da terra, da exploração da
madeira, da especulação imobiliária em cima de parte da área loteada.
Uma colonização alemã inicia em Mondaí em 1924, através da
empresa Chapecó Peperi Ltda. Esse local, denominado inicialmente Porto
Feliz, foi por muito tempo um porto de embarque de madeira de lei pela
empresa ou a quem fosse concedido o direito de exploração. A via de
transporte mais usual era as balsas pelo leito do rio Uruguai. Por sua vez, a
Sociedade
União Popular recebe licença de colonizar da empresa
colonizadora Peperi, para o território do atual município de Itapiranga. Essa
entidade, fundada por imigrantes alemães católicos, a partir .de 1926 atrai
colonos de Santa Cruz do Sul e vale do Caí, principalmente. Em São Carlos
atuou a Cia. Territorial Sul Brasil, enquanto as terras no município de
Palmitos foram colonizadas pela empresa Colonizadora Oeste Ltda., que
inicialmente fazia restrições à comercialização de terras para quem não
fosse de Igreja Evangélica. Cito esses quatro exemplos como marcos
importantes dessa colonização à margem do rio Uruguai, na longa lista das
localidades
fundadas através dos empreendimentos
de ocupação do
território. Os agentes colonizadores, sejam os intermediários de venda ou
mesmo os donos das firmas, tornaram-se freqüentemente os setores que
mais tarde, ao se constituírem os municípios, assumiriam o poder político.
As famílias que afluem para a colonização do Oeste catarinense
compõem-se na maioria dos casos em excedente de força de trabalho, para
as quais a migração configurava a possibilidade efetiva de se encontrarem,
em novas áreas da fronteira agrícola, as circunstâncias
que seriam
favoráveis para a reprodução das suas condições de produtores mercantis.
Essa migração engendra um processo de reprodução, no qual produtores de
mercadorias recriam e reproduzem formas e relações sociais de produção,
com a possibilidade de apropriação de uma parcela maior do meio de
produção fundamental
- ou seja, a terra". Tudo isso sem olvidar a
reprodução cultural conseqüente.
Entretanto, é interessante notar que tanto no início da colonização
via imigrantes europeus no Rio Grande do Sul, quanto na colonização do
Oeste, os lotes da terra por família eram em média superiores a 30ha, e no
decorrer da ocupação do território ou após algum tempo de produção, a
média da área de terra disponível à ocupação de cada família diminui
gradativamente para 25, 20, 15, 12ha. Exemplos típicos dessa diminuição da
área destinada à compra de cada família prevendo sua capacidade
aquisitiva são os municípios de Romelândia e Anchieta, onde a média está
em torno de 15ha por família. Nesse espaço geográfico pode-se considerar
o reduto onde praticamente se conclui o processo de expansão da fronteira
agrícola na Região Oeste catarinense.
O capital comercial em ação, na comercialização da terra e na
aquisição da produção agrícola, ao mesmo tempo que proporciona as
condições para recriar a existência da pequena agricultura, impõe também a
expropriação. A questão da comercialização de áreas menores de terra por
famílias não significa propriamente um empobrecimento,
senão que no
contexto social há presença de indivíduos dispostos a pagar um preço mais
alto pela terra, tendo em vista tanto o esgotamento das terras disponíveis
quanto o crescimento
da comercialização
de produtos. Esses fatores
exercem uma pressão sobre a terra, elevando o seu valor social.
A comercialização
da produção auferida por meio do trabalho
familiar passa por um processo de transformação.
Se inicialmente o
mercado absorvia milho, feijão e madeira, num segundo momento entra em
eção o ciclo do milho-suíno para a venda da banha e, posteriormente, o
porco em pé e a soja. Há estabelecimentos agrícolas que permanecem na
cOmercialização direta daquilo que colhem. As condições de recriação da
pequena propriedade mercantil se devem ao crescimento da absorção de
gêneros alimentícios em nível nacional, estes por sua vez oriundos da
POlicultura praticada pela economia colonial. A análise do processo de
efetiva colonização do Oeste de Santa Catarina permite afirmar que a
-------~------------------6
166
BIBlOS,
Rio Grande,
Cf. Idem, p. 1345.
8: 159 _178,1996.
BIBLOS, Rio Grande, 8: 159 _ 178,1996.
167
economia agrícola ali implantada se configura subordinada ao capital
comercial, o que por sua vez é fonte de implicações políticas e ideolÓgicas.
5 - A EXPANSÃO
POPULACIONAL
E POLíTICA
Ao longo do processo
de colonização
surgem focos de
conturbação social, seja pela indefinição fundiária e pela constituição de
posseiros, seja pela duplicação de concessões a colonizadoras e, inclusive,
também de titulações jurídicas de terras adquiridas.
Se numa área
colonizada por determinada companhia de terras ocorriam conflitos de
ordem
diversa
ou declarada
e pública
ilegalidade
da respectiva
comercialização, com problemas nas escrituras passadas ao comprador, tal
notícia se espalhava nos locais de origem dos migrantes. Assim sendo, no
mais das vezes, só quem não possuía alternativa melhor se aventurava
naquele espaço. O contrário já ocorria com áreas devolutas ou das quais
não houvesse quem reclamasse a propriedade, onde por certo o espírito
aventureiro ou o destino histórico punha-se de antemão em jogo ante futuros
conflitos. Se bem que a tradição legalista dos descendentes de imigrantes
europeus tende-se a colocar enormes impedimentos à migração para terras
que não possuíssem a garantia da condição legal.
A intervenção do Estado na colonização se caracteriza pelo
favorecimento
do capital comercial, através das concessões de grandes
extensões de terras e pelo estabelecimento de órgãos governamentais nos
diversos núcleos urbanos, entre eles os cartórios de registros. Assim sendo,
por mais frágil que seja a presença como poder político governamental,
contribui para a reprodução e recriação da pequena propriedade produtora
de alimentos. Outra forma de presença do Estado, de uma forma mais
declarada do comportamento
político, viabiliza-se através da constituição
dos distritos e das sedes municipais.
O crescimento
populacional
nas décadas 1940-50, via fluxo
migratório, primordialmente, processa-se sobretudo no sentido do sul para o
norte. Se o primeiro município foi criado em 1917, somente no início da
década de 50 são criados outros 9 municípios, sobretudo ao longo do rio
Uruguai. Tal fato aponta para o percurso histórico da ocupação efetiva,
assim como refere-se ao tipo específico da presença do Estado, seja como
controle
político, seja como reivindicação
organizativa
da respectiva
população.
Em função do crescimento
populacional,
que tem como
conseqüência a formação de núcleos urbanos, instala-se um total de 17
municípios em 1958. A efetiva colonização está expressa nesse processo de
pressão demográfica sobre as terras disponíveis e tem como um dos
produtos de organização política a criação de sedes municipais.
168
BIBlOS. Rio Grande. 6: 159 -176. 1996.
Episódio histórico pouco destacado na memória avivada é a curta
existência do Território do Iguaçu, que por certo pouco alterou o cotidiano do
comportamento
político ou mesmo ficou aquém de uma implantação
configurada. Em 1943, sob a vigência do regime autoritário comandado por
Getúlio Vargas, foi criado o Território Federal do Iguaçu, compreendendo
toda a região Oeste de Santa Catarina e Sudoeste do Paraná. O referido
territôrio fora criado sob o governo de Vargas com a justificativa política de
precaver-se do expansionismo
populista de Perón, na vizinha nação
Argentina, sem esquecer as inúmeras determinações das fronteiras entre os
dois países. A breve existência política do Território durante o Estado Novo
não teve maiores influências políticas propriamente ditas, antes na forma da
colonização, e dessa maneira a região foi alvo de novas especulações
imobiliárias favorecidas pelo intuito do próprio governo federal. Com a
criação do território, o governo chama mais ainda a si o direito de distribuir
terras na região, assegurando a integridade do espaço geográfico da nação.
O Território do Iguaçu foi extinto pela Constituição Federal de 1946, mas os
problemas gerados pelas concessões de imensas extensões de terras a
grupos econômicos e políticos ficou como herança.
O Sudoeste do estado do Paraná constitui uma área colonizada na
seqüência da expansão da fronteira agrícola para além do território
catarinense, por onde passa o contingente populacional que para lá se dirige
provindo do Rio Grande do Sul ou evadindo-se de Santa Catarina. Parcela
daquela região paranaense é palco de conflito social, numa extensão que vai
de Capanema a Francisco Beltrão. A motivação básica são as terras em litígio,
onde uma luta social trava-se entre os anos de 1957 e 1961, cuja abrangência
histórica torna o fato conhecido pela população do Oeste de Santa Catarina.
Com este panorama podemos seguir para o próximo passo da
análise dos traços da história que aqui importa - elaborar um breve
apanhado histórico de algumas lutas sociais, que num período mais recente
obtiveram destaque. Isso sem contar a história da organização recente do
Movimento dos Sem Terra e as lutas sociais aí levadas a público.
Freqüentemente torna-se necessário fazer referência à organização de lutas
sociais também em outros estados. Os dados históricos apresentados
tendem a restringir-se à região descrita e incorporando os fatos mais
relevantes para o processo histórico da região.
6 - O CONFLITO ENTRE íNDIOS E COLONOS
O primeiro, conflito social a que passamos a dar destaque é de
ordem menos momentânea do que parece, tendo em vista que outros fatos
terão marcado a história do Oeste catarinense. A maioria das históricas
BIBlOS, Rio Grande, 6: 159 - 176. 1996.
169
tensões entre remanescentes de origem indígena e desbravadores brancos
ou destruidores da natureza perderam-se no tempo, até porque o Oeste
catarinense nunca teve um contingente populacional significativo de povos
indígenas.
Reconhecidamente
o estado de Santa Catarina está entre as
unidades da federação com a estrutura fundiária mais estável nos últimos 30
anos e com distribuição mais eqüitativa da terra entre os respectivos
proprietários. No entanto, na década de 1980 a imprensa registrou mais de 20
conflitos fundiários. O INCRA, em suas diversas formas de ação", interveio em
49 imóveis em 10 anos de atividade (1974-83). Aqui nos restringimos a lutas
sociais ocorridas e que posteriormente vieram a influenciar a formação do
Movimento Sem Terra (MST), ou melhor, que enquanto tais podem ser
apresentadas como elementos do MST em gestação.
Durante a década de 70 desenvolveram-se entidades de apoio à
causa indígena, colocando-se a tarefa de assessoria e defesa jurídica.
Também os representantes de tribos indígenas estabelecem entre si um
roteiro de reuniões e pauta de ação comum. Com isso atingem tribos
sobreviventes dentro de um espaço geográfico determinado. Abrangendo
diferentes áreas e tribos indígenas, criam organismos em defesa da terra e
da cultura. Os Kaingang e os Guaranis do Sul do país, afligidos pela
necessidade e transformados em peões de suas próprias terras, modificam
parcial e progressivamente a consciência a propósito de si mesmos, da luta
pela demarcação das terras, da defesa cultural como identidade e das
condições
específicas
de sua sobrevivências.
Esse processo possui
influências diversificadas,
como através de contatos com políticos, com
entidades de apoio e com a imprensa.
Em 1978 os índios do Norte do Rio Grande do Sul, assim como
outros residentes no Oeste de Santa Catarina, resolveram retomar suas
terras, expulsando os agricultores arrendatários, moradores em terrenos
alugados pela FUNAI. No decorrer do mês de maio daquele ano, os índios
deram um ultimato para a retirada de todas as famílias de posseiros de suas
terras. Seriam 156 segundo uns ou 700 conforme outros, abrangendo em
Santa Catarina os municípios de Xanxerê, Xaxim, Chapecó e Abelardo Luz.
O prazo estabelecido termina em 30 de junho, e pouca movimentação havia
até aquele momento, pois por um lado não havia unanimidade quanto à
consistência
da solicitação, e por outro efetivamente
aqueles pobres
posseiros também não tinham alternativas. Todavia, a partir de certo
momento as famílias se espalham como podem, diante das ameaças. Sem
7
assentamento,
S
170
Entre as formas de ação podemos citar: discriminatória, desapropriação,
apoio técnico e/ou juridico, convênio, arrecadação sumária.
Folha de São Paulo. Folhetim. 03.02.1980, p. 12.
BIBlOS.
Rio Grande.
acordO,
1996
8: 159 _178.
.
ajuda governamental
para um reassentamento
em terras no estado, o
prefeito de. Xaxim põ~ caminhões à disposição das famílias expulsas no
intuito de ajudar a retirar alguns pertences, numa situação de emergência
em-que os posseiros temiam a possibilidade de uma ação violenta por parte
dos indígenas.
Nessa época o Conselho Indígena Missionário
(CIMI) e a
Comissão Pastoral da Terra (CPT), em trabalho conjunto, tentam localizar
terras improdutivas no intuito de apresentar a sua indicação para a possível
desapropriação governamental. As entidades, ao mesmo tempo em que os
acontecimentos visualizam a proposta do direito à terra para o índio, tentam
auxiliar para que os agricultores desalojados sejam' remanejados em função
de uma nova área 'de terra. Os únicos órgãos governamentais diretamente
referidos a tal luta social são a FUNAI de um lado e o INCHA de outro. Este
último parece que nada encaminha, a não ser o seu esforço de levar os
desamparados ao Mato Grosso (MT)9. Após um prolongado debate, que
ganhou inclusive destaque na imprensa, não sem constrangimentos
e
discursos pouco compreensíveis pelo patamar cultural dos colonos, ao final
os agentes governamentais
conseguiram em parte o seu intento, e em
novembro (1978) algumas famílias de Santa Catarina são transferidas junto
com outras do Rio Grande do Sul e assentadas em Terranova (MT). A
maioria das agrovilas recebe uma denominação em consideração ao local
de origem dos transferidos, como no caso as denominadas de Xanxerê,
Nonoai e Planalto. O caso acentua tensões que vêm a visualizar-se
explicitamente entre políticos locais, autoridades militares favoráveis à
transferência e agentes de órgãos governamentais
ante a hierarquia
eclesial, sindicatos e entidades de assessoria citadas. Ocorrem também
denúncias da ação de estranhos insuflando índios e colonos, provindos de
setores da sociedade que admitem como um absurdo da história que índios
sem um senso de integração com o mercado regional retomem as terras e
que se possa propor o reassentamento
dos colonos
em terras
desapropriadas no estado de origem. Este constitui-se
um fenômeno
histórico imerso em múltiplas controvérsias, de posicionamentos
políticos
traspassados de paixão e onde interesses se expressam à luz do dia.
.
O conflito social envolvendo a existência de agricultores (;; de
Indígenas, concentrando-se
em torno da posse da terra, não terminou
naquele ano. Em diversos momentos posteriores ocorrem violências entre
~s duas partes, principalmente na área localizada em Sede Trentin. Em
2985 ho~ve um assentamento em Chapecó, numa área denominada
andovalll, beneficiando posseiros retirados nessa ocasião da área indígena
em conflito em Sede Trentin. No final das contas, parece possível afirmar
---'os,
9
o Estado
Rio Grande,
de São Paulo, 04.07.1978,
p. 8.
8: 159 _ 178. 1996.
171
que não foi solucionado o problema de melhoria das condições de vida dos
índios, pois
stes não conseguiram de imediato desenvolver formas de
cultivo da terra para aumentar a produção de alimentos. As alternativas vêm
a resolver de forma parcial o problema dos posseiros expulsos.
7 - A PERMANÊNCIA
DA DISPUTA PELO ESPAÇO
Outro caso que destacamos na análise como exemplar de luta
social é a organização na ocupação e na resistência prolongada em prol da
conquista da terra na Fazenda Burro Branco (FBB), no município de Campo
Erê
(SC).
Concretamente
apresenta-se
como
uma
iniciativa
de
trabalhadores sem terra organizados que ocuparam terras improdutivas e
chegaram até a vitória, conquistando a permanência na terra.
Nesse caso houve uma concessão de terras a uma família
abastada, com origem urbana e cujos interesses seriam de operar a
exploração
via intermediários.
Depois de muito tempo, sem maiores
proveitos, os proprietários
mantinham algum gado ali e exploravam a
madeira. Em torno da disputa pela madeira (araucária) gira o litígio entre os
herdeiros, família Taborda Ribas, de Curitiba, com a causa na Justiça
estendendo-se por vários anos.
De fato a terra vinha sendo ocupada por alguns posseiros desde
1953, entretanto sem uma estratégia coletiva 10. A referida fazenda, assim
como outras na região, foi objeto de levantamento por parte do INCRA, com
a finalidade de elaborar um projeto de desapropriação. Por interesse político
local, o prefeito de Campo Erê também encaminhou
um pedido de
desapropriação,
com a finalidade de fazer uma reserva florestal e um
reassentamento
de trabalhadores rurais sem terra do muntcrpío".
Com
esses e outros fatores espalhou-se a notícia de que seria feita a reforma
agrária ali, tendo como exemplo uma outra fazenda, denominada Mundo
Novo, onde a terra foi repassada aos ocupantes após um processo judicial.
Por ocasião do transcurso desses fatos, a CPT, com dois anos de
atividades e de sua existência no acompanhamento
da questão agrária,
propunha-se fomentar cursos de formação de lideranças no meio rural. Tal
iniciativa obtinha algum êxito no intuito de organizar a resistência ao êxodo
rural e de inovar a representação de interesses com um sindicalismo de
perspectiva classista.
.
A renovação da perspectiva sindical junto aos trabalhadores ruraiS
inseriu e modificou a interpretação coletiva dos interesses a propósito da sua
situação. É assim que um discurso disperso a favor do empenho coletivo por
direitos influenciou. a que, em maio de 1980, cerca de 300 famílias
ocupassem parte das terras da FBB. Tais famílias procedem de vários
municípios, sem uma organização prévia no conjunto. Por isso, pode-se
concluir que a perspectiva de ocupação da terra por um grupo transforma-se
em notícia que corre por canais próprios. O que ocorre mais freqüentemente
é virem em pequenos grupos oriundos da mesma localidade. Um dos líderes
do movimento dos posseiros, por exemplo, veio com um grupo de famílias
do interior do município de Mondaí, distante cerca de 250 quilômetros.
Após a chegada aparentemente tranqüila daquele contingente de
famílias à fazenda, a CPT, conjuntamente com o padre Afonso, de Campo
Erê, prestam socorro às famílias. Diante da miséria que encontram
estampada, organizam
coletas de alimentos
e roupas em diversas
comunidades; constatam a vigência do espontaneísmo
e em face da
desorganização
interna promovem reuniões, conseguindo
formar uma
comissão de frente e assembléia com todos os ocupantes; diante das
ameaças expressas e perseguições advindas, encaminham apoio jurídico
via CJP (Comissão Justiça e Paz).
O advogado dos proprietários entra com ação de manutenção de
posse no dia 03/07/1980 contra dez invasores da área. Tinha a pretensão de
que com essa ação despejaria todas as famílias. A notícia veiculada pela
imprensa é de que seriam 200 famílias desfavorecidas
pelo mandado
judtcial'", A CPT, em conjunto com a CJP, acompanhando de perto as
negociações, intervêm como mediadores e garantem a retirada pacífica dos
10 agricultores citados e os transferem em grupo para um local próximo.
Através de agenciamento
para negociação,
técnicos do INCRA são
chamados ao local, fazem uma reunião com os agricultores e encaminham
ainda no início de julho um projeto de desapropriação à coordenadoria
regional em Florianópolis.
Embora tenham ocorrido tais encaminhamentos,
a perseguição
aos invasores acirra-se após um mês de ocupação. Além da perseguição de
jagunços mandados
pelos proprietários,
a polícia marca presença
ameaçadora, passando pela área, revistando homens e mulheres para -eter
armas ou amedrontar. O advogado da fazenda fornece à imprensa um
dOcumento que teria sido enviado às autoridades alertando para o problema
Social criado em torno da ocupação e para a possibilidade
de um
COnfronto13. Exibe uma relação de nomes dos invasores, supostamente
aCObertados pelo padre de Campo Erê, na qual constam o número de filhos
--------------------------12
10
11
172
Jornal do Brasil, 20.09.1980, p.1 o.
Cheiro de Terra. Boletim da CPT/SC, n. 7, ago./1980,
911
p. 4.
BIBLOS.
Rio Grande,
Idem, p. 5. Diério da Manhã, Chapecó, 22 e 24/07/1980.
Diário da Manhã, 22.07.1980. As acusações de um lado e outro fazem parte da
erra de nervos e de ocupar espaços junto à opinião pública.
13
8: 159 _178,1996
173
e o tempo de ocupação da área, o qual não chegava a um mês sequer
Acusa elementos vinculados à atuação da igreja de coordenar a invasão'
Afirma que o juiz está desenvolvendo articulação de tal forma que se cumpr~
a ordem judicial de seqüestro da área, cuja ação não daria direito à terra
nem aos herdeiros nem a terceiros. Pede abertura de inquérito policial para
apurar a responsabilidade e com o intuito de os responsáveis - já nem tanto
pela ocupação, mas pelo acompanhamento cotidiano junto aos ocupantes _
poderem ser enquadrados na Lei de Segurança Nacional.
O advogado Valdir Valdameri, presidente da CJP da diocese de
Chapecó, rebate as acusações acima citadas 14. Declara que as famílias são
oriundas de mais de 20 municípios, possivelmente arrendatários de terra
gente que perdeu sua pequena propriedade, ou mesmo nunca teve, enfim'
acabou sem condições de sobrevivência. Alude ainda às desapropriaçõe~
recentes realizadas pelo INCRA nas imediações, que influíram sobremaneira
sobre a emergência dessa ocupação. Inclusive a fazenda Mundo Novo,
desapropriada
em 14-11-1979, confronta-se com a FBB. Sendo assim,
esses agricultores, na esperança de encontrar terras, vieram em busca da
boa notícia das desapropriações.
Inclusive algumas famílias, pelo fato de
não encontrarem
lugar pretendido na terra desapropriada,
passaram a
instalar-se numa área que se encontrava praticamente abandonada; esse
equívoco pode ter ocorrido talvez por considerarem que a área faria parte da
terra desapropriada.
Se esse raciocínio de um lado é justificativo da ação que levou à
ocupação, de outro lado tem um fundo de verdade histórica. De tal forma
que, na hora mais aguda do conflito, em que está em jogo a expulsão ou a
desapropriação, um grupo de famílias abandona o local devido ao conflito,
revelando ausência de perspectiva e não se dispondo a apostar tudo na
força da resistência coletiva.
O advogado defensor dos ocupantes é de alguma forma porta-voz
destes junto às instâncias do Estado, e afirma que a participação da CJP,
como também do padre, tem o intuito de evitar que se cometam injustiças,
pois tais cidadãos já estão assustados com as ameaças de que os
proprietários enviariam pistoleiros para matá-Ios 15. Somando esforços, o
advogado entra com pedido de usucapião por parte de nove famílias
residentes ali por vários anos. Justifica tal ato com a alegação de que existe
na área uma escola, o que revela reconhecimento municipal da residência
por um tempo considerável. Inclusive aproveita para novo encaminhamento
de pedido de desapropriação junto ao Incra.
14
Diário da Manhã, 23.7.1980;
acusações, cf. Diário da Manhã, 08.08.1980.
15 Idem.
174
também
o bispo D. José Gomes
As famílias entraram desorganizadas
na área, isto é, não
possuíam
uma organização
coletiva
conjunta.
Essa disputa
entre
advogados, aludida acima, s6 aparentemente se efetua acima e à margem
d~ organização na terra ocupada. O acompanhamento
dado pela CPT
suscitou algumas formas de resistência frente às ameaças e agressões.
Para maior proteção, as famílias agrupam-se em dois núcleos. Combinam
entre si não fornecer informações a pessoa estranha. Com a aproximação
de um veículo ou de estranhos, os homens se escondiam, só mulheres e
crianças ficavam nas barracas. Quando por um motivo extraordinário
acontecia uma reunião ou alguma ameaça, era dado um sinal combinado e
reconhecido por eles, de tal forma que se juntavam ou se escondiam. Nessa
estratégia de resistência, os sem-terra utilizam-se de armas e meios
disponíveis, com vista à consecução dos seus objetivos, na medida em que
não possuem armamento militar nem homens treinados, todavia um dos
lideres aplica algumas estratégias aprendidas durante o serviço militar."
Nessa estratégia
de resistência
ocorre um fato curioso e
significativo, que confirma seu emprego eficiente. Um assessor da CPT
costumava usar um tipo de veículo para se deslocar até o local e já era
reconhecido como tal pelo veículo. Um dia, por problemas técnicos, teve que
usar outro, e ao desembarcar encontrou de fato só as mulheres e crianças,
conforme combinado entre eles. Como as reuniões eram quase sempre só
com a presença dos homens, naquele dia teve que voltar para casa sem
realizar seu objetivo fundamental.
Nessa época o sindicalismo
(através
dos Sindicatos
dos
Trabalhadores Rurais - STR) não permanece totalménte alheio à questão,
pois há indícios de um sindicalismo autêntico que se preocupa com a luta
pela posse da terra em situação de conflito. O presidente do STR de
Chapecó lança nota de apoio ao bispo e entidades de assessoria difamados
pelas graves acusações e em defesa dos colonos necessitados da terra
para o seu sustento. Em agosto, alguns outros sindicatos e entidades se
mobilizam em favor dos posseiros e da desapropriação da área. Inclusive o
deputado De Marco, de quem não se poderia dizer que se elegeu com uma
plataforma de cunho popular, afirma na Câmara dos Deputados que a
OCupação se deu porque a fazenda estava praticamente abandonada 17. E
que é injusta e descabida a acusação ao clero, pois este teve apenas uma
atitude humana de dar apoio moral e material para suavizar a situação.
A figura do delegado de polícia de Campo Erê caracteriza um dos
mais temíveis inimigos dos posseiros da FBB. Em julho declarou à imprensa
que o mandado judicial já fora cumprido em desfavor de 200 famílias, que
refuta as
16
17
BIBlOS,
Rio Grande,
8' 159.178, 1996.
BIBlOS.
Entrevista em pesquisa de campo.
Diário da Manhã, 19.08.1980.
Rio Grande.
8: 159. 178, 1996.
175
teriam sido retiradas sem resistência 18. É o mesmo delegado que possuía a
fama de viver ameaçando e prendendo; tanto que um dos líderes ficou retido
por cinco vezes na delegacia. Esse delegado queria que os posseiros
acusassem o padre pela invasão e que assumissem o compromisso de
retirar-se da área. As ameaças ocorriam na área e nos momentos do
deslocamento para a cidade. As madeireiras e os latifundiários interessados
na extração da madeira e na defesa da classe contratam pistoleiros para
ameaçá-Ios ao longo dos 7 meses de duração do conflito 19. Os adversários
dos posseiros, sob diferentes formas de ação e graus, podem ser
caracterizados
e enumerados: latifundiários, delegado, polícia, políticos,
INCRA.
Através da assessoria jurídica, os posseiros conseguem impedir o
despejo judicial com auxílio da polícia por mais de uma vez. Porém, diante
da demora das providências encaminhadas junto ao 'INCRA e com o
agravamento
das ameaças ou a iminência de despejo, os ocupantes
organizam uma caravana para negociar diretamente em Florianópolis. A
comissão, representando mais de 200 famílias, negocia, relata e denuncia
durante dois dias (7 e 8/10/80) junto às autoridades o encaminhamento da
sua pauta."
Na audiência com o governo, os posseiros entregam uma carta
feita e assinada por eles, contendo as propostas. Falam da atuação do
delegado, das ameaças e violências que sofrem da polícia e dos jagunços,
da situação de miséria. Vivem 5 meses na ocupação sem colher nada, a não
ser o pinhão nativo. A reivindicação principal é a terra para trabalhar, e
propõem que, se for preciso, pagam a longo prazo. Querem a garantia de
que ficarão nessa terra, sem despejo e com segurança, e ainda que o
INCRA agilizará a desapropriação
da área. O governador tomou as
providências em relação à segurança, para ficarem na área até resolver o
caso, mas remeteu ao INCRA, a questão da terra. Junto à Secretaria de
Segurança, os posseiros fizeram um relato denunciando
o abuso de
autoridade do delegado. Na sede do INCRA, obtiveram a garantia de um
completo levantamento da situação da área. A comissão ainda compareceu
à Assembléia Legislativa para apresentar um relato a alguns deputados.
Após as audiências, sempre acompanhados pela FETAESC, dão entrevista
coletiva à imprensa, relatando a sua situação na FBB.
A situação tensa ameaça não somente a presença dos posseiros
na área, mas envolve também pessoas ligadas diretamente ao apoio e
18. Idem, 24.07.1980.
Informação esta que acima de tudo tem o significado de
jogar com as contra-informações.
19. Jornal do Brasil, 14.11.1980, p. 8.
20
Cheiro de Terra - CPT/SC, n. 8, out./80.
176
BIBLOS,
Rio Grande,
6: 159 _176,1996·
assessoria. Por esse motivo, no dia 8 de novembro de 1980, mais de 2000
pessoas se reúnem em Campo Erê para um ato religioso de apoio e
solidariedade aos posseiros e outras pessoas acusadas. Considerando que
issc se dá no transcurso da redemocratização e numa cidade de pequeno
porte, seu destaque torna-se bem visível. O padre é acusado de ser
comunista e ameaçado de morte e de expulsão do pals" . Os fazendeiros
haviam prometido ocupar a praça da matriz no intuito de impedir o ato, mas
não cumpriram a ameaça, permanecendo só na intimidação.
A desapropriação da área ocorre, finalmente, após 7 meses de
resistência e negociações dos ocupantes, com a ajuda de entidades de
apoio. A desapropriação da área, envolta em tensão por interesse social,
tendo-se passado exatamente um mês após a caravana a Florianópolis,
ocorre por Decreto Federal de número 85.360, contemplando
área de
2.574ha, vindo a beneficiar
322 famílias.
A área passa para a
responsabilidade do INCRA, que realiza um levantamento do pessoal,
aponta critérios de seleção e informa que caberá a cada família
aproximadamente 15ha. Uma parte inclusive permaneceria como reserva
florestal. Dessa forma esse conflito mereceu atenção
publicamente
demonstrada por parte do governo federal.
A morosidade dos encaminhamentos cabíveis ao Judiciário e ao
INCRA (após três meses não possui a emissão de posse) é atestada
novamente num relatório entregue ao governador em fevereiro de 1981. Tal
relatório seria entregue pelos posseiros ao governador no dia 12, numa
visita a Campo Erê, mas este não os recebeu, sob a alegação de que
estavam programando um ato de protesto durante a visita. Conseguem
entregá-Io em mãos no subseqüente dia 26, em Chapecó. Neste, relatam a
morosidade do INCRA, que até o momento não emitira a posse da área nem
encaminhara outras questões relativas ao assentamento definitivo. Fazem
uma relação do que já produzem e reivindicam o reconhecimento
de
legitimidade da comissão de posseiros que esteve em Florianópolis.
Há notícias de que, já na colheita de 1981, os beneficiados pela
desapropriação da FBB fazem uma coleta de alimentos para as acampados
de Encruzilhada Natalino (RS). Alugam um caminhão e uma delegação leva
os alimentos, num claro gesto de fortalecer o intercâmbio entre as diversas
lutas pela terra. Esse gesto reflete a influência de setores da Igreja, além
das !entativas de trabalho associado, seja pelo mutirão, seja pela compra
COletivados instrumentos de trabalho. Mesmo após o término do conflito e o
assentamento definitivo, a participação efetiva na organização geral do
---------------------------ta
21 . Jornal db Brasil, 08.11.1980, p. 11. A propósito desse fato, convém lembrar o
h' SO dos POsseiros e padres do Araguaia, onde, em torno da posse. da terra, agentes da
ierarquia sofrem acusações idênticas e a expulsão do pais.
8ielOS,
Rio Grande,
6: 159 _ 176. 1996.
177
Movimento dos Sem-Terra não esmoreceu. Testemunhas declaram qUe
participam da organização dos assentados em outras áreas de reforma
agrária. O caso da FBB representou um teste para a resistência organizada
e formalizou alguns canais de negociação para casos posteriores. Foi um
espaço em que as entidades de apoio conseguiram medir seus objetivos em
meio de um conflito aberto.
Os acontecimentos
relatados acima mostram a importância da
intervenção do Estado como mediador nos conflitos agrários. Serve no mais
das vezes como interventor para evitar a radicalização das tensões sociais.
Isto é, define o campo do conflito em que se situam os movimentos sociais
e, nesse sentido, o Estado configura os limites e os alcances do movimento
social. Estabelece o que é impossível ao movimento social se propor
alcançar na conjuntura política em que se manifesta.
Os acontecimentos
colocados em questão marcam importantes
traços históricos da efetiva ocupação da Região Oeste catarinense. Por
mais que na atualidade aquela região seja apontada como tendo uma
situação agrária estável e distinguindo-se
pela relativa distribuição da
propriedade fundiária, esta continua a apresentar-se como um espaço onde
a questão agrária está na ordem do dia, nos debates, nas reivindicações e
nos numerosos conflitos.
BIBLIOGRAFIA
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
178
AURAS, Marli. Guerra do Contestado: organização e irmandade cabocla. São Paulo:
Cortez: Florianóplis: UFSC, 1984.
CHEIRO de Terra. Boletim da CPT/SC. (718) ago./out. 1980.
DIÁRIO DA MANHÃ. Chapecó, 19.08.1980; 22 e 24/07/1980.
ENCICLOPÉDIA dos municípios brasileiros. Rio de Janeiro. IBGE, 1959. v. 32.
FOLHA DE SÃO PAULO. Folhetim. 03.02.1980. p. 12.
JORNAL DO BRASIL. 20.09.1980, p. 10; 08.11.1980, p. 11; 14.11.1980, p. 08.
MACAULAY, Neill. A Coluna Prestes. São Paulo: Difel, s/d,. p. 78-87.
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis. Vozes,
1981.
O ESTADO DE SÃO PAULO. 04.07.1978. p. 8.
REGO, RUBENS M. L.. Terra de violência. São Paulo: USP, 1979. (Mimeo). Tese de
Mestrado.
ROCHA, Elton. Organizações rurais de base no oeste catarinense: movimentos do século
XX. Florianópolis: UFSC, 1985. (Mimeo).
SILVA, José Graziano. Estrutura agrária e produção de subsistência
na agricultura
brasileira. São Paulo: Hucitec, 1980.
SINGER, Paul et aI. Capital e trabalho no campo. São Paulo: Hucitec, 1979.
BIBlOS,
Rio Grande,
8: 159 _178,1996·
\\
Download

iporã do oeste